Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
373/16.3T9BCL.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: FURTO
FORNECIMENTO ELETRICIDADE
IN DUBIO PRO REO
ERRO NOTÓRIO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. A mera prova de que o arguido era um dos sócios e o único gerente de uma sociedade na data em que foi realizada a manipulação do contador da eletricidade fornecida ao respetivo estabelecimento comercial, de forma a que parte da energia consumida não fosse contabilizada, não permite ir ao ponto de estabelecer a conexão, para além de qualquer dúvida razoável, entre a autoria da apropriação de energia elétrica e o arguido.
Surgindo como resposta a esta incerteza o princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio constitucional da presunção de inocência.

II. A sentença que exclusivamente com base naquela factualidade e sua conjugação com as regras da experiência comum conclui ter sido o arguido – por intermédio de alguém a seu mando - o autor dos factos, enferma de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.

III. Neste caso, as regras da experiência comum não nos dizem sequer ser o arguido o único interessado em ver reduzida a conta de eletricidade da sociedade, de que não era o único sócio e no seio da qual se verificavam desentendimentos que determinaram um procedimento cautelar e uma ação judicial contemporâneos dos factos e que opunham fundamentalmente o arguido a uma outra sócia.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Maria José Matos.

I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 373/16.3T9BCL, do juízo local criminal de Barcelos, Juiz 2, da comarca de Braga, em que é arguido M. C., sendo demandados civis este último e a sociedade X – Acabamentos Têxteis, S. A., ambos com os demais sinais dos autos, foi realizada audiência de julgamento e, depois de neste Tribunal da Relação ter sido decretada a nulidade da sentença proferida a 19 de novembro de 2018, devolvidos os autos à 1ªinstância.

Aí foi de imediato designado o dia 24 de junho de 2019 para a leitura da sentença, diligência que foi iniciada com despacho do senhor Juiz a quo que indeferiu o requerimento do arguido M. C., nos seguintes termos:

«Veio o arguido M. C., através do requerimento que consta de fls. 942 a 944 dos autos, sustentar que a sentença a proferir não pode deixar de considerar o parecer por si junto aos autos, elaborado pelo Exmo. Senhor Eng. V. M..
Alega, para o efeito, que com a anulação da sentença, o parecer enquadra-se no disposto no artigo 165.º, do Código de Processo Civil, pois a audiência foi reaberta, nomeadamente para eventual produção de prova, como foi julgado pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

Apreciando e decidindo.

O “parecer” a que se refere o arguido M. C. foi por si junto aos autos quando o processo já se encontrava em fase de recurso, mais concretamente a fls. 903 e seguintes, tendo recaído sobre o mesmo o despacho de fls. 917, que o considerou manifestamente extemporâneo, face ao disposto no artigo 165.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, desconsiderando-o para efeitos da decisão a proferir.
De acordo com o disposto no artigo 165.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, os pareceres podem ser juntos até ao encerramento da discussão.
O momento em que a discussão se considerada encerrada encontra-se expressamente previsto no artigo 361.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, sendo certo que, no caso concreto ocorreu em 9 de Novembro de 2018, conforme se pode constatar do teor da acta de audiência de julgamento de fls. 716/717, da qual consta despacho a declarar, de forma expressa, o encerramento da discussão.
Por outro lado, a reabertura da audiência de julgamento encontra-se referenciada no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nos autos apenas a título eventual, como uma possibilidade, caso se entendesse necessário, e sempre para a repetição da prova já produzida.
Ora, ao designar data para a leitura da nova sentença, o Tribunal, ainda que de forma implícita, pronunciou-se no sentido da desnecessidade da repetição da prova já produzida, não se verificando, nessa conformidade, qualquer reabertura da audiência, mantendo-se assim encerrada a discussão da causa.
A isto acresce que, como se depreende do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, ainda que se julgasse necessária produção de prova para proferir a nova decisão, apenas haveria lugar à repetição daquela que já tinha sido anteriormente produzida, e nunca a valoração de qualquer outra não considerada no julgamento realizado nos autos.
Face ao exposto, indeferindo-se o requerido, decide-se não considerar, na nova decisão a proferir, o aludido parecer.»
*
Após, procedeu o senhor juiz à leitura da nova sentença, datada de 24 de junho de 2019 e depositada no mesmo dia, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decide-se:
Parte Crime
Julgar totalmente procedente o despacho de pronúncia e, em consequência condenar o arguido M. C. como autor material de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, 204, n.º 2, alínea a) e 202.º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Mais se condena ainda o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
-Parte Cível
Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido condenando-se os demandados M. C. e X – Acabamentos Têxteis, S. A., a pagar solidariamente à demandante Distribuição – Energia, S. A. a quantia de €78.046,34 €, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal de 4%, desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo de demandante e demandados na proporção de 1/100 para a primeira e 99/100 para os segundos – art.º 523.º do Código de Processo Penal e artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Boletins à Direcção dos Serviços de Identificação Criminal.
Notifique e deposite.»
*
Inconformados, o arguido e a demandante civil X – Acabamentos Têxteis, S. A. interpuseram RECURSOS:

A. do DESPACHO INTERLOCUTÓRIO, já supra transcrito, proferido no início da diligência marcada para a leitura da sentença;
B. da SENTENÇA proferida a 24 de junho de 2019 e depositada no mesmo dia.

Para o que apresentam a competente motivação que rematam com as seguintes conclusões:

«Do recurso do despacho proferido em 24-06-2019

1.ªPor requerimento de 24-4-2019, o arguido M. C. juntou aos autos um parecer técnico da autoria do Eng, Electrotécnico V. M., quando o processo se encontrava em fase de recurso, e inscrito em tabela, não tendo sido levado em conta no acórdão que decretou a nulidade da sentença proferida em 19-11-2018.
2.ªComo o acórdão que revogou aquela sentença declarou que devia “o processo regressar à primeira instância, para ser elaborada nova decisão final que, se necessário com recurso a repetição da prova, colmate as lacunas apontadas ao nível da omissão de factos alegados na acusação e na contestação”, através de requerimento de 17-06-2019, o arguido M. C., expondo as razões de facto e de direito que considerou pertinentes, declarou, e assim requereu, que “o parecer técnico que foi junto, que a Assistente não contraditou (nem o M.P), não (podia) deixar de ser considerado na sentença a proferir”.
3.ªNa sessão da audiência de julgamento, que fora marcada para as 9 horas e 30 minutos do dia 24-6-2019, o Tribunal, em despacho adrede proferido, após exposição dos fundamentos que julgou acertados, disse: “Face ao exposto, indeferindo-se o requerido, decide-se não considerar, na nova decisão a proferir- mas que até já estava deliberada como, implicitamente, a acta o comprova-, o aludido parecer”.
4.ªContudo o Exmo. Senhor Juiz não leu correctamente as normas que invocou, para sustentar a decisão.
5.ªNa verdade, quando na sentença foi escrito que, “De acordo com o disposto no artigo 165.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, os pareceres podem ser juntos até ao encerramento da discussão, a verdade é que, tal norma, tem mais uma palavra, o advérbio de tempo “sempre” e não tem a palavra “discussão” mas a palavra “audiência”.
Está lá escrito:
“O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres (…) de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento de audiência”.
5.ªE, por seu lado, o n.º 2 do art.º 361.º do CPP, na sua primeira parte diz: “Em seguida - após alegações e últimas declarações do arguido – o presidente declarada encerrada a discussão (…), não declara encerrada a audiência.
6.ªOra, após o encerramento da discussão, seguem-se as fases da deliberação – na qual até se pode decidir pela reabertura da fase da discussão – e da leitura e publicação da sentença. Na verdade a audiência de julgamento compreende, segundo o CPP as fases: dos actos introdutórios (art.ºs 329.º a 339.º); a fase da discussão (art.ºs 340.º a 364.º); a fase da deliberação (art.ºs 365.º a 372.º); e fase da leitura e publicação da sentença (art.ºs 373.º a 380.º).
7.ªÉ assim evidente que o parecer foi junto antes da leitura e publicação da sentença, posto até que esta tem a data do dia em que foi lida, e, formalmente, foi dada como proferida após a prolação do despacho sob recurso, como decorre da acta da sessão em que o despacho foi proferido e a sentença foi lida e publicada.
8.ªPorém as coisas não ocorreram assim, sendo certo que o indeferimento é posterior a deliberação da decisão (sentença) proferida.
E por isso o despacho é nulo por força do disposto no art.º 379.º, 1, c), 2.ª parte , do CPP, e art.º 613, 1 e 3 do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP.
9.ªMas sempre é uma decisão ilegal porque os pareceres podem ser juntos, sempre, até à leitura da sentença (como o demonstram, Maia Gonçalves, CPP anotado, 5.ª Ed., pág. 289 e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. ref., pág. 461).
10.ªA decisão recorrida fez leitura errada nas normas em que se louvou, invocando-as: art.ºs 165.º, 3 e 361.º, 2 do CPP. Mas mesmo que a letra ou sentido dessas normas acolhessem a interpretação dada na decisão recorrida, sempre essa interpretação era inconstitucional, pois acolhia normas que “viviam” por si e para si, e não para regular justos e fundamentais direitos da pessoa humana, que mais já não valeria que nem qualquer objecto transaccionável.
Essa interpretação é inconstitucional, como se procurou demonstrar nos parágrafos 29 a 33 da Fundamentação, pois, desconforme o disposto nos art.ºs 202.º, 1 e 2, 1.º, 2.º, 20.º, 1 e 4 e 18.º, 1 da Constituição.
11.ªO despacho em causa deve ser revogado, assim como a sentença que desconsiderou as matérias em causa neste recurso.

B
Da sentença proferida e lida e publicada em 24-06-2019
12.ªPor força de acórdão do TRG que decretou a nulidade da sentença proferida, nestes autos, em 19-11-2018, “para ser elaborada nova decisão final que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas ao nível da omissão de factos alegados na acusação e na contestação, delas retirando as necessárias consequências jurídico-penais e decidindo em conformidade”.
Apesar de tudo inculcar que se justificava a repetição da prova, como até resulta do que atrás foi alegado a respeito do despacho aí referido, o Tribunal dispensou-se de repetição de prova, acrescentou mais uma particularidade aos factos julgados provados, declarou 4 factos como não provados, e mais 4 “subjectivos” parágrafos à motivação, repetindo o dispositivo.
(Como se demonstrou na fundamentação, e se demonstrará nas sínteses que se seguem, as nulidades anteriormente invocadas até recrudesceram).
I
13.ªNa verdade o Tribunal manteve a condenação do recorrente M. C. em pena de prisão (cuja execução suspendeu) de 2 anos e 9 meses, e na obrigação solidária, com a sociedade “X, S.A”, também recorrente, de pagar à Distribuição De Energia a quantia de 78.046,34 €, acrescida de juros legais, a título de indemnização.
Para assim condenar os RECORRENTES, o Tribunal julgou provado que o Recorrente M. C. mandou alguém quebrar os selos do contador de energia eléctrica nas instalações fabris da X, em 23-6-2013. E que o fez “com o propósito concretizado de se apropriar de energia eléctrica no valor se 78.046,34 €” (sub. nossos), tendo essa apropriação decorrido entre 22-06-2013 e 06-10-2015.
14.ªNão foi feita qualquer prova directa nem indirecta de que o recorrente M. C. tivesse quebrado tais selos e que se tivesse apropriado de qualquer energia.
15.ªO fundamento-motivo da condenação do recorrente M. C. é a mera suspeita, pelo facto de ele, ao tempo, ser gerente da sociedade, que o Tribunal elegeu como regra da experiência comum, quando disse (na pág. 8 da sentença) que, “por ser sócio – e não era nem é como decorre da certidão de registo da sociedade – e o único gerente da sociedade”, e ser a “única pessoa interessada em proceder às mencionadas alterações do contador, que naturalmente implicavam um benefício ilegítimo para a sociedade por si explorada, correspondente ao valor da energia consumida e não contabilizada, permitindo assim uma diminuição relevante nos custos fixos da exploração da empresa”.
16.ªPara inculpar e condenar o recorrente M. C., o Tribunal decidiu com base na estrita suspeita, pois os argumentos que aduziu, como se fundamentos-motivo fossem, apenas traduzem uma suspeita, que os factos infirmam.
Mas que até enfermam de erros de factos e de conceito.
Na verdade, como mostra a certidão do registo comercial da sociedade recorrente, o recorrente M. C. não era, nem é, sócio da sociedade, nem a sociedade tinha um único sócio.
Por essa razão ele não era interessado nos benefícios alegadamente assim obtidos, e nunca seria o único. Por isso não era “a sociedade por si explorada”, nem as pessoas exploram sociedades.
E o facto alegadamente praticado não proporcionaria diminuição de “custos fixos da exploração”, pois os consumos de energia não têm tal natureza.
17.ªComo a suspeita não é prova de uma apropriação de energia, o recorrente M. C. deverá ser absolvido da acusação e pedido cível, com base nas normas que a seguir se invocam.
18.ªA recorrente “X, S.A” também deverá ser absolvida, porque, se fosse verdade (e não é) que a energia foi apropriada por acto e dolo de outrem, tal facto não produz qualquer responsabilidade da “X”, quer extracontratual, quer contratual, porque a Distribuição De Energia, S.A não fornecia energia à Demandada.
19.ªPor força do que vai concluído, o recurso deverá proceder.

II
19.ªPara o caso de não ser considerado suficiente o que ora foi concluído, sempre o recurso deverá proceder por outras razões.
20.ª Porque postergados, e assim violados, do inquérito à sentença, passando pela instrução, neste recurso são considerados, como pontos normativos essenciais, princípios fundamentais, bem como os direitos fundamentais do cidadão (neste caso dos recorrentes) consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP), da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), (em que estas normas de direito internacional são direito constitucional, por força do disposto no art.º 8.º da Constituição), os quais se aplicam directamente por força do disposto no art.º 18.º, 1 da Constituição.
21.ªAssim, foram sistematicamente violados neste processo, em prejuízo dos recorrentes, maxime do recorrente M. C., os princípios (e os direitos deles emergentes, que têm a mesma designação) de:
i- O princípio e o direito à presunção de inocência (art.ºs 32.º, 2 do CRP, 11.º, 1 da DUDH: 14.º, 2 do PIDCP; 6.º, 2 da CEDH e 48.º, 1 da CDFUE).
ii- Os princípios e os direitos ao acusatório e ao contraditório (art.º 32.º, 5 da CRP, 6.º, 3 da CEDH e 48.º, 2 da CDFUE).
iii- O princípio “in dubio pro reo”, implícito no princípio da presunção de inocência.
Estes princípios são pedra basilar de Estado de direito que radica no princípio da EMINENTE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, consagrado no art.º 1.º da CRP, e que se estrutura através dos princípios fundamentais, consagrados no artigo 2.º, do estado de direito, de direito, da segurança jurídica e da confiança jurídica, sempre interpretados pelo princípio de justiça, consagrado, também, no artigo 1.º (todos da CRP).
22.ªPor força da ora indicada normatividade de natureza constitucional, as normas do processo penal, não podem ofender aqueles princípios constitucionais, nem os direitos pessoais dele emergentes, não só pela sua natureza de fundamentais, mas até pelo que dispõe o art.º 204.º da constituição. Consequentemente, as disposições contidas no art.º 127.º do C.P.P, como as que constam dos seus art.ºs 368.º, 2 e sobretudo, no 374.º, 2, deverão respeitar aquela normatividade constitucional, de modo criterioso.
23.ªAssim, com base em normas ordinárias, mormente ao “abrigo” do art.º 127.º do C.P.P, a presunção de inocência não pode ser ilidida com base em qualquer presunção admitida em direito como meio de prova, sejam as presunções legais, sejam as judiciais (art.ºs 350.º e 351.º do C.C), muito menos com base numa suspeição.
As presunções – salvo a de inocência que é um direito – são, quer em LÓGICA quer em TEORIA DO CONHECIMENTO, um juízo que resulta de um raciocínio indutivo. E por isso é um juízo assertório – o predicado convém ao sujeito, mas não necessariamente.
Por isso, o direito à presunção de inocência não pode ser destruído por qualquer forma de presunção.(E, por maioria de razão, por suspeita...) Como Karl Poppel o demonstrou, as inferências indutivas apenas servem para enunciar hipóteses, mas só o juízo dedutivo, dentro do perímetro determinado pela sua falseabilidade, dá (quase) garantias para ser formado um juízo apodíctico, que outro não pode ser o que respeita a cada facto julgado provado, que é o predicado que convém necessariamente ao sujeito lógico.
O juízo assertório nunca pode pois ser demonstração – que até nem é bem o mesmo que ilidir – de que o Arguido praticou necessariamente um ou mais factos que concretizam a prática de um crime.
O juízo assertório é, por definição, um juízo de dúvida. Por isso, com base em tal juízo nunca um Tribunal pode dar como provado um tal facto, pois violará o princípio da presunção de inocência do arguido. Desse princípio exsuda, por isso, o princípio “in dubio pro reo” - que é corolário daquele princípio.
24.ªO arguido só podia pois ser condenado com base em juízos apodícticos pela prática de factos que integrem um tipo legal de crime, e com culpa – dolosa ou negligente.
Ora, para que esse direito fundamental – presuntivamente inocente – não seja violado – e desde logo por um tribunal –, os factos julgados provados têm que corresponder a juizos apodícticos, obtidos por raciocínios (inferências) dedutivos.
Na verdade, ao formular os termos lógicos que o levarão à conclusão de que tal facto foi praticado (e não devia) ou não foi praticado (e devia), o juiz depara-se com um conjunto mais ou menos elevado de meios (probatórios) que terá de avaliar. E é do ser, sentido e/ou significado desses meios que ele recolhe a informação que lhe permite afirmar que tal facto foi praticado. E, para o afirmar, tem que, cognitiva e eticamente, poder dizer que, pelo menos, compreendeu a informação que esse meio lhe deu – o documento, a perícia, o depoimento...
E isto não é contrariado pelo tão propagado quão equívoco princípio de que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade (?) competente” - que só pode ser o juiz...
Essa “coisa” das “regras da experiência” - que, também em regra, são sistematicamente invocadas mas não enunciadas, pelo que são um enigma – tem, a “aboná-la”, um precedente histórico, a que podemos chamar o “síndroma de Galileu”. Que tenham algum valor hermenêutico, importa reconhecê-lo … O que não vale é não enunciar a “regra da experiência”, e aonde ela conduziu.
A “livre convicção” - muitas vezes obnubilada no discurso sentencial - tem levado muita gente à cadeia: uns justamente (dando aqui de barato a justiça de prender, mas sem que a prova fosse evidente), muitas outras porque o juiz (ou juízes) tiveram um “palpite”. E a convicção, para o julgador, manifestou-se falsamente como juízo apodíctico.
25.ªAssim, a parte do art.º 127.º do C.P.P, atendendo os princípios da presunção de inocência e de que a dúvida favorece o arguido, que fala das “regras da experiência”, outra coisa não deve significar que os juízes devem ter em conta as práticas e significados culturais do meio, das circunstâncias culturais dos envolvidos, como hoje nos ensinam as filosofias hermenêutica e fenomenológica e os dados das demais disciplinas do comportamento.
Quanto à parte que diz que “a prova é apreciada segundo (…) a livre convicção da entidade competente” (o legislador terá evitado a palavra juiz por causa dos “colectivos”), é uma norma que contende flagrantemente com os referidos princípios da presunção de inocência e de “in dubio pro reo”.
É uma regra que estimula a discricionaridade, e que não controla a arbitrariedade, em muitas situações.
26.ªA convicção é uma crença pessoal, é uma certeza íntima, é uma fé sem reservas.
A convicção não é – enquanto substantivo que é – um estado partilhável, mesmo quando juízo cognitivo. Cada um tem a sua convicção. E, por isso, quando a prova é apreciada por duas ou mais pessoas, não há uma convicção, pois a convicção não é colectiva... A convicção é um estado da consciência desencadeado pelas sensações, que se tornam em percepções individuais – que podem ser erros ou até ilusões...Quando não, alucinações...
27.ªO disposto no artigo 127.º do C.P.P, até por respeito aos direitos fundamentais de que são correlato, implica a interpretação aclarativa. Essa norma mais não significa que o juiz estará livre de qualquer tipo ou forma de constrangimento, salvo dos deveres de se fazer assistir de todos os meios para, de forma cognitiva e eticamente inatacáveis, fazer juízos cognitivos de prova que mereçam ser efectivamente qualificados como apodícticos, quando são juízos que demonstram a existência de factos que integram um tipo legal de crime.
28.ªDevendo respeitar assim os critérios constitucionais ora descritos, o Tribunal deve ainda respeitar, e obrigar a esse respeito, os princípios do acusatório e do contraditório, na sua pureza constitucional (que não partilham a sua normatividade com o investigatóri...).

Gomes Canotilho e Vital Moreira dizem que o acusatório, “significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento” , pois “trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidades penal do arguido”. Consequentemente:

- O arguido, apenas e só pode ser julgado pelos factos constantes da acusação.
- As provas da acusação serem, apenas e só, as que constam do despacho de acusação.
- A acusação não pode promover, nem o juiz possa requisitar, após a apresentação da acusação à distribuição, qualquer meio de prova em “favor” da tese da acusação.
- Na produção da prova da acusação em julgamento, à defesa compete sempre a última instância.

Na verdade, sendo a instrução contraditória um simulacro, é inadmissível que o Arguido, contra quem foram recolhidos meios de prova – que a experiência prova quanto o modo prejudica os arguidos – quando e como quis, dispondo – o acusador – de meios físicos, humanos e de autoridade que o Arguido nunca terá, apenas tendo 20 dias para isso tudo contrariar, será maquiavélico estar ainda sujeito a:

- ser confrontado com alteração dos factos;
- novos meios de prova, sem ter tempo para averiguar o que elas podem trazer de novo e contradizer.

Por seu lado o “contraditório” não está confinado ao papel de “contraponto” ou correspectivo do acusatório, mas é, sobretudo, em julgamento, e na contradição da acusação, um verdadeiro direito fundamental do arguido.
Sendo esta a perspectiva que aqui nos interessa, do “contraditório” exsuda assim o “direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos traduzidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo” (autores cit.).
29.ºOs tribunais têm pois de fazer uma aplicação das leis ordinárias de modo a respeitarem, na sua pureza, os princípios da Dignidade Eminente da Pessoa Humana, pois o respeito e promoção da Pessoa como sumo valor da existência, é a causa primeira e o fim último da ordem jurídica. Assim como os princípios de justiça, do Estado de direito, de direito, da segurança e da confiança jurídica, da presunção de inocência, do “in dubio pro reo”, do acusatório e do contraditório, são princípios subordinados àquele “princípio-primeiro”, e ao serviço da sua razão ou “fim-último” - a Pessoa Humana.
30.ªÉ por todas essas razões que, quando em causa está essa dignidade, os tribunais não podem julgar factos como provados com base em juízos de inferência indutiva – que são juízos assertórios -, e nunca com base em suspeições que nem para a constituição de arguido bastam.
31.ªComo se demonstrou nas conclusões 1.ª a 7.ª, o recorrente M. C. foi condenado pela prática de factos, com dolo, que integram o tipo legal de furto, com base em raciocínios de suspeição, como decorre da motivação descrita pelo Tribunal Suspeitando que ele praticou, com culpa, esses factos, o Tribunal julgou-os provados.
32.ªOs valores que dão sentido aos princípios constitucionais invocados impedem (pois proíbem) os tribunais de julgar provados factos e culpas, com base em raciocínios indutivos, mormente a partir de presunções, e, muito menos, de suspeições.
33.ªAcrescem a esses princípios, e que assim abrigam, os novos contributos das neurociências e da filosofia da consciência, que demonstram, a impossibilidade de “quantificar” a “parcela” de livre-arbítrio que possa existir em qualquer situação de prática de um crime, e que até põem em dúvida a existência do livre-arbítrio. Em tais circunstâncias , a culpa, ou não existe, ou o seu grau é indeterminável. Reconhecendo-se o quanto custa a renegação de dogmas, pelo menos tirem-se consequências das dúvidas que vieram para ficar.
34.ªTomando aqui as palavras do Prof. Eduardo Correia, a culpa é “censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por não ter agido de modo diverso”, estando “tal pensamento ligado à aceitação da liberdade do agente, à aceitação do seu 'poder de agir doutra maneira'”.

“Para se poder censurar o agente por não ter actuado de modo diverso, e, portanto para o tornar culpado pelo facto, será sempre necessário averiguar se ele, no caso concreto, tinha a suficiente liberdade de determinação; e assim será necessário investigar:

1.º – dum ponto de vista endógeno, se o agente era imputável;
2.º – dum ponto de vista exógeno, se não havia quaisquer circunstâncias exteriores, na moldura das quais se desenvolveu o facto, que se configurassem de tal modo que arrastassem o agente irresistivelmente para a sua prática, roubando-lhe toda a possibilidade de se comportar diferentemente;
3.º – finalmente, se o facto se pode imputar pessoalmente ao agente a título de dolo ou negligência.
Elementos do juízo de culpa serão pois: a imputabilidade do agente; a sua actuação dolosa ou por negligência; a inexistência de circunstâncias que tornam não exigível outro comportamento”.
35.ªEsta, ou idêntica formulação, não tem hoje, aderência à realidade, mais não sendo, enquanto afirmado conhecimento, mero idealismo psicológico. O bem e o mal que se praticam na sociedade, são, essencialmente, produtos sociais.

III
36.ª O Tribunal julgou provados, no essencial, os factos seguintes:

1.º- O arguido M. C. é sócio da sociedade “X – Cardação de Malhas, Lda.” (doravante, “X”), desde a sua constituição e início de actividade, em 31/01/1990, até à actualidade.
2.º- Para além disso, o arguido exerceu a gerência de facto da sociedade “X”, desde 31/01/1990 até 25/03/2011 e de 03/04/2013 até 08/01/2016, data em que esta empresa foi transformada em sociedade anónima.
3.º- No período compreendido entre 14/07/2014 e 18/06/2015, apesar das suas funções de gerente terem sido suspensas por força de decisão judicial, o argui manteve-se no exercício da gerência de facto da sociedade X.
4.º- A referida sociedade tem como objecto a actividade comercial de acabamentos de malhas têxteis, nomeadamente cardar, laminar e esmerilar, encontrando-se as suas instalações industriais sedeadas no Lugar …, Apartado …, Barcelos.
5.º- No âmbito da sua actividade, a sociedade “X” celebrou um contrato de fornecimento de energia eléctrica em regime de baixa tensão especial, com um dos comercializadores que operam no mercado, cujos efeitos se iniciaram após a instalação da correspondente instalação eléctrica, em 21/06/2012, a cujo local de consumo foi atribuído o número 7242676 (o sub. foi agora acrescentado).
6.º- No 22/06/2013 alguém actuando a mando do arguido, quebrou os selos do contador de energia eléctrica instalado no local de consumo referido no ponto anterior, apertando os fios das correntes S1 e S2 sobre os isolamentos e shunts medidos entre as correntes S1 com a T2 e a S2 com a T1, manipulando, assim, o equipamento de telecontagem e de potência, de forma a que parte da energia consumida pelo estabelecimento industrial “X” não fosse contabilizada.
7.º- A partir dessa data até ao dia 06/10/2015, data em que foi realizada a vistoria por funcionários da Distribuição De Energia, a energia de uma dessas fases (fase 2), para além de não corresponder ao escalão efectivamente contratado, não foi contabilizada pelo contador e, consequentemente, os respectivos consumos não foram cobrados, nem facturados.
8.º- O valor global da energia consumida e não contabilizada no período temporal supra descrito ascende a 78.046,34 € - 62.108kwh (energia activa super vazio), no valor de 4.813,35€; 105.905kwh (energia activa vazio), no valor de 9.351,43€; 97.789kwh (energia activa ponta), no valor de 21.083,31€; 235.767kwh (energia activa cheias), no valor de 29.824,46€;1.343kwh (potência contratada), no valor de 881,93€; e 832,24kwh (potência em horas de ponta), no valor de 12.091,86€.
9.º- Ao actuar do modo descrito, agiu o arguido, livre e consciente, com o propósito concretizado de se apropriar de energia eléctrica no valor de 78.046,34 €, efectivamente consumida pela “X”, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade e em prejuízo do legítimo dono.
10.º- Sabia também que a sua conduta era proibida e punida por lei.
37.ªTal decisão resultou de juízos de inferência a partir de uma suspeição, onde as regras da experiência em que o Tribunal, mais não foram que suspeições e erros de análise de alguns elementos de facto, e onde a livre convicção foi poder não foi função.
Ora, as regras da experiência são, apenas e só, as que têm sustentação científica. E as que forem eleitas como orientadoras da verdade que se proclama terão de ser devidamente enunciadas para que a sua validez possa ser testada pelo povo soberano. A partir desses elementos é que se constrói a premissa concreta – e por conseguinte a menor – que concretizará, ou não, cada um dele, num dos elementos do tipo.
A livre convicção mais não pode ser que ausência de constrangimentos na busca da verdade, sejam de natureza activa ou passiva. O juiz não pode estar submetido a qualquer forma de pressão física, moral ou sócio-cultural, que o force a não dizer o que os saberes pertinentes lhe mostram, como não pode sofrer o constrangimento de dizer uma verdade que não se fez evidente ao seu espírito, por falta de conhecimento, sem recorrer, por preconceito, as faculdades que lhe conferem o disposto no art.º 601.º, 1 do C.P.C, ex vi art.º 4.º do C.P.P.
Ora, quando estas exigências não são respeitadas, cuja demonstração do respeito ou falta dele é revelada na fundamentação da decisão, mormente a de facto, que conterá pertinente análise critica das provas, tal decisão, como diz o Tribunal da Relação de Guimarães é nula e inconstitucional, porque contende com o disposto nos art.ºs 205.º, 1, 32.º, 1 e 18.º, 1 da Constituição a esse nível. E, esclarecendo diz o TRG que “Fundamentar, ao nível gnoseológico, é partilhar com os outros os factos e os raciocínios que subjazem a determinada proposição, sob pena de o arbítrio e o discricionaridade não terem qualquer controle. Fundamentar, ao nível processual, é assumir, para si e perante outros, a responsabilidade do acto que se pratica, convencendo a sua justeza e imparcialidade”. (Ac. no Proc. n.º 1768/03-2 de 1.6.2004).
37.ªA verdade proclamada numa sentença penal terá, assim, de ser uma 'verdade' comungável, mas foi proclamada de modo a merecer tal comunhão.

IV
A sentença recorrida enferma de nulidades e de erros de julgamento dos factos e de motivação.
38.ªNos termos da lei o Tribunal deve enumerar os factos julgados provados e os julgados não provados, que sejam alegados nas contestações de arguidos e demandos e os que resultam da discussão da causa.
O Tribunal não fez tal enumeração dos factos alegados nos artigos 17 a 26 da contestação do recorrente M. C., que assim não apreciou.
Caso esses factos tivessem sido apreciados e julgados provados, necessariamente o Arguido e a Demandada seriam absolvidos.
Por esta perspectiva a sentença é nula, como decorre do disposto nos art.ºs 20.º, 4 da Constituição e art.ºs 374.º, 2 e 379.º, 1, a) e c) e 410.º, 2, c) do C.P.P.
39.ªO Tribunal não podia ter julgado provados os factos dos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 5.º da Fundamentação de facto.
40.ªO descrito no artigo 1.º deve ser eliminado porque não é verdade, conforme a documentação junta aos autos o comprova, nomeadamente a certidão do registo da sociedade, que o recorrente M. C. fora seu sócio desde a sua fundação e início da sua actividade até à actualidade.
Esse facto é idóneo para indicar que o M. C. tivesse interesse directo na apropriação ilícita de energia, quando, no período de tempo em causa, ele já era, desde 2011, sócio da sociedade.
Este erro de julgamento evidencia uma inaceitável desatenção, que acentuou a suspeição de que o Recorrente tinha praticado o furto alegado.
41.ª O facto do artigo 2.º dos factos julgados provados não corresponde inteiramente a tal matéria da acusação, mas aí devia ter sido incluído que a sociedade foi gerida pela testemunha Maria, desde 25/03/2011 e 3/04/2013.
42.ªO facto do artigo 3.º deve ser eliminado porque absolutamente alheio o facto dos autos, a não ser que, antijuridicamente, cumpre a finalidade de aumentar suspeitas sobre o Recorrente.
43.ªO facto do artigo 5.º deve ser eliminado porque, dos autos e de todos os depoimentos, e ainda da natureza das coisas, resulta que a fábrica da sociedade recorrente seria abastecida de energia eléctrica desde 1990, e que carece de significado jurídico a mera alusão a um contratante que não é identificado, e que, fossem verdadeiros os factos dos artigos 6.º a 9.º, era essa desconhecida entidade que teria legitimidade para ser assistente e demandante, sendo ainda certo que esse contrato de fornecimento de energia prova-se por documento (art.ºs 364.º, 1 do CC. E aos autos nunca foi junto esse aludido contrato.
44.ªOs factos dos artigos 6.º a 10.º também devem ser julgados não provados, por falta de prova.
45.ªOs factos dos artigos 6.º e 7.º foram assentes sem a pertinente fundamentação probatória e ostensivos vícios judicativos.
Tais factos inculcam que o Tribunal formam a sua convicção a partir da suspeição de interesse directo do Arguido, que sempre fora sócio da sociedade, erro já evidenciado na conclusão 40.ª.
Essa suspeição reforçou-se com o valor que o Tribunal atribuiu às testemunhas A. L. e J. C., que terão feito a vistoria, as quais, ainda que contradições e claras falsidades do J. C., pretenderam demonstrar que a vitória fora feita, segundo o A. L., na presença da testemunha J. V., funcionário da “X”, e na presença do M. C., segundo J. C..
No ajuizamento desses factos, o Tribunal desconsiderou os depoimentos do J. V. e do Arguido que demonstraram que a vistoria foi feita sem a presença de qualquer representante da sociedade.
E descorou também o testemunho dos próprios A. L. e J. C. e A. M. que confirmaram, no essencial, os factos nos artigos 17 a 26 da contestação do Arguido, que o Tribunal voltou a postergar. Assim, daí resulta que, a ser verdade que os selos foram quebrados e o contador manipulado, isso só podia ser feito por funcionários da Distribuição De Energia.
46.ªO modo como os vistoriadores agiram, e o modo como tentaram (e com êxito) convencer o Tribunal de que fizeram a vistoria perante representantes da sociedade, ao que acresce o facto de a substituição dos selos quebrados só poder ser feita por funcionários da Distribuição De Energia, lança a incontornável dúvida de que os selos e a manipulação alegada sejam factos verdadeiros.
Mas do que dúvida não pode ficar é que nenhuma prova foi feita de que os selos foram quebrados e a manipulação foi feita, no dia 22-06-2013, como foi demonstrado no parecer técnico que foi junto aos autos.
47.ªOs factos dos artigos 7.º e 8.º foram fixados com base no pressuposto de que, de facto, os selos do contador foram quebrados, bem como teriam sido feitas as manipulações, referidas no artigo 6.º, e no pressuposto de que a quebra de facturação de energia nesse período era consequência do alegado furto.
48.ªOra, como foi demonstrado pela testemunha Dr. V. V., que documentou por escrito, com base nos consumos, por parte da sociedade, dos anos anteriores ao período em causa e no ano imediatamente seguinte, os consumos efectivamente facturados (sem a presumida energia furtada) nesse período estavam na mesma linha do que antes era facturado, assim como depois continuou a estar, como o demonstraram os mapas que foram juntos.
Assim, caso tivesse sido efectivamente consumida a energia alegadamente furtada, como se demonstrou no parágrafo 31, esse consumo saía da linha média, no período em causa, com agravamentos de entre 27,88% a 40,86% ao ano, enquanto que a produção da fabrica, nesse período baixou; no ano de 2013 (a partir de Junho desse ano) de 824.883,84 € de ano anterior para 712.676,91 €; no ano de 2014 baixou para 503.504,66 €; ano de 2015 baixou para 545.172,22 €.
E, no ano de 2016, quando a facturação de energia subiu para valores normais, a produção da sociedade, que já tinha assinalado uma pequena retoma no ano anterior, também se aproximou da produção de 2012, atingindo 720.943,37€.
49.ªAs causas da baixa de produção da empresa, no período em causa, com o equivalente (menos) consumo de energia, foram demonstradas pelos testemunhos do Dr. V. V. e J. V. e pelo depoimento do Arguido. A quebra da produção foi causa pela abertura de uma empresa concorrente, que, durante esse período, tirou muita clientela à sociedade. Essa empresa foi criada pela testemunha M. L., sócia e gerente da Demandada, durante muitos anos, cujo comportamento, quer em julgamento, quer pela documentação que “generosamente” ofereceu no inquérito, não só confirma as causas da quebra da produção, como justificaria outras medidas.
50.ªO parecer do Eng. V. M., para além de demonstrar que não é possível verificar o dia em que os selos (alegadamente quebrados) foram quebrados, também demonstrou que, verificada “a existência de perdas de energia, no perímetro “abastecido”, a Distribuição De Energia, por telecontagem, pode fazer averiguações a cada “contador/cliente”, fazendo descargas de consumos reais em kWh e por fase, e apurar o que se passa. No entanto – salientou -, nesta situação não é crível que tenham sido feitas verificações sem actuação durante 836 dias”.
Este evidencia uma coisa relevante: mesmo que a Distribuição De Energia não tivesse actuado “durante 836 dias”, sempre deveria dispor da documentação respeitante às “descargas de consumos reais em kWh” que fizera, e juntá-los aos autos, omissão que funda a conclusão de que os cálculos que a Assistente fez assentaram em pressupostos não verificada.
51.ªE no que respeita ao modo como o cálculo de energia foi feita, de que foram juntas cópias dos documentos por que demonstrativos desse cálculo, o parecer em causa esclarece que esses cálculos não eram passíveis, quando aí foi escrito:
“(...) Partindo do princípio que os dois TI estavam mal ligados, através do fator multiplicativo 1,5, sobre os consumos facturados, a Distribuição De Energia encontrou os consumos que entendeu terem sido furtados, supondo que a empresa tinha produzido nos valores normais.

Dadas as respostas às perguntas formuladas, importa esclarecer dois pontos:

O primeiro: mandam as boas práticas que, ao efectuar-se uma inspecção aos sistemas de contagem de energia, antes de abrirem o sistema os inspectores devem solicitar a presença do consumidor ou quem o represente, esclarecendo-o da importância de se fazer assessorar por pessoa especializada, para que dúvidas não prevaleçam sobre o que foi verificado.
O segundo: O mapa de consumos facturados (com a indicação dos que a Distribuição De Energia presumiu) inculca que há uma relação entre o produto e o consumo de energia de relativa constância, e que, no caso, do consumo presumindo corresponder à verdade, então o consumo, no período em causa, exponenciou-se. Como o mapa em causa cobre os anos de 2013 e 2015, o mesmo não evidencia a relação de Junho a Dezembro de 2013, nem a relação de Janeiro a 6 de Outubro de 2015. Todavia, como todo o ano de 2014 está dentro do período em causa, aí verifica-se que, a ser verdade o que foi decidido, nesse anos, os 13,55% de energia facturada, em função da produção desse ano, e que estava dentro dos padrões médios anteriores, passava para 20,45% do produto, ou seja era um consumo de energia superior em cerca de 50 %.
54.ªOs factos dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, e 5.º da matéria de facto deve assim ser julgada não provada, não só por falta de prova testemunhal, mas também por força da documentação que consta dos autos.
55.ªPor seu lado, os factos dos artigos 6.ª a 10.ª devem ser julgados não provados pelas razões anteriormente aduzidas, relativas à falta de prova, mas também porque foram julgadas provados com base num raciocínio de inferencia indutiva, com base numa suspeita. Essa suspeita assentou no facto do M. C. ser único gerente da sociedade, e no falso pressuposto de que ele era o único sócio da sociedade e que colheria assim o proveito do dano sofrido pela Demandante. Ora, nem a sociedade tinha um só sócio, como ele não era sócio da sociedade nem fora seu fundador. E por isso disso não tivera qualquer proveito.
56.ªComo a motivação também mostra, ela não é o que o seu nome diz, pois nada motiva, salvo o referido na conclusão anterior, mas com os graves erros aí notados.
57.ªNa verdade quando aprecia, criticamente, os testemunhos de A. L. e J. C. (relevando as falsidades dos seus depoimentos, sendo ostensivas as do segundo, sem nada que os justificasse) bem como os das testemunhas José e D. P., o Tribunal fixou-se em aspectos de natureza conclusiva, sem qualquer especificação dos múltiplos elementos que eles utilizaram nas suas narrativas.
Por isso, qualquer pessoa de cultura média (mesmo média alta) que leia tal fundamentação não compreenderá por que razões foram julgados os factos dos artigos 6.º a 10.º da fundamentação de facto, nem poderá analisar criticamente esses mesmos factos, de modo a ficar convencido da justeza da decisão.
58.ªPor outro lado, essa motivação, com breves alusões aos depoimentos das testemunhas J. V., A. M. e V. V., obnubilou o que estas testemunhas comprovaram, aí até deu um sentido diferente ao que este disse quando não há correspondência matemática, entre produção e consumo de energia, adulterando o sentido da afirmação.
59.ªDo depoimento do J. V. associado ao do recorrente M. C., resulta que é falso que ele tivesse assistido à inspecção, não sendo assim verdade que ele “acompanhou a acção inspectiva”, que os verificadores não quiseram, assim, que fosse conferida essa inspecção.
60.ªDo depoimento do A. M., associado ao auto de inspecção, resulta desde logo (e até segundo este auto) que, pelo menos, a “tampa superior”, que impede o acesso ao contador, estava “Devidamente selada”, ou seja com selos e ganchos exclusivos da DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA. O que significa que a alteração do contador, implicando a violação dos selos da “Tampa de bornes”, segundo a sua explicação, só poderia ser feita por representantes da Distribuição De Energia, pois ninguém podia romper os selos exteriores e recolocar a situação com materiais exclusivos da Distribuição De Energia, explicando também que a telecontagem não individualiza os desvios de energia feitos por um, entre os diversos consumidores de um dado ramal. Se individualizasse, o fornecedor não intervinha só ao fim de 28 meses.
61.ªO depoimento do contabilista V. V., com os documentos em que se apoiou, com indicação dos documentos fiscais que indicou como comprovativos, demonstraria os factos dos parágrafos 27 a 31 da fundamentação, demonstrativos de que a Demandada não obteve quaisquer proveitos pelo que nunca poderia ter havido desvio de energia.
62.ªA motivação, mormente conclusiva quanto aos depoimentos das testemunhas A. L., J. C., J. S. e D. P., e com insignificantes alusões, e omissas no essencial dos depoimentos das testemunhas J. V., A. M. e V. V., mostra que os factos dos artiogos 6.º a 10.º da fundamentação não deviam ter sido julgados provados, enquanto os factos referidos na conclusão 28.ª, deviam ter sido julgados provados.
Foi assim violado o disposto no art.º 20.º, 4 da Constituição e art.ºs 374.º, 2, 379.º, 1, c) e 410.º, 2, c) do C.P.P, e uma especial violação do disposto no art.º 127.º deste Código.
63.ªE, assim, tivera o Tribunal cumprido as disposições legais ora referidas analisando objectivamente os testemunhos referidos na conclusão anterior, teria percebido que esses depoimentos mostram:
1) O modo como a inspecção foi feita sem a presença de qualquer representante da empresa, que não foram convidados a assistir à inspecção, e a quem só foi dado noticía do “resultado”.
2) Que a energia facturada à “X”, no período de 22/06/2013 a 06/10/2015, é correspondente ao produto por esta facturado, tendo-se em conta as correspondências anterior e posterior, entre a energia facturada e a produção facturada pela empresa.
3) Que a selagem da porta que dá acesso ao local do contador e a tampa de borne desse contador, está selada com selos e fios exclusivamente produzidos para a Distribuição De Energia e com menção do número que lhes é atribuído.
4) Que, no caso do rompimento dos lacres e fios referidos, não há outros no mercado que os possam substituir.
5) Que só os serviços da Distribuição De Energia têm os elementos necessários para fazer a substituição caso a porta e tampa referidos sejam violados.
6) Que num dado local, com vários consumidores em que todos são servidos pelo mesmo ramal, de distribuição de energia eléctrica, não é possível determinar, por telecontagem, qual (ou quais) desses consumidores está a apropriar-se da energia que está a ser desviada do ramal.
7) Que, os cálculos feitos partiram do pressuposto falso: da energia consumida até ao momento que a produção da empresa começou a baixar, baixa de produção causada pela concorrência da Maria.

Acresce que:

64.ªA sociedade recorrente alegou que não era parte legítima e que a sua eventual responsabilidade estavam prescrita, tendo o Tribunal julgado improcedente tais alegações, sendo certo que a Distribuição De Energia também não tem legitimidade para ser assistente e demandante, nestes autos.
65.ªDa acusação e do artigo 9.º da fundamentação de facto consta que, com o comportamento descrito nos artigos 6.º, 7.º e 8.º dessa fundamentação, “agiu o arguido (…) com o propósito concretizado de se apropriar de emergia eléctrica no valor de 78.046,34 €” (sub. nos.)
Como não foi alegado nem julgado provado que a “X” tivesse praticado factos de apropriação dessa energia, nem que dela se apropriou, logo esta sociedade é parte ilegítima no pedido de indemnização cível (art.º 30.º e 278.º, 1, d) do C.P.C).
66.ªNo artigo 1.º da “Matéria de facto não provada” que a Assistente e Demandante não provou que “O contrato de fornecimento de energia électrica descrito no ponto 5 dos factos provados tivesse sido celebrado” consigo, “Distribuição – Energia, S.A”, “assistente/demandante” nestes autos.
Também por esta razão a Distribuição De Energia não tinha – nem tem – legitimidade para o constituir assistente, nem para demandar o Arguido e a Demandada.
67.ªAcrescem às ilegitimidades da Distribuição De Energia o interesse em agir, pois não foi alegado nem provado que o Arguido ou a Demandada tenham causado qualquer dano à Distribuição De Energia, através de factos adrede especificados, que não existem em qualquer alegação ou prova na sentença.
68.ªO pedido de indemnização cível deve ainda ser revogado, não só porque nada foi contratado entre a Demandada e a Distribuição De Energia, ao contrário do que diz o artigo 7.º da fundamentação de facto, como não foram alegados quaisquer factos cuja prática resultasse dano para a Distribuição De Energia, ou falta de pagamento que lhe fosse devido por energia dela obtida pela Demandada.
Da matéria de facto julgada provada não decorrem factos que integram as previsões dos art.ºs 562.º e segts. do CC.»
*
Os recursos foram admitidos para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, no qual se pronuncia pela improcedência quer do recurso da sentença quer do interposto da sentença final.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
1. Questões a decidir.

Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, as questões a decidir reconduzem-se, em síntese, às seguintes:

A. nulidade da sentença, nos termos do disposto nos artigos 374.º, 2 e 379.º, 1, a) e c) do Código de Processo Penal;
B. verificação de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal; violação da presunção de inocência através da violação do princípio in dubio pro reo;
C. Impugnação matéria facto, por erro de julgamento; violação dos princípios do acusatório e do contraditório.
*
2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida:
«Matéria de facto provada
Discutida a causa e com interesse para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1.º- O arguido M. C. é sócio da sociedade “X – Cardação de Malhas, Lda.” (doravante, “X”), desde a sua constituição e início de actividade, em 31/01/1990, até à actualidade.
2.º- Para além disso, o arguido exerceu a gerência de facto da sociedade “X”, desde 31/01/1990 até 25/03/2011 e de 03/04/2013 até 08/01/2016, data em que esta empresa foi transformada em sociedade anónima.
3.º- No período compreendido entre 14/07/2014 e 18/06/2015, apesar das suas funções de gerente terem sido suspensas por força de decisão judicial, o arguido manteve-se no exercício da gerência de facto da sociedade X.
4.º- A referida sociedade tem como objecto a actividade comercial de acabamentos de malhas têxteis, nomeadamente cardar, laminar e esmerilar, encontrando-se as suas instalações industriais sedeadas no Lugar …, Apartado …, Barcelos.
5.º- No âmbito da sua actividade, a sociedade “X” celebrou um contrato de fornecimento de energia eléctrica em regime de baixa tensão especial, com um dos comercializadores que operam no mercado, cujos efeitos se iniciaram após a instalação da correspondente instalação eléctrica, em 21/06/2012, a cujo local de consumo foi atribuído o número 7242676.
6.º- No dia 22/06/2013 alguém actuando a mando do arguido, quebrou os selos do contador de energia eléctrica instalado no local de consumo referido no ponto anterior, apertando os fios das correntes S1 e S2 sobre os isolamentos e shunts medidos entre as correntes S1 com a T2 e a S2 com a T1, manipulando, assim, o equipamento de telecontagem e de potência, de forma a que parte da energia consumida pelo estabelecimento industrial “X” não fosse contabilizada.
7.º- A partir dessa data até ao dia 06/10/2015, data em que foi realizada a vistoria por funcionários da Distribuição De Energia, a energia de uma dessas fases (fase 2), para além de não corresponder ao escalão efectivamente contratado, não foi contabilizada pelo contador e, consequentemente, os respectivos consumos não foram cobrados, nem facturados.
8.º- O valor global da energia consumida e não contabilizada no período temporal supra descrito ascende a 78.046,34 € - 62.108kwh (energia activa super vazio), no valor de 4.813,35€; 105.905kwh (energia activa vazio), no valor de 9.351,43€; 97.789kwh (energia activa ponta), no valor de 21.083,31€; 235.767kwh (energia activa cheias), no valor de 29.824,46€;1.343kwh (potência contratada), no valor de 881,93€; e 832,24kwh (potência em horas de ponta), no valor de 12.091,86€.
9.º- Ao actuar do modo descrito, agiu o arguido, livre e consciente, com o propósito concretizado de se apropriar de energia eléctrica no valor de 78.046,34 €, efectivamente consumida pela “X”, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade e em prejuízo do legítimo dono.
10.º- Sabia também que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

11.º- A demandante Distribuição – Energia, S. A. exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão no concelho de Barcelos.
12.º-Na qualidade de concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica, a demandante procede à ligação à rede pública das instalações de consumo que para tanto tenham celebrado os respectivos contratos de fornecimento de energia eléctrica com os comercializadores que operam no mercado livre ou no mercado regulado.
13.º- A demandante teve um custo de € 70,70 com a detecção e eliminação da anomalia supra descrita nos pontos 6 e 7.
14.º- O arguido dispõe dos antecedentes criminais que constam do certificado do registo criminal junto a fls. 683 e seguintes dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
15.º- Trabalha na sociedade X, auferindo um vencimento mensal de e 565,00.
16.º- Vive sozinho em casa de um irmão.
*
Matéria de facto não provada:

Com interesse para a boa decisão da causa não resultou provado que:

1.º- O contrato de fornecimento de energia eléctrica descrito no ponto 5 dos factos provados tivesse sido celebrado com a assistente/demandante Distribuição – Energia, S. A.
2.º- Os selos do contador de energia eléctrica instalado no local de consumo 7242676 tivessem sido quebrados em 06/10/2015, pelos funcionários da Distribuição De Energia que realizar a vistoria descrita no ponto 7 dos factos provados.
3.º- As quebras de consumo de energia eléctrica detectadas no local de consumo 7242676 no período temporal descrito nos pontos 6 e 7 dos factos provados se devessem a quebras de produção da X.
4.º- O aumento de consumo de energia ocorrido no local de consumo 7242676 após a data da realização da vistoria descrita no ponto 7 dos factos provados se devesse à retoma de parte da quebra de produção da X.
*
Motivação da decisão:

Cumpre, em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º2, do Código de Processo Penal, indicar as provas que serviram para fundar a convicção do tribunal.
Os factos dados por provados nos pontos 1 a 4 têm como principal referência as declarações prestadas pelo próprio arguido que, de forma inequívoca, assumiu a responsabilidade exclusiva pela gerência de facto da sociedade X, com exclusão do período temporal compreendido entre 25/03/2011 e 03/04/2013, altura em que atribuiu o exercício dessas funções à sua ex-mulher, M. L., em conformidade com aquilo que, a esse respeito, consta da certidão permanente daquela sociedade, junta a fls. 44 e seguintes dos autos (documento do qual também se extrai o objecto social da X, nos termos dados por provados).
Admitiu ainda o arguido a existência de um contrato de fornecimento de energia eléctrica celebrado pela X, circunstância que era corroborada pelo documento de fls. 96 dos autos, do qual resulta evidenciada a existência de 3 contratos de fornecimento de energia eléctrica para o local de consumo 7242676 (identificado como aquele em que a X tem as suas instalações industriais), o último dos quais com início em 21/06/2012.
Neste segmento, a matéria dada por inverificada em 1 explica-se, desde logo, face ao teor dos esclarecimentos prestados pela própria assistente/demandante Distribuição a fls. 143/144, que afasta, de forma inequívoca, a sua intervenção na actividade de comercialização de energia eléctrica, bem como em quaisquer contratos celebrados com os respectivos consumidores, invocando para esse efeito o regime legal estabelecido, que veio separar as actividades de distribuição e comercialização de energia eléctrica, cabendo-lhe a si apenas a primeira dessas funções.
Por outro lado, contrariamente àquilo que alegava a assistente/demandante Distribuição no ponto 3 da aludida peça processual, nem sequer resultou confirmado que o vínculo contratual em questão tivesse sido estabelecido com a Distribuição De Energia Comercial – Comercialização de Energia, S. A., bastando, para tanto, atentar ao teor dos esclarecimentos por esta entidade a fls. 182, informando que não dispunha de “qualquer registo de contrato de fornecimento de energia eléctrica em nome de X-CARDAÇÃO DE MALHAS LDA, com o NIF …”.
Já a matéria que consta dos pontos 6 e 7 dos factos provados sustenta-se, fundamentalmente, no depoimento de A. L., electricista de contagem da Distribuição De Energia, que no dia 06.10.2015 se deslocou às instalações da X, na companhia de J. C. (seu colega), em cumprimento de uma ordem de serviço emitida nesse sentido, explicando que, logo que tiveram acesso ao contador que se encontrava no interior das instalações daquela sociedade, de imediato se aperceberam que o selo da tampa inferior desse contador tinha sido violado, acabando depois por concluir, através de inspecção mais pormenorizada, que tinha havido manipulação dos fios das correntes, de modo a fazer com que a energia de uma das fases (fase 2), não fosse contabilizada.
Soube a testemunha explicar, detalhadamente, a forma como essa intervenção tinha sido realizada, rejeitando, de forma inequívoca a possibilidade da existência de qualquer defeito ou deficiência do contador.
Aliás, a este propósito, a testemunha explicou que por se tratar de um equipamento com telecontagem, que fornecia diariamente dados respeitantes aos consumos de energia, foi possível comparar, no dia em que foi realizada a vistoria, os consumos efectivamente verificados no local com aqueles que estavam a ser comunicados à distância, daí resultando uma diferença de cerca de 1/3 (para mais) do valor realmente consumido em relação ao comunicado.
Ainda nesta parte, sublinhou a testemunha que esse diferencial deixou de existir logo que foi eliminada a anomalia, passando aqueles dois valores a coincidir.
Por outro lado, o relato da testemunha tinha pleno acolhimento no teor do auto de vistoria do ponto de medição de fls. 25, elaborado na sequência da intervenção por aquele descrita, documento com o qual foi confrontado.
Importa ainda salientar que esta testemunha demonstrou, ao longo do seu depoimento, uma grande segurança e precisão na descrição dos factos por si presenciados, reconhecendo inclusivamente que, daquilo que se recordava, o arguido M. C. não se encontrava presente nas instalações da X quando teve início a vistoria, só aí aparecendo depois de ter sido comunicada a anomalia detectada ao “encarregado geral” que os recebeu e acompanhou a acção inspectiva.
Portanto, nesta parte, o relato da testemunha dava acolhimento àquilo que, posteriormente, foi referido pelo arguido, sustentando este que, naquela ocasião, estava em Santo Tirso, sendo alertado telefonicamente pela testemunha J. V. para a existência do problema, só aí se deslocando para as instalações da empresa.
No entanto, a circunstância do arguido não ter assistido à vistoria realizada ao contador de energia eléctrica, era absolutamente irrelevante para a formação da convicção do Tribunal, desde logo porque, em momento algum, se colocou sequer em hipótese a eventualidade de algum dos técnicos da Distribuição De Energia que realizaram a vistoria em causa terem, de algum modo, “fabricado” os factos sobre os quais versaram os respectivos depoimentos.
Esta linha de raciocínio serve também explicar a resposta negativa que se forneceu à matéria constante do ponto 2 dos factos não provados, que se encontrava em clara oposição com a relevância e o crédito atribuído ao depoimento de A. L., resultando desse relato, de forma inequívoca, que na altura em que foi realizada a acção inspectiva os selos do contador de energia eléctrica já se encontravam quebrados, mais especificamente o selo da tampa inferior desse contador, sendo precisamente essa anomalia que lhe despertou a atenção, alertando-o para a possibilidade de adulteração do contador que, efectivamente, veio a ser posteriormente confirmada.
Já o depoimento de J. C., não obstante confirmar, na sua globalidade, o depoimento do já referido A. L., não teve a importância ou relevância na formação da convicção do Tribunal atribuída ao seu colega de trabalho, uma vez que revelou limitações de memória e incorreu em imprecisões (uma delas relacionada com a presença do arguido no local), que afectaram a fiabilidade do seu relato.
Conseguiu-se chegar à conclusão segura que foi no dia 22/06/2013 que o contador foi objecto da manipulação descrita nos factos provados, através do depoimento de J. S., engenheiro electrotécnico da Distribuição De Energia, que lidera a equipa responsável pela análise de anomalias similares à discutida nos autos, reiterando a testemunha que, neste caso, se tratava inequivocamente de manipulação do contador, em que uma das fases (fase 2) escapava à contabilização da energia consumida, sendo que da análise do histórico da X respeitante à potência requisitada à rede resultava uma queda abrupta a partir de 22.06.2013, voltando esse consumo a ser coincidente com o registado no período anterior àquela data em 06.10.2015, altura em que foi corrigida a anomalia.
Este depoimento foi conjugado com o teor dos documentos de fls. 501 e 502, dos quais a testemunha se socorreu para exemplificar, a ausência de corrente na T2 antes da intervenção do dia 06.10.2015 e a existência de corrente depois de realizada essa intervenção.
Concomitantemente, o depoimento de D. P., colaborador da Distribuição De Energia, serviu para quantificar o valor global da energia consumida e não contabilizada, explicando os valores alcançados, nos termos explicitados a fls. 503 a 505, com aplicação ao caso concreto de uma majoração de 1.5, com respeito aos critérios legais de cálculo previstos para estas situações no artigo 6.º, n.º 1, do Decreto/Lei n.º 328/90, de 22 de Outubro, tendo como referência que em causa estava uma fase cujo consumo não foi contabilizado,
Contundente foi ainda o depoimento da testemunha, quando afastou qualquer possibilidade do consumo de energia nas instalações da X poder estar a ser realizado em apenas duas fases, argumentando que, caso assim fosse, em 06.10.2015, quando foi rectificada a anomalia, apenas essas duas fases continuariam a registar consumos, coisa que não sucedeu.
Naturalmente que resultando, da valoração conjugada desta prova, como um dado seguro e inabalável, não só a existência de manipulação do contador, como também o valor da energia efectivamente consumida e não contabilizada, nenhuma relevância se atribuiu ao documento apresentado pela X a fls. 703, no qual se pretendia sustentar uma aparente inconsistência entre o aumento exponencial do consumo de energia no período em que se verificou aquela ausência de contabilização e a quebra de facturação ocorrida nesse mesmo período.
Nessa medida, foi também inócuo o depoimento de V. S. contabilista certificado da X, responsável pela elaboração do documento em causa, sendo certo que, depois de manifestar estranheza pelos consumos de energia que estão imputados à demandada sociedade no período em causa, também acabou por reconhecer que, apesar de haver uma relação directa entre o consumo de electricidade e a facturação da empresa, essa correspondência não é matemática, existindo outros factores susceptíveis de a alterar.
Esta argumentação serve, ainda, como explicação para a matéria dada como inverificada nos pontos 3 e 4.
No que concerne à participação do arguido nos factos, nos termos dados por provados, as regras da experiência levavam a concluir que aquele, por ser sócio e o único gerente da X na altura em que foi realizada a manipulação do contador, era a única pessoa interessada em proceder às mencionadas alterações do contador, que naturalmente implicavam um benefício ilegítimo para a sociedade por si explorada, correspondente ao valor da energia consumida e não contabilizada, permitindo assim uma diminuição relevante nos custos fixos de exploração da empresa.
Concomitantemente, eram ainda as regras da experiencia a ditar que, nestas situações, os infractores servem-se de terceiros para realizar este tipo de acções fraudulentas, dado que, como salientou a testemunha A. L., nem toda a gente está habilitada a fazer uma intervenção deste género, que pressupõe conhecimento técnico especializado, sendo certo que, no caso concreto, inexistia qualquer elemento que apontasse no sentido de que, efectivamente, o arguido dispusesse desse tipo de conhecimentos.
No remanescente, o dolo do arguido afirma-se ainda com recurso a critérios de normalidade, tendo como referência os factos por si praticados.
Os depoimentos de M. L. e J. A. foram absolutamente irrelevantes para a formação da convicção do Tribunal, dado que não evidenciaram qualquer conhecimento dos factos em discussão.
Já os depoimentos prestados por R. T. e J. V., ambos colaboradores da X, serviram apenas para confirmar que na altura em que teve inicio a vistoria realizada no dia 06.10.2015, o arguido não se encontrava presente nas instalações da empresa.
Irrelevante foi também o depoimento de A. M., que presta serviços de electricidade à X, desde logo tendo em consideração que a testemunha nenhum conhecimento revelou quanto a manipulação existente no contador da empresa, sendo certo que, conforme também salientou, a relação de trabalho com aquela sociedade apenas teve início em 2015, ou seja, muito depois da altura em que teve lugar a manipulação daquele contador.
No que se reporta aos antecedentes criminais o tribunal valorou o certificado do registo criminal junto aos autos.
Finalmente, no que concerne, quanto às actuais condições sócio económicas do arguido, socorreu-se o Tribunal das declarações por este prestadas a esse propósito em audiência de julgamento.»
***
3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

A. RECURSO INTERLOCUTÓRIO

Os recorrentes sustentam que, tal como requereram, a sentença recorrida – proferida pelo Tribunal a quo na sequência de acórdão da Relação a anular a anterior – não poderia deixar de considerar o parecer técnico da autoria do Eng.º, Eletrotécnico V. M., junto aos autos pelo arguido M. C. antes do processo ter sido devolvido à 1ª instância para ser elaborada nova decisão final, se necessário com recurso a repetição de prova.
Vejamos.
O parecer em causa foi junto aos autos pelo arguido em 24.4.2019, quando o processo se encontrava em fase de recurso da sentença proferida na 1ª instância em 19.11.2018, que culminou com o acórdão desta Relação datado de 29.04.2019 que decidiu «conceder provimento ao recurso, decretando a nulidade da sentença recorrida, devendo o processo regressar à primeira instância, para ser elaborada nova decisão final que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas ao nível da omissão de factos alegados na acusação e na contestação, delas retirando as necessárias consequências jurídico-penais e decidindo em conformidade».
Este acórdão, como se alcança do respectivo dispositivo acabado de transcrever, determinava que o Sr. Juiz a quo elaborasse nova sentença em que colmatasse as lacunas que nele eram apontadas, dando-a a hipótese, mas não impondo, a possibilidade de para tal ser reaberta a audiência.
Como se vê dos autos, o Sr. Juiz a quo entendeu que poderia cumprir o determinado sem a reabertura da audiência de discussão e julgamento, motivo pelo qual e assim que os autos lhe foram conclusos, vindos desta Relação, proferiu despacho datado de 14.06.2019 a designar dia e hora apenas para a leitura da nova sentença, como veio realmente a acontecer.
Neste contexto, a data do encerramento da discussão que culminou na sentença ora recorrida continuou a ser o dia 9 de novembro de 2018, conforme se constata da respectiva ata, de fls. 716 e 717 e da sua conjugação com o estabelecido no artigo 361.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (CPP).
Assim, embora o artigo 165.º, n.º 3 do mesmo diploma determine efetivamente a possibilidade de junção de pareceres até ao encerramento da audiência, é indubitável que quando em 24.04.2019 o arguido juntou aos autos o parecer técnico da autoria do Eng.º, Eletrotécnico V. M. já tinha ocorrido o encerramento da discussão, que não voltou a ser reaberta, não obstante o decretamento da nulidade da primeira sentença proferida.
Estando assim o recurso interlocutório votado à improcedência.
***
B. RECURSO DA SENTENÇA

No recurso da sentença os recorrentes – para além de tudo o mais – insistem na sua nulidade, com fundamento nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, als. a) e c) do CPP, deixando antever que as lacunas detetadas no anterior acórdão desta Relação e cujo suprimento foi nele determinado, não foram efetivamente supridas.
Contudo, relido o nosso anterior acórdão e feito o seu confronto com a sentença ora recorrida, logo se alcança que nela foi cumprido tudo o determinado, designadamente com a adição de novos factos provados (parte do ponto 5º «cujos efeitos se iniciaram após a instalação da correspondente instalação elétrica») e inclusão dos quatro factos da matéria não provada, que foram motivados com a adição de quatro novos parágrafos (dois entre os parágrafos três e quatro da motivação anterior, um entre os parágrafos onze e doze e outro entre os parágrafos dezoito e dezanove).
Pelo que naufraga este ponto do recurso.
*
Situação diversa acontece com a divergência também manifestada no recurso quanto à autoria da apropriação de energia elétrica no valor de 78.046,34 €, efetivamente consumida pela sociedade “X”, que na sentença recorrida é atribuída ao recorrente M. C., relativamente ao que são esgrimidos argumentos a vários níveis, sendo um deles precisamente a alegação de erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo.
Vejamos, pois, como foi feita essa prova.
Da motivação feita pelo Tribunal a quo resulta expressamente que não foi possível obter prova direta da autoria dos factos, revelando que a tal prova foi feita com recurso a prova indireta ou por presunção, nos seguintes termos:
«No que concerne à participação do arguido nos factos, nos termos dados por provados, as regras da experiência levavam a concluir que aquele, por ser sócio e o único gerente da X na altura em que foi realizada a manipulação do contador, era a única pessoa interessada em proceder às mencionadas alterações do contador, que naturalmente implicavam um benefício ilegítimo para a sociedade por si explorada, correspondente ao valor da energia consumida e não contabilizada, permitindo assim uma diminuição relevante nos custos fixos de exploração da empresa.
Concomitantemente, eram ainda as regras da experiencia a ditar que, nestas situações, os infractores servem-se de terceiros para realizar este tipo de acções fraudulentas, dado que, como salientou a testemunha A. L., nem toda a gente está habilitada a fazer uma intervenção deste género, que pressupõe conhecimento técnico especializado, sendo certo que, no caso concreto, inexistia qualquer elemento que apontasse no sentido de que, efectivamente, o arguido dispusesse desse tipo de conhecimentos.» (2)
Efetivamente, como é sabido, nem só quando o arguido faz uma confissão integral e sem reservas dos factos, em situações de flagrante delito, quando há testemunhas presenciais ou outras fontes de prova direta pode haver condenações. São muitas as situações em que não há prova direta, porque o autor do crime o praticou sem ser notado ou de forma dissimulada, e nem por isso pode deixar de ser punido.
Por isso mesmo é que a denominada prova indireta ou por presunção também assume um papel fundamental e virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência, uma vez que em processo penal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (cfr. artigo 125º do Código de Processo Penal).
Mas a validade da prova por presunção está sempre dependente da existência de determinados factos conhecidos (os factos base ou factos indiciantes, que funcionam como indícios), com base nos quais, e através de recurso a um juízo de normalidade e probabilidade, em conformidade com regras da experiência comum, se afirma então um facto desconhecido (o factum probandum), para além de qualquer dúvida razoável.

Aplicando estas regras ao caso sub judice, da leitura da motivação logo se depreende que o Tribunal a quo chegou à autoria do furto, com base num único facto indiciário, que é o seguinte:

- O arguido era sócio e o único gerente da «X» na altura em que foi realizada a manipulação do contador da eletricidade fornecida àquela sociedade.
Ora, o que é que nos dizem as regras da experiência comum e da lógica em situações como esta?

O Tribunal a quo escreveu textualmente na motivação que:

«as regras da experiência levavam a concluir que aquele, por ser sócio e o único gerente da X na altura em que foi realizada a manipulação do contador, era a única pessoa interessada em proceder às mencionadas alterações do contador, que naturalmente implicavam um benefício ilegítimo para a sociedade por si explorada, correspondente ao valor da energia consumida e não contabilizada, permitindo assim uma diminuição relevante nos custos fixos de exploração da empresa.
Concomitantemente, eram ainda as regras da experiencia a ditar que, nestas situações, os infractores servem-se de terceiros para realizar este tipo de acções fraudulentas, dado que, como salientou a testemunha A. L., nem toda a gente está habilitada a fazer uma intervenção deste género, que pressupõe conhecimento técnico especializado, sendo certo que, no caso concreto, inexistia qualquer elemento que apontasse no sentido de que, efectivamente, o arguido dispusesse desse tipo de conhecimentos.
No remanescente, o dolo do arguido afirma-se ainda com recurso a critérios de normalidade, tendo como referência os factos por si praticados.»

Efetivamente, por causa da ligação que tinha à sociedade «X» o arguido teria em princípio um interesse geral em ver reduzida a conta da eletricidade, tal como – poderíamos acrescentar – teria igualmente interesse na redução do preço das matérias primas e de outros custos, em ordem à prossecução do objeto da sociedade com um maior lucro. Esse é, aliás, um interesse comum a qualquer gerente de uma sociedade, que exerça o cargo com responsabilidade.
Contudo, a referida base indiciária já não permite ir ao ponto de estabelecer a conexão, para além de qualquer dúvida razoável, entre a autoria da apropriação de energia elétrica no valor de 78.046,34 € e o arguido, ou seja, não permite induzir que tenha sido alguém a seu mando, quem «quebrou os selos do contador de energia elétrica instalado no local de consumo, apertando os fios das correntes S1 e S2 sobre os isolamentos e shunts medidos entre as correntes S1 com a T2 e a S2 com a T1, manipulando, assim, o equipamento de telecontagem e de potência, de forma a que parte da energia consumida pelo estabelecimento industrial “X” não fosse contabilizada.»
Não podemos esquecer que estamos aqui a tratar da energia elétrica das instalações de uma sociedade comercial de cuja certidão permanente, junta a fls 44 e segs. – e inclusive também mencionada na motivação – resulta expressamente não ser o arguido o seu único sócio, do que decorre que não seria naturalmente só ele a ter interesse direto no aumento dos lucros da sociedade.
Já para não falar em interesses indiretos nesse mesmo objetivo, que não se sabe se existiam ou não, entre os quais e a título meramente exemplificativo podemos citar o dos trabalhadores, eventualmente preocupados com a manutenção dos seus postos de trabalho, caso estivesse em causa a sobrevivência económica da sociedade, sua entidade patronal, situação que a factualidade apurada não afasta.
Acresce que da já aludida certidão permanente da sociedade emana, também, a existência de grandes desentendimentos entre os sócios, do que dão conta os averbamentos relativos a registos de um procedimento cautelar e uma ação judicial contemporâneos dos factos em causa nos autos e que opunham fundamentalmente o arguido à sócia M. L..
Neste contexto – e com todo o respeito por opinião diversa – parece-nos óbvio que da mera circunstância de o arguido ser sócio e gerente da sociedade «X» não permite afirmar um juízo de certeza, ou seja, para além de toda a dúvida razoável, de que tenham sido ele o autor do facto criminoso em causa nos autos.
Assim, não permitindo a prova resolver a dúvida acerca da autoria do furto, surge como resposta a esta incerteza o princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Sendo que o Tribunal a quo, decidindo com os elementos probatórios de que dispunha imputar a autoria do furto ao arguido, seguiu uma linha de raciocínio (de que dá conta na motivação), que revela uma «falha grosseira e ostensiva na análise da prova» que leva a que «um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência» (3).
Dessa forma ferindo a sentença com o vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410.º, nº 2 al. c) do Código de Processo Penal.
*
A reparação do vício de que padece a sentença pode ser feita nesta instância, uma vez que os autos dispõem dos elementos probatórios que sustentaram a decisão recorrida. Levando a que se retire dos factos provados, passando para os não provados, as referências à pessoa do arguido como tendo sido quem, «No dia 22/06/2013, por intermédio de alguém a seu mando, quebrou os selos do contador de energia eléctrica instalado no local de consumo referido no ponto anterior, apertando os fios das correntes S1 e S2 sobre os isolamentos e shunts medidos entre as correntes S1 com a T2 e a S2 com a T1, manipulando, assim, o equipamento de telecontagem e de potência, de forma a que parte da energia consumida pelo estabelecimento industrial “X” não fosse contabilizada.»
Dos factos provados retirando também os pontos 9 e 10 com a seguinte redação: «9.º- Ao atuar do modo descrito, agiu o arguido, livre e consciente, com o propósito concretizado de se apropriar de energia eléctrica no valor de 78.046,34 €, efectivamente consumida pela “X”, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade e em prejuízo do legítimo dono. 10.º- Sabia também que a sua conduta era proibida e punida por lei.». Que passarão também para os factos não provados.
Esta alteração factual acarreta, direta e necessariamente que não se possa imputar ao recorrente M. C. a autoria do um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, 204, n.º 2, alínea a) e 202.º, alínea b), todos do Código Penal pelo qual foi pronunciado e veio a ser condenado em 1ª instância.
Impondo-se a revogação da sentença recorrida, em conformidade.
*
Quanto à parte cível, que também é objeto do recurso há que acrescentar o seguinte.
O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos expressamente referidos na lei processual penal (4).
A obrigação indemnizatória mantém, contudo, o seu cariz substantivo cível, como resulta evidenciado no disposto no artigo 129.º do Código Penal, ao estabelecer que quando deduzida em processo penal «a indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil».
Porém, tendo o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal, a responsabilidade civil que poderá ser apreciada em processo penal é só aquela que emerge da violação do direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos.
Sendo por conseguinte necessário à procedência do pedido cível – e independentemente de haver ou não condenação criminal – que se esteja perante um ilícito civil que produza o dever de indemnizar, nos termos do artigo 483.º, do Código Civil, cujos pressupostos, como se sabe, são: i. o facto voluntário do lesante, ou seja, um facto dominável ou controlável pela vontade; ii. a ilicitude, que se analisa na violação de um direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios; iii. a existência de um nexo de imputação subjetiva entre o facto e o lesante, ou seja, a culpa; iv. ocorrência de danos na esfera de outrem; v. e a existência de um nexo de causalidade entre o facto e os danos, no sentido de que apenas relevarão aqueles danos que não se teriam verificado sem a intervenção do lesante (5).
Revertendo novamente ao caso dos autos, de toda a exposição antecedente já feita a propósito da parte criminal, logo se depreende que face à alteração feita à matéria de facto considerada apurada os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos não se verificam no caso. Desde logo por não se ter apurado a imputação ao arguido de um facto ilícito e culposo.
Acresce, ainda, não se ter provado também que a conduta em causa nos autos tenha sido causa direta e necessária de um dano para a demandante Distribuição – Energia, S.A, pois embora se tenha provado que «A demandante Distribuição – Energia, S. A. exerce, em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão no concelho de Barcelos» (ponto 11 dos Factos Provados); o certo é que não se provou que a demandada sociedade «X» tenha celebrado contrato de fornecimento de energia elétrica com a demandante Distribuição – Energia, S. A. (ponto 1 dos Factos Não Provados), mas apenas «com um dos comercializadores que operam no mercado» (ponto 5 dos Factos Provados).
Impondo-se por conseguinte também a absolvição do pedido cível.
*
Ficando prejudicadas as demais questões invocadas no recurso.
*
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães em:

A. RECURSO INTERLOCUTÓRIO

Não conceder provimento ao RECURSO INTERLOCUTÓRIO, mantendo o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em 3 (três) Ucs a taxa de justiça.
***
B. RECURSO DA SENTENÇA

Conceder provimento ao RECURSO DA SENTENÇA, em consequência do que:
. se determina a eliminação dos factos provados e passagem para os Não Provados:
i. das referências à pessoa do arguido, como tendo sido ele quem «No dia 22/06/2013, por intermédio de alguém a seu mando, quebrou os selos do contador de energia eléctrica instalado no local de consumo referido no ponto anterior, apertando os fios das correntes S1 e S2 sobre os isolamentos e shunts medidos entre as correntes S1 com a T2 e a S2 com a T1, manipulando, assim, o equipamento de telecontagem e de potência, de forma a que parte da energia consumida pelo estabelecimento industrial “X” não fosse contabilizada.»;
ii. bem como da factualidade descrita nos pontos 9 e 10, que passa igualmente para os Factos Não Provados.
2. Se absolve o arguido M. C. da autoria de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203.º, n.º 1, 204, n.º 2, alínea a) e 202.º, alínea b), todos do Código Penal; bem como do pagamento das respetivas custas; revogando-se a respetiva condenação constante da sentença recorrida.
3. Se absolvem os demandados M. C. e X – Acabamentos Têxteis, S.A. do pedido cível, revogando-se a respetiva condenação constante da sentença recorrida.
Sem tributação.
*
Guimarães, 13 de janeiro de 2020
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Maria José Matos
(Assinado digitalmente)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Excerto da motivação da sentença recorrida.
3. Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 8ª ed. Lisboa, 2012 p. 80)
4. Cfr. artigos 71º e 72º do Código de Processo Penal.
5. Cfr. o art. 563.º, do Código Civil.