Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5900/17.6T8VNF.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
PLANO DE PAGAMENTOS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
VOTAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - O plano de pagamentos previsto nos artigos 222º - A a 222º - J do CIRE obedece ao princípio da igualdade entre credores previsto no art. 194º do CIRE, mas tal não implica um tratamento absolutamente igual, impondo antes que situações objetivamente diferentes sejam tratadas de modo diferente.

2 – Contudo, um plano que prevê que os créditos de uma instituição bancária sejam pagos na totalidade, quer a título de capital, quer a título de juros, ainda que um desses créditos esteja garantido por hipoteca, e os créditos comuns sejam perdoados em 80% de capital e 100% de juros, estabelece uma diferenciação desproporcionada e injustificada entre os credores, violando o princípio da igualdade referido.

3 – Em face do disposto no art. 212º, nº 2 – a) do CIRE, os credores cujos créditos não tenham sido afetados pelas medidas recuperatórias não podem votar o plano de pagamentos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

M. P. e M. F. iniciaram o presente processo especial para acordo de pagamentos. Na fase própria foi submetido à juiz o plano de pagamentos, tendo aquela procedido à sua homologação nos seguintes termos:

“Nos presentes autos de processo especial para acordo de pagamento de M. P. e M. F., considerando o teor do plano junto, e o resultado da votação do mesmo, aprovado com 80,68% dos votos, decido homologar, nos termos do disposto no art. 22º F, 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa , o plano de recuperação apresentado nestes autos.”

Inconformado veio o credor Banco X, SA, que votou desfavoravelmente o plano apresentado, recorrer formulando as seguintes Conclusões:

1 – O presente recurso tem por objeto o douto despacho de 21/02/2018, o qual homologou o acordo de pagamento entre os aqui Devedores e todos os seus credores, não obstante o voto desfavorável do aqui Recorrente.
2 – Considera o Recorrente que, decidindo como decidiu, o Mº Juiz a quo não fez correta interpretação dos factos nem adequada aplicação do direito.
3 – Uma vez que tal decisão não aprecia a legitimidade de quem requer o plano, nem analisa o conteúdo do mesmo e a sua expressão na esfera económica dos credores, sopesando apenas a votação dos mesmos, votação essa que teve em consideração o voto de um credor que não deveria ter tido direito ao voto.
4 – Assim sendo, o Recorrente está convicto que, reapreciada a matéria dos autos, e subsumindo-a nas normas legais aplicáveis, tal decisão será revogada.
5 – Antes de mais, cumpre referir que o valor atribuído à causa pelos Devedores não respeita o disposto no artigo 15.º do CIRE.
6 – Isto é, os Devedores atribuíram à causa o valor de € 2.000,00 quando na petição inicial confessam ter um ativo cujo valor é muitíssimo superior ao valor atribuído à causa.
7 – Assim sendo, o valor real da presente causa não poderá nunca ser inferior a € 30.000,01.
8 – De seguida, cumpre referir que os Devedores não cumprem os requisitos legais para o recurso ao PEAP.
9 – Isto porque, a verdade é que estes não se encontram em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas sim já em situação de insolvência.
10 – O seu passivo é elevadíssimo, ascendendo o mesmo ao valor de € 152.801,98.
11 – Acresce que, no espírito do próprio CIRE, não é relevante saber se os Devedores têm ainda possibilidade de pagar as suas dívidas, até porque, em boa verdade, nem têm, ou não tentariam impor um perdão de 80 % dos créditos reclamados pelos credores comuns.
12 – É evidente que os Devedores se encontram impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas, pelo deveriam ter-se apresentado à insolvência e não deveriam ter recorrido ao PEAP.
13 – Em segundo lugar, é também pacífico que, a homologação do plano, colocará o Recorrente numa situação menos favorável do que a que lhe adviria caso existisse plano de recuperação.
14 – O processo especial de revitalização é um verdadeiro processo negocial
Coletivo, o qual tem como fim a recuperação do Devedor através da reestruturação concertada dos seus débitos junto dos Credores.
15 – No entanto, sucede que a solução aqui espelhada e proposta pelos Devedores não pode ser vista como construtiva e muito menos satisfatória para o aqui Recorrente, bem como para o resto dos credores comuns.
16 – Existe uma clara desproporcionalidade entre a recuperação do devedor e o sacrifício dela decorrente, imposto aos credores comuns.
17 – Não se pode conceber que se pretende a aprovação de um plano que preveja, unilateralmente, um perdão de 80 % (!) dos créditos reconhecidos aos credores comuns.
18 – Não podemos olvidar que se de facto um dos fins do PER é o de permitir a recuperação económica do Devedor, a taxa de recuperação dos credores é o objetivo precípuo de qualquer processo previsto no CIRE.
19 – Acresce que a situação do aqui Recorrente no âmbito do plano é bem mais desfavorável quando comparada com a liquidação dos Devedores em processo de insolvência, uma vez que detém reserva de propriedade sobre a viatura financiada através do crédito reclamado.
20 – Assim, se o processo seguisse, quer pela via da execução, quer pela via da insolvência, o Recorrente teria a possibilidade de recuperar a viatura e utilizar o produto da sua venda para liquidação do crédito reclamado.
21 – A viatura em causa tem um valor de venda EUROTAX de 17.500,00 €, ou seja, num cenário de liquidação, seria suficiente para abater de imediato uma grande parte do crédito.
22 – É, assim, claro que o plano aqui discutido viola as legítimas expectativas e interesses subjacentes ao ressarcimento do Recorrente.
23 – Em terceiro lugar, cumpre não olvidar que o processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja possível a sua recuperação, estabelecer negociações com vista ao estabelecimento do referido acordo de reestruturação.
24 – Destarte, é princípio transversal de todo este processo o que resulta da própria lei – a negociação entre Devedores e Credor.
25 – Contudo, a verdade é que não houve qualquer iniciativa de negociação por parte dos Devedores com o aqui Recorrente.
26 – Nunca foi remetido ao aqui Recorrente o draft do plano para apreciação e nunca foi impetrada qualquer tentativa de contacto com o Recorrente, nem foi colhida a sua opinião.
27 – Os Devedores apenas negociaram e discutiram os termos do plano a apresentar com aqueles credores a quem pretendiam pagar os valores devidos na totalidade, credores esses que tinham, por si só, o poder de fazer aprovar o plano.
28 – Existiu, assim, uma clara violação não negligenciável das normas imperativas do artigo 17.º D, n.º 6 e do artigo 10.º do CIRE.
29 – Acresce que, por outro, entende o aqui Recorrente que deve ser negado o direito de voto aos credores que não sejam afetados pelas medidas propostas no plano de revitalização, ou seja, ao Credor Banco A, S.A..
30 – Prevê o plano apresentado, quanto ao referido Credor, o pagamento integral do saldo em dívida de cartão de crédito até ao dia da votação do plano, o pagamento de 100% do capital e juros das operações HPP e a manutenção do prazo e das garantias.
31 – É manifesto que o referido Credor não deveria ter tido direito de voto quanto à aprovação do plano apresentado, uma vez que as medidas previstas no mesmo não afetam o seu crédito.
32 – Dispõe a alínea a) do número 2 do artigo 212.º do CIRE que “não conferem o direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano”, o que terá de aplicar-se, forçosamente, ao crédito do Banco A, S.A..
33 – Pretende este comando evitar que Credores, cujos créditos não são beliscados pelo plano, comandem a sorte dos créditos dos demais, levando à aprovação de medidas que, deixando o seu absolutamente incólume, afetam, em maior ou menor medida, o património dos outros credores, cautelas que têm idêntica justificação quando está em causa a aprovação de um plano de revitalização.
34 - Não sendo afetados pelo plano, estes credores não têm verdadeiro interesse no resultado do plano especial de revitalização, devendo os credores que observam os seus créditos modificados pelo plano ser os únicos a decidir se este deve ser aprovado ou não.
35 - Significa isto que, sendo negado tal direito de voto, o plano apresentado pelos Devedores não consegue obter votação suficiente para poder ser aprovado, uma vez que não recolhe o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções nem consegue obter o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, e mais de metade destes votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
36 - Atenta o supra explanado, resulta, assim, claro que o plano deverá ser recusado, uma vez que apenas a contabilização indevida do voto do Banco A, S.A. permitiu a sua aprovação.
37 - Impõe-se assim, a não homologação do plano apresentado pelos Devedores, sob pena de violação do disposto no CIRE.

Nestes termos e, nos mais de direito aplicáveis que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso de apelação e revogando a decisão do Tribunal “a quo” que homologou o plano de recuperação dos devedores, substituindo-a por outra que recuse a homologação deste plano,
Assim se fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!

A credora Maria apresentou requerimento nos autos dizendo que adere ao recurso apresentado pelo Banco X.

Tendo em conta o disposto no art. 634º, nº 2 – a) do C. P. Civil e sendo certo que não estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, os assuntos invocados no recurso do Banco X só serão analisados relativamente ao recurso da credora acima identificada, na medida em que os interesses em discussão sejam comuns.
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Esta credora, na 1ª instância invocou a nulidade decorrente de ter manifestado a sua intenção de participar nas negociações, dizendo que foi confrontada com o plano de pagamentos não lhe tendo sido permitido participar nas negociações.

A existência ou não da invocada nulidade deveria ter sido conhecida na 1ª instância nos termos conjugados dos artigos 155º, 195º e 197º do CPC, já que esta não é uma nulidade da sentença e não é de conhecimento oficioso (v. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág. 24), mas não o foi pois a Srª Juiz não proferiu sobre a mesma qualquer despacho, não obstante a credora ter novamente invocado a sua existência antes da subida do recurso.

Assim, em rigor, o presente processo teria que baixar à 1ª instância para ser conhecida a mencionada nulidade, no entanto, entendemos que, ainda que tal nulidade exista, em face do que à frente vai ser decidido torna-se inútil a prolação de despacho sobre a mesma.

Foram apresentadas contra-alegações pelos devedores com as seguintes conclusões:

A) Os Devedores / Recorridos conformam-se, aderem e dão por reproduzido o aliás Mui Douto Despacho de Homologação do Acordo de Pagamento, proferido nestes autos, ao qual, nada mais teriam a acrescentar, até porque o que o Tribunal da 1ª Instância, explicou e fundamentou, de acordo com a lei em vigor.
B) Foram respeitados todos os requisitos legais, nomeadamente, dos artigos 17º D, e 212ª, ambos do CIRE.
C) O credor Banco A, tinha sempre direito e legitimidade para votar o plano, em virtude deste ter alterado os prazos de vencimento e carência, por forma a concluir-se se aceitava ou não o período de carência que lhe foi imposto no plano apresentado.
D) Lograram assim os Recorridos, obterem e reunirem o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, e lograram obter o voto favorável dos credores cujos créditos representam mais de metade dos créditos relacionados com o direto de voto.
E) Tudo isto ponderado, impõe-se a manutenção da homologação, por manifesto cumprimento das normas do CIRE, devendo pois, a Douta Decisão ser confirmada como é de justiça.
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Da delimitação do objeto do recurso:

O recorrente veio invocar no seu recurso a questão de o valor da causa não estar correto e de os Requerentes não estarem em situação de insolvência iminente ou em situação económica difícil mas sim em situação de insolvência, pelo que se deveriam ter apresentado à insolvência e não requerer o presente procedimento.

Visando os recursos ordinários o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu e sendo eles meios de impugnação e de correção de decisões judiciais e não meios para obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido (v. por todos Ac. R. C. de 23/5/12 in www.dgsi.pt ).

Conforme diz Abrantes Geraldes (in Os Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., pág. 98), as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais graus de jurisdição.

Ora, qualquer dos ora Recorrentes nunca se insurgiu contra o valor atribuído à causa pelos Requerentes nem veio arguir que aqueles não se encontravam em situação de beneficiar da possibilidade de requerer a homologação de plano de pagamentos.
Com efeito, os presentes autos deram entrada em juízo em 14/9/2017, em 15/9/17 foi proferido despacho a nomear administrador provisório, foram publicados editais e anúncios em 19/9/17, ambos os referidos credores constituíram mandatários nos autos (o Banco X em setembro de 2017 e Maria em fevereiro de 2016), o credor Banco X participou nas negociações e a credora Maria em outubro de 2017 manifestou junto do Sr. Administrador intenção de participar nessas negociações.

Assim, em qualquer dos momentos referidos poderiam ter arguido a inexistência dos requisitos necessários à discussão e aprovação de um plano de pagamentos, mas não o fizeram, aceitando participar nas negociações desse plano e portanto aceitando que os devedores estavam em condições de beneficiar da elaboração do mesmo.
Deste modo, não pode este tribunal agora conhecer dessa matéria nunca antes suscitada em 1ª instância.
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A questão a resolver, partindo das conclusões formuladas pelo apelante, como impõem os arts. 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil, será a seguinte:

- Analisar se o Plano de Pagamentos contém os elementos necessários à sua homologação.
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Factos com interesse para a decisão da presente causa:

- Por decisão proferida em 19/2/18 foi homologado o plano de pagamentos elaborado no âmbito da presente ação;
- Nesse plano relativamente às dívidas do Banco A, está previsto, nomeadamente, o pagamento integral do saldo em dívida do cartão de crédito aí identificado até ao dia da votação; pagamento de 100% da dívida de capital e juros das operações HPP; consolidação da dívida (capital + juros vencidos+ encargos) das operações HPP+ MO, sem qualquer perdão; carência de 30 dias para ambas as operações de HPP e MO; manutenção do prazo; alteração do regime HPP de JOV BONIFICADO para REGIME GERAL; manutenção das garantias;
- No mencionado plano, sob a epígrafe “créditos comuns” encontram-se mencionados, nomeadamente, os créditos dos recorrentes, estando aí previsto o seguinte plano de pagamentos:

- Montante a pagar: 20% do valor da dívida;
- Perdão: 80% do valor de capital; 100% de juros;
- Prazo (incluindo carência de capital): 84 meses;
- Carência de capital: 24 meses;
- Pagamento: 60 prestações mensais;
- Taxa de juro vincenda: ”0”.
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O Direito:

Diz-nos o art. 222º - F do CIRE, no seu nº 5 que à aprovação e homologação do plano de pagamentos se aplicam as regras respeitantes à aprovação e homologação do plano de insolvência.

Assim, dispõe o art. 215º do CIRE que “o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”.

Aqui, estão em causa as normas que se reportam ao dispositivo do plano de recuperação, bem como aos princípios que lhe devem estar subjacentes.

Referem Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª ed., pág. 782) que são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, dizendo ainda que o que se deve valorar é se interferem ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger.

No caso que nos interessa, a norma pertinente é a prescrita no art. 194º, nº 1, que consagra um princípio de igualdade entre os credores, nos termos seguintes: “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.”

Dizendo no seu nº 2 que “O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no cado de voto favorável”

O Plano deve pois tratar de forma igual o que é igual e de forma diferenciada quando presentes créditos de natureza diferente, sem prejuízo do consentimento do afetado, que pode ser tácito, nos termos previstos no nº2 da citada norma.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/3/15 (in www.dgsi.pt), um fundamento objetivo – porventura o mais claro – de diferenciação dos credores é a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados. Outra razão objetiva, razoável, suscetível de justificar diferença de tratamento, é, por exemplo, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contração de um e de outros. Realmente parece razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo. Outro motivo objetivo de diferenciação é, por exemplo, o valor dos créditos que, v.g., pode justificar prazos diferenciados para o seu pagamento.

Assim, por exemplo, a jurisprudência vem reconhecendo a admissibilidade de planos de recuperação nos quais, estando a essência o património do devedor onerado com uma garantia real (v.g imóvel/hipoteca) o crédito em função da qual ela foi estabelecida tem um tratamento claramente mais favorável do que os demais créditos simplesmente comuns (v. p. ex. Ac. do TRL de 23-1-2014 in www.dgsi.pt)

Deste modo, o princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, impondo antes que situações objetivamente diferentes sejam tratadas de modo diferente.

No caso concreto temos que sopesar se entre o tratamento dado, por um lado aos créditos do Banco A e, por outro, aos demais créditos é intoleravelmente desproporcionado, violando o disposto nos arts. 215º e 194º do CIRE.

Vejamos:

Da análise dos autos verificamos que o Banco A é detentora de dois créditos (no valor total de 61.530,56€), um relativo a empréstimo garantido por hipoteca voluntária e outro proveniente de contrato de utilização de cartão de crédito (no valor de 2.100,14€ em 17/1/18).

No plano, relativamente às dívidas do Banco A, está previsto, nomeadamente, o pagamento integral do saldo em dívida do cartão de crédito aí identificado até ao dia da votação; pagamento de 100% da dívida de capital e juros das operações HPP; consolidação da dívida (capital + juros vencidos+ encargos) das operações HPP+ MO, sem qualquer perdão; carência de 30 dias para ambas as operações de HPP e MO; manutenção do prazo; alteração do regime HPP de JOV BONIFICADO para REGIME GERAL; manutenção das garantias;

No mencionado plano, sob a epígrafe “créditos comuns” encontram-se mencionados, nomeadamente, os créditos dos recorrentes, estando aí previsto o seguinte plano de pagamentos:

- Montante a pagar: 20% do valor da dívida;
- Perdão: 80% do valor de capital; 100% de juros;
- Prazo (incluindo carência de capital): 84 meses;
- Carência de capital: 24 meses;
- Pagamento: 60 prestações mensais;
- Taxa de juro vincenda: ”0”.

No plano proposto existe uma diferenciação desproporcionada e injustificada em relação aos credores comuns. Na verdade, quanto a estes últimos prevê-se um perdão de 80% do capital e inexigibilidade dos juros vencidos e vincendos. Já quanto ao credor Banco A as dívidas mantêm-se praticamente imutáveis, quer a divida com garantia, quer a decorrente da utilização do cartão de crédito, que é uma dívida comum.

Não se vislumbra qualquer justificação material plausível para tão abrupta diferença.

Não obstante o plano ter sido aprovado com 80,68% dos votos favoráveis no sentido da aprovação de um plano de recuperação, não está o juiz desprovido de um poder/dever de fiscalização sobre a forma de aquisição processual de uma tal maioria, bem como sobre o respetivo conteúdo.

É o que resulta do nº 5 do art. 222º-F, por via da remissão aí operada para as normas do Título IX do CIRE, em especial as constantes dos arts. 215º e 216º. E nestas normas, constam fundamentos para, oficiosamente ou a requerimento de algum credor que a ele se tenha oposto, o juiz rejeitar a homologação de um plano de recuperação, ainda que aprovado pela maioria necessária dos votos dos credores.

É certo que o princípio da igualdade não deve proibir, sendo até compreensível que salvaguarde, um tratamento diferenciado entre o crédito garantido do Banco A e os créditos comuns, pois tal princípio, como acima já foi referido, não pode ter-se por absoluto, não impondo necessariamente uma total identidade de tratamento, mesmo entre créditos idênticos mas tal princípio não permite toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de diversa natureza. Pelo contrário, os valores inerentes a esse princípio não podem deixar de induzir critérios de proporcionalidade.
Ora, analisando o plano vemos que existe uma desigualdade clamorosa entre a credora Banco A e os restantes credores, pois enquanto os créditos da primeira não sofrem qualquer alteração que reduza o seu capital ou juros, os créditos comuns sofrem um “corte de 80% no capital e 100% nos juros.
Acresce que, o tratamento desfavorável não foi consentido pelos ora Recorrentes que votaram desfavoravelmente o plano (v. nº 2 do art. 194º do CIRE).

Por outro lado, a percentagem através da qual foi aprovado o plano foi conseguida exatamente com os votos da credora Banco A que detém 40,27% do valor total dos créditos e que não deveria ter votado, em face do que dispõe o art. 212º, nº 2 – a) do CIRE, pois a modificação do mencionado crédito resultante da alteração do regime do crédito de bonificado para regime geral, prejudica e não beneficia o interesse dos Requerentes em lograrem uma recuperação económica e os interesses dos restantes credores em "verem" salvaguardados os seus interesses económicos, pois implica um aumento da taxa de juro. Não se pode pois considerar que os mencionados créditos, de que é detentora o Banco A, tenham sido afetados pelas medidas recuperatórias, pelo que, não deveria ter sido atribuído direito de voto à mencionada credora, já que, tal credora nada perde com a homologação do plano, pelo contrário.

Devemos, pois, concluir, que tal plano de recuperação ofende o princípio da igualdade, por tratamento intoleravelmente desproporcionado entre os créditos do credor Banco A e os créditos comuns, tal como esse princípio se encontra consagrado no art. 194º do CIRE.
Nessa medida, deveria ter sido recusada a homologação do Plano de Pagamentos em análise.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e não homologando o plano apresentado.
Custas pelos devedores (art. 222º - F, nº 9, do CIRE) .
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Guimarães, 24 de maio de 2018

(Alexandra Maria Rolim Mendes)
(Maria de Purificação Carvalho)
(Maria dos Anjos Melo Nogueira)