Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
140/16.4T8CBC.G2
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL DE PASSAGEM
CONSTITUIÇÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
CONSTITUIÇÃO POR USUCAPIÃO
PODER DE FACTO
PRESUNÇÃO DE POSSE EM NOME PRÓPRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A servidão predial tem no essencial quatro notas características - é um encargo, que recai sobre um prédio, aproveita exclusivamente a outro prédio, devendo os prédios pertencer a donos diferentes – refletindo-se esta inerência da servidão aos prédios em dois princípios fundamentais: a inseparabilidade (artigo 1545º do Código Civil) e indivisibilidade (artigo 1546º do Código Civil) das mesmas.

II - Para a aquisição da servidão por destinação do pai de família é essencial a verificação dos seguintes pressupostos: que os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, tenham pertencido ao mesmo dono, que exista uma relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fração a outra correspondente a uma servidão aparente revelada por sinais visíveis e permanentes, que tenha existido uma separação dos prédios ou frações em relação ao domínio (uma separação jurídica) e inexista qualquer declaração contrária à destinação.

III - Para haver lugar à aquisição por usucapião de uma servidão, mostra-se necessário que a mesma se revele por sinais visíveis e permanentes.

IV - O n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto pelo que, não logrando o pretenso possuidor provar o animus, recairá sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, na linha do decidido no AUJ do STJ, de 14/05/1996.

V - Contudo, para que a presunção prevista n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil opere, e uma vez que ai se ressalva a presunção da mesma natureza estabelecida no n.º 2 do artigo 1257.º, importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse.

VI – E importa também que o pretenso possuidor efetivamente exerça o poder de facto sobre a coisa pois a presunção que se estabelece funciona necessariamente a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, e, por isso, se considera que podem adquirir por usucapião os que exercem o poder de facto sobre a coisa.

VII - Não pode ser aplicada no caso dos autos a presunção do n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil uma vez que atenta a factualidade provada a utilização da passagem pelos Autores, e antes pela mãe, não traduz o exercício de um poder de facto suscetível de fazer presumir a posse e de ser concretamente revelador da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito real de servidão de passagem, pois que como os Autores várias outras pessoas utilizavam a passagem para acederem aos seus terrenos.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

J. M. e mulher, A. F., residentes no lugar e freguesia de ..., concelho de ..., e J. F. e mulher, D. F., residentes no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra J. P. e mulher, M. A., residentes na Rua da …, freguesia de ..., concelho de ..., pedindo:

- seja reconhecido e declarado o direito dos Autores sobre ao prédio rústico sito no lugar e freguesia de ..., denominado “...” a confrontar do norte com A. A., sul corgo, nascente, caminho público e A. A. e do poente com António, inscrito na matriz sob o artigo ... da agora União de Freguesias de ... e ...;

- seja reconhecida e declarada a constituição de uma servidão, a favor do prédio dos Autores, de passagem, com assento na extrema norte do prédio dos Réus, ligando a estrada municipal ao prédio dos Autores;
- a condenação dos Réus a ver reconhecido tal direito de servidão e a absterem-se da prática de quaisquer actos que a perturbem;
- a condenação dos Réus a desobstruir a aludida servidão – caminho de passagem a pé para o prédio dos Autores - retirando todos os obstáculos aí colocados, designadamente as grades colocadas nos topos ou extremos da mesma;
- a condenação dos Réus a pagar aos Autores uma indemnização pelos prejuízos sofridos pela impossibilidade do uso do prédio, a liquidar em execução de sentença, assim como numa sanção compulsória no valor de €50,00 por dia após trânsito em julgado da sentença que ordene a desobstrução da servidão.

Alegam, para tanto, e em síntese, que o seu prédio, bem como o prédio dos Réus, integrava um único prédio que pertencia aos avós de Autores e Réus; que o prédio foi posteriormente dividido em parcelas; que, para acesso à parcela de terreno que actualmente pertence aos Autores, era utilizado um caminho visível e trilhado, através da faixa de terreno actualmente pertencente aos Réus; que os Réus, após a divisão dos terrenos; construíram uma casa e um pátio, alterando por duas vezes o aludido caminho, com autorização dos Autores; que os Autores e seus antepossuidores sempre utilizaram o caminho bem como as sucessivas alterações para acesso ao seu terreno, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição e na convicção que exerciam um direito próprio; e que os Réus taparam tal caminho, inicialmente com um muro e posteriormente com uma rede de vedação.

Citados os Réus, os mesmos apresentaram contestação, negando a existência da servidão, referindo que os Autores tinham acesso ao seu prédio através de outro caminho e alegando que, mesmo que tivesse existido, já se mostrava extinta por desnecessidade e não uso.
Foi realizada audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador, se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.

Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

“a) Declarar que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “...” a confrontar do norte com A. A., sul corgo, nascente, caminho público e A. A. e do poente com António, inscrito na matriz sob o artigo ... da agora União de Freguesias de ... e ...;
b) Absolver os Réus do demais peticionado.
*
Não obstante o reconhecimento da propriedade do terreno reivindicado pelos Autores, entende-se que, atenta a irrelevância prática de tal reconhecimento, deverão ser estes a arcar com a totalidade das custas da presente acção, nos termos do art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil).
Registe e notifique”.

Inconformados, os Autores vieram interpor recurso da sentença.

Foi proferido acórdão nesta Relação (fls. 266 a 287) onde se decidiu anular a sentença recorrida e determinar a ampliação da matéria de facto e a repetição parcial do julgamento para apurar se a passagem deixada pelos Réus após a aquisição do terreno a H. F. se destinou a dar acesso à mãe dos Autores para o seu prédio (servidão de passagem) e por isso lhe entregaram a chave (artigo 82º da petição inicial) ou a dar acesso aos próprios Réus, a sua mãe e irmãos nos termos alegados nos artigos 64º e 65º da contestação e a que título foi efectuada a entrega da chave aos pais dos Autores, e ainda a actuação (utilização) dos próprios Autores relativamente a tal passagem, nos termos indicados no acórdão, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições, devendo ainda o tribunal a quo pronunciar-se sobre a existência dos lapsos invocados pelas partes nas alegações e contra-alegações.

Veio a efectivar-se novamente audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declarar que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “...” a confrontar do norte com A. A., sul corgo, nascente, caminho público e A. A. e do poente com António, inscrito na matriz sob o artigo ... da agora União de Freguesias de ... e ...;
b) Absolver os Réus do demais peticionado”.

Novamente inconformados vieram os Autores interpor recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“III – CONCLUSÕES

1. Os Autores propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra os Réus, pedindo, entre o mais, que se reconheça e declare a existência de uma servidão de passagem, a pé, a favor do prédio dos Autores, com assento na extrema norte do prédio dos Réus, ligando a estrada municipal à ....
2. Para tanto, os Autores alegaram que o seu prédio, bem como o prédio dos Réus, constituíram um único prédio, sito no lugar e freguesia de ..., denominado “Campo dos ...”, que foi propriedade de M. J. e José, avós de Autores e Réus – cfr. facto provado n.º 3.
3. Por óbito de M. J., em 11/04/1962, procedeu-se – por escritura pública lavrada no dia 14 de Outubro de 1964, no livro nº 54 do extinto Cartório Notarial de ..., de fls. 11-V a 16 V - … – à partilha dos bens que constituíam a herança deixada pela falecida – cfr. factos provados n.os 4 e 5.
4. No âmbito de tal partilha, entre o mais, foi adjudicado a José, viúvo de M. J., metade do prédio denominado “Campo dos ...” e, a cada um dos seus filhos – F. A. e C. F. – uma quarta parte indivisa de tal prédio – cfr. facto provado n.º 6.
5. Após a operação de partilha, o José doou aos seus filhos os bens que lhe haviam sido adjudicados em consequência da referida partilha, pelo que o prédio denominado “Campo dos ...” ficou a pertencer em partes iguais aos seus filhos F. A. e C. F., respectivamente pai da Autora e mãe da Ré – cfr. facto provado n.º 7.
6. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente ao ano 1971, os irmãos F. A. e C. F. acordaram, verbalmente, em dividir o prédio denominado “Campo dos ...” em duas partes, ficando a pertencer desde então:
− A parte nascente, constituída por uma vessada conhecida por “...”, ao António, pai e sogro dos Autores;
− A parte poente, conhecida por “...”, à C. F., mãe e sogra dos Réus (cfr. facto provado n.º 8).
7. O prédio denominado “...” adveio, posteriormente – por escritura de 23 de Outubro de 2009 da Notária L. M., com Cartório em ... - ... –, à posse e propriedade dos Autores por lhes haver sido adjudicado na partilha das heranças abertas por óbito de F. A. e L. F., pais dos Autores Aurora e J. F. – cfr. facto provado n.º 9.
8. Por sua vez, a parte denominada “...” foi sucessivamente dividida, tendo os pais da Ré construído uma casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar na extrema sul poente dessa parte, e autorizado três das suas filhas, entre as quais a Ré, a construírem casas ao longo da Estrada Municipal que confronta com tal prédio – cfr. facto provado n.º 10.
9. Os Réus, no terreno que lhes foi doado – parcela extraída da esquina norte-poente do terreno denominado “...” – iniciaram, em 1977, próximo do limite norte, a construção de uma casa (cfr. factos provados n.os 11 e 12), implantando-a sobre um caminho de passagem a pé, que seguia, já anteriormente à propriedade ter sido dividida, até à “...”.
10. Quando os Réus construíram a sua habitação e destruíram o trilho original daquele caminho, deixaram em aberto um espaço, de cerca de um metro de largura, entre a sua habitação e o terreno pertencente ao vizinho H. F. – cfr. facto provado n.º 23 –, alterando, então, para esse local, o aludido caminho.
11. Alguns anos mais tarde, aquando da aquisição do terreno ao vizinho H. F., os Réus ocuparam e vedaram o espaço que então haviam deixado em aberto, nele tendo construído um jardim e um quintal. Porém, novamente, foi deixado em aberto um espaço, com um metro de largura, entre a vedação por si construída e o prédio vizinho – cfr. factos provados n.os 23, 24 e 25 –, pelo que foi, então, aquele caminho de servidão para aí mudado.
12. Após terem construído e vedado a sua casa de habitação, os Réus colocaram no início do tal espaço deixado em aberto, junto à Estrada Municipal, uma cancela, tendo sido entregue uma cópia da chave da mesma aos pais dos Autores – cfr. factos provados n.os 27 e 28.
13. Tal passagem foi utilizada por diversas pessoas, entre as quais a mãe dos Autores, e era trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados – cfr. facto provado n.º 29.
14. Os Autores e a sua mãe, a partir, pelo menos, de 1977, utilizaram o caminho para acederem, a pé, aos seus terrenos – a “...” –, à vista e com o conhecimento de toda a gente – designadamente dos Réus e seus antepossuidores –, sem interrupção, nem qualquer oposição e na convicção de que exerciam um direito próprio de passagem – cfr. factos provados n.os 22 e 30.
15. No ano de 2011, os Réus taparam tal caminho com um muro em cimento, tendo-o posteriormente substituído por uma vedação em grade de ferro, estando, desde então, os Autores impedidos de aceder ao seu terreno através de tal espaço – cfr. factos provados n.os 31, 32 e 33.
Por isso,
16. Os Autores, ora Recorrentes, pretendendo ver ser declarada e reconhecida a constituição de uma servidão de passagem a pé, a favor do seu prédio, com assento na extrema norte do prédio dos Réus, intentaram a presente acção, invocando, na petição, dois títulos possíveis de constituição da servidão: por destinação do pai de família e por usucapião.

Da constituição da servidão por destinação do pai de família

17. Anteriormente ao falecimento de M. J., quando os terrenos de Autores e Réus constituíam uma só propriedade, a mesma prolongava-se num espaço que medeia entre dois caminhos públicos: um a poente da actual estrada, dela distando cerca de 15 metros, e outro a nascente desse conjunto predial, de que constituía a estrema, situado a cerca de 120 metros da actual estrada – cfr. facto provado n.º 14.
18. Ao longo da estrema poente da quinta, entre ela e o caminho público, existia um muro em pedra – cfr. facto provado n.º 15.
19. Para se entrar na quinta, a partir desse muro existente no caminho poente, existiam, do lado de dentro do muro, duas ou três pedras que serviam de degraus – cfr. facto provado n.º 16.
20. O Juiz a quo deu, no entanto, erradamente, como não provado que “antes da abertura da estrada, em 1972, o acesso a pé para o “Campo dos ...” fosse feito a partir de um antiquíssimo caminho que passava cerca de uma dezena de metros a nor[o]este e acima daquela” – cfr. facto não provado n.º 1 –, quando, na verdade, resulta evidente, pela existência daquelas “duas ou três pedras que faziam de degraus”, metidas no muro, que o acesso, a pé, ao prédio, era, efectivamente, por ali feito.
21. Além disso, provou-se, também, que, vindos desse antigo caminho público, os antepossuidores do “Campo dos ...” seguiam um carreiro de passagem a pé, com cerca de um metro de largura, orientado, sensivelmente, no sentido norte-sul, permanentemente feito – porque trilhado e calcado pela passagem regular dos donos da propriedade –, com bordos bem demarcados e perfeitamente visíveis, facto este que o Tribunal a quo deu como não provado –cfr. facto não provado n.º 2–, quando, na verdade, o devia ter dado como provado – cfr. depoimentos das testemunhas A. D., A. M., F. A., M. J. e D. A..
22. Esse carreiro, depois de se entrar no prédio através do muro em pedra que ladeava o caminho público poente, descia uma zona em fraga e seguia, então, encostado ao muro do vizinho, até à eira do “Campo dos ...” – hoje, “...” –, aí terminando – cfr. depoimentos das testemunhas identificadas em 21.
23. O Juiz a quo deu, no entanto, erradamente, como provado que “dentro da quinta não havia trajectos definidos para se aceder às parcelas que a compunham, sendo que o trânsito se fazia por diversos locais, conforme as necessidades e as épocas do ano”.
24. Ao ter dado aquele facto como provado, o Tribunal a quo incorreu em erro no julgamento da matéria de facto, pois, conforme alegado e provado supra, devia antes ter sido dado como não provado, pois havia um carreiro, trilho ou caminho que terminava na eira da “...” – cfr. depoimentos das testemunhas referidas em 21.
25. Posteriormente, em data que não se sabe precisar, mas, certamente, antes de 1971, o “Campo dos ...” foi dividido em duas parcelas – cfr. facto provado n.º 8.
26. Os Autores e a sua mãe, L. F., para acederem, a pé, à sua propriedade, a “...”, continuaram a utilizar o aludido caminho, visível e trilhado, ínsito na faixa de terreno actualmente pertencente aos Réus (“...”) – cfr. factos provados n.os 19 e 21.
27. Caminho esse que tinha, aliás, como única e específica utilidade, o acesso, a pé, dos Autores e antepossuidores à sua propriedade, revelando-se no seu trajecto, até (e só) à eira da “...”, sinais de serventia do prédio dos Réus em relação ao prédio dos Autores
28. Sinais aqueles que se mostravam permanentemente postos e visíveis no prédio dos “...”, resultante da divisão e no momento em que esta ocorreu, e que consistiam num caminho bem visível, porque trilhado e calcado pelo trânsito das pessoas, que ligava à eira da ..., onde terminava.
29. Assim, ao contrário do que resulta dado como provado no ponto 20 da Sentença, o caminho que ligava a estrada aberta, em 1972, ao prédio dos Autores, era um caminho bem definido – ainda que, em consequência da destruição parcial do mesmo pela abertura da referida estrada, a entrada, a partir desta, não fosse perfeitamente definida, dada a escombreira aí existente em consequência da obra.
30. O Juiz a quo, apesar da existência do caminho que ligava à ... – e só a esta, porque aí terminava – deu, no entanto, erradamente, como não provado que “tal carreiro tivesse como utilidade específica o acesso, a pé, à parte de terreno que veio a ser adjudicada ao pai dos Autores”.
31. No entanto, jamais em relação aos Autores e antepossuidores da ... o carreiro teve a natureza de atravessadouro, como também a não teve em relação a outros que, abusivamente, o atravessavam para encurtar distâncias.
32. Assim, ao dar como não provado aquele facto, o Tribunal a quo incorreu em erro no julgamento da matéria de facto, pois, conforme alegado e provado supra, devia, antes, tê-lo dado como provado.
33. Face à prova produzida, não há dúvidas que os Recorrentes lograram provar que, efectivamente, conforme invocaram na petição inicial, estão devidamente preenchidos e provados todos os requisitos da norma do artigo 1549.º do Código Civil, requisitos estes que permitiram a constituição de uma servidão por destinação do pai de família a favor do seu prédio e que os Recorrentes pretendem ver declarada.
34. Todavia, o Juiz a quo entendeu que “ficou por apurar que o acesso entre ambos os terrenos, anteriormente à divisão, fosse feito por um concreto caminho, designadamente o alegado pelos Autores”, quando todas as Testemunhas referiram que a passagem era feita por um carreiro, caminho ou trilho que ligava à eira da ..., onde terminava.
35. Ao dar como não provado aquele facto, o Tribunal a quo incorreu em erro no julgamento da matéria de facto, pois, conforme alegado e provado supra, devia aquele facto ter sido dado como provado.
36. Além disso, o Tribunal a quo incorreu ainda em erro no julgamento da matéria de direito quando, in casu, estando preenchidos todos os pressupostos da existência de uma servidão por destinação de pai de família, nos termos da norma do artigo 1549.º do Código Civil, não foi esta reconhecida.
37. Com efeito, se à data da divisão do prédio do “Campo dos ...”, em duas parcelas – ... para os pais dos Autores, ... para os pais dos Réus –, havia um carreiro ou caminho visível e permanente, posto na parcela dos ..., a ligar à eira da ..., onde terminava – revelando, assim, a passagem ou serventia de um para o outro –, teriam tais sinais – caminho – de ser havidos como prova de servidão no momento da separação, já que nada foi declarado em contrário.
38. Mas, mesmo que assim não se entendesse, também por usucapião, que se invocou, tal servidão de passagem a pé se mostraria constituída.

Da constituição da servidão por usucapião

39. A matéria de facto dada como provada pelo próprio Juiz a quo, dá conta que, efectivamente, os Recorrentes lograram provar, conforme haviam invocado na petição inicial, os pressupostos da constituição de uma servidão por usucapião, como, repetindo, se demostrará:
40. Foi dado como provado que, em 1972, foi aberta uma estrada municipal que atravessou o “Campo dos ...” (a parte agricultada pela C. F.) junto à sua extrema poente – cfr. facto provado n.º 18.
41. Após a abertura da estrada, a extrema poente do “Campo dos ...” permaneceu por vedar, sendo atravessada por diversas pessoas que queriam cortar caminho quando se dirigiam às suas propriedades e para acederem ao caminho do Penedo – cfr. facto provado n.º 19.
42. Uma das pessoas que atravessava o “Campo dos ...” era a mãe dos Autores, L. F., para aceder de sua casa até à “...”, onde cultivava produtos agrícolas numa pequena parcela – cfr. facto provado n.º 21.
43. Tal acesso era realizado à vista e com o conhecimento de toda a gente – designadamente dos Réus e seus antepossuidores – e sem qualquer oposição – cfr. facto provado n.º 22.
44. Quando os Réus construíram a sua habitação em 1977, deixaram em aberto o espaço de cerca de um metro de largura entre a mesma e o terreno pertencente a um vizinho H. F. – cfr. facto provado n.º 23.
45. Posteriormente, os Réus adquiriram o terreno de H. F., ocuparam-no e vedaram-no, nele tendo construído um jardim e um quintal, tendo por isso ocupado o espaço com um metro de largura criado em 1977 – cfr. facto provado n.º 24.
46. Porém, os Réus deixaram novamente em aberto um espaço com um metro de largura entre a vedação por si construída e o prédio vizinho – cfr. facto provado n.º 25.
47. Tal espaço tinha aproximadamente 50 metros de comprimento e iniciava na Estrada Municipal – cfr. facto provado n.º 26.
48. Posteriormente, os Réus colocaram no início de tal espaço, junto à Estrada Municipal, uma cancela – cfr. facto provado n.º 27.
49. Tal cancela não era fechada à chave, embora tivesse sido entregue uma cópia da chave aos pais dos Autores – cfr. facto provado n.º 28.
50. Tal passagem foi utilizada por diversas pessoas, entre as quais a mãe dos Autores, e era trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados – cfr. facto provado n.º 29.
51. Assim, a partir, pelo menos, de 1977, a mãe dos Autores, bem como outras pessoas, passavam a pé por tal passagem, à vista e com o conhecimento de toda a gente sem interrupção nem oposição de ninguém, para acederem aos seus terrenos – cfr. facto provado n.º 30.

Mas mais:
52. Como refere a douta Sentença, “no caso em apreço, ficou demonstrado que existia uma passagem com um metro de largura entre uma vedação construída no prédio dos Réus e o prédio do vizinho, e que a mesma era trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados”.
53. “Os Autores demonstraram que quer os próprios, quer a sua mãe, utilizaram tal caminho para acesso ao seu prédio, pelo menos desde 1977, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer interrupção”.
54. “tal passagem pôde ser utilizada até ter sido tapada pelos Réus no ano de 2011”, tendo “a mãe da Autora usado o caminho até depois do ano 2000”.
55. Assim, demonstrado ficou que os Autores e seus antecessores utilizaram a passagem supra referida, com assento no prédio dos Réus, para passagem para o seu prédio, “...”, durante mais de 20 e 30 anos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, designadamente dos Réus, de forma contínua e sem interrupção nem oposição de ninguém.
56. Para além de que, demonstrado ficou, também, que aquela passagem – porque de servidão aparente se trata – se revelava por sinais visíveis e permanentes, ou seja, era “trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados” – cfr. facto provado n.º 29.
57. Os Autores e antepossuidores da “...” sempre acederam ao seu prédio, através do terreno actualmente pertencente aos Réus, na convicção que exerciam um direito próprio e sem prejuízo de ninguém.
58. Apesar de o Tribunal a quo não ter ficado convencido de que os Autores e antepossuidores da “...”, efectivamente, exerciam um direito próprio, sobre aquele carreiro, demonstrou-se que eles sempre se comportaram como verdadeiros titulares do direito de servidão de passagem, lá passando ou mandando passar, sem necessidade de autorização ou tolerância dos donos do prédio onerado, convencidos que tal direito de passagem lhes pertencia – cfr. depoimentos das testemunhas A. D., A. A., A. O., A. M., N. B. e D. A.
59. Não obstante, a própria lei, no artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil, estabelece uma presunção de posse a favor de quem exerce o poder de facto.
60. Assim, nos termos do artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil, quem tem a seu favor uma presunção legal está dispensado de provar o facto a que a ela conduz.
61. Pelo que, verificados que se mostram todos os requisitos da constituição da servidão de passagem por usucapião, deveria o Tribunal a quo tê-la reconhecido e declarado como pedido na Petição.
62. Ao decidir como decidiu o digníssimo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1547.º, 1548.º, 1549.º e 1251.º”.

Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso e consequentemente pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que julgue procedentes os pedidos formulados sob as alíneas a), b), c) e d) da petição inicial.
Os Réus contra alegaram pugnando pela improcedência do recurso e procederam à ampliação do âmbito do recurso nos termos previstos no artigo 636º n.º 2 do Código de Processo Civil quanto à última parte do ponto 28) dos factos provados que entendem ter sido dada erradamente como provada, devendo a mesma ser eliminada e acrescida à matéria de facto não provada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, são as seguintes:

1 - Da rejeição da impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos 4), 5), 9), 10) e 11) dos factos não provados;
2 - Determinar se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 17) e 20) dos factos provados e os pontos 1), 2) e 3) dos factos não provados;
3 - Determinar se houve erro na subsunção jurídica dos factos e se deve julgar-se constituída por destinação do pai de família ou por usucapião uma servidão de passagem a favor do prédio dos Autores.
4 - Determinar se, sendo de conhecer da ampliação do âmbito do recurso, houve erro no julgamento da matéria de facto quanto ao ponto 28) dos factos provados devendo ser alterada a sua redação.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

Factos considerados provados em Primeira Instância:

1. Os Autores são em compropriedade, e na proporção de metade para cada casal, donos e legítimos possuidores do seguinte prédio rústico sito no lugar e freguesia de ...:
‒ “...” a confrontar do norte com A. A., sul corgo, nascente, caminho público e A. A. e do poente com António, inscrito na matriz sob o artigo ... da agora União de Freguesias de ... e ....
2. Por sua vez, os Réus são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio urbano sito em ...:
‒ Uma morada de casas coberta de telha, composta de cave com uma divisão, rés-do-chão com duas destinadas a garagem e 1º andar com 5 divisões destinada a habitação, a confrontar do norte com António A., sul J. F., nascente C. F. e poente com Estrada Municipal, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ....
3. Tais prédios correspondem a parte de um prédio rústico sito no lugar e freguesia de ... denominado “Campo dos ...”, que foi propriedade dos avós de Autores e Réus, M. J. e marido José, falecidos, e que foram residentes em ....
4. Por óbito da M. J., em 11/04/1962, procedeu-se à partilha da respectiva herança e nesta foi aquele prédio identificado como “Campo dos ..., a confrontar a nascente e poente com caminho público, do norte com o prédio de D. A. e do sul com prédios de A. M. e M. B., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº … a fls. 67 vº do livro B-41 e inscrito na antiga matriz rústica no artigo 201”.
5. Por escritura pública lavrada no dia 14 de Outubro de 1964, no livro nº 54 do extinto Cartório Notarial de ..., de fls. 11-V a 16 V, procedeu-se à partilha dos bens que constituíam a herança deixada pela falecida M. J..
6. No âmbito de tal partilha, entre o mais, foi adjudicado a José, viúvo de M. J., metade do prédio denominado “Campo dos ...” e, a cada um dos seus filhos – F. A. e C. F. – uma quarta parte indivisa de tal prédio.
7. Após a operação de partilha, o José doou aos seus filhos os bens que lhe haviam sido adjudicados em consequência da referida partilha, pelo que o prédio denominado “Campo dos ...” ficou a pertencer em parte iguais aos seus filhos F. A. e C. F..
8. Em data não concretamente apurada, mas anteriormente a 1971, os irmãos António e C. F. acordaram verbalmente em dividir o prédio denominado “Campo dos ...” em duas partes, ficando tais partes a pertencer-lhes desde então:
‒ A parte nascente, constituída por uma vessada conhecida por “...”, ficou para o António, pai e sogro dos Autores;
‒ A parte poente, conhecida por “...”, ficou para a C. F., mãe e sogra dos Réus.
9. O prédio denominado “...” adveio posteriormente à posse e propriedade dos Autores por lhes haver sido adjudicado na partilha das heranças abertas por óbito de F. A. e L. F., pais dos Autores A. F. e J. F., por escritura de 23 de Outubro de 2009 da Notária L. M., com Cartório em ...-....
10. Por sua vez, a parte denominada “...” foi sucessivamente dividida, tendo os pais dos Autores construído uma casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar na extrema sul poente dessa parte, e autorizado três das suas filhas, entre as quais a Ré, a construírem casas ao longo da Estrada Municipal que confronta com tal prédio.
11. Para o efeito, a mãe da Ré doou-lhe uma parcela de terreno, extraída da esquina norte-poente do terreno denominado “...”, com a área de 530m2.
12. Nessa parcela de terreno, os Réus iniciaram em 1977 a construção de uma casa, tendo a mesma uma área coberta de 114m2 e situando-se próxima do limite norte do terreno doado.
13. Em data não concretamente apurada mas seguramente antes de 1983, os Réus adquiriram verbalmente a H. F. uma parcela de terreno a norte da sua casa, a área de cerca de 160 m2 e ocupando todo o espaço entre a casa e um muro de pedra com início na estrada municipal e que se estende no sentido noroeste sudoeste, nele tendo construído um acesso cimentado para a cave da sua casa.
14. Anteriormente ao falecimento de M. J., quando os terrenos de Autores e Réus constituíam uma só propriedade, a mesma prolongava-se num espaço que medeia entre dois caminhos públicos: um a poente da actual estrada, dela distando cerca de 15 m, e outro a nascente desse conjunto predial, de que constituía a estrema, situado a cerca de 120 metros da actual estrada.
15. Ao longo da estrema poente da quinta, entre ela e o caminho público, existia um muro em pedra.
16. Para se entrar na quinta, a partir do muro existente no caminho poente, existiam duas ou três pedras que faziam de degraus – isto do lado de dentro do muro já que do lado de fora, entre ele e a estrada, não existia qualquer degrau.
17. Dentro da quinta não havia trajectos definidos para se aceder às parcelas que a compunham, sendo que o trânsito se fazia por diversos locais, conforme as necessidades e as épocas do ano.
18. Em 1972 foi aberta uma estrada municipal que atravessou o “Campo dos ...” (a parte agricultada pela C. F.) junto à sua extrema poente.
19. Após a abertura da estrada, a extrema nascente do “Campo dos ...” permaneceu por vedar, sendo atravessada por diversas pessoas que queriam cortar caminho quando se dirigiam às suas propriedades e para acederem ao caminho do Penedo.
20. Um dos locais utilizados para o atravessamento situava-se perto da estrema norte do “Campo dos ...”, embora sem caminho definido.
21. Uma das pessoas que atravessava o “Campo dos ...” era a mãe dos Autores, L. F., para aceder de sua casa até à “...”, onde cultivava produtos agrícolas numa pequena parcela.
22. Tal acesso era realizado à vista e com o conhecimento de toda a gente – designadamente dos Réus e seus antepossuidores – e sem qualquer oposição.
23. Quando os Réus construíram a sua habitação em 1977, deixaram em aberto o espaço de cerca de um metro de largura entre a mesma e o terreno pertencente a H. F..
24. Após a aquisição do terreno a H. F., os Réus ocuparam-no e vedaram-no, nele tendo construído um jardim e um quintal, tendo por isso ocupado o espaço com um metro de largura criado em 1977.
25. Porém, os Réus deixaram novamente em aberto um espaço com um metro de largura entre a vedação por si construída e o prédio do vizinho.
26. Tal espaço tinha aproximadamente 50 metros de comprimento e iniciava na Estrada Municipal.
27. Posteriormente, os Réus colocaram no início de tal espaço, junto à Estrada Municipal, uma cancela.
28. Tal cancela não era fechada à chave, embora tivesse sido entregue uma cópia da chave aos pais dos Autores.
29. Tal passagem foi utilizada por diversas pessoas, entre as quais os Autores e a sua mãe, e era trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados.
30. Assim, a partir, pelo menos, de 1977, a mãe dos Autores, bem como os Autores e terceiras pessoas, passavam a pé por tal passagem, à vista e com o conhecimento de toda a gente sem interrupção nem oposição de ninguém para acederem aos seus terrenos.
31. No ano de 2011, os Réus retiraram a cancela e taparam-na com um muro em cimento.
32. Posteriormente, a Câmara Municipal ordenou a demolição do muro, tendo sido o mesmo substituído por uma vedação em grade de ferro.
33. Por via disso, desde 2011 que os Autores não podem aceder ao seu terreno através de tal espaço.
34. A mãe dos Autores residia a cerca de cem metros da passagem em causa.
35. Os Autores dispõem de um acesso ao seu prédio através de um caminho carral que com ele confronta a nascente-sul.
36. Tal caminho situa-se a cerca de um quilómetro da habitação dos Autores, tendo mau piso e inclinação elevada.
***
Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1. Que antes da abertura da estrada em 1972, o acesso a pé para o “Campo dos ...” fosse feito a partir de um antiquíssimo caminho que passava cerca de uma dezena de metros a noroeste e acima daquela.
2. Que desde há mais de 80 anos os antepossuidores de todo o “Campo dos ...”, para acesso a este, vindos daquele antigo caminho público, a pé, entrassem num carreiro de passagem a pé, orientado sensivelmente no sentido norte-sul, com cerca de 1 metro de largura, permanentemente feito, porque trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários do “campo dos ...”, com bordos bem definidos ou demarcados e tudo perfeitamente visível.
3. Que tal carreiro tivesse como utilidade específica o acesso, a pé, à parte de terreno que veio a ser adjudicada ao pai dos Autores.
4. Que o carreiro, após a abertura da estrada em 1972, tenha passado a ter início a partir desta.
5. Que, após a divisão feita em 1971, o carreiro tenha passado a ter assento apenas sobre a “metade” do “Campo dos ...”, adjudicado à irmã C. F., e a desaguar na outra “metade” hoje prédio dos Autores.
6. Que, quando os Réus construíram a sua habitação em 1977, tenham incidido a mesma sobre o carreiro existente, destruindo-o.
7. Que os Réus, aquando do início da construção da sua casa em 1977, tenham reconhecido um direito de passagem dos Autores e obtido o seu consentimento para a alteração do caminho mais para norte.
8. Que os Réus, aquando da aquisição do terreno a H. F., tenham obtido o consentimento dos Autores para alterarem a localização do carreiro.
9. Que o espaço de um metro de largura e aproximadamente 50 metros de comprimento, criado após a aquisição do terreno a H. F., tenha sido criado com o propósito de permitir a passagem dos Autores ou da sua mãe L. F. para acesso ao campo denominado “...”.
10. Que os Réus tenham entregado a chave à mãe dos Autores por saberem que os mesmos tinham direito a aí passar.
11. Que a mãe dos Autores, L. F., bem como os Autores, acedessem ao prédio denominado “...”, através do terreno actualmente pertencente aos Réus, na convicção que exerciam um direito próprio e sem prejuízo de ninguém.
12. Que os Autores, em consequência da colocação do muro e da vedação pelos Réus, estejam impedidos de cultivar o seu prédio e de recolher os seus rendimentos ou frutos, o que lhes causa prejuízos.
13. Que a mãe dos Autores tenha deixado de cultivar no prédio denominado “...” há mais de vinte anos.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

3.2.1. Da rejeição da impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos 4), 5), 9), 10) e 11) dos factos não provados

Analisadas as alegações de recurso apresentadas pelos Autores e as conclusões que formulam é evidente que estas são omissas quanto à impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos 4), 5), 9), 10) e 11) dos factos não provados, delas não constando, ao contrário do corpo das alegações, qualquer menção a este propósito, mas apenas quanto aos pontos 17) e 20) dos factos provados e 1), 2) e 3) dos factos não provados.
Coloca-se assim a questão da rejeição do recurso nesta parte em face do não cumprimento pelos Recorrentes do ónus de impugnação da matéria de facto.

Vejamos.

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.

O incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.

A este propósito escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, página 133) que “O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)” mas também que importa que “não se exponenciem os requisitos a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a pretendida reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” e que, por outro lado, “quando houver sérios motivos para rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto; quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia; ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afetados (…)”.

Uma das questões que a este propósito se vem suscitando é relativamente ao que deve constar obrigatoriamente das conclusões de recurso, e temos entendido como essencial que das conclusões formuladas pelo recorrente constem pelo menos os pontos da matéria de facto que impugna e o sentido da decisão que pretende; é que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, que definem as questões a reapreciar pela Relação, pelo que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar.

Conforme se lê no Acórdão desta Relação de 28/06/2018 (disponível em www.dgsi.pt) “Deverá ser rejeitado o recurso genérico da decisão da matéria de facto apresentado pelo Recorrente quando, para além de não se delimitar com precisão os concretos pontos que se pretendem questionar, não se deixa expressa a decisão que, no entender do mesmo, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

A este propósito pode ainda ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2017 (também disponível em www.dgsi.pt) que são condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza e estrutura da decisão de facto que “postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC”.

Podemos em nosso entender sintetizar dizendo que o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado quando se verificar alguma das seguintes situações:

- ausência de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635º n.º 4, e 641º n.º 2, alínea b);
- Falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640º n.º 1, alínea a);
- Falta de especificação, nas conclusões ou na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
- Falta de indicação, nas conclusões ou na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
- Falta de posição expressa, nas conclusões ou na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

Ora, analisadas as conclusões do recurso conclui-se que os Recorrentes nada dizem nesta parte, isto é não referem impugnar os pontos 4), 5), 9), 10) e 11) dos factos não provados.
Temos entendido que a Relação, chamada a reapreciar a prova, deve usar de alguma flexibilidade na interpretação da lei e atender ao princípio da proporcionalidade (note-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a alertar, nomeadamente no seu Acórdão de 29/01/2015, disponível em www.dgsi.pt, para a necessidade de uma interpretação “em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade”; neste sentido v. António Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, página 770, referindo que “na jurisprudência do Supremo é notória a prevalência do entendimento no sentido de evitar a exponenciação dos ónus que a lei prevê nesta sede ou fazer deles uma interpretação excessivamente rigorista a ponto de ser violado o principio da proporcionalidade e de ser denegada a pretendida reapreciação da matéria de facto”).

Mas, no caso concreto, sendo as conclusões omissas impõe-se sempre concluir que os Recorrentes, nesta parte, não cumpriram o ónus de delimitação do objeto do recurso sobre a matéria de facto como que se lhes impunha; as conclusões apresentadas não contém, nesta parte, qualquer delimitação do objeto do recurso.
De facto, entendemos essencial que das conclusões formuladas constem os pontos da matéria de facto que impugna e que o cumprimento do ónus decorrente do referido artigo 640º (alínea a) do n.º 1) impõe que nas mesmas sejam indicados todos os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar.
Nada constando das conclusões quanto aos pontos 4), 5), 9), 10) e 11) dos factos não provados não se mostra cumprido tal ónus, impondo-se rejeitar o recurso nessa parte, o que não prejudica o conhecimento da parte restante a que iremos proceder.
Assim sendo, deve rejeitar-se a nesta parte o recurso, o que ora se decide.
***
3.2.2. Da existência de erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 17) e 20) dos factos provados e aos pontos 1), 2) e 3) dos factos não provados

Invocam os Recorrentes a existência de erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 17) e 20) dos factos considerados provados, entendendo que devem ser julgados não provados, e quanto aos pontos 1), 2) e 3) dos factos não provados, que consideram dever ser dados como provados.
Analisemos então os motivos da discordância dos Recorrentes quanto aos diversos pontos impugnados.

Os factos em causa têm a seguinte redacção:

“17. Dentro da quinta não havia trajectos definidos para se aceder às parcelas que a compunham, sendo que o trânsito se fazia por diversos locais, conforme as necessidades e as épocas do ano.
20. Um dos locais utilizados para o atravessamento situava-se perto da estrema norte do “Campo dos ...”, embora sem caminho definido.
1. Que antes da abertura da estrada em 1972, o acesso a pé para o “Campo dos ...” fosse feito a partir de um antiquíssimo caminho que passava cerca de uma dezena de metros a nordeste e acima daquela.
2. Que desde há mais de 80 anos os antepossuidores de todo o “Campo dos ...”, para acesso a este, vindos daquele antigo caminho público, a pé, entrassem num carreiro de passagem a pé, orientado sensivelmente no sentido norte-sul, com cerca de 1 metro de largura, permanentemente feito, porque trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários do “campo dos ...”, com bordos bem definidos ou demarcados e tudo perfeitamente visível.
3. Que tal carreiro tivesse como utilidade específica o acesso, a pé, à parte de terreno que veio a ser adjudicada ao pai dos Autores.

Sustentam os Recorrentes que conforme decorre do ponto 16) dos factos provados para se entrar na quinta existiam do lado de dentro do muro duas ou três pedras que serviam de degraus e que tal existência comprova desde logo que o acesso a pé ao prédio era por ali feito, existindo o carreiro de passagem a pé, trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários nos termos por si alegados e que dava acesso à parte do terreno que veio a ser adjudicada aos pais dos Autores.

Isto é, pretendem os Recorrentes ao fim e ao cabo que seja dada como provada a sua versão dos factos respeitante ao caminho e constituição de servidão, em detrimento da versão sustentada pelos Réus de que dentro da quinta não havia trajetos definidos para aceder às parcelas que a compunham e que o trânsito se fazia por diversos locais, conforme as necessidades e as épocas do ano, inexistindo caminho que servisse ambas as parcelas.

Importa referir desde já que o tribunal a quo apesar de ter julgado não provado que existisse um caminho o carreiro definido, trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários, com bordos bem definidos ou demarcados que tivesse como utilidade específica o acesso, a pé, à parte de terreno que veio a ser adjudicada ao pai dos Autores, considerou contudo que o trânsito se fazia por diversos locais, conforme as necessidades e as épocas do ano e ainda que um dos locais utilizados na quinta para o atravessamento situava-se perto da estrema norte do “Campo dos ...”, embora sem caminho definido e.

Assim, a existência do lado de dentro do muro duas ou três pedras que serviam de degraus (o que efetivamente decorre das declarações prestadas pelas testemunhas) se comprova que a entrada se podia fazer por ali, tal como julgado provado pelo tribunal a quo, já não comprova por si só que depois, dentro da quinta, o acesso fosse feito por um carreiro de passagem a pé, trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários conforme pretendem os Autores.

Em prol da sua pretensão fazem ainda os Recorrentes apelo, no essencial, às declarações prestadas pelas testemunhas A. D., A. M., F. A. M. J. e D. A..

Analisando a motivação exposta pelo tribunal a quo, entendemos não lhes assistir razão, sendo que as razões invocadas por estes radicam essencialmente na sua discordância relativamente à convicção do Tribunal a quo, esgrimindo argumentos no sentido de dever ser dada credibilidade aos depoimentos das testemunhas por si indicadas mas entendendo também que as versões não chegam a ser contraditórias.

Não podemos deixar de começar por salientar que na análise da prova produzida em audiência, o tribunal a quo equacionou toda a prova testemunhal produzida, designadamente as testemunhas ora indicadas pelos Recorrentes, bem como a prova documental constante dos autos.

E fê-lo de forma crítica e fundamentada, especificando os fundamentos decisivos para a formação da sua convicção e justificando porque deu mais credibilidade às declarações da Ré M. A. e das testemunhas indicadas pelos Réus, esclarecendo de forma fundamentada os motivos da opção tomada perante as versões contraditórias quanto aos mesmos factos.

Ao contrário do que referem os Recorrentes, e em conformidade com a motivação constante da decisão recorrida, também nós entendemos, após ter procedido à audição dos respetivos depoimentos, que há efetivamente contradição entre a versão apresentada pelos Autores e pelos Réus e pelas testemunhas indicadas por uns e outros.

E tal decorre também, desde logo, da análise dos próprios excertos das declarações transcritos pelos Recorrentes; vejam-se as declarações da testemunha M. J. onde refere expressamente (cfr. transcrição efetuada pelos Recorrentes) que “não havia carreiro nenhum” dos ... para ir para a ..., e que utilizavam o rego da água (“a gente passava pelo rego abaixo”) e que era só nos ... e a testemunha A. A. se efetivamente falou num “caminho alternativo” por onde entravam para o campo e na existência de passadoiro a verdade é que referiu não saber se existia verdadeiramente um caminho trilhado, nunca lá tendo visto nenhum carreiro, não resultando das suas declarações a confirmação do caminho trilhado e calcado que se referem os Autores; sendo certo que a referência a “caminho alternativo” tem o sentido de alternativa para encurtar trajetos e não propriamente a afirmação de um caminho trilhado e definido.

E a testemunha D. A., esclarecendo que chegou a entrar pelos degraus para ir ao campo lavar a cara quando andava na escola, quando não estivesse ninguém a ver, referiu que dentro da propriedade a seguir aos degraus não havia caminho, pois o terreno era “uma fraga por ali abaixo” com uma inclinação de 60/70%, e só lá em baixo tinha uma zona de cultivo, terminando a fraga aproximadamente onde passou a estrada; afirmando que na fraga não dava para formar caminho trilhado, não havendo trilho calcado, e referindo a existência de “trilhos” cá em baixo, um junto ao muro e até à eira, e, a seguir a esta, pelo meio do campo, passando por lá qualquer pessoa “que quisesse e o dono não estivesse a ver”, falando também que “utilizávamos os regos…os coisos da água” e que este caminho era diferente todos anos.

Ora, tais declarações são bem diferentes de se afirmar a existência de um caminho ou carreiro trilhado - definido, trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários, com bordos bem definidos ou demarcados, conforme pretendem os Autores -, e muito menos se pode concluir que o aproveitamento do rego da água para “ir por lá baixo” corresponda à existência de um caminho ou carreiro trilhado.
E perante as versões contraditórias apresentadas pelas partes nos presentes autos, mantidas pela Autora A. F. e pela Ré M. A. nas suas declarações e decorrentes das declarações das testemunhas, o tribunal a quo, fundadamente, esclareceu as razões porque valorou os factos baseando-se nas declarações da Ré e das testemunhas por esta indicadas, o que fez da seguinte forma:

“No que tange ao facto provado n.º 17, os depoimentos da Autora A. F., da Ré M. A. e das diversas testemunhas foram divergentes entre si.
A Autora A. F. referiu que existia um carreiro que acabava no mesmo sítio que termina atualmente, e que o mesmo era perfeitamente visível desde sempre. Idênticas declarações foram prestadas pelas testemunhas A. D., F. A., A. M. e M. L..
Por seu turno, a Ré M. A. asseverou que, anteriormente à construção da Estrada Municipal não existia qualquer caminho, já que a parte superior do terreno dos seus avôs era composta por uma fraga, o que não permitia a existência de um caminho trilhado. Por outro lado, D. A. igualmente referiu não se recordar da existência de um caminho, já que a zona superior do terreno era em pedra e de difícil passagem. De igual modo, a testemunha A. A., que prestou um depoimento que o Tribunal considerou particularmente espontâneo, genuíno e desinteressado, explicou os acessos que existiam no terreno que pertenciam aos avôs dos Autores e dos Réus, não fazendo menção ao caminho aludido pela Autora.
Atentas as versões contraditórias, o Tribunal valorou os factos trazidos pela Ré e pelas suas testemunhas. Na verdade, apesar de A. D. e F. A. terem mencionado que existia um caminho, admitiram que o mesmo era composto por pedras. Ora, tal depoimento, conjugado com o da Ré e das testemunhas A. A. e D. A., permite concluir que, sendo a parte superior do terreno em pedras, não era possível existir um carreiro trilhado.
Por outro lado, o depoimento da testemunha M. L. não mereceu qualquer credibilidade. Na verdade, a testemunha asseverou ter visto o caminho em 1979, durante a noite, quando se deslocou a ... durante umas festas populares. Todavia, não é verosímil que o mesmo se recorde de um caminho que viu de relance numa noite há 40 anos atrás, e que à data não tinha para si qualquer significado. Por outro lado, resulta notória a ligação da testemunha aos Autores e o interesse que detém no desfecho da ação, por ser familiar e procurador dos mesmos.
Atenta a conjugação dos factos dados como provados, o Tribunal ficou convicto que não havia um particular acesso ao terreno denominado “...” a partir do “Campo dos ...”, anteriormente à divisão das propriedades, ocorrida em 1971,
Quanto aos factos provados n.ºs 19 a 22, 29 e 30, de igual modo, os depoimentos apresentados entre a Autora A. F. e as testemunhas A. D. e A. O. foram divergentes dos apresentados pela Ré M. A. e as testemunhas A. M., D. A. e M. A..
Enquanto as primeiras confirmaram que apenas a mãe da Autora e as pessoas por si autorizadas (tais como os Autores) utilizavam o caminho, a Ré e as demais testemunhas afirmaram que diversas pessoas atravessavam o aludido caminho, utilizando-o como atalho para outros locais e terrenos, inclusivamente aproveitando para nele fazerem as suas necessidades fisiológicas.
Atenta a contradição entre os depoimentos, o Tribunal valorou o da Ré e das testemunhas que referiram que várias pessoas utilizavam o caminho. Na verdade, para além de a Autora ter interesse direto no desfecho da ação, a mesma acabou por admitir que não se recorda bem da utilização do caminho. Por seu turno, a testemunha A. D. referiu que poucas vezes se deslocou a Portugal desde 1968. Por último, A. O. prestou um depoimento hesitante, não se recordando cabalmente dos factos que lhe eram questionados e unicamente detendo memória daqueles que se revelavam favoráveis à tese dos Autores.
O depoimento da Ré e das testemunhas acima referidas, por seu turno, foi congruente e credível, permitindo ao Tribunal firmar convicção acerca da utilização do caminho por diversas pessoas para além da mãe dos Autores.
Por fim, a testemunha F. A., neste ponto, não mereceu qualquer credibilidade, já que no decurso do seu depoimento declarou num primeiro momento que várias pessoas utilizavam o caminho, referindo mais tarde que apenas os Autores e a sua mãe aí circulavam”.
E quanto aos pontos 1), 2) e 3) dos factos não provados consta que “os factos não provados n.ºs 1 a 6 encontram-se em patente contradição com o facto provado n.º 17. Deste modo, remete-se para a fundamentação realizada quanto a tal ponto de facto”.
Ora, relativamente à prova e à sua valoração, entendemos que quer na 1.ª Instância, quer na Relação, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios, em particular o da livre apreciação da prova consagrado no artigo 607º n.º 5 do Código de Processo Civil.
Prevê este preceito que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”; tal resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respetivamente para a prova pericial, para a prova por inspeção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do artigo 607º).

Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, página 384) “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas”.

A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, página 435 a 436). Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.

É claro que a “livre apreciação da prova” não se traduz obviamente numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Obra Cit. página 655; v. ainda Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, página 325).

Por outro lado, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª instância. O que não é manifestamente o caso.

Como salienta Ana Luísa Geraldes (Ob. Cit. página 609) “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.

Não podemos, por isso, esquecer a aplicação dos princípios gerais da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, sendo certo que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.

Ao que acresce, no caso concreto, o conhecimento privilegiado do local pelo tribunal a quo por força da inspeção realizada.

Ora, o tribunal a quo na análise da prova equacionou toda a prova testemunhal produzida, designadamente as declarações prestadas pelas testemunhas indicadas pelos Recorrentes, bem como as declarações prestadas pela Autora e pela Ré, e a prova documental constante dos autos, bem como a inspeção que efetuou ao local, e fê-lo, conforme já referimos, de forma crítica e fundamentada, justificando os motivos da sua decisão.

Os Recorrentes, perante a motivação exposta pelo tribunal a quo, discordam da convicção do Tribunal a quo e fazem apelo a parte da prova produzida nos autos e transcrevendo partes dos depoimentos prestados pelas testemunhas em causa.

Mas, para se poder concluir pela verificação de um facto não basta proceder à indicação ou transcrição de parte das declarações prestadas por algumas testemunhas sobre o mesmo, ou de outros meios de prova; a prova tem de ser analisada na sua globalidade e de forma crítica, sendo necessário que as declarações prestadas pelas testemunhas sejam contextualizadas, circunstanciadas e analisadas no confronto entre si e dos demais meios de prova, desde logo para aferir a sua credibilidade e razão de ciência.

E foi a isso que o tribunal a quo procedeu, entendendo dever valorar as declarações da Ré e das suas testemunhas e dando como provada a versão apresentada pelos Réus de que dentro da quinta não havia trajetos definidos para aceder às parcelas que a compunham e que o trânsito se fazia por diversos locais, conforme as necessidades e as épocas do ano, e dando como não provada a existência de um caminho/carreiro, com cerca de 1 metro de largura, permanentemente feito, trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários do “campo dos ...”, com bordos bem definidos ou demarcados e que o mesmo tivesse como utilidade específica o acesso, a pé, à parte de terreno que veio a ser adjudicada ao pai dos Autores.

E ouvidos os depoimentos das referidas testemunhas (e das demais ouvidas em audiência), os quais naturalmente não podem ser analisados isoladamente, não podemos deixar de concordar com a apreciação e análise critica efetuada pelo tribunal a quo, salientando, tal como também consta da decisão recorrida que a versão dos Autores relativa à existência de um antigo caminho dentro da quinta bem definido e trilhado, calcado pela passagem regular dos proprietários, não se apresenta como a mais conforme com a própria constituição do terreno.

Conforme decorre das declarações das testemunhas sendo grande parte do terreno em lajes (segundo a testemunha A. D. referiu havia pouca terra e quase já no fundo pois “em cima era mesmo só lajes”) tal não se coaduna muito bem com a existência de um caminho, com cerca de 1 metro de largura, trilhado e calcado pela passagem regular dos proprietários; também a testemunha M. J. referiu que a seguir ao muro era uma “fraga por ali abaixo” muito mal arranjada e a testemunha D. A. que dentro da propriedade, a seguir aos degraus, o terreno era “uma fraga por ali abaixo” com uma inclinação de 60/70% por onde se passava muito mal e, se carregados, nem dava para passar.

De todo o exposto decorre não resultar fundamento para alterar a decisão recorrida quanto à matéria dada como provada e não provada, sendo certo que, conforme já referimos, é o tribunal de 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, que está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação.
Assim, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
***
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, ter-se-á de manter, igualmente, a decisão jurídica da causa que declarando que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “...”, absolveu os Réus do demais peticionado.

Nos presentes autos pretendiam também os Autores ver reconhecida e declarada a constituição de uma servidão, a favor do seu prédio dos Autores, de passagem a pé, com assento na estrema norte do prédio dos Réus, ligando a estrada municipal ao prédio dos Autores, a condenação dos Réus a ver reconhecido tal direito de servidão e a absterem-se da prática de quaisquer atos que a perturbem, a condenação dos Réus a desobstruir a aludida servidão – caminho de passagem a pé para o prédio dos Autores - retirando todos os obstáculos aí colocados, designadamente as grades colocadas nos topos ou extremos da mesma e a condenação dos Réus a pagarem aos Autores uma indemnização pelos prejuízos sofridos pela impossibilidade do uso do prédio, a liquidar em execução de sentença, assim como numa sanção compulsória no valor de €50,00 por dia após trânsito em julgado da sentença que ordene a desobstrução da servidão.

Sustentam os Autores no presente recurso que se mostram preenchidos os pressupostos da existência de uma servidão por destinação do pai de família nos termos previstos no artigo 1549º do Código Civil, mas também que tal servidão de passagem sempre estaria constituída por usucapião.

Vejamos então se lhes assiste razão.

O direito de propriedade enquanto “direito real de gozo máximo ou pleno” (L. Carvalho Fernandes, ‘Lições de Direitos Reais’, página 277), é exclusivo (jus excludendi omnes allios) pelo que pode o proprietário exigir a terceiros que o reconheçam e que se abstenham de perturbar o seu exercício (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, página 93).

Os Réus/Recorridos, enquanto proprietários do seu prédio, dele podem, por isso, gozar de modo pleno e exclusivo, mas dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (cfr. artigo 1305º do Código Civil).

E a constituição de servidões é uma das restrições que se impõe a que o proprietário possa dispor livremente e em exclusivo do seu prédio.

Cumpre assim tecer algumas considerações sobre as servidões prediais em geral e a servidão de passagem em particular, designadamente constituída por destinação do pai de família e por usucapião.

Estabelece o artigo 1543º do Código Civil que a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.

Podemos assim dizer que a servidão predial tem no essencial quatro notas características:

- é um encargo,
- que recai sobre um prédio,
- aproveita exclusivamente a outro prédio,
- devendo os prédios pertencer a donos diferentes.

Tais notas características afastam desde logo a ideia de a servidão, pelo menos com o carácter real que lhe é inerente, ser imposta a uma pessoa ou ser concedida a favor de uma pessoa.
As servidões tradicionalmente denominadas pessoais ou têm regulamentação expressa na lei (usufruto, o uso e habitação) e são reconhecidas, ou não têm e nesse caso revestirão natureza obrigacional, de acordo aliás com o princípio do numerus clausus previsto no artigo 1306º do Código Civil.

Esta inerência da servidão aos prédios reflete-se em dois princípios fundamentais: a inseparabilidade (artigo 1545º do Código Civil) e indivisibilidade (artigo 1546º do Código Civil) das mesmas (Almeida Costa, Noções de Direito Civil, 2ª edição, página 446, enumera a inseparabilidade e a indivisibilidade das servidões também como duas das características das servidões prediais).

As servidões prediais surgiram já no antigo direito romano como modo de regular em termos genéricos e estáveis as relações de vizinhança, mas a noção genérica de servidão é posterior, sendo que a consagração definitiva de determinadas limitações à propriedade como direitos reais autónomos deve-se ao Código de Napoleão de 1804 e no qual se distinguiam servidões naturais, legais e convencionais (sobre uma perspetiva da evolução e direito comparado: Menezes Cordeiro, CJ XVII, I, página 66).

No direito civil português as servidões prediais podem ser hoje constituídas (artigo 1547º do Código Civil) por: contrato, testamento, usucapião e destinação do pai de família, e as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa.

No n.º 1 do artigo 1547º do Código Civil estão referidas as servidões que o Código de Seabra dizia constituídas por facto do homem, e a que alguns autores chamam voluntárias, por contraste com as servidões legais; aquelas podem, pois, ser constituídas, e no que aqui nos interessa, por servidão por destinação de pai de família e por usucapião.

Ora, nos presentes autos os Autores começam por invocar exatamente uma servidão constituída por destinação do pai de família.

Dispõe o artigo 1549º do Código Civil que “Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento.”

Deste modo, são três os pressupostos para a aquisição da servidão por destinação do pai de família:

- que os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, tenham pertencido ao mesmo dono;
- que exista uma relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fração a outra correspondente a uma servidão aparente revelada por sinais visíveis e permanentes;
- que tenha existido uma separação dos prédios ou frações em relação ao domínio (uma separação jurídica) e que inexista qualquer declaração contrária à destinação, aquando dessa separação.

O primeiro dos referidos pressupostos consiste em que os dois prédios tenham pertencido ao mesmo dono, sendo irrelevante que os dois prédios sejam rústicos ou um rústico e outro urbano, sendo igualmente irrelevante a aplicação que seja dada a cada um deles.
A servidão constitui-se desde que exista uma relação de serventia entre os dois prédios que deixam de ter o mesmo dono sendo essencial que os dois prédios tenham sido pertença da mesma pessoa.

Por outro lado, para a constituição de servidão por destinação do pai de família é indispensável a existência de sinal ou sinais no momento da transmissão dos prédios, sendo este um requisito fundamental da constituição dessa mesma servidão por destinação do pai de família.
Tecidas estas considerações importa indagar se em face da factualidade dada como provada na decisão recorrida e que se manteve inalterada é de concluir pela constituição de servidão de passagem por destinação do pai de família a favor do prédio dos Autores.

Sufragamos aqui o que consta na decisão recorrida relativamente à não verificação dos requisitos necessários à constituição da servidão por destinação do pai de família; de facto, e conforme ai se refere “Da matéria de facto apurada resulta que, em data anterior a 1971, o pai dos Autores e a mãe dos Réus, F. A. e C. F. (irmãos entre si), acordaram verbalmente em dividir o prédio denominado “Campo dos ...”, ficando a parte nascente para os pais dos Autores e a parte poente para os pais dos Réus.

Todavia, ficou por apurar que o acesso entre ambos os terrenos, anteriormente à divisão, fosse feito por um concreto caminho, designadamente o alegado pelos Autores.

A prévia existência de tal caminho no momento da divisão é condição essencial à verificação da existência de uma servidão por destinação do pai de família. Assim, faltando tal requisito, verifica-se que não houve lugar à constituição da servidão por tal título”.

Não foram provados factos nos autos que permitam concluir pela verificação do pressuposto da existência de sinais visíveis e permanentes que revelem uma relação estável de serventia do prédio dos Réus em relação ao prédio dos Autores, no que se refere ao acesso entre ambos os terrenos através do caminho que os Autores invocavam.

Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., volume III, página 634) que “Os sinais hão-de revelar a serventia de um prédio para com o outro. Isto significa que hão-de ter sido postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do outro.

Ora, da factualidade dada como provada não resulta comprovada a existência de sinais visíveis e permanentes, que mostrem de forma inequívoca uma relação de serventia entre os dois prédios, da “...” e dos “…” reportada à divisão levada a cabo pelos irmãos António e C. F. do prédio denominado “Campo dos ...” em duas partes, em data não concretamente apurada, mas anterior a 1971.
Conclui-se, pois, tal como em 1ª Instância, pela não constituição da alegada servidão de passagem por destinação do pai de família.

Importa agora apurar se foi constituída a servidão de passagem por usucapião.

Como já referimos a servidão de passagem pode ser constituída por usucapião, isto é, pela posse de tal direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, já que a mesma, dispondo de certas características, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação, nos termos do disposto no artigo 1287º do Código Civil.

E a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil) distinguindo o legislador a posse da simples detenção (cfr. artigo 1253º), sendo dois os requisitos necessários para que haja posse: o corpus (elemento empírico), que consiste no exercício de poderes de facto sobre uma coisa, e que é menos um contacto com esta do que a sua imissão na zona de disponibilidade empírica do sujeito e o animus (elemento psicológico-jurídico), que se traduz na exigência de que tal exercício seja em termos de um direito real, sendo que a intenção de domínio terá apenas de poder inferir-se do próprio modo de atuação ou utilização (Cfr. Orlando de Carvalho, RLJ, Ano 122, nº 3781, página 105).

No caso da constituição por usucapião de um direito de servidão é necessário ainda que a mesma se revele por sinais visíveis e permanentes, pois conforme estabelece o artigo 1548º do Código Civil as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião (n.º 1), considerando-se não aparentes as servidões que não se revelam por sinais visíveis e permanentes (n.º 2).

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., volume III, página 630) a distinção entre as servidões aparentes e não aparente baseia-se na diversa forma por que a relação entre os prédios se apresenta externamente, “para que seja aparente não basta que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores. É necessário que além de visíveis (…) os sinais reveladores da servidão sejam permanentes”.

É assim inequívoco que para haver lugar à aquisição por usucapião de uma servidão, mostra-se necessário que a mesma se revele por sinais visíveis e permanentes.

No caso dos autos consta da matéria de facto provada que em 1972 foi aberta uma estrada municipal que atravessou o “Campo dos ...” (a parte agricultada pela C. F.) junto à sua estrema poente e que após a abertura da estrada, a estrema nascente do “Campo dos ...” permaneceu por vedar, sendo atravessada por diversas pessoas que queriam cortar caminho quando se dirigiam às suas propriedades e para acederem ao caminho do Penedo, sendo que um dos locais utilizados para o atravessamento situava-se perto da estrema norte do “Campo dos ...”, embora sem caminho definido e uma das pessoas que o atravessava era a mãe dos Autores, L. F., para aceder de sua casa até à “...”, onde cultivava produtos agrícolas numa pequena parcela, à vista e com o conhecimento de toda a gente – designadamente dos Réus e seus antepossuidores – e sem qualquer oposição.

Mais resulta demonstrado nos autos que quando os Réus construíram a sua habitação em 1977, deixaram em aberto o espaço de cerca de um metro de largura entre a mesma e o terreno pertencente a H. F. e que, após a aquisição do terreno a este, ocuparam-no e vedaram-no, nele tendo construído um jardim e um quintal, tendo por isso ocupado aquele espaço criado em 1977 mas tendo deixado novamente em aberto um espaço com um metro de largura entre a vedação por si construída e o prédio do vizinho, com aproximadamente 50 metros de comprimento e inicio na Estrada Municipal.

Posteriormente, os Réus colocaram no início de tal espaço, junto à Estrada Municipal, uma cancela, que não era fechada à chave, embora tivesse sido entregue uma cópia da chave aos pais dos Autores.

E tal passagem foi utilizada por diversas pessoas, entre as quais os Autores e a sua mãe, e era trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados.

Assim, a partir, pelo menos, de 1977, a mãe dos Autores, bem como os Autores e terceiras pessoas, passavam a pé por tal passagem, à vista e com o conhecimento de toda a gente sem interrupção nem oposição de ninguém para acederem aos seus terrenos.

Conforme consta da decisão recorrida “ficou demonstrado que existia uma passagem com um metro de largura entre uma vedação construída no prédio dos Réus e o prédio vizinho, e que a mesma era trilhada e calcada, tendo bordos perfeitamente definidos e delimitados. Por isso, efetivamente existiam, pelo menos desde 1977, sinais visíveis e permanentes de tal caminho” tendo os Autores demonstrado “que os próprios, assim como a sua mãe, utilizaram tal caminho para acesso ao seu prédio, pelo menos desde 1977, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer interrupção”, até ter sido tapada pelos Réus no ano de 2011.

Porém, tal como se evidencia na decisão recorrida, ficou também demonstrado que não eram só os Autores e a sua mãe que utilizavam tal caminho para acesso aos seus terrenos, mas diversas outras pessoas.

Entendeu o tribunal a quo que “da matéria de facto dada como demonstrada não se mostra possível concluir que os Autores, ou mesmo a sua progenitora, exerciam um verdadeiro “poder de facto” sobre o aludido terreno, tendente à demonstração do elemento objetivo da posse. Na verdade, não se mostrou possível concluir – e resulta, em consequência, da matéria de facto dada como não demonstrada – que o caminho servia especialmente para dar acesso ao terreno dos Autores, mas apenas que vinha sendo usado para esse efeito pela sua progenitora, L. F.. Aliás, tendo em conta a demonstrada utilização do caminho por diversas pessoas para além da progenitora dos Autores, assim como a sua concreta localização e configuração, poderia o caminho em causa servir de atalho, sendo aproveitado pela população da aldeia (onde se incluíam os Autores e a sua mãe), sendo em terra calcada na zona comum utilizada por todas as pessoas. Assim, subsistindo a dúvida sobre a natureza do caminho, bem como sobre a que título a mãe os Autores e a sua mãe o utilizavam, não pode tal dúvida deixar de ser decidida em desfavor destes últimos, por ser a quem incumbia a alegação e prova do seu direito”.

Em sentido contrário sustentam os Recorrentes não só o exercício de poderes de facto sobre o caminho mas que sempre o fizeram para aceder ao seu prédio na convicção de exercerem um direito próprio, sempre se tendo comportado como verdadeiros titulares do direito de servidão de passagem, convencidos que tal direito de passagem lhes pertencia.

Porém, conforme decorre da matéria de facto não provada (cfr. pontos 7), 8), 9), 10) e 11) não lograram os Autores demonstrar que os Réus, aquando do início da construção da sua casa em 1977, lhes tenham reconhecido um direito de passagem e obtido o seu consentimento para a alteração do caminho mais para norte e nem que aquando da aquisição do terreno a H. F., os Réus tenham também obtido o consentimento dos Autores para alterarem a localização do carreiro; nem tão pouco que o espaço de um metro de largura e aproximadamente 50 metros de comprimento, criado após a aquisição do terreno a H. F., tenha sido criado com o propósito de permitir a sua passagem ou da sua mãe L. F. para acesso ao campo denominado “...”, que os Réus tenham entregado a chave à mãe dos Autores por saberem que os mesmos tinham direito a aí passar ou sequer que a mãe dos Autores, L. F., bem como os Autores, acedessem ao prédio denominado “...”, através da passagem em causa, situada em terreno atualmente pertencente aos Réus, na convicção que exerciam um direito próprio e sem prejuízo de ninguém.

Sustentam contudo os Recorrentes, partindo do pressuposto que demonstraram o exercício de poderes de facto sobre o caminho (ou passagem), que a própria lei o faz presumir no artigo 1252º do Código Civil ao estabelecer uma presunção de posse a favor de quem exerce o poder de facto.

É certo que este preceito estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto (v. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., volume III, página 8), daquele que tem a detenção da coisa (salvo se não foi o iniciador da posse – artigo 1257º n.º 2 do Código Civil).

Tal presunção é estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do decidido no AUJ do STJ, de 14/05/1996 que uniformizou jurisprudência no sentido de que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa”.

Para que esta presunção opere importa ainda que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado, portanto, de qualquer possuidor antecedente (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 12/05/2016, relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt) pois que o n.º 2 do artigo 1257º presume que a posse continua em nome de quem a começou.

No caso em apreço não ficou demonstrado, que os Autores tivessem praticado os atos como iniciadores da posse, em nome próprio, desligados do anterior possuidor: se a partir, pelo menos, de 1977, a mãe dos Autores e os Autores, passavam a pé pela passagem, a verdade é que o prédio denominado “...” só adveio à posse e propriedade dos Autores por lhes haver sido adjudicado na partilha das heranças abertas por óbito de F. A. e L. F., pais dos Autores A. F. e J. F., em 2009 (ponto 9) dos factos provados).

Contudo o artigo 1255º do Código Civil prevê a sucessão na posse dispondo que por morte do possuidor a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, assim, ainda que sendo de presumir que a posse continua em nome de quem a começou (artigo 1257º n.º 2) o certo é que, se a posse tivesse começado anteriormente sempre os Autores teriam sucedido na mesma, e a posse continuaria nos Autores desde o momento da morte.

Porém, o que o n.º 2 do artigo 1252º determina é que se presume a posse em nome de quem exerce o poder de facto.

Ora, no caso em apreço, o que resulta dos autos é que passavam a pé pela passagem para acederem aos seus terrenos não só a mãe dos Autores, bem como estes, mas terceiras pessoas, não se podendo por isso dizer que o caminho (passagem) servia para dar acesso ao terreno dos Autores, mas apenas que vinha sendo usado para esse efeito, como para esse efeito (de acederem aos respetivos terrenos) era também usado por terceiras pessoas.

Veja-se, aliás, que os Autores não lograram demonstrar o por si alegado quanto ao caminho/passagem se destinar a permitir o seu acesso ou de L. F. ao campo da “...”, e nem que os Réus aquando do início da construção da casa em 1977, lhes tenham reconhecido um direito de passagem ou que tenham dado o seu consentimento para a alteração do caminho.

Assim, a simples utilização da referida passagem pelos Autores, e antes pela mãe, à semelhança da utilização levada a cabo por outras pessoas, não traduz o exercício verdadeiramente de um poder de facto suscetível de fazer presumir a posse e de ser concretamente revelador da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito real de servidão de passagem, pois que como os Autores várias outras pessoas utilizavam a passagem.

Ou seja, da matéria de facto provada não se mostra possível concluir que os Autores, ou a sua mãe exerciam um verdadeiro “poder de facto” sobre o terreno que utilizavam para passar.

Nestas circunstâncias, o que se verifica é, desde logo, e tal como se refere na decisão recorrida, uma clara insuficiência do próprio corpus possessório, sendo que, conforme já referimos o corpus, consistindo no exercício de poderes de facto sobre uma coisa, “é menos um contacto com esta do que a sua imissão na zona de disponibilidade empírica do sujeito” e a intenção de domínio terá de poder inferir-se do próprio modo de atuação ou utilização.

É que a presunção a que recorrem os Autores e que se estabelece em favor do pretenso possuidor funciona necessariamente a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, e, por isso, se considera que podem adquirir por usucapião os que exercem o poder de facto sobre a coisa, se a presunção de posse não for ilidida.

Mas necessário se torna, para funcionar a presunção de posse, que o pretenso possuidor efetivamente exerça o poder de facto sobre a coisa, o que não decorre dos factos provados no caso em apreço.

O que vale por dizer que a factualidade assente não permite também concluir pela aquisição por usucapião da servidão de passagem nos termos pretendidos pelos Autores.

Improcede pois na integra a apelação.
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Em face da improcedência da apelação dos Autores fica prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso requerida pelos Réus a título subsidiário.
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SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I - A servidão predial tem no essencial quatro notas características - é um encargo, que recai sobre um prédio, aproveita exclusivamente a outro prédio, devendo os prédios pertencer a donos diferentes – refletindo-se esta inerência da servidão aos prédios em dois princípios fundamentais: a inseparabilidade (artigo 1545º do Código Civil) e indivisibilidade (artigo 1546º do Código Civil) das mesmas.
II - Para a aquisição da servidão por destinação do pai de família é essencial a verificação dos seguintes pressupostos: que os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, tenham pertencido ao mesmo dono, que exista uma relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fração a outra correspondente a uma servidão aparente revelada por sinais visíveis e permanentes, que tenha existido uma separação dos prédios ou frações em relação ao domínio (uma separação jurídica) e inexista qualquer declaração contrária à destinação.
III - Para haver lugar à aquisição por usucapião de uma servidão, mostra-se necessário que a mesma se revele por sinais visíveis e permanentes.
IV - O n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto pelo que, não logrando o pretenso possuidor provar o animus, recairá sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, na linha do decidido no AUJ do STJ, de 14/05/1996.
V - Contudo, para que a presunção prevista n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil opere, e uma vez que ai se ressalva a presunção da mesma natureza estabelecida no n.º 2 do artigo 1257.º, importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse.
VI – E importa também que o pretenso possuidor efetivamente exerça o poder de facto sobre a coisa pois a presunção que se estabelece funciona necessariamente a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, e, por isso, se considera que podem adquirir por usucapião os que exercem o poder de facto sobre a coisa.
VII - Não pode ser aplicada no caso dos autos a presunção do n.º 2 do artigo 1252º do Código Civil uma vez que atenta a factualidade provada a utilização da passagem pelos Autores, e antes pela mãe, não traduz o exercício de um poder de facto suscetível de fazer presumir a posse e de ser concretamente revelador da vontade de criar em seu benefício uma aparência de titularidade correspondente ao direito real de servidão de passagem, pois que como os Autores várias outras pessoas utilizavam a passagem para acederem aos seus terrenos.
***
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

a) Rejeitar a apelação quanto à impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos 4), 5), 9), 10) e 11) dos factos não provados;
b) Julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 30 de maio de 2019
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares
Margarida Almeida Fernandes
Margarida Sousa