Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7469/13.1TBBRG.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – No direito das contraordenações vale a exigência de tipicidade e a consequente determinabilidade dos tipos, mas a técnica legislativa neste Direito não tem de obedecer ao paradigma rígido da tipicidade no direito criminal. Os tipos contraordenacionais podem ter maior maleabilidade do que os que descrevem infrações criminais, contendo normas em branco, que remetem para critérios fixados pela própria Administração. Indispensável é que não obstem à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos.
II – Sendo «resíduo» qualquer substância ou objeto de que o detentor se desfaz, ou tem intenção ou obrigação de se desfazer (art. 3 do Dec.-Lei 178/2006 de 5-9), deve assim ser qualificado um objeto, vulgarmente conhecido como “contentor”, constituído por uma “caixa” de material ferroso que pode servir normalmente para depor ou guardar outros objetos, se o detentor o abandona ou dele se desfaz.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Por decisão proferida a 17 de Julho de 2013, o Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território aplicou uma coima no valor de € 3.750 à sociedade “S... Sociedade de Empreendimentos Urbanos, S.A., com sede na Rua M..., Braga pelo cometimento uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 5º nº1 e 67º nº1 a) do Decreto-Lei nº 178/2006, de 5/09, porquanto, em síntese, no dia 16 de Janeiro de 2011, a arguida, por intermédio dos seus representantes não encaminhou os resíduos de contentores para local devidamente licenciado para o efeito, não agindo com o cuidado a que estava obrigada e era capaz.

A arguida impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa.

Por sentença proferida em 22 de Abril de 2014, o tribunal singular do 3.º juízo criminal da comarca de Braga julgou totalmente improcedente o recurso e confirmou a decisão administrativa.

2. Inconformada, a S... - Sociedade de Empreendimentos Urbanos, S.A interpôs recurso dessa sentença, pedindo a revogação da decisão.

Das motivações, a recorrente extraiu as seguintes conclusões (transcrição nos seus precisos termos de fls. 144 e 145) :

“1° O conceito de “resíduo” constante do artigo 3.º/u) do D.L. n.º 178/2006, de 05.09 é demasiado amplo, expondo as empresas e os cidadãos à interpretação casuística e não criteriosa dos agentes autuantes.

2.º O Tribunal ‘” quo” não deu como provado se os contentores estavam ou não aptos ao fim para que foram criados, ou seja, se podiam ou não ser usados.

3.º O Tribunal ‘a quo” considerou verificada a infracção em face das factos provados nos artigos 3 e 4, os quais, contudo, se entende serem insuficientes para preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos da contra-ordenação.

4.º Afigura-se pressuposto indispensável à qualificação de algo como resíduo que o mesmo já não esteja apto ao fim para o qual foi criado.

5.º Considera-se não verificado a infracção por falta de um dos elementos do tipo, concretamente se os contentores ainda estavam aptos ao uso normal e corrente, com a consequente absolvição da Recorrente, pelo que ao não decidir desta forma a douta sentença recorrida violou o artigo 3°/u) do D.L. no DL. n° 178/2006, de 05.09.

6.º Subsidiariamente, entende a Recorrente que o conceito legal de “resíduo” não respeita os princípios da tipicidade e da legalidade, por não estar suficientemente densificado, abrindo campo para interpretações diversas.

7.º A douta sentença recorrida deu como provado o abandono dos contentores não por recurso à prova directa mas antes por apelo às regras da experi&ncia comum e juízos de normalidade.

8.º Em matéria contra-ordenacional a tipicidade da conduta tem de ser absolutamente definida, para que os arguidos não sejam condenados por presunção ou conclusão extraída das regras da experiência comum ou juízos de normalidade, o que evidencia por si a maior dificuldade na qualificação do facto ilícito.

9.º O artigo 3°/u) do D.L. n.º 178/2006 de 05.09 viola o princípio da tipicidade e o princípio da legalidade, bem como os artigos l e 2° do RGCC, devendo em consequência absolver-se a Recorrente da sua prática.

10.º A douta sentença recorrida violou os princípios da legalidade e da tipicidade em matéria contra-ordenacional e os artigos 1 e 2° do RGCO.”

O Ministério Público, representado pela magistrada no juízo criminal do Tribunal Judicial de Braga, apresentou resposta concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente.

3. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, onde conclui que não merece censura a qualificação jurídica da sentença recorrida e a conduta da arguida encontra-se devidamente descrita e prevista na lei, pelo que improcedem os argumentos expostos na motivação do recurso que assim deve improceder.

Não houve resposta ao parecer do Ministério Público.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e da juíza adjunta e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

4. Matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível, antes de mais, transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição nos seus precisos termos de fls. 139 a 140) :

1. A arguida S... - Sociedade de Empreendimentos Urbanos, S.A é uma sociedade anónima que se dedica à gestão de resíduos, designadamente resíduos urbanos, de construção civil e outros mais perigosos.

2. A referida arguida desfez-se de vários contentores em ferro que lhe pertenciam, abandonando-os num terreno situado no Lugar do P... , Padim da G..., Braga.

3. No dia 16 de Janeiro de 2011, pelas 16h30, tais contentores, que possuíam inscrita a designação “S...” em letras grandes e estavam bastante degradados, encontravam-se depositados no referido local, sem qualquer ordenamento que permitisse a sua gestão e respeito pelas normas ambientais.

4. Foram depositados pela arguida sem estarem protegidos das condições climatéricas, em contacto directo com o solo, sem que este estivesse impermeabilizado ou com qualquer outra protecção, infiltrando-se facilmente no solo, contaminando-o, bem como os lençóis freáticos.

5. Ao não assegurar a gestão dos referidos resíduos (materiais ferrosos e mais concretamente contentores em ferro), encaminhando-os para local adequado, a arguida não agiu com o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

6. A sociedade S... - Sociedade de Empreendimentos Urbanos, S.A emprega entre 40 a 50 trabalhadores.

7. Tem um lucro anual de pelo menos € 6 000,00.

Quanto à matéria de facto não provada, consta na sentença recorrida (transcrição nos seus precisos termos de fls. 140) :

Não se provou que os contentores em causa se destinassem a ser colocados em clientes da arguida, para armazenamento de resíduos.

Não se provou que todos os contentores estivessem virados ao contrário, para evitar a acumulação de água, aguardando pela colocação em clientes.

Não se provou que não representassem qualquer perigo para o ambiente nem que estivessem funcionais, isto é, aptos a serem utilizados para o fim a que se destinavam.”

5. Questões a decidir

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

O recurso da sentença judicial em processo de impugnação por contra ordenação abrange apenas matéria de direito (artigo 75º nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro).

O Tribunal da Relação pode conhecer ainda de facto, mas apenas nas hipóteses que constam do art. 410º nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal , aplicável ex-vi dos art. 41º nº 1 e 74º nº 4 do citado DL 433/82, ou seja, desde que, do texto da decisão recorrida resulte insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova.

Vem a sociedade arguida “S..., S.A.” condenada numa coima porquanto, em síntese, omitiu o dever de cuidado consistente em assegurar a gestão e encaminhar para local adequado vários contentores em ferro que lhe pertenciam.

Uma primeira questão suscitada pela recorrente reside em saber se a definição típica decorrente da conjugação do teor dos artigos 5.º n.º 1 e 67.º n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Decreto-Lei nº 178/2006 de 5 de Setembro ofende o princípio da legalidade e da tipicidade por excessiva amplitude do conceito de resíduo.

Como é sabido, o princípio da legalidade, com inscrição constitucional (artigo 29°, n° l) traduz, no conteúdo essencial, que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poene sine lege). Por tipicidade, entende-se a adequação da conduta ao tipo, ou seja, o enquadramento de um comportamento real à hipótese legal, preenchendo-se tal requisito quando determinada conduta encaixa exactamente na abstracção plasmada na lei. Na sua aplicação em matéria criminal, é necessário que o facto voluntário punível se encontre definido com rigor e determinabilidade. Como tal, essa descrição jurídica deverá ser formulada de uma forma tanto quanto possível precisa.

Apesar de assinalar a autonomia dogmática do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal, o Professor Figueiredo Dias entende que se transportam para o direito das contra-ordenações as garantias constitucionais atribuídas ao direito penal, nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável, o que implica necessariamente que também no direito das contra-ordenações vale a exigência de tipicidade e a consequente determinabilidade dos tipos (O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social in Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, I, 28)

Contudo, sempre se terá de aceitar a especialidade própria do regime do ilícito de mera ordenação social, permitindo uma maior flexibilidade. Nesse sentido, escreve o Professor Eduardo Correia, salientando que a actividade da Administração deve estar vinculada por uma particular ideia de legalidade o que pressupõe a tipicidade dos comportamentos que lhe estão na base. O que, aliás não exclui que os respectivos tipos possam ter maior maleabilidade do que aqueles que descrevem infracções criminais, e, assim, que a cada passo contenham normas em branco, remetendo para critérios fixados pela própria Administração com vista à realização das suas finalidades salutistas (Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, obra citada, p. 13).

Neste âmbito, o Tribunal Constitucional tem considerado que o preceito constitucional que consagra o princípio da tipicidade ou a exigência de clareza e determinação das normas penais incriminadoras pode ter aplicação diferente no campo das contra-ordenações. Como se escreveu no acórdão n.º 85/2012, de 15 de Fevereiro, importa sublinhar “a diferente natureza do ilícito, da censura e das sanções” entre o ilícito contraordenacional e o ilícito penal, o que justifica que os princípios que orientam o direito penal não sejam automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social. (…) É assim bem certo que a exigência de determinabilidade do tipo predominante no direito criminal não opera no domínio contraordenacional. (…)

Acresce ainda que “deve desde logo sublinhar-se que o simples facto de o tipo contraordenacional dever ser lido em conjugação com outras normas presentes no mesmo diploma não viola, por si só, qualquer princípio constitucional. Trata-se de uma técnica de tipificação dos ilícitos contraordenacionais através de remissões materiais, em que o tipo sancionatório remete para deveres tipificados no próprio Código. Neste contexto, “ao contrário da generalidade dos tipos incriminadores que prevêem condutas proibidas e, em imediata conexão com elas, uma pena, a técnica legislativa no Direito de mera ordenação social não tem de obedecer a este paradigma rígido da tipicidade. Pelo contrário, nesta área as funções heurística e motivadora das normas não se identificam com a norma de sanção, mas sim com a norma de conduta. Neste sentido, algumas funções da tipicidade penal são, no Direito de mera ordenação social, assumidas pelas próprias normas substantivas que impõem deveres, (…) (acessível in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120085.html) .

No que respeita aos conceitos indeterminados, também se entende que não há violação do princípio da legalidade e da sua teleologia garantística, mas é indispensável que a sua utilização não obste à determinabilidade objectiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos.

Está aqui em causa o conceito ou ideia de resíduo, relevante para o efeito de infracção ao ambiente.

Todos temos uma noção de resíduo como sendo “aquilo que sobra, que resta” e também assim se traduz uma matéria que fica depois de certas preparações ou combinações químicas” (Dicionário Editora).

Nos termos da definição legal que pode ser colhida do texto do artigo 3.º do Decreto-Lei nº 178/2006 de 5 de Setembro, constitui resíduo qualquer substância ou objeto de que o detentor se desfaz ou tem intenção ou obrigação de se desfazer, nomeadamente os previstos em Portaria dos Ministros da Economia, da Saúde, da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas e do Ambiente, em conformidade com o Catálogo Europeu de Resíduos, aprovado por decisão da Comissão Europeia.

Esta definição, que se completa pela indicação clara constante do artigo 2.º, segundo a qual o diploma se se destina a prevenir ou reduzir a produção de resíduos, o seu carácter nocivo e os impactes adversos decorrentes da sua produção e gestão, bem como a diminuição dos impactes associados à utilização dos recursos, de forma a melhorar a eficiência da sua utilização e a protecção do ambiente e da saúde humana, contém os elementos necessários para que qualquer cidadão compreenda o significado do termo e a partir daí entenda a descrição do comportamento ilícito. Apesar de envolver um conceito amplo, é, assim, perfeitamente possível saber quais são as condutas proibidas, como ainda antecipar, com segurança, a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.

Em nosso entendimento, não há dúvida de que um objecto vulgarmente conhecido como “contentor”, constituído por uma “caixa” de material ferroso que pode servir normalmente para depor ou guardar outros objectos, é em sim mesmo um resíduo, se o detentor o abandona ou dele se desfaz.

Neste âmbito, o preenchimento do tipo de ilícito contra-ordenacional não prevê, nem entendemos que o devesse prever, que o resíduo tenha perdido a utilidade.

A exigência de determinabilidade mostra-se respeitada, não se configurando qualquer intolerável compressão de direito fundamental, pelo que não ocorre a inconstitucionalidade invocada.

Nestes autos, a sociedade arguida “desfez-se” ou “abandonou” fora das suas instalações sete contentoresem avançado estado de degradação, em contacto directo com o solo e com sinais claros de estarem depositados no referido local há bastante tempo (alguns cobertos por silvas, arbustos e/ou terra, outros semienterrados no solo, omitindo o dever de gerir adequadamente os resíduos, agindo sem o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, assim cometendo a contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, nº 1 e 67.º, n.º 1, alínea a) e nº 3 do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro.

6. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação da arguida nas custas pela actividade processual a que deu causa, compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigos 92º nº 1 e 94º, ambos do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro e artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro).

De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC.

Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC

7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e em manter na íntegra a sentença recorrida.

Por ter decaído no recurso vai a sociedade arguida condenada nas custas com quatro UC de taxa de justiça.

Guimarães, 1 de Dezembro de 2014.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.

João Carlos Lee Ferreira

Maria Isabel Cerqueira