Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1193/13.2TBBGC-A.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PARECER
ABERTURA DO INCIDENTE
PRAZOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. No domínio do CIRE, antes da Lei 16/2012, a abertura do incidente de qualificação da insolvência, logo na sentença que a declarava, era oficiosa e obrigatória, tivesse ele carácter pleno ou limitado, tal não dependendo de qualquer específico pressuposto prévio nem da iniciativa dos interessados.

2. Então, a elaboração e apresentação, pelo administrador, do respectivo parecer, pressupunha que o incidente já se encontrava pendente e o desrespeito do prazo (não peremptório, apenas regulador ou ordenador) para tal não tinha efeito preclusivo ou similar.

3. Depois da Lei 16/2012, a declaração de abertura do incidente continua a ser oficiosa, não estando na pura disponibilidade de qualquer dos interessados nem do administrador (embora possam requerê-la), mas deixou de ser automática, dependendo necessariamente de o juiz dispor de “elementos justificativos” e de tal “considerar oportuno”.

4. Tal declaração, agora, pode ter lugar em dois momentos: um, aquando da prolação da sentença declarativa da insolvência; outro, após alegações (pelo administrador ou por qualquer interessado) e se, então, o juiz tal “considerar oportuno”.

5. Tais alegações deixaram de ter carácter obrigatório, mesmo para o administrador, e o prazo para a sua apresentação passou a ser preclusivo. Se, nelas, o administrador propuser a qualificação da insolvência como culposa, tal implica dispensa de parecer.

6. Não tendo sido, por falta de elementos, declarado aberto o incidente de qualificação, na sentença que declarou a insolvência com carácter limitado, por insuficiência de bens e tendo o processo sido declarado findo por não ter sido requerido complemento de sentença, não há lugar a alegações posteriores para o efeito, muito menos a relatório ou parecer do administrador nesse sentido. Nesta situação, jamais poderá ser declarado aberto tal incidente, a despeito de o juiz, erradamente, ter ordenado a apresentação do parecer e insistido por ele durante quase três anos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Em 30-12-2013, o credor Pedro, requereu, no Tribunal de Bragança, a insolvência da sociedade comercial “X – Energias Renováveis, Unipessoal, Ldª”.

Deduzida oposição, tal insolvência foi declarada por sentença de 02-05-2014.

Não foi declarado aberto nela o incidente de qualificação, tal tendo sido relegado para momento posterior.

Nessa mesma sentença, invocando e citando o texto legal do artº 39º, nº 1, do CIRE (1), o tribunal exarou:

In casu, face à factualidade apurada, verifica-se que o património da Requerida não é presumivelmente suficiente para satisfazer as custas do processo e dívidas da massa insolvente, pelo que se profere decisão nos termos do artº 39º do CIRE.”.

Foram feitas as publicações inerentes (salientando a insuficiência do património e advertindo para a possibilidade de ser requerido o complemento) e respectivas notificações.

Tal sentença transitou em julgado e não foi requerido o seu “complemento”.

Por despacho de 23-06-2014, no qual se invoca o disposto no artº 39º [2], nº 7, alínea b), do CIRE [3], foi expressamente declarado findo o processo de insolvência, ordenadas as inerentes comunicações, e determinada a notificação do Administrador de Insolvência “para dar cumprimento ao disposto nos artigos 39º, nº 7, alínea c) [4], e 188º, nº 2, do CIRE” [5], apesar de não ter sido declarado aberto o incidente de qualificação.

Após diversas vicissitudes e repetidas notificações ao administrador da insolvência, espelhadas nos autos, para dar cumprimento a tal determinação, aquele, apenas em 20-04-2017, juntou aos autos, invocando o disposto nos artºs 39º, nº 1, e 232º, nº 5, o que apelidou de “relatório de qualificação da insolvência”[6] e no qual concluiu considerá-la como culposa (fls. 238 a 246).

Então, por despacho de 29-04-2017 (fls. 306), foi declarado – sem específica fundamentação expressa para tal – aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter limitado, mandado instruir o mesmo por apenso com o referido relatório e ordenada Vista ao Ministério Público.

Após outras vicissitudes relativas ao apoio e ao patrocínio judiciários da insolvente e do seu sócio gerente (aqui apelante), em 15-05-2017, foi autuado o presente incidente de qualificação de insolvência, com o relatório/parecer, documentos ao mesmo juntos e cópia do citado despacho de 29-04-2017 que tal ordenou (fls. 2 a 61). (7)

Em 06-06-2017, o Ministério Público apresentou o seu Parecer (fls. 62 a 66) promovendo que a insolvência seja qualificada como culposa, indicando prova.

Por despacho de 09-06-2017, ordenou-se o cumprimento do disposto no nº 6, do artº 188º, do CIRE. (8)

O requerido foi citado.

Não foi apresentada qualquer oposição.

Por despacho de 24-09-2017.

-Exarou-se: “A Insolvente, notificada na pessoa da sua então Mandatária para deduzir oposição, não o fez, verificando-se que lhe foi indeferido o pedido de protecção jurídica na modalidade de nomeação de patrono que apresentou, de forma tempestiva, e com efeitos interruptivos do prazo que estava em curso, na sequência da renúncia ao mandato feito por aquela.
Assim, independentemente de in casu ser ou não obrigatória a constituição de advogado, por força do disposto no artigo 47.º, n.º 3, alínea b), do C.P.C., e por maioria de razão, determino que o presente incidente prossiga os seus termos processuais.”;

-Dispensou-se a realização de audiência prévia;
-Fixou-se em 750,00€ o valor da acção;
-Sanearam-se, apenas tabelarmente, os autos;
-Identificou-se o objecto do litígio;
-Indicaram-se os temas da prova;
-Apreciou-se e decidiu-se sobre as provas a produzir.
-Designou-se a data para a audiência de julgamento.

Em 27-10-2017, realizou-se a audiência de julgamento, nos termos e com as formalidades narradas na acta respectiva (fls. 87), no seu decurso tendo sido ouvidos o Administrador da Insolvência o Credor Pedro, a contabilista H. A. e o sócio-gerente da insolvente José.

Por fim, com data de 31-10-2017 (fls. 86 a 98), foi proferida a sentença, que culminou na seguinte decisão:

“Face ao exposto, nos termos do disposto no artigo 189.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decido:

i) qualificar como CULPOSA a insolvência de X – Energias Renováveis, Unipessoal, L.da;
ii) declarar JOSÉ abrangido por esta qualificação e, por conseguinte, decretar a sua INIBIÇÃO quer para administrar patrimónios alheios quer para o exercício do comércio ou para a ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 2 (dois) anos, a contar do registo da presente sentença na competente conservatória;
iii) Condenar o Requerido José a INDEMNIZAR, até às forças do respectivo património, o Credor PEDRO no montante do seu crédito não satisfeito. “

O requerido/condenado José, dizendo-se inconformado com a sentença, interpôs dela recurso (fls. 105 a 143) para esta Relação, alegando (em 77 páginas), apresentando 103 conclusões, que foi convidado a sintetizar e aperfeiçoar.

As conclusões, na sequência apresentadas, são as seguintes:

I.

Pela douta sentença recorrida, a insolvência da empresa X – ENERGIAS RENOVÁVEIS, UNIPESSOAL, LDA. veio a ser qualificada como CULPOSA, quando deveria ter sido qualificada como FORTUITA. Na verdade, a situação de insolvência não foi criada nem agravada em consequência de qualquer atuação dolosa ou com culpa grave do Recorrente, tendo resultado apenas de fatores imponderáveis e fora do controle do Recorrente.

II.

O Recurso é admissível e tempestivo, apesar do valor da causa, face à inconstitucionalidade da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e artigos 304.º, primeira parte, e 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, interpretadas no sentido de que não cabe recurso de decisões proferidas no incidente de qualificação da insolvência cujo valor, determinado pelo ativo do devedor, seja inferior ao da alçada do tribunal de primeira instância. Essa inconstitucionalidade resulta da violação do direito ao recurso de decisões judiciais que diretamente afetam direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e já foi declarada por douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2015 de 16/06/2015, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

III.

A douta sentença recorrida padece de vício de violação de Lei. Na verdade, o relatório do Senhor Administrador da Insolvência, bem como o consequente despacho de abertura de incidente de qualificação foram produzidos nos presentes autos de forma extemporânea, pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada com esse fundamento.

IV.

Na verdade o incidente de qualificação da insolvência é aberto em 21/04/2017, ou seja, quase 3 anos depois de ter sido decretada a insolvência (em 02/05/2014) e de ter sido declarado findo o processo de insolvência (em 23/06/2014), nos termos do artigo 39º, n.º 1 al. b).

V.

Efetivamente, após a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 16/2012, em que o incidente de qualificação da insolvência deixou de ser obrigatório, o CIRE apenas prevê a abertura do incidente de qualificação em duas situações e/ou momentos: (i) ou oficiosamente na sentença em que se declara a insolvência; (ii) ou um momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria, sejam efetuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado.

VI.

No caso sub judice, a Meritíssima juiz a quo considerou não ter elementos que justificassem a abertura do incidente de qualificação nos termos da al. i), do n.º 1, do art.º 36.º, do C.I.R.E., a contrario, no momento em que foi decretada a insolvência da X em 02/05/2014, pelo que apenas poderia abrir tal incidente face às alegações que fossem posteriormente apresentadas pelo administrador ou por terceiro.

VII.

Por sua vez, após a alteração introduzida pela Lei nº 16/2012, o parecer do Administrador de insolvência sobre a qualificação da insolvência pode ser de dois tipos: (i) Ou o relatório é emitido quando já foi aberto o incidente de qualificação, no prazo de 20 dias nos termos do artigo 188º, nº 3 do CIRE (que equivale ao parecer a que a lei aludia antes da referida alteração). Neste caso, como o incidente de qualificação já foi aberto, o parecer é um ato obrigatório e corresponde ao cumprimento do dever funcional. Assim, ainda que tardiamente, o aludido parecer pode e deve ser apresentado e admitido; (ii) Ou o relatório é emitido com as alegações previstas no atual nº 1 do artigo 188º, quando o incidente de qualificação não foi aberto por iniciativa do juiz.

VIII.

Nos presentes autos, não tendo o incidente sido aberto oficiosamente, está em causa o relatório previsto no artigo 188º, nº 1 do CIRE) – estando aqui em causa, não a prática de um ato que seja obrigatório, por fazer parte de um procedimento ou incidente já em curso, mas sim a iniciativa processual – que pode ou não ser exercida, não sendo obrigatória – tendo em vista a eventual abertura do incidente de qualificação da insolvência.

IX.

Nos termos do n.º 1, do art.º 188.º do CIRE, o Administrador teria 15 dias, após apresentação do relatório mencionado no artigo 155º (ou, tendo em conta o disposto no art. 36º, nº 4, nos quinze dias subsequentes ao 45.º dia subsequente à data da prolação da sentença de declaração da insolvência, caso não haja lugar à aludida assembleia) para requerer a qualificação da insolvência como culposa.

X.

Tal prazo de 15 dias, ao contrário do entendimento perfilhado na douta sentença recorrida, tem a natureza de prazo perentório - não sendo um prazo meramente regulador ou ordenador (como é o caso do prazo de 20 dias estabelecido no artigo 188º, n.º 3), pois o que se prevê no artigo 188º, n.º 1 é uma verdadeira iniciativa processual

XI.

Ao admitir a junção do relatório do Administrador de insolvência previsto no artigo 188º, n.º 1 quase de 3 anos depois dos 15 (quinze) dias referidos no n.º 1, do art.º 188.º, e ao abrir incidente de qualificação da insolvência em consequência do mesmo, o douto Tribunal recorrido interpretou de forma errada a conjugação daquele artigo 188º, n.º 1 com os artigos 36º, n.º 1 al. i) e 39º, n.º 1 do CIRE após as alterações introduzida pela Lei nº 16/2012.

XII.

Assim, o douto tribunal a quo, aplicou o CIRE na versão anterior à Lei nº 16/2012, o que é fácil de verificar ao constatar que na primeira página da douta sentença recorrida, a mesma faz referência aos números 1, 2 e 3 do artigo 188º do CIRE em moldes que apenas podem referir-se à versão anterior daquele código.

Caso assim não se entenda,

XIII.

Deve ter-se em consideração que ao ora Recorrente não foi permitido, no âmbito dos presentes autos, exercer plenamente os seus direitos de defesa, não lhe tendo sido permitido apresentar qualquer oposição ao incidente de qualificação, indicar testemunhas ou juntar documentos.

XIV.

Em primeiro lugar, a Ilustre mandatária que representava o ora Recorrente renunciou ao mandato em pleno decurso do prazo de deduzir oposição à qualificação da insolvência, ou seja em 20/06/2017, sendo certo que o ora Recorrente só foi notificado dessa renúncia em 26/09/2017, quando já há muito que tinha decorrido aquele prazo.

XV.

Em 6/10/2017 o Recorrente requereu o benefício de apoio judiciário na modalidade de pagamento das custas e encargos com o processo e nomeação de patrono, tendo informado o Tribunal da pendência desse pedido (quer por escrito, em 9/10/2017, quer oralmente na audiência de julgamento, mas o julgamento foi realizado e a sentença proferida antes de ser nomeado patrono para patrocinar a causa do ora Recorrente, o que constitui uma violação aos mais elementares direito de defesa do Recorrente, agora condenado.

XVI.

Tendo em conta que, como supra mencionado estamos perante causa que admite sempre recurso, nos termos do artigo 40º, n.º 1 al b) do CPC, é obrigatória a constituição de advogado, até porque o entendimento contrário viola claramente a Constituição, nos seus artigos 2.º e 20°, n°s 1, 2 e 4 e com eles, os princípios constitucionais da proibição da situação da falta de defesa, ínsito ao princípio do Estado de Direito, do acesso à justiça, ao direito e aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, e do direito ao patrocínio judiciário e a uma proteção jurídica eficaz.

XVII.

Como o Recorrido não constituiu mandatário, após a renúncia da sua mandatária originária, deveria o Tribunal a quo ter nomeado um advogado oficiosamente sob pena de nulidade do processado desde a data da renúncia ao mandato.

XVIII.

A renúncia ao mandato apenas foi atempadamente notificada à insolvente X, na pessoa do ora Recorrente (notificação essa que além de inútil, apenas serviu para confundir o ora Recorrente), por carta registada datada de 28/06/2017, e nessa sequência, o Recorrente requereu apoio judiciário em nome da sociedade X, com nomeação de patrono, que apenas veio a ser indeferida em termos definitivos (após impugnação indeferimento da Segurança Social) por douto despacho de 27/10/2017, já proferido depois da audiência de julgamento.

XIX.

Nos termos do artigo 24º, n.º 4, da Lei 34/2004, de 29 de Julho, tal pedido de nomeação de patrono deveria ter interrompido o prazo para Oposição ao incidente de qualificação da insolvência (o Recorrente foi citado em 19/06/2017 e formulou o pedido de apoio judiciário em 03/07/2017).

XX.

Assim, quando foi proferida a sentença de que ora se recorre ainda estava a correr o prazo de Oposição. Note-se, pois que não só a sentença tem de ser declarada nula, mas também todo o processado a partir do despacho saneador, uma vez que o mesmo despacho dá por não apresentada a Oposição, apesar de nessa data ainda não ter decorrido o respetivo prazo.

Quanto à matéria de facto dada como provada,

XXI

Em primeiro lugar, deveria ter sido dado como provado na douta sentença recorrida que “A empresa (X) foi constituída em 1 de janeiro de 2009 e teve por base a cessão de posição contratual que José detinha com a sociedade W Portugal Renováveis, Lda. à X – Energias Renováveis, Lda. passando esta sociedade a dedicar-se à atividade de construção e desenvolvimento de parques eólicos no âmbito das energias renováveis” (conforme ponto 1 da página 1 do relatório do Senhor Administrador da Insolvência).

XXII.

Em segundo lugar, deveria ter sido dado como provado que “Os contratos de prestação de serviços (que garantiam à X uma faturação anual de € 85.000,00 - e que eram o seu único rendimento), foram transferidos pelo sócio único José para a empresa ora insolvente, gratuitamente, ou seja, sem qualquer contrapartida financeira.

XXIII.

Deveria também ter sido dado como provado que o Recorrente auferia da X apenas um salário de € 200,00 (duzentos euros) enquanto gerente.

XXIV.

Deveria ainda ter sido dado como provado que “Já no ano de 2011 e 2012 o setor das energias renováveis sofreu fortes restrições governamentais em consequência do programa de assistência financeira a que o País esteve sujeito (…). Este aspeto, ao que parece, afetou a atividade comercial da empresa ‘W’, principal cliente da X e que teve como consequência a redução verificada em 2011 e 2012 e corte da contratualização de serviços a partir de 2013 à aqui insolvente X” (cfr. páginas 3 e 4 do relatório do Senhor Administrador da insolvência).

XXV.

Deveria também ter sido dado como provado que, tal como resulta do depoimento da testemunha H. A. que “Os referidos contratos: um entre a X e a W e o outro entre a X e a K (que era um sub-contrato do contrato entre a W e a K) cessaram em 2011, sendo que o Recorrente foi avisado ainda em 2010 que esse contrato iria terminar no ano seguinte: ou seja em meados de 2011”.

XXVI.

Deveria também ter sido dado como provado que “O credor Pedro é o único credor da insolvente.”

XXVII.

Deveria ter sido dado como provado que “O Administrador da Insolvência não detetou “quaisquer factos ou indícios que da atividade comercial resultasse um qualquer proveito pessoal ou de outras empresas relacionadas com a X” (cfr. Relatório do Administrador da Insolvência , página 11).

XXVIII.

Discorda-se com o ponto 8 da matéria de facto dada como provada, uma vez que o mesmo está em contradição com o ponto 11 dessa mesma lista. Não havendo pagamento do preço, era porque existia um crédito sobre uma empresa. Esse crédito manteve-se na contabilidade sem ser executado pela massa insolvente.

Também se discorda-se com o ponto 9 dos factos dados como provados, pois o contrato com o Engenheiro Pedro não era um contrato de trabalho, mas sim um contrato de prestação de serviços, que era, conforme nele vinha mencionado, um sub-contrato e estava dependente do contrato original com a W.

XXX.

Tal contrato foi depois qualificado pelo Tribunal de Trabalho de Viseu como sendo um contrato de trabalho, apesar de ser designado de prestação de serviços. No entanto, a qualificação jurídica realizada nessa instância não pode relevar para os presentes autos, porque o que aqui está em causa é a atuação do ora Recorrente nos 3 anos anteriores à declaração de insolvência e durante esse período o Recorrente esteve sempre convicto que se tratava de um contrato de prestação de serviços que poderia ser livremente denunciado assim que cessasse o contrato com a W.

XXXI.

Discorda-se ainda do ponto 13 dos factos dados como provados, uma vez que não se provaram quaisquer movimentos financeiros (mas apenas movimentos contabilísticos) da conta da insolvente para a conta do sócio, ora Recorrente. Na verdade, a douta sentença recorrida confunde claramente em toda a sua extensão “contas” e movimentos contabilísticos com transferências em contas bancárias.

XXXII.

A douta sentença recorrida sublinha em vários momentos a ideia de que terão havido movimentos de “dinheiro” injustificados (também apelidados pela douta sentença recorrida de “transferências”) da conta bancária da insolvente para a conta bancária do Recorrente. Ora, tal dedução não tem qualquer correspondência nem com a documentação junta aos autos, nem com os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, pelo que a douta sentença recorrida faz uma clara má interpretação dos depoimentos produzidos em julgamento que se referem a “contas” em termos contabilísticos, que não tem nada a ver com “conta bancária” – (cfr. Transcrições supra reproduzidas dos depoimentos de H. A. e do Administrador da Insolvência).

XXXIII

Não foram provadas quaisquer transferências da conta bancária da empresa para a conta bancária do sócio-gerente, ora Recorrente – tais movimentos não foram referidos por nenhuma testemunha, nem são mencionadas em nenhum documento dos autos (designadamente extratos de contas ou outros).

XXXIV.

Também se discorda com o ponto 16. na medida em que, não há nenhuma prova nos autos que indique que o Recorrente não cumpriu as obrigações declarativas da Insolvente.

XXXV.

Para o douto Tribunal a quo verifica-se o preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 186, n.º 2 a) porque alegadamente “O Requerido fez desaparecer, em parte considerável, o património da sociedade (não só as três viaturas mas também os equipamentos descritos no ponto 18. da sentença proferida na acção n.º 354/11.3TTVIS, cujo destinou não se apurou)”, o que não é correto, pois nem as viaturas, nem os equipamentos desapareceram (nem o Recorrente as inutilizou ou destruiu).

XXXVI

Por outro lado, o comportamento do Recorrente, como sócio-gerente de ambas as empresas não é, sequer, censurável na medida em que, por um lado, como está comprovado documentalmente estas viaturas já eram pertença do ora Recorrente antes da constituição da X em 2009, sendo que este as passou para o nome da X, para que esta pudesse cumprir os contratos de prestação de serviços a que estava vinculada.

XXXVII

Por outro lado, segundo depoimento do Senhor Administrador da Insolvência supra transcrito, o valor pelo qual as viaturas foram vendidas à Y foi correto. De referir ainda que, quando as viaturas foram vendidas, a insolvente já não tinha qualquer atividade, embora ainda não estivesse em situação de insolvência, ao contrário da Y que tinha um projeto de atividade de turismo rural.

XXXVIII

Por outro lado, as viaturas foram vendidas, mas não desapareceriam, ficaram durante muito tempo na titularidade da Y, subsistindo o respetivo crédito sobre esta empresa. O Administrador de insolvência, por seu turno, poderia ter lançado mão dos mecanismo previstos nos artigos 102º e 120º do CIRE ação para anulação do negócio ou cobrança do preço, o que não aconteceu, pelo que não pode agora vir dizer-se a venda dos carros foi uma das causas da insolvência ou do seu agravamento.

XXXIX

Quanto aos equipamentos que, constituíam os instrumentos de trabalho da empresa, os mesmos também não desapareceram, estando grande parte dos mesmos ainda em poder do Recorrente, só que, conforme a X explicou no seu Requerimento de Oposição à insolvência: “os bens móveis a que se refere o requerente (equipamentos eletrónicos e informáticos), fruto do seu desgaste pela utilização encontra-se inutilizados e/ou danificados, pois que não têm qualquer valor comercial.”

XL

Além do mais, nada consta dos autos, em nenhuma prova produzida, que tais equipamentos “desapareceram”. Não existe qualquer prova nos autos que indicie que o Recorrente está a ocultar estes bens, nunca lhe tendo sido pedido qualquer exame, inspeção ou penhora dos mesmos por parte de quem quer que seja.

XLI.

Para o douto Tribunal a quo verifica-se o preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 186, n.º 2 b) do CIRE pois, alegadamente o Recorrente teria criado um passivo ruinoso em proveito do único trabalhador que a Insolvente tinha (para além da rescisão unilateral do contrato de trabalho, a litigância de má fé no protelamento da acção que se reflectiu na contabilização das remunerações mensais até ao trânsito em julgado da sentença), considerações com as quais, salvo o devido respeito se discorda.

XLII

Em primeiro lugar, o passivo resultante da sentença do Tribunal de Trabalho de Viseu não é artificial, dele resultando o único crédito sobre a insolvente, pelo que o mesmo não é enquadrável no artigo 186º, n.º 2 al b), pelo que desse processo não resultam quaisquer comportamentos culposos que possam ser imputados ao Recorrente.

XLIII

Acresce que, para o Recorrente, o contrato em causa não era um contrato de trabalho, mas sim um contrato de prestação de serviços, qualificação essa que ficava clara do texto do contrato. E o que conta para o juízo de censurabilidade sobre o comportamento do agente (neste caso do Recorrente) é a sua convicção sobre os factos na data em que agiu – carta de rescisão do contrato – e não posteriormente, quando se viu confrontado com tão impensável e desproporcionada condenação pelo Tribunal de Trabalho de Viseu.

XLIV

Acresce que, o Administrador da Insolvência considerou em vários momentos, tanto no relatório como no seu depoimento que esta rescisão do contrato com Engenheiro Pedro era compreensível e necessária, pelo que não existe também aqui juízo de censura sobre a atuação do Recorrente como gerente.

XLV

Para o douto Tribunal a quo verifica-se o preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 186, n.º 2 d) e f) do CIRE porque o ora Recorrente alegadamente “Dispôs dos bens da Insolvente em proveito pessoal e de terceiros (alienou as três viaturas a favor de outra sociedade de que também era sócio gerente)” e “Fez dos bens da Insolvente uso contrário ao interesse desta, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tinha interesse direto ou indireto (transferências injustificadas de dinheiro da conta da insolvente para a conta dele próprio)”, conclusão esta com a qual se discorda, pois face ao supra exposto pois, a venda das viaturas à Y foi feita por um preço justo e essa venda criou um crédito sobre essa sociedade que poderia ter sido accionado. Assim, não existe qualquer prova ou indício de favorecimento, nem intenção de favorecimento da Y.

XLVI

Quanto à dívida que o Recorrente tem para com a Insolvente, sublinhe-se que essa dívida só existe porque o Recorrente não conseguiu reunir os documentos que justificam as despesas havidas com a empresa nos anos de 2012, 2013 e 2014, designadamente as despesas com os advogados que defenderam a empresa no processo que correu termos no Tribunal de Trabalho de Viseu e no início do processo de insolvência, que receberam honorários sem terem emitido os correspondentes recibos.

XLVII

Além do mais e como acima se disse não constam provadas por nenhum meio de prova produzido nos presentes autos quaisquer transferências da conta da insolvente para a conta do ora Recorrente. O que a douta sentença faz e isso é claro ao longo de todo o texto da sentença é uma confusão entre contas do POC e contas bancárias – conta de sócio e conta do sócio.

XLVIII

Para o douto Tribunal a quo verifica-se o preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 186, n.º 2 h) do CIRE porque o Recorrente alegadamente “Incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, manteve uma contabilidade fictícia e praticou irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente”. Mas tal conclusão, salvo o devido respeito, não corresponde à realidade.

XLIX

Verifica-se que a partir de 2012, quando a empresa deixou de prestar serviços, houve uma menor organização da contabilidade da empresa. Mas isso não significa nem um incumprimento em termos substanciais, conforme exige a Lei da obrigação de manter uma contabilidade organizada, nem, muito menos, que fosse mantida uma contabilidade fictícia, que não corresponde minimamente à realidade ou ao que foi apurado no âmbito do processo.

L

Na verdade, a existência de contabilidade fictícia exigiria que o sócio-gerente tivesse criado artificialmente factos contabilisticamente relevantes, quando aconteceu precisamente o contrário – alguma negligência na entrega atempada de documentos – ou seja, o que existiu foi uma omissão e não uma ação que sempre seria necessária para criar uma contabilidade dita “fictícia” nos termos da Lei.

LI

E mesmo quanto a esta omissão o Senhor Administrador considerou no seu relatório e no seu depoimento não existir um propósito ou intenção em criar uma contabilidade fictícia com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade X. Referiu pelo contrário que resulta da sua interpretação da contabilidade da empresa e da redução demasiado drástica dos custos incorridos que faltam documentos e que resulta da lógica da contabilidade que existirão despesas que foram pagas, mas não puderam ser contabilizadas por falta de documentos.

LIII

Para o douto Tribunal a quo verifica-se ainda o preenchimento dos pressupostos contidos no artigo 186, n.º 3 a) do CIRE pela falta de apresentação do Recorrente à insolvência após o trânsito em julgado da sentença do Tribunal de Trabalho de Viseu.

LIII

Mas a douta sentença recorrida não refere qualquer nexo de causalidade entre a não apresentação atempada à insolvência e a própria insolvência ou o seu agravamento, sendo certo que este nexo de causalidade não se presume, mas apenas a culpa grave e na verdade, tal como também foi defendido pelo Senhor Administrador da Insolvência não foram encontrados indícios ou factos que permitam concluir que tal incumprimento teve como consequência um agravamento da situação económico-financeira da sociedade.

LIV

De facto, quando é proferida e conhecida do sócio-gerente ora Recorrido a decisão do Tribunal de Trabalho de Viseu a sociedade não tinha (nem tem) dividas fiscais ou à segurança social, nem a quaisquer fornecedores, já não tinha quaisquer bens ou ativos, não tinha qualquer atividade comercial, e a partir daí não adquiriu mais bens nem realizou quaisquer negócios, pelo que a situação não se agravou, nem se poderia agravar com o atraso na declaração de insolvência.

NESTES TERMOS e nos mais de Direito que V.Exas. Venerandos Juizes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de Apelação e em consequência:

a. Deve ser julgado extinto o incidente de qualificação da insolvência por extemporaneidade da sua abertura, em consequência da extemporaneidade do relatório/parecer do Administrador da Insolvência quanto a essa qualificação.
Caso assim não se entenda, hipótese que apenas se admite por mera cautela de patrocínio,
b. Deve ser anulado o julgamento e ser dada oportunidade ao ora Recorrente apresentar a sua defesa (Oposição à qualificação da insolvência como culposa), devendo ser repetido o julgamento.
c. Devem ser julgados não provados os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa sendo a mesma qualificada como FORTUITA
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA !!! ”.

As conclusões da resposta apresentada pelo Ministério Público são:


I – O prazo constante do art. 188º, n.º2 do CIRE, não é peremptório. É, sim, um prazo regulador, ordenacional ou de organização processual, sem cominatório e cuja ultrapassagem pode gerar responsabilidade do administrador no âmbito do processo, mas não a caducidade de qualquer direito que o administrador não tem e não exerce.
II – O prazo para que o recorrente deduzisse oposição à qualificação de insolvência, foi ultrapassado por inércia do mesmo, sem que tenha atempadamente constituído novo Incidente de qualificação de insolvência n.º 1193/13.2TBBGC-A Instância Local Cível – J1 38 advogado ou lhe tenha sido nomeado patrono (indeferido – tendo o recorrente deduzido impugnação).
III – Igualmente, apesar de ser obrigatório a constituição de advogado – art. 40º, n.º1, al.b) do C.P.C., a sua não constituição tem como cominação o disposto no art. 41º do mesmo diploma legal, não tendo que a Mmª Juiz nomear defensor oficioso.
IV – Tendo o recorrente solicitado em nome pessoal apoio judiciário, para nomeação de patrono, certo é que nunca tal demonstrou nos autos, o que fez, por exemplo quando pediu apoio judiciário, na mesma modalidade em nome da X, tendo dado noticia e comprovado com documento, tal facto (relevantíssimo).
V – Em face do exposto e fundamentado com datas e precisões, não deve ser ordenada repetição do julgamento, e muito menos ser dada a possibilidade do recorrente apresentar oposição à qualificação de insolvência.
VI – Não existe qualquer erro na apreciação da prova e muito menos factualidade contraditória. Os factos apresentados pelo recorrente com sendo erroneamente apreciados, são na verdade discordâncias do recorrente e apreciações da realidade não baseadas em factos concretos.
VII – Da súmula efectuada na fundamentação da presente resposta, ficam ainda reforçados os factos dados como provados e o acerto de tal decisão, uma vez que é inequívoco o conhecimento pessoal dos factos, clareza de exposição e coerência dos depoimentos das testemunhas Incidente de qualificação de insolvência n.º 1193/13.2TBBGC-A Instância Local Cível – J1 R. R. (A.I.) – depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital – 08:51 – Pedro - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital – de 09:46 a 10:25 e 10:35 a 11:52 – H. A. - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital – de 04:19 a 05:43; 11-03; 12:11 a 12:58; 13:25 a 15:29; 15:40 a 16:26; 17:20 a 17:23; 19:14 a 19:30 e 21:16 e ainda José - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital de 04:30 a 05:07; 07:32; 08:20; 14:22 a 14:48 e 15:02 a 15:43.
VIII – Efectivamente o recorrente faz uma manobra de diversão e confusão entre, palavras e menções constantes da sentença e outras que acrescenta, tais como “Contas em termos contabilísticos”, “Conta de sócios”; “Conta de Terceiros”, “Conta de lucros”, “Conta de Honorários” e “Conta de despesas”, referindo o recorrente que nada têm a ver com a “Conta Bancária” e que os movimentos são meramente contabilísticos e não efectivos movimentos de dinheiro da conta da empresa para a conta do sócio. Não foi tal o dado como provado na sentença e bem esclarecido pelas testemunhas R. R. (A.I.) e H. A. (TOC).
IX – Verificam-se, efectivamente, preenchidos os pressupostos contidos no art. 186º, n.º 2, alíneas a), b), d), f) e h), do CIRE, e da qualificação da insolvência como culposa.
X - O tribunal fundou a sua convicção mediante a análise Incidente de qualificação de insolvência n.º 1193/13.2TBBGC-A Instância Local Cível – J1 e ponderação de toda a prova carreada para os autos, designadamente, as declarações das testemunhas e elementos constantes dos autos
XI - É clara e eloquente a douta fundamentação, na sua apreciação crítica dos testemunhos relevantes R. R. (A.I.), Pedro (trabalhador) e H. A. (TOC).
XII - Não foram violadas quaisquer normas legais.

Cremos, assim, que a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” não deverá merecer qualquer censura, pelo que, deve ser negado provimento ao recurso interposto, e mantida aquela decisão, nos seus precisos termos.
Vªs. Exªs., decidindo, farão como sempre a costumada justiça.”

Foi admitido o recurso como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo, tendo a Mª Juíza, quanto às invocadas nulidades, no respectivo despacho, considerado não se verificarem.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar e decidir as seguintes questões:

Saber se o “relatório” apresentado pelo administrador judicial e o subsequente despacho a declarar aberto o incidente são extemporâneos e, por isso, ilegal a sentença, devendo aquele ser julgado extinto (conclusões 3ª a 12ª).
Saber se, por só lhe terem sido notificadas a renúncia do seu mandatário quando já se tinha esgotado o prazo para deduzir oposição, por ainda pender o pedido de protecção jurídica quando foi realizado o julgamento e proferida a sentença e por não lhe ter sido nomeado advogado oficioso, foi impedido de exercer plenamente a sua defesa, nomeadamente de apresentar a oposição e prova, e o processado tem de ser declarado nulo a partir do saneador, tal como a sentença, devendo repetir-se o julgamento (conclusões 13ª a 20ª).
Saber se deve ampliar-se a matéria de facto provada aos pontos indicados (conclusões 21ª a 27ª).
Saber se há contradição entre os pontos provados da matéria de facto nºs 8 e 11 (conclusão 28ª).
Saber se deve alterar-se a matéria de facto dos pontos 9, 13 e 16 (conclusões 29ª a 34ª).
Saber se devem julgar-se não verificados os fundamentos jurídicos com que, na sentença, se considerou ser culposa a insolvência e declarar-se esta como fortuita (conclusões 35ª a 54ª).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido, nesta sede decidiu considerar relevantes e julgar como provados os seguintes factos:

“Com relevância para a decisão do presente incidente mostram-se provados os seguintes factos:

1. Em 30.12.2013 Pedro requereu a insolvência de X – Energias Renováveis, Unipessoal, L.da, dando origem ao processo de insolvência n.º 1193/13.2TBBGC.
2. Por sentença proferida em 02.05.2014, no âmbito dos autos principais, cujos termos aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, foi a sociedade X – Energias Renováveis, Unipessoal, L.da declarada insolvente.
3. A Insolvente foi constituída em 30.12.2008, tendo como único sócio e gerente o Requerido José.
4. A Insolvente dedicava-se ao estudo, planeamento, construção, desenvolvimento, gestão, financiamento e exploração de centrais de energias renováveis e produção e venda de energia nelas produzida, prestação de serviços de desenvolvimento e de gestão de projectos de energias renováveis, de supervisão de trabalhos de construção e apoio logístico ao desenvolvimento, construção e exploração de projectos de energias renováveis, bem como todas as actividades directa ou indirectamente conexas com o referido objecto social.
5. Por sentença de 04.06.2013, que se encontra junta a fls. 11-31 dos autos principais e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, transitada em julgado em 04.07.2013, proferida no âmbito da acção n.º 354/11.3TTVIS que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Viseu, foi a Insolvente condenada a pagar a Pedro:

a) a quantia de € 26.500,00, sendo € 19.000 a título de créditos salariais e € 7.500,00 a título de indemnização em substituição da reintegração;
b) as retribuições vencidas desde 02.04.2011 até ao trânsito em julgado da sentença, à razão de € 2.500,00 líquidos;
c) Os juros à taxa legal de 4%, sobre as quantias aludidas em a), desde a citação ocorrida em 16.05.2011 e sobre as quantias aludidas em b) desde a data do respectivo vencimento, até integral pagamento.
6. Em face do não pagamento por parte da Insolvente, o referido Pedro intentou, em 26.07.2013, a acção executiva que correu termos pelo mesmo 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Viseu com o n.º 354/11.3TTVIS-A.
7. À data da entrada daquela acção executiva, devia a Insolvente ao referido Pedro a quantia global de € 100.338,90.
8. Instaurada a execução, e após várias diligências realizadas pela Agente de Execução, nela se veio a constatar que a Insolvente estava completamente esvaziada de património, não resultando identificado qualquer bem penhorável, móvel ou imóvel, nem créditos sobre empresas com quem a X havia feito contratos ou saldos de contas bancárias utilizadas pela empresa.
9. O referido Pedro era o único trabalhador da Insolvente.
10. No âmbito da acção n.º 354/11.3TTVIS, o Requerido, na qualidade de sócio-gerente da Insolvente, adoptou um comportamento processual reprovável e evitável, retardando o andamento do processo, tendo a Insolvente, por via disso, sido condenada como litigante de má fé, recaindo sobre aquele o pagamento de multa de € 816,00 e indemnização a favor do referido Pedro no valor de € 816,00.
11. Em 28.03.2012, o Requerido alienou o principal património da Insolvente, três viaturas, à sociedade Y – Turismo Rural, Unipessoal, L.da, de que também era sócio-gerente, pelo valor global de € 11.300,00 sem que a empresa adquirente tivesse procedido ao pagamento do respectivo preço.
12. A Insolvente manteve uma contabilidade fictícia nos exercícios de 2012 e seguintes, declarando valores credores nas contas Banco X e Depósitos à Ordem, quando na realidade inexistia qualquer numerário na caixa e o saldo bancário estava a zero, e declarando as três viaturas alienadas como activos patrimoniais.
13. O Requerido é devedor à Insolvente da importância de € 16.673,92 adveniente de movimentos financeiros não justificados realizados da conta da Insolvente para a conta daquele.
14. O Requerido bem sabia que a Insolvente não dispunha de bens patrimoniais e capacidade financeira para cumprir o pagamento que veio a ser determinado pela sentença condenatória de 11.06.2013.
15. Do ano de 2010 para os anos de 2011 e 2012 verificou-se uma drástica redução no volume de negócios, mas ainda com lucro, e nos anos 2013 e seguintes a Insolvente não teve qualquer actividade comercial.
16. O Requerido, por descontrolo, desinteresse e falta de sensibilidade organizativa, não cumpriu as obrigações declarativas da Insolvente ao não acautelar os documentos contabilísticos e não entregá-los atempadamente à TOC para efeitos de elaboração das contas anuais e envio das declarações fiscais.
17. Pedro, à data da declaração de insolvência, era o único credor da Insolvente.
18. O Requerido sofreu um AVC em Junho de 2014, do qual ainda está recuperar.”

Além destes e sem embargo do que porventura vier a resultar da pretendida modificação, consideram-se relevantes, para a primeira questão suscitada, os decorrentes do relato precente.

IV. APRECIAÇÃO

Comecemos, sobretudo na perspectiva da primeira questão, por enquadrar o caso e o regime ao mesmo aplicável.

A sentença que declarou a insolvência da sociedade unipessoal “X” foi proferida nos termos do artº 39º, nº 1, do CIRE.

Com carácter limitado, portanto, como dos seus termos resulta e nela própria expressamente foi exarado.

Por isso, e para a eventual qualificação da insolvência como dolosa ou fortuita, aplica-se o incidente limitado, especificado no artº 191º, do CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, diploma que inovatoriamente criou tal mecanismo processual (em paralelo com o incidente pleno) com vista à responsabilização consequente das pessoas afectadas e no “propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas”, o qual “é [era] aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência […] e não deixa [deixava] de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (assumindo nessa hipótese, todavia, a designação de «incidente limitado de qualificação de insolvência», com uma tramitação e alcance mitigados»)”. (9)

Efectivamente, na versão inicial do Código, e a respeito da sentença, a alínea i), do artº 36º, dispunha claramente que, nela, o juiz “Declara aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artº 187º”, e mesmo na hipótese de, aí e então, concluir pela insuficiência da massa e de, por isso, serem mais restritas as disposições da sentença cumprindo-se, apenas, parte dos preceitos em geral previstos no artº 36º, “declarando aberto o incidente de qualificação com carácter limitado”.

A abertura do incidente era, pois, oficiosa e obrigatoriamente declarada pelo Juiz.

Tal não dependia da verificação de qualquer outro pressuposto prévio, nem da iniciativa dos interessados.

Ainda que, na sentença, declarado aberto com carácter pleno e, só depois dela, verificada a insuficiência da massa, coerentemente o artº 232º, nº 5, não obstante o encerramento do processo implicado, dispunha que “o incidente de qualificação da insolvência, se ainda não estiver findo, prossegue os seus termos como incidente limitado”.

A intervenção dos interessados e do administrador na tramitação de uma e outra espécies do incidente harmonizavam-se perfeita e claramente, ajustando-se apenas os prazos em função de cada uma das situações, como decorria dos artºs 188º e 191º.

Qualquer daqueles podia alegar, por escrito, o que tivesse por conveniente para o efeito (até 15 dias depois da realização da assembleia de apreciação do relatório; ou no prazo de 45 dias contados da data da sentença de declaração de insolvência).

O administrador – seguidamente – apresentava, houvesse ou não alegações, o seu parecer, em qualquer caso nos 15 dias subsequentes ao prazo estipulado para os demais interessados.

A oportunidade processual para o Juiz declarar aberto o incidente estava, pois, perfeitamente estabelecida.

A intervenção dos interessados e do administrador, claramente delineada.

Nem das alegações daqueles nem do parecer deste, assim, dependia a abertura do incidente.

A falta de alegações, sendo uma possibilidade ou faculdade, nenhuma repercussão tinha quanto a tal acto. A sua extemporaneidade, naturalmente, fazia precludir o direito de as apresentar. Mas incidente prosseguia o seu curso.

A demora ou a falta do parecer do administrador nomeado – uma vez que declarado aberto e pendente fora o incidente para qualificação –, atento o quadro legal relativo ao seu estatuto e papel e, especialmente, às funções cometidas no processo, nenhuma outra repercussão teriam para o prosseguimento inevitável do processo já aberto e pendente, além do retardamento deste com as inerentes consequências nefastas (sendo ele urgente), a não ser a imposição ao Juiz respectivo, no âmbito dos seus poderes e deveres, da tomada de medidas adequadas no sentido de estimular ou até sancionar o administrador para o emitir, ainda que tardiamente, ou mesmo destitui-lo, nomeando outro para as respectivas funções e para realizar tal tarefa.

A elaboração e apresentação do parecer, pelo administrador, era, pois, obrigatória. Não era pressuposto da declaração de abertura do incidente. Pelo contrário, pressuponha-o aberto.

O desrespeito do prazo (não peremptório, apenas regulador ou ordenador) para tal não tinha efeito preclusivo, quer porque, afinal, o incidente já estava aberto, quer porque nenhuma repercussão na instância pendente respectiva daí advinha (10). Nem materialmente na própria qualificação, uma vez que nenhuma prescrição, caducidade ou outra consequência similar se contemplava na lei para tal situação. (11)

Assim entendia a Doutrina (12) e a Jurisprudência (13).

A Lei 26/2012, de 20 de Abril (14), ao rever o Código, introduziu nesta matéria alterações importantes mas geradoras de algumas dificuldades de interpretação e aplicação. (15)

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 39/XII que esteve na sua origem, logo se anunciou claramente como “novidade” a “transformação do actual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processo de que a insolvência foi criada de forma culposa”.

A declaração de abertura do incidente continua a ser oficiosa. Não está, pois, na pura disponibilidade de qualquer dos interessados nem do administrador (embora possam requerê-la).

Deixou, porém, de ser automática. Depende necessariamente de o juiz dispor de “elementos justificativos” e de tal “considerar oportuno”.

Em vez de o incidente dever ser declarado aberto na sentença mas apenas aí, passou a poder sê-lo também, mais tarde. Há duas oportunidades processuais, portanto, previstas para tal. Não outras. Devidamente balizadas na tramitação. (16)

A primeira delas corresponde ao momento da prolação da sentença declarativa da insolvência.

Em geral, nos termos da alínea i), do nº 1, do artº 36º, nela, o juiz, “Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação de insolvência, declara aberto o incidente, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artº 187º”.

Em particular, no caso de insuficiência da massa insolvente, e também, de acordo com o nº 1, do artº 39º, “caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação de insolvência, declara aberto o incidente de qualificação com carácter limitado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto na alínea i) do nº 1 do artº 36º”.

Nesta situação, caso seja requerido o complemento de sentença, além do mais, conforme nº 4, do mesmo artigo 39º, o incidente que porventura tenha sido declarado aberto com carácter limitado prosseguirá, logicamente, com carácter pleno “sempre que ao mesmo haja lugar”.

Sem embargo de, à data da sentença, existirem “elementos” já carreados nos autos que justificadamente possibilitem ao juiz declarar aberto o incidente, estes podem ainda ser aportados, apreciados e implicar a decisão de abertura do incidente de qualificação, quer de carácter pleno quer de carácter limitado, nos termos dos artºs 188º, nº 1, e 191º.

É a segunda das referidas oportunidades processuais referidas para tal efeito. (17)

Na verdade, as alegações, antes em tais normas previstas como direito dos demais interessados mas que pressuponham a pendência do incidente já antes aberto, não só foram agora possibilitadas também ao próprio administrador, como, ainda, permitidas mesmo não tendo ainda sido instaurado aquele e até como meio de promover que o Juiz o desencadeie, fornecendo-lhe os elementos justificativos para tal, embora sempre dependentes da apreciação por ele e de o mesmo “considerar oportuno” declarar, em tal circunstância, abri-lo.

Tal como antes, a apresentação, pelo administrador do parecer propriamente dito pressupõe sempre que o incidente tenha sido declarado aberto numa daquelas duas oportunidades.

Há, porém, agora, também, quanto a este, uma diferença logicamente compreensível: se o incidente não tiver sido declarado aberto na sentença mas na sequência de alegações, caso o administrador as tenha apresentado e nelas proposto logo a qualificação da insolvência como culposa, não há lugar a (novo) parecer.

A lei dispensa-o, fazendo-lhe corresponder, processual e substancialmente, as alegações já produzidas.

Por isso é que, em vez de, apenas, do parecer ser dada vista ao Ministério Público para este se pronunciar (como dizia o nº 3, do artº 188º, na redacção anterior), agora é-lhe dada vista do parecer (se existir) e das alegações (como refere o nº 4, na redacção actual do artigo).

No que diz respeito a prazos, não tendo havido propriamente modificações nos já antes estabelecidos quanto à sua duração, introduziu-se um novo – para o juiz, se o não tiver feito antes na sentença, declarar aberto o incidente.

E introduziu-se uma inevitável alteração da sua natureza, quanto a esse e quanto ao de alegações.

Quanto ao incidente com carácter pleno, nos termos do artº 188º:

“1. Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
[…]
3. Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.” (18)

Quanto ao incidente com carácter limitado, nos termos do artº 191º:

“1 - O incidente limitado de qualificação de insolvência aplica-se nos casos previstos no n.º 1 do artigo 39.º e no n.º 5 do artigo 232.º e rege-se pelo disposto nos artigos 188.º e 189.º, com as seguintes adaptações:
a) O prazo para o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar o que tiver por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa é, nos casos do n.º 1 do artigo 39.º, de 45 dias contados da data da sentença de declaração de insolvência e, quando aplicável, o prazo para o administrador de insolvência apresentar o seu parecer é de 15 dias;”

O prazo para o juiz conhecer e decidir e, eventualmente, declarar aberto o incidente é o mesmo (10 dias, nos termos da parte final do nº 1, do artº 188º, aplicável ex vi do artº 191º, nº 1.

Ora sendo certo que, caso tenha sido, na sentença, declarado já aberto o incidente por o juiz ter no processo encontrado elementos justificativos para tal, nenhuma consequência adjectiva, quanto à sua promoção ou andamento, se produz e, por isso, nenhuma alteração na natureza dos prazos para alegar se verifica, já o mesmo não sucede quando o Juiz, por então não dispor de elementos para tal, se absteve de o fazer.

É que, reportando-se tais elementos evidentemente à data da declaração de insolvência e não se perspectivando que, sem a acção cooperativa do administrador ou de qualquer interessado (aqui se incluindo obviamente o Ministério Público, na sua dupla veste representativa e defensiva), o juiz, por si, em função do que a tramitação propicia (mormente no caso de a sentença declarativa da insolvência ter carácter limitado) e porventura no uso dos poderes conferidos pelo artº 11º, entretanto, logre obtê-los, já a função, as consequências e, por isso, a natureza dos prazos estabelecidos, em ambas as normas, para o efeito, aliadas, de resto, à tramitação normal do processo (urgente) de insolvência revel ao seu prolongamento ad infinitum ainda que em vista da descoberta de indícios de insolvência fraudulenta ou culposa, e ao óbvio desígnio de estabilizar os seus efeitos, de assegurar a paz jurídica que para os protagonistas com ele tenha sido afectada, manifestamente não consentem que eles sejam desrespeitados ainda a que a pretexto da existência de uma expectativa no sentido de, a qualquer momento, poderem vir a ser produzidas tais alegações e, então, declarado aberto o incidente.

Assim, se o prazo de 20 dias ou de 15 dias (consoante os casos) para o administrador apresentar o seu parecer quando a este houver lugar (o que pressupõe ter sido já declarado aberto o incidente, como claramente resulta da letra e do espírito da norma (artº 188º, nº 3), mantém exactamente a mesma natureza e o seu desrespeito implica os mesmos efeitos preconizados no domínio da lei anterior e acima referidos, já tal não sucede quanto aos das alegações possibilitado ao administrador ou a qualquer interessado (na hipótese de incidente com carácter pleno ou na de este ter carácter limitado), nem quanto ao de conhecimento dos factos alegados e declaração de abertura do incidente pelo Juiz (10 dias).

A Lei 16/2012, como se infere da já citada passagem da respectiva Exposição de Motivos, querendo, por um lado, afastar a automaticidade e obrigatoriedade da declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência, pelo Juiz, na sentença, e condicioná-los à existência e verificação de elementos disponíveis no processo justificativos do seu desencadeamento (19), visou, por outro, e para contrabalançar essa limitação, conferir, quer ao administrador quer aos demais interessados, a possibilidade de, nos prazos cominados, aportarem dados ao processo, alegando, fundamentadamente, por escrito, em requerimento a autuar por apenso, o que – os factos, entenda-se – tiverem por conveniente para aquele efeito (qualificação como culposa) e de indicarem as pessoas que deverão ser afectadas, assim introduzindo uma dimensão caracteristicamente dispositiva (embora mitigada) na iniciativa deles.

Coerentemente, atribuiu ao juiz a possibilidade de, nesse segundo momento, ainda declarar aberto o incidente.

Para tal, previu que lhe cabe “conhecer dos factos alegados” – não refere outros – e, “se o considerar oportuno” declarar aberto o incidente “nos 10 dias subsequentes”. (20)

Daqui se retiram duas consequências incontornáveis:

-a primeira é de que, caso o prazo de 15 dias previsto no nº 1, do artº 188º, ou o de 45 dias previsto na alínea a), do nº 1, do artº 191º, decorram sem que o administrador ou qualquer interessado aleguem, fica precludido o direito de o fazerem. (21)
-a segunda é de que, caso o juiz, na referida oportunidade e prazo, face ao requerido, não declare aberto o incidente, jamais, depois, poderá fazê-lo.

A lei não contempla outros.

Como assertivamente se refere no sumário do já citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 10-03-2015, “Ao contrário do que acontece com o parecer previsto no nº 3 do citado art. 188º - que, por corresponder a um acto obrigatório da tramitação do incidente já aberto e em curso, deve ser entendido como um dever funcional do administrador que não se extingue pelo decurso do prazo legalmente fixado para a sua apresentação – o requerimento/alegações a que alude o nº 1 da citada norma, através do qual se pretende desencadear a abertura do incidente de qualificação, apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo administrador – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo. ”.

Enfatizando, ainda, que o parecer do administrador referido agora no nº 3, do artº 188º (antes no nº 2) é obrigatório no caso de o incidente ter sido declarado aberto e estar em curso, justifica-se, convincentemente, no texto fundamentador do acórdão:

“O mesmo não acontece, porém, com as alegações previstas no actual nº 1 do art. 188º, já que o que está aí em causa não é a prática de um acto que seja obrigatório por fazer parte de um procedimento ou incidente já em curso, mas sim a iniciativa processual – que pode ou não ser exercida – tendo em vista a eventual abertura do incidente de qualificação da insolvência.

Embora, no regime actual, essa iniciativa possa também ser exercida pelo administrador da insolvência – ao contrário do que acontecia no regime anterior e dado que, neste regime, o incidente era sempre aberto oficiosamente – tal não corresponde, propriamente, ao parecer que a lei impõe como obrigatório por estar inserido num incidente já aberto e já em curso.

Naturalmente que a iniciativa do administrador com vista à abertura do incidente de qualificação, a que alude o citado nº 1, não deixará de ser vista como um dever funcional, porquanto, tendo conhecimento de elementos relevantes para efeitos de qualificação, o administrador terá o dever – decorrente das funções para as quais foi nomeado – de levar esses factos ao conhecimento do juiz para eventual abertura do incidente de qualificação. No entanto, essa iniciativa não pode ser encarada como um acto obrigatório que deva ser praticado pelo administrador em qualquer circunstância (ele apenas será praticado se existirem factos relevantes para efeitos de qualificação) e que, como tal, possa ser controlado pelo juiz.

Com efeito, ao contrário do que acontece com o parecer previsto no actual nº 3 – que, estando já inserido num incidente em curso, tem que ser obrigatoriamente apresentando, podendo o juiz aperceber-se da sua falta e tomar as providências necessárias com vista à sua junção (e que, em última instância, poderão reconduzir-se à destituição do administrador por justa causa) – a iniciativa a que alude o nº 1 pode ou não ser exercida e, tendo decorrido o prazo ali estabelecido, o juiz não pode concluir que o administrador tenha omitido a prática de um acto que devesse ter praticado (tendo decorrido aquele prazo sem que o administrador tenha apresentado quaisquer alegações referentes à qualificação da insolvência, o juiz apenas poderá concluir que o mesmo não teve conhecimento de quaisquer factos relevantes para esse efeito e por isso não tomou qualquer iniciativa).
É certo, portanto, que as considerações feitas a propósito do parecer a que alude o nº 3 (e a que aludia o nº 2 da citada norma antes da alteração efectuada pela Lei supra citada) não são válidas para a iniciativa prevista no nº 1.”

E, depois, analisando a hipótese – no caso apreciado no aresto – de, não tendo sido declarado aberto oportunamente pelo Juiz o incidente, o administrador ter vindo, mais tarde, extemporaneamente, a apresentar o que apelidou de “parecer” e a requerer a sua abertura, considerou:

“Refira-se que, não obstante aludir à junção do parecer (fazendo referência, aliás, à anterior redacção do art. 188º, como se depreende da alusão ao respectivo nº 2), o acto praticado pelo Sr. Administrador apenas poderá ser entendido como correspondendo ao requerimento ao que alude o nº 1 da norma citada na sua actual redacção, porquanto, a junção do parecer a que alude o nº 3 pressupõe que já tenha sido declarado aberto o incidente, o que aqui não acontecia.
O que está em causa, portanto, no presente recurso, não é o parecer a que alude o nº 3, mas sim o requerimento (alegações) previsto no nº 1 e que o Sr. Administrador veio apresentar muito para além do prazo legalmente estabelecido para o efeito.

Mas, não obstante o que se disse, poderá ainda assim afirmar-se que o juiz não poderá deixar de admitir tal requerimento e declarar aberto o incidente – se o considerar oportuno em face dos factos que sejam invocados – ainda que tal iniciativa seja exercida pelo administrador após o termo do prazo legalmente estabelecido?
Não encontramos razões válidas para que assim deva ser considerado.

Já vimos que não valem aqui as razões invocadas para admitir o parecer a que alude o nº 3 tardiamente apresentado, porquanto, ao contrário do que acontece com este parecer, a iniciativa prevista no nº 1 não é um acto obrigatório que esteja inserido no âmbito de um incidente já em curso, mas sim um acto que, podendo ou não ser praticado, apenas tem em vista facultar ao juiz elementos que se entendam ser relevantes e que lhe permita declarar aberto o incidente.

Por outro lado, ainda que aquela iniciativa por parte do administrador radique nas suas funções, a verdade é que o seu conteúdo não diverge do direito que assiste a qualquer interessado de tomar tal iniciativa e, portanto, a admitir-se que o administrador pudesse tomar aquela iniciativa depois de decorrido o aludido prazo, também teria que ser admitida a iniciativa que nas mesmas circunstâncias fosse tomada por qualquer outro interessado, já que não vislumbramos razões que nos permitam tratar de forma diversa as duas situações.

Mas, a admitir-se essa situação, qual seria a utilidade do prazo fixado no nº 1? Porque razão o legislador teria fixado aquele prazo se, afinal, o acto poderia ser praticado para além dele? E a admitir-se que o decurso desse prazo não impedia o exercício daquela iniciativa, ela poderia ser exercida até quando? Até ao encerramento do processo?

Note-se que, relativamente ao parecer a que alude o nº 3, o incumprimento do prazo previsto para a sua apresentação pode ser controlado pelo juiz e demais intervenientes (porquanto, sendo um acto obrigatório que faz parte de um incidente já em curso, é fácil verificar o seu incumprimento) e poderá ser sancionado com a eventual destituição do administrador por incumprimento dos seus deveres. Tal não acontece, porém, com a iniciativa prevista no nº 1 e, portanto, a admitir-se que o administrador poderia exercê-la para além do prazo fixado, inexistiria qualquer sanção para o efeito, porquanto não o juiz e demais intervenientes não poderiam ter conhecimento prévio do incumprimento de qualquer dever do administrador.”
Interrogando-se, a seguir: “poderá o juiz, no actual regime legal, declarar aberto o incidente de qualificação em qualquer fase do processo? Se o juiz tomar conhecimento, por força de elementos que sejam juntos aos autos, de factos que evidenciem, com alguma clareza, uma situação de insolvência culposa, deverá “fechar os olhos” (como diz o Apelante) por ter decorrido o momento processual que a lei estabelece para a abertura do incidente?”

Respondeu:

“Parece-nos, de facto, que, perante o regime legal actualmente vigente, o juiz apenas poderá, oficiosamente, declarar aberto o incidente na sentença que declara a insolvência se dispuser, então, de elementos relevantes; fora desse momento apenas poderá fazê-lo na sequência de iniciativa formulada pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado dentro do prazo assinalado na lei. O que se compreende, já que, por regra e sem prejuízo das excepções consagradas na lei, o juiz não tem o poder de, oficiosamente, dar início a acções ou incidentes e decretar providências sem que seja formulado um pedido nesse sentido (cfr. art. 3º do C.P.C.). E, se é certo que no regime anterior, o juiz tinha o poder/dever de declarar aberto esse incidente em qualquer circunstância, parece indiscutível que o legislador limitou agora esse poder ao momento em que é proferida a sentença que declara a insolvência, sendo que, a partir desse momento, entendeu o legislador não atribuir ao juiz qualquer poder de actuar oficiosamente nesse domínio e apenas podendo actuar – declarando aberto o incidente – mediante iniciativa do administrador ou de qualquer interessado. E, não obstante estar consagrado, no processo de insolvência, o princípio do inquisitório (cfr. art. 11º), importa notar que tal apenas acontece relativamente aos factos que fundam a decisão (podendo o juiz investigar e considerar factos que não foram alegados), sem que esteja aí abrangida a possibilidade de o juiz também poder actuar oficiosamente ao nível da abertura de um incidente e do decretamento de providências sem que tal lhe tenha sido pedido. E, salvo o devido respeito, não estando consagrada legalmente a possibilidade de o juiz actuar oficiosamente, ao nível da abertura do incidente de qualificação da insolvência, para lá do momento em que é proferida a sentença, impõe-se concluir que, por força dos princípios gerais consagrados no nosso sistema processual civil, tal não será possível.”

Acentuando, relativamente ao possível argumento de que assim se desprotegem os credores e facilita a irresponsabilidade por insolvências culposas, que tal se deve a uma opção, pela justiça inquestionável, do legislador no sentido de que “fora dos momentos e circunstâncias definidas na lei, não será possível declarar aberto o incidente”, terminou concluindo que “ao contrário do que acontece com o prazo fixado no nº 3 do art. 188º para a apresentação do parecer, o prazo fixado no nº 1 da norma citada não é um prazo meramente regulador ou ordenador; o que aí se prevê é uma iniciativa processual – que pode ser exercida pelo administrador ou por qualquer interessado – no sentido de desencadear a possível abertura do incidente de qualificação da insolvência e que apenas poderá ser admitida se for apresentada dentro do prazo que está fixado na lei.”

Compreende-se que assim seja.

Não tendo sido declarado aberto o incidente na sentença nem depois, mediante alegações, nos termos e prazos vindos de referir, o processo de insolvência ou segue o seu rumo mas direccionado à resolução de outras questões (liquidação, etc.) ou, caso tal não se justifique por inexistência ou insuficiência de bens na massa e não sendo requerido o complemento da sentença declaratória de insolvência com carácter limitado, acaba por ser encerrado, nos termos do artº 39º, nº 7, alínea b), e 232º.

Sendo assim, como nos parece que é e deve ser, maxime na situação de insuficiência e de sentença com carácter limitado, não sendo o incidente declarado aberto nesta (se o tiver sido, ele prossegue até final) nem nos prazos previstos nos artºs 188º, nº 1, e 191º, nº 1, alínea a), jamais o poderá ser – até por uma razão prática óbvia: não haverá, depois, processo pendente onde alegar e decidir o que quer que seja a tal propósito, nem poderá este manter-se como tal apenas com fito de permitir que, a dado passo, quiçá ao fim de anos, sem que haja qualquer determinação até quando, alguém se apresente a alegar!

Sintomaticamente, nos termos do nº 7, do artº 39º, na hipótese de insuficiência da massa insolvente, de a sentença ter carácter restrito e de não ser requerido o seu complemento, o processo é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência (alínea b) – isto se ele tiver sido, claro, entretanto, declarado aberto, limitando-se a actividade do administrador à elaboração do parecer a que se refere o nº 3 do artigo 188º (alínea c). (22)

De resto, nos termos do nº 6, do artº 233º, “Sempre que ocorra o encerramento do processo de insolvência sem que tenha sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 36.º, deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artigo 230.º o caráter fortuito da insolvência.”. (23)

Na linha do mesmo entendimento se orientou o Acórdão da Relação de Coimbra, de 08-09-2015 (24), salientando no sumário: “Declarada a insolvência com verificação judicial imediata da insuficiência da massa insolvente e não aberto, ao mesmo tempo, o incidente de qualificação da insolvência com caracter limitado (art. 39º, nº 1), o prazo para o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar o que tiver por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa é de 45 dias contados desde a data da sentença de declaração da insolvência (art. 191º, a), do CIRE), sob pena de não mais poder ser aberto, posteriormente a tal prazo, tal incidente de qualificação.”.

Tratando de caso em que, declarada a insolvência com efeitos limitados nos termos do artº 39º, nºs 1, 7, alínea b), e 9 (insuficiência da massa, processo declarado findo), nela não foi declarado aberto o incidente, nem requerido o complemento de sentença, mas o administrador acabou por produzir no processo relatório a “alegar e emitir parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita” e o Ministério Público espontaneamente (“sem que tivesse havido qualquer despacho do juiz”) defendeu a qualificação como culposa, e em que o tribunal, apesar de nada ter decidido nem declarado expressamente, em despacho “considerou ter sido aberto o incidente”, entendeu aquela Relação não ter sido verdadeiramente, nem podendo como tal considerar-se, aberto o incidente, tanto mais que o processo fora declarado findo e se haviam exaurido os prazos (artº 188º, nº 1, e 191º, nº 1), assim fundamentando no seu entendimento:

“Na verdade, quando tal incidente de qualificação não é aberto com a sentença que declara a insolvência põe-se a interrogação de saber até quando pode ele ser aberto. Interessa ao caso concreto a norma que rege na situação de incidente de qualificação limitado.

Dispõe o referido art. 191º, nº 1, do CIRE, que ele se aplica em 2 hipóteses: ao já mencionado caso do art. 39º, nº 1; e ao caso do art. 232º, nº 5, do CIRE, em que se prevê o encerramento do processo por insuficiência da massa e em que tenha sido aberto incidente pleno de qualificação de insolvência que passa a prosseguir os seus termos como limitado se ainda não estiver terminado.
Esta 2ª hipótese não interessa agora para a nossa decisão porque o processo não foi encerrado à sombra dos ditos arts. 230º, nº 1, d) e 232º, nº 1, nem havia prévia abertura de incidente pleno de qualificação de insolvência.

Interessando, apenas, a 1ª hipótese, verifica-se que, nos termos da a) do art. 191º, o prazo para o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa é de 45 dias contados, respectivamente, da data da sentença de declaração da insolvência. Posto, obviamente, que entretanto ou previamente o juiz não tivesse aberto oficiosamente tal incidente, o que no caso não aconteceu.
O que vemos no caso dos autos, é que proferida a sentença que declarou a insolvência, com carácter limitado, em 2.7.2013, ninguém, juiz, administrador da insolvência ou qualquer interessado, veio alegar o que quer que fosse nos 45 dias subsequentes para efeitos de qualificação de insolvência. Portanto, decorridos tais 45 dias estava vedado abrir tal incidente de qualificação.

Ora, só muito mais tarde, em 10.2.2014, a administradora da insolvência veio produzir a sua alegação fundamentada, como o impõem o citado 191º, nº 1, a), e o art. 188º, nº 1, do CIRE, defendendo que a insolvência era fortuita, sem que o juiz tivesse conhecido dos factos alegados e considerasse oportuno abrir o incidente de qualificação, como o impunha o citado art. 188º, nº 1. E O Mº Pº só emitiu parecer, no sentido da insolvência culposa, em 4.3.2014, tendo apenas o juiz, em 10.3.2014, declarado aberto tal incidente, embora de modo dubitativo quanto à data pois não disse “declaro” aberto o incidente mas sim “declarado” aberto o incidente.

Seja como for, em 10.2.2014, por parte da administradora da insolvência, em 4.3.2014, por parte do Mº Pº e em 10.3.2014, por parte do Juiz (ou em 10.2.2014 se for entendido, o que não aceitamos, que ele considerou aberto o incidente na data em que o administradora da insolvência produziu a sua alegação) já era tarde demais para abrir tal incidente porque o prazo para tanto tinha sido há muito ultrapassado.

Desta sorte, em bom rigor interpretativo, quando se proferiu despacho em que se dizia estar “declarado” aberto o incidente de qualificação de insolvência tal abertura, por extemporaneidade, já não podia ter acontecido.
Despacho que, como interlocutório, pode agora ser objecto de recurso (art. 644º, nº 3, do NCPC). E por aplicação analógica do sobredito art. 233º, nº 6, e 185º do CIRE, tem de considerar-se face à situação apurada que a insolvência foi fortuita. ”

Posto isto, vamos agora ao nosso caso.

Consiste a primeira questão colocada em saber – relembremos – se o “relatório” apresentado pelo administrador judicial – tratado nos autos como “parecer” – e o subsequente despacho a, com base nele, declarar aberto o incidente, são extemporâneos e, por isso, ilegal a sentença, devendo aquele ser julgado extinto (conclusões 3ª a 12ª).

Defende, a este propósito, o apelante que, não sendo actualmente obrigatória nem automática a abertura do incidente e que tal não tendo sido declarado na sentença que julgou a devedora na situação de insolvência, só o poderia ter sido com observância estrita dos prazos e termos previstos no nº 1, do artº 188º, e nº 1, do artº 191º (mediante apresentação de alegações para o efeito, na devida oportunidade processual).

Tendo, porém, o administrador apresentado o “relatório” em tal sentido quase três anos depois de declarada a sentença (com carácter limitado) e de declarado findo o processo (por insuficiência da massa) – o que era inadmissível – e só subsequentemente tendo sido declarado aberto o incidente, há muito estavam ultrapassados os prazos. Houve, assim, violação ou errada interpretação da lei, pelo que deve ser anulado todo o processado ou julgado extinto o incidente.

Baseia a sua argumentação, sobretudo, no já atrás mencionado Acórdão da Relação de Coimbra de 10-03-2015.

O Ministério Público, na sua resposta, historiando as variadas insistências do tribunal junto do administrador para justificar o atraso, contrapôs que a apresentação do parecer é obrigatória, o prazo para tal não é peremptório, devendo ser admitido mesmo que tardio, não se verificando qualquer preclusão.

Anotou que, um mês antes de o parecer ter sido apresentado, fora pedida pelos advogados a prorrogação do prazo para tal sem que a do apelante se insurgisse.

Invocou o Acórdão da Relação do Porto, de 14-03-2017, sem qualquer outra identificação mas que, segundo cremos, será o proferido no processo 2037/14.3T8VNG-E.P1 (25).

Ora, analisados os autos e ponderados os fundamentos esgrimidos, entendemos que ao apelante não pode deixar de ser reconhecida razão.

Por aqui começando.

É certo que, no referido acórdão, se entendeu, em suma, que “O prazo para o AI apresentar o parecer sobre a qualificação da insolvência não é peremptório”.

Quando do verdadeiro parecer se trata e produzido no âmbito do incidente já declarado aberto e em curso ao abrigo do nº 3, do artigo 188º, não temos quaisquer dúvidas em concordar que, tal como antes das alterações introduzidas pela Lei 16/2012 se entendia e agora, nos termos atrás expostos, deve continuar a entender-se, tal prazo é ordenador e não peremptório.

Também não as temos de que nem esse parecer é a mesma coisa que as alegações previstas no nº 1 daquele referido artigo (embora a apresentação prévia à declaração de abertura do incidente destas pelo administrador implique a dispensa daquele no decurso da qualificação) nem o regime, designadamente o adjectivo, de tais alegações (26) é igual.

Acontece, porém, que, no nosso caso, não está em questão o parecer mas um relatório cuja admissibilidade, na medida em que apresentado antes de ter sido declarado aberto qualquer incidente de qualificação, apenas pode encontrar respaldo legal no nº 1, do artº 188º e, portanto, corresponder às alegações aí referidas e permitidas.

Tendo sido precisamente ao abrigo de tal norma que, na espécie objecto do aresto invocado pelo Ministério Público, o requerimento, pelo administrador, de abertura do incidente, foi apresentado, ele só como alegações poderia e deveria ser entendido, com as devidas consequências.

No referido acórdão, não se enfrentou, expressa e fundamentadamente, a alteração no regime legal operada pela Lei 16/2012, não se distinguiram os dois momentos agora processualmente previstos para a abertura do incidente nem a diferença entre alegações (enquanto peça promotora da respectiva declaração se “o tribunal o considerar oportuno”) do nº 1 e parecer do nº 3 (artº 188º) e respectivas consequências quanto ao regime. Pressupôs-se que “a questão apreciada era a mesma” nos recursos de 2008 e 2009 citados, quando, na realidade, fruto das alterações, ela deixou de o ser e, portanto, tal jurisprudência de servir.

Logo, o entendimento seguido em tal acórdão é de muito relativo peso para o que aqui constitui o cerne da questão.

Quanto à alusão ao “acordo” obtido em contactos que extraprocessualmente terão sido mantidos entre administrador e advogados do credor requerente da insolvência e da devedora e que motivou o pedido (concedido) de prorrogação do prazo pelo administrador, a verdade é que neles não interveio, ao contrário do que se afirma, a advogada do apelante nem aqueles se dirigiram ao tribunal, sendo certo que tal teria ocorrido, em todo o caso, já muito para além de esgotado o prazo para o administrador se pronunciar (alegar), não se sugerindo nem se perspectivando que consequências daí possam e devam ser retiradas agora relativamente à invocação de tal circunstância.

Continuando.

A insolvência foi, como se viu, declarada por sentença de 02-05-2014.

Foi-o expressamente nos termos do artº 39º, nº 1, ou seja, com carácter limitado, por o tribunal então ter considerado verificada a insuficiência do património do devedor sequer para as custas do processo e dívidas da massa.

Apesar da possibilidade de, conforme dispõe tal norma, na sentença (dever) ser declarado aberto o incidente de qualificação com carácter limitado e de, antes, o credor requerente da insolvência, ter requerido tal abertura e para tal alegado factos que considerou justificativos, o certo é que, nessa oportunidade, o tribunal não o fez.

Pelo contrário, entendeu isso “absolutamente inoportuno” (e implicitamente que para tal ainda não dispunha dos elementos que o justificassem e de cuja verificação a lei agora faz depender a abertura) e relegou expressamente “para o incidente próprio” a discussão e conhecimento dos factos sobre a matéria (fls. 119 e 120 dos autos de insolvência).

Portanto, em face do que o nº 1, do artº 39º, estipula quanto à possibilidade de, na sentença, ser declarado aberto o incidente e as condições (27) em que tal deve ter lugar, considerou o tribunal não existirem estas e absteve-se de o fazer, só vindo a fazê-lo em 29-04-2017.

Assim se apartou do regime anterior que impunha a abertura do incidente, automática e oficiosamente.

E assim parece não ter tido em atenção as diferenças introduzidas pela Lei 16/2012 e respectivas repercussões ao nível da tramitação, mormente quanto aos dois momentos oportunos para apreciar a existência de elementos disponíveis nos autos justificativos da abertura do incidente, ao sentido e função das alegações, sua distinção do parecer e, consequentemente, a distinta natureza dos prazos estabelecidos para o efeito.

Tanto que, não tendo sido sequer requerido o complemento de sentença, entretanto, declarou expressamente findo o processo, passando, contraditoriamente, durante longo tempo, a repetir nele notificações ao administrador para apresentar o parecer, mencionando-o face ao protelamento como obrigatório, mas sem atentar que só assim é no âmbito de incidente porventura já em curso que antes tivesse sido declarado aberto, hipótese em que, não obstante o processo de insolvência ter entretanto findado, aquele deveria continuar até ser decidida a qualificação – o que não era o caso!

Com efeito, declarado findo o processo por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos artºs 39º, nº 7, alíneas b) e c), e 232º, nº 5, há lugar ao prosseguimento do incidente de qualificação, mas apenas do que já tenha sido iniciado e não tenha ainda findadonão à sua instauração posterior a tal facto. (28)

Aliás, nessa hipótese, a própria lei é clara ao dispor que o administrador “limita a sua actividade à elaboração do parecer” – parecer que é o referido agora no nº 3, do artº 188º, e que, não só logicamente, pressupõe a pendência do incidente mas expressamente tal salvaguarda.

Como, com efeito, se refere nesta norma (aplicável, por força do artº 191º, nº 1, alínea a), maxime o segmento final), o parecer é apresentado uma vez “declarado aberto o incidente”.

Ademais, mesmo a admitir-se – o que não nos parece possível – que, a despeito de ter findado o processo e dos efeitos previstos no artº 233º para tal encerramento, ainda seria possível, nos termos e prazos previstos nos artºs 188º, nº 1, e 191º, nº 1, alínea a), qualquer interessado ou o administrador apresentarem alegações e assim considerar-se o requerimento mais tarde junto como relatório ou a pretexto do parecer e tal circunstância obrigar o juiz a ponderar se, então, dos autos resultam indícios sérios e consistentes justificativos da abertura do incidente e de tal ser oportuno, a verdade é que tais prazos manifestamente se esgotaram e, como acima se entendeu, estes são preclusivos.

De resto – enfatize-se – o que o nº 6, do artº 233º, dispõe é que “Sempre que ocorra o encerramento do processo de insolvência sem que tem há sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i), do nº 1, do artº 36º - ou por similar ou até maior razão, do artº 39º, nº 1, acrescentamos – deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artº 230º o carácter fortuito da insolvência.”

Uma das circunstâncias em que tal decisão deve ser proferida é precisamente a da insuficiência da massa insolvente (alínea c), do nº 1, do artº 230º). Seja esta constatada e comunicada ao processo pelo administrador, como aí se diz, ou tenha sido verificada logo na sentença pelo juiz e, em função disso, depois declarado findo o processo, como aqui sucedeu, sem que tivesse sido aberto antes concomitantemente com aquela e pendesse incidente de qualificação, outra solução não resta – e não restava no caso – senão declarar o carácter fortuito da sentença, obviamente sem qualquer repercussão, designadamente “para efeitos de causas penais”, como previne o artº 185º.

Anote-se que, a despeito dos termos e da tramitação prosseguida, nenhuma dúvida se pode colocar que jamais, antes de 29-04-2017, fora ou se poderia considerar implicitamente aberto o incidente. É que formalmente nada a tal respeito se processou. Nada, com tal sentido, foi declarado, como exige a lei. Sequer implícita ou tacitamente. Nem se pode interpretar, apesar das vicissitudes da tramitação e dos termos dos despachos proferidos. Pelo contrário: o tribunal claramente relegara essa decisão para momento posterior. E, na verdade, só nessa data (fls. 306) então despachou declarando expressis verbis aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter limitado – carácter este que, muito tempo antes, justificara já o encerramento do processo.

Não sendo recorrível o despacho que, assim ilegalmente, declarou aberto o incidente, mas sendo impugnáveis, em recurso da sentença final, os pressupostos desta e devendo proceder, quanto a tal questão, o apelo, não pode a sentença manter-se, com as respectivas consequências, ficando prejudicada a apreciação das demais questões recursivas.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida, declaram extinta a instância e a insolvência como fortuita.

Sem custas.
Guimarães, 30 de Maio de 2018

José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Pedro Damião e Cunha



1. Segundo o qual “Concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência, dando nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do n.º 1 do artigo 36.º, e, caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação com caráter limitado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 36.º”.
2. Que trata, como refere a sua epígrafe, da “Insuficiência da massa insolvente”.
3. Que refere: “O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência”.
4. “O administrador da insolvência limita a sua actividade à elaboração do parecer a que se refere o n.º 2 do artigo 188.”.
5. Actualmente, por efeito da entrada em vigor do DL nº 79/2017, o nº 2 passou para o nº 3, com a mesma redacção (embora o legislador não tenha corrigido, como devia, a remissão anterior): “Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.”.
6. Que o tribunal apelidara de parecer e considerara obrigatório.
7. Colhe-se, entretanto, do pedido de informação junto a fls. 336, datado de 13-03-2018, que, na Polícia Judiciária, pende investigação dos factos na perspectiva do crime de insolvência dolosa.
8. Artº 188ª […] “6 - Caso não exerça a faculdade que lhe confere o número anterior, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias; a notificação e as citações são acompanhadas dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e dos documentos que os instruam. 7 - O administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições pode responder-lhe dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no número anterior. 8 - É aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132.º a 139.º, com as devidas adaptações.”.
9. Cfr. nº 40 do preâmbulo.
10. Como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 23-02-2012, proferido no processo nº 621/09.6TBOAZ-A.P1, relatado pelo então Des. e hoje Consº Pinto de Almeida: “I - No incidente de qualificação da insolvência, atentos o seu carácter obrigatório e a sua finalidade de responsabilização, não funciona qualquer preclusão. II - O decurso do prazo previsto no n.º 2 do art.º 188.º do CIRE não preclude a possibilidade de o Administrador da Insolvência apresentar posteriormente o seu parecer, por se tratar de um prazo meramente ordenador.”.
11. Como expressivamente se escreveu no Acórdão da Relação do Porto, de 29-10-2009, proferido no processo10/07.7TYVNG-B.P1, relatado pelo Desemb. Filipe Caroço, “O administrador da insolvência é um colaborador do tribunal; não é uma parte no processo. Como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional. Não está na disponibilidade do administrador emitir ou não emitir o parecer com formulação de uma proposta para qualificação da insolvência. Deve fazê-lo, sob pena de ser considerado relapso no cumprimento das suas competências, devendo então ser advertido, mesmo multado nos termos das regras gerais, ou até demitido pelo tribunal e substituído por novo administrador (cf. art.ºs 52º e seg.s). Por outra via, o incidente da qualificação da insolvência não é uma fase facultativa do processo. É obrigatório e indispensável, tal como é o referido parecer nos termos do art.º 185º e seg.s. Será na sentença incidental que se qualificará como culposa ou fortuita a insolvência (art.º 189º). Dispensáveis, porque prestadas no exercício de um direito, são as alegações que os interessados podem fazer antes do parecer do administrador (cf. acórdão desta Relação de 22.1.2008, in www.dgsi.pt). Não assim este parecer que, além de obrigatório, pode ser dado fora dos prazos em causa nos art.ºs 188º e 191º. E há mesmo situações em que dificilmente o prazo poderá ser respeitado, como acontece relativamente ao prazo do parecer previsto no art.º 191º, nº 1 para o incidente limitado quando aplicado no caso previsto do nº 5 do art.º 232º e o processo é encerrado depois da assembleia a que se refere o art.º 156º. Como referimos, compete ao juiz, logo na sentença que declara a insolvência, declarar também aberto o incidente de qualificação com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.°. Por conseguinte, nestas condições jurídicas, impondo-se ao administrador da insolvência emitir o parecer no exercício de um dever ou competência, jamais se poderá qualificar o prazo em causa como sendo de caducidade ou de prescrição. É um prazo regulador, ordenacional ou de organização processual, sem cominatório (cf. acórdão desta Relação de 17.11.2008, in www.dgsi.pt) e cuja ultrapassagem pode gerar responsabilidade do administrador no âmbito do processo, mas não a caducidade de qualquer direito que o administrador não tem e não exerce. Nesta senda, não se verifica a excepção da caducidade invocada pela via do recurso ou qualquer outra figura jurídica cujo conhecimento devamos tomar por dever de ofício.”.
12. João Labareda e Luis Carvalho Fernandes, CIRE Anotado, 2008, página 618, nota 9.
13. A título de exemplo, cfr. o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 24-09-2015, proferido no processo 3597/11.6T8VNF.G1 (relatado pelo Desemb. J. Estelita de Mendonça), no qual se arrolam arestos e obras onde foi tomada posição sobre a questão, maxime antes da versão do Código introduzida pela Lei 16/2012. A não peremptoriedade do prazo para o administrador apresentar o parecer foi reiterada no Acórdão da Relação do Porto, de 14-03-2017, proferido no processo nº 2037/14.3T8VNG-E.P1 (relatado pelo Desemb. José Carvalho), e, bem assim, no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 20-04-2017, proferido no processo nº 126/16.9T8GMR-G.G1 (relatado pelo Desemb. Jorge Teixeira e subscrito pelo relator e 1ª adjunta deste), salientando-se, aí, que tal sucede no caso de já ter sido declarado aberto o incidente (no âmbito de cujo processo, sublinhe-se, tal parecer é obrigatório mas com o qual – deve notar-sebem – não se confundem as alegações porventura apresentadas pelo administrador nos termos dos artºs 188º, nº 1, e 191, nº 1, embora, havendo-as, tal implique, depois, a dispensa daquele).
14. Tendo a insolvência sido requerida em 30-12-2013, é aplicável ao processo a versão adjectiva do CIRE posterior à Lei 16/2012, então em vigor.
15. Com alterações posteriores, sem relevo decisivo na matéria aqui em apreço.
16. Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 10-03-2015, proferido no processo 631/13.9TBGRD-L.C1 (relatado pela Desemb. Catarina Gonçalves), “No actual quadro legal – após as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012 de 20/04 – apenas há lugar à abertura do incidente de qualificação da insolvência em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem) ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria e ao abrigo do disposto no art. 188º, nº 1, do CIRE, sejam efectuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado dentro do prazo aí assinalado.”.
17. Maria do Rosário Epifânio, in O Incidente de Qualificação da Insolvência, Texto da comunicação, em Dezembro de 2015, no CEJ, além de referir o “carácter eventual” da abertura do incidente, considera que, na hipótese do artº 188º, nº 1, tal sucede “a pedido” e, relativamente ao prazo, anota que “A lei não prevê a admissibilidade de esse requerimento ser apresentado mais tarde.”
18. No Acórdão desta Relação de Guimarães, de 20-04-2017, proferido no processo nº 510/16.8T8VRL-D.G1 (relatado pela Desemb. Elisabete Valente) considerou-se que o prazo a que alude o nº 1, do artº 188 “não é meramente regulador ou ordenador, mas sim peremptório”.
19. Admite-se que por razões de índole processual mas, sobretudo, de natureza garantística, considerando não se justificar a averiguação e perseguição das pessoas susceptíveis de afectação sem que para tal haja fundamentos indiciários bastantes nos autos.
20. Não funciona em pleno o princípio nemo judex sine actore e ne procedat judex ex officio nas suas diversas vertentes e implicações, uma vez que, mesmo que de algum interessado ou do administrador apenas tenha partido a iniciativa de alegar “o que tiver por conveniente para o efeito”, sempre a abertura do incidente depende de o juiz tal “considerar oportuno” e “justificado” e não do eventual “pedido” daqueles. As alegações são, então, condição necessária, mas não suficiente.
21. Conforme se sintetiza no Acórdão da Relação de Évora, de 29-01-2015, proferido no processo nº 34/14.8T2GDI-E1, “a abertura do incidente de qualificação da insolvência não é sempre obrigatória, sendo a insolvência considerada fortuita se, até antes da prolação do despacho de encerramento do processo por insuficiência de bens, não for determinada, por iniciativa do juiz do processo, ou a requerimento dos credores ou do administrador da insolvência, a abertura do incidente” e “pretendendo os credores ou o administrador da insolvência requerer a abertura do incidente […] devem fazê-lo, sob pena de preclusão do seu direito, até antes de ser proferido o despacho de encerramento do processo por insuficiência de bens”.
22. Refere-se, o nº 2, porque o legislador se esqueceu de actualizar a remissão imposta pela alteração do artº 188º onde tal parecer passou a ser referido no nº 3.
23. Note-se que uma das hipóteses de encerramento do processo, além da referida no nº 1, do artº 39º, é precisamente “Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente” (artº 230º, nº1, d)). Da respectiva tramitação trata o artº 232º. Dos efeitos, o artº 233º.
24. Proferido no processo nº 132/13.5TBVZL-A.C1, relatado pelo Desemb. Moreira do Carmo.
25. Relatado pelo Desemb. José Carvalho, publicado, como os demais aqui referidos, na Base de Dados do ITIJ.
26. Frequentemente se apelidam de parecer, de relatório ou de alegações realidades diferentes. O parecer, antes da Lei 16/2012, era a peça, prevista no nº 2, do artº 188º, apresentada pelo administrador obrigatória e necessariamente após e no âmbito do incidente de qualificação já declarado automática e oficiosamente aberto e em curso nos termos do artº 36º, alínea i), ou 39º, nº 1 (redacção então vigente). Face às modificações introduzidas por aquela Lei, embora, em rigor, como parecer seja considerado e deva continuar a tratar-se a peça apenas produzida no decurso do processo incidental já pendente, com ele e com a respectiva natureza e regime não se podem confundir as alegações (ainda que apresentadas pelo administrador) prevista no nº 1 do mesmo artigo (redacção actual).
27. Não pode, claro está, confundir-se a verificação preliminar, pelo juiz, nos termos dos artºs 36º, nº 1,alínea i), 39º, nº 1, 188º, nº 1, e 191º, nº 1, dos elementos que, ao nível indiciário, passaram a ser exigidos para se considerar justificada e oportuna a declaração de abertura do incidente (ou seja, a instauração do processo), com a apreciação, em sede de julgamento e sentença (no mesmo), dos fundamentos, de facto e de direito, previstos no artº 186º, para ser qualificada como culposa ou fortuita a insolvência e para serem responsabilizadas ou ilibadas as pessoas nele indiciadas.
28. Se o processo de insolvência finda e, por isso, se extingue a respectiva instância, nem sequer tem sentido perspectivar-se subsequentemente apensar-lhe o incidente que, como qualquer vicissitude congénere, normalmente pressupõe a pendência daquela.