Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4161/19.7T8VCT.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Conforme preceituado no artigo 224º do Código Civil, a declaração negocial recipienda ou receptícia torna-se eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, mas é também eficaz quando só por sua culpa exclusiva não foi oportunamente recebida.
II- Na apreciação da culpa no não recebimento da declaração devem ser casuisticamente ponderadas todas circunstâncias relevantes, designadamente o grau de diligência concretamente exigível ao destinatário, atendendo também à natureza e teor do contrato a que respeita a declaração.
III- Tendo sido acordado num contrato de locação financeira imobiliária que todas as comunicações que a locadora devesse remeter ao locatário em formato papel, seriam enviadas para os endereços por este indicado no contrato, que este se obrigou a manter actualizado, são de considerar eficazes a interpelação para o cumprimento e a resolução do contrato remetida pela locadora financeira por carta registada com aviso de receção para o endereço indicado no contrato apesar de terem sido devolvidas.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

CAIXA … instaurou a presente providência cautelar de entrega judicial contra A. P. e C. D., pedindo na procedência da mesma a imediata entrega do imóvel objecto do contrato de locação financeira.
Alegou para tanto, e em síntese, que por contrato de locação financeira imobiliária, celebrado com os Requeridos em 02/02/2016 cedeu a estes o gozo do imóvel/fracção melhor identificada no artigo 5º do requerimento inicial e que pelo contrato os Requeridos assumiram, entre outras, a obrigação de pagar à Requerente 180 rendas prestações mensais, antecipadas e indexadas, sendo a primeira renda no valor de €8.296,60 e as demais no valor de €744,68 cada uma.
Mais alega que os Requeridos não pagaram a renda de 05/11/2018, nem qualquer uma das restantes vencidas após aquela data e que apesar de devidamente interpelados para o efeito, nunca efetuaram o pagamento das restantes rendas vencidas e não pagas à Requerente, às quais acrescem os respetivos juros de mora, indemnização, valor residual, tudo no montante global de €26.471,60, valor apurado a 17 de Abril de 2019.
Alega ainda que face ao incumprimento das obrigações contratuais por parte dos Requeridos, procedeu à resolução do contrato, nos termos das “condições gerais”, não tendo os Requeridos restituído à Requerente o bem imóvel objeto do contrato, o qual ainda se encontra na posse daqueles.
Regularmente citado, o Requerido não deduziu oposição.
Em 21/04/2020 foi proferido o seguinte despacho: “Atenta a devolução do expediente de citação da requerida, e porque não há lugar à citação edital, constatando-se ser inviável a citação pessoal da mesma (cf. artigo 366º, nº4 CPC), dispensa-se a sua audiência prévia”.
Em 18/05/2020 foi proferida a seguinte decisão: “Pelo exposto, ordena-se a entrega imediata à requerente da fracção autónoma designada pela letra “C” - correspondente a rés-do-chão esquerdo, destinado a comércio, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no Edifício de …, Largo …, …, Valença, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de …, … e …, sob o artigo … - que a Requerente deu em locação aos Requeridos e estes receberam
Custas pelos requeridos.
Notifique, sendo a requerida nos termos do artigo 366º, nº6 CPC.
Relativamente ao pedido de inversão do contencioso, após o decurso do prazo de impugnação / oposição à presente decisão, conclua os autos para apreciação de tal pedido (cf. artigo 369º, nº2, 2ª parte CPC)”.
A Requerida C. D. veio deduzir oposição à providência cautelar pedindo a final que a mesma seja indeferida.
Alegou para tanto, e em síntese, que a Requerente não interpelou a Requerida para o cumprimento do contrato antes da declaração de resolução, não tendo recebido qualquer uma dessa interpelações.

Veio a ser proferida decisão que julgou improcedente a oposição nos seguintes termos:
“III- Decisão.
1. Pelo exposto, o Tribunal decide julgar improcedente a oposição, mantendo-se a decisão que decretou a providência de fls. 32 e ss nos seus precisos termos.
2. Custas da oposição a cargo da oponente
3. Notifique e registe.
4. Após trânsito, conclua para apreciação da inversão do contencioso”.

Inconformada veio a Requerida C. D. interpor o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
“1- Vem o presente recurso interposto Douta Sentença datada de 13/11/2020, com a referência citius 46068287, que considerou improcedente a oposição deduzida pela Recorrente e manteve a decisão de decretamento da providência cautelar.
2- Assim, considera a Recorrente como incorretamente julgados os Pontos 1.6, 1.7 dos factos provados e os Pontos 2.1 e 2.2 dos factos não provados da Douta Sentença, devendo ser considerados não provados os pontos 1. 6 e 1.7 e provados os pontos 2.1 e 2.2.
3- Não resulta de qualquer dos documentos juntos aos autos que a Recorrente tenha recebido ou tenha podido receber as comunicações enviadas pela Recorrida, designadamente as comunicações referentes à interpelação admonitória e à resolução, prova que cabia à Recorrida, por força do disposto no artigo 224.º e 342.º do CC. Bem pelo contrário,
4- Deve ser dado como provado que a Requerida não recebeu a carta de resolução junta como documento 4, fls. 23 (aquela onde consta o seu nome e morada), com base no documento 4 junto com o Requerimento inicial, no documento nº 1 junto com o Requerimento datado de 30/10/2020, com a referência citius 36979139, os documentos 2 a 5 do mesmo Requerimento, e ainda, a procuração junta aos autos a fls 59 (Ponto 1.8 dos factos provados)
5- Deve ser dado como provado que nunca foi devidamente interpelada para cumprir.
6- Deve ser dado como provado que a carta de resolução datada de 18 de março de 2019 foi devolvida com a indicação de “mudança de residência “, com base no documento 1 junto com o requerimento datado de 30/10/2020, com a referência citius 36979139.
7- Deve ser dado como provado que em março de 2019, a Recorrente residia na morada contratualizada o que faz desde 10/05/2010, com base nos documentos 3 a 5 do requerimento datado de 30/10/2020, com a referência citius 36979139, e ainda, a procuração junta aos autos a fls 59 (Ponto 1.8 dos factos provados)
8- Deve, ainda, ser dado como provado que a Recorrente/Requerida não recebeu a carta de interpelação datada de 08 de janeiro de 2019, com base nos documentos 1 e 3 juntos com o Requerimento de 16/10/2020, com a referência citius 36813609.
9- Deve ser dado como provado que a carta de interpelação datada de 08 de janeiro de 2019 foi devolvida com a indicação “ non reclame”, dela não constando que tenha sido deixado qualquer aviso para levantamento da carta e dela constando que os correios portugueses não assinalaram qualquer causa de devolução com base nos documentos 1 e 3 juntos com o Requerimento de 16/10/2020, com a referência citius 36813609,
10-Deve ser dado como provado que o documento 2 junto com o Requerimento de 16/10/2020, com a referência citius 36813609 foi devolvido com a indicação “ non reclame”, dele não constando que tenha sido deixado qualquer aviso para levantamento de carta e dele constando que os correios portugueses não assinalaram qualquer causa de devolução.
11-No caso concreto, face ao “contrato de locação financeira” junto, era essencial, para a prova da resolução do referido contrato por incumprimento de obrigações –como pressuposto da entrega do imóvel - que a Recorrida tivesse provado cumulativamente, que: (i)- interpelou a Requerida para cumprir, nos termos do nº 2, alínea a) e nº 3 da Clausula Décima Quinta das Clausulas Gerais do Contrato junto como documento1 com o Requerimento Inicial, isto é, que interpelou a Opoente para que esta procedesse no prazo de 60 dias ao cumprimento das obrigações em mora, sob pena de resolução, tal como estipula aquela clausula contratual. (ii) que procedeu, em relação à aqui Recorrente, à comunicação da resolução do contrato por carta registada com aviso de receção, nos termos do nº 3 da Clausula Décima Quinta das Clausulas Gerais do Contrato.
12-Ora, salvo o devido respeito, a Recorrida não provou que qualquer das declarações que exteriorizou e expediu no âmbito contratual – interpelação admonitória, resolução e outra- tenham chegado ao poder ou conhecimento da Recorrente, prova que lhe competia.
13-Na verdade, dos documentos juntos aos autos, resulta apenas que a Recorrida exteriorizou e expediu declarações, não resultando provado que as mesmas tenham chegado ao poder ou ao conhecimento da Recorrente.
14-É que, todas as cartas enviadas pela Recorrida foram devolvidas, uma com a indicação de mudança de residência, as outras com a indicação de “Non reclame”, não resultando de qualquer dos documentos juntos que a Recorrente tenha sido avisada para proceder ao levantamento das referidas cartas e resultando provado que nunca mudou de residência.
15-O Tribunal aduz que a citação prévia para deduzir oposição à providência também não foi lograda pelo Tribunal, apesar de todas diligências encetadas, tendo-se dispensando por tal motivo a sua audiência prévia.
16- Ora, o aviso de receção enviado pelo Tribunal para a residência da Recorrente e junto aos autos em 21/01/20 e com a referência citius 2648569 encontra-se rasurado e mais estranhamente, encontra-se assinado por alguém, sendo que a carta foi devolvida como “non reclame”.
17-Assim, ao decidir considerar improcedente a oposição e manter a providência decretada, violou o Tribunal o disposto nos artigos 224.º e 332.º do Código Civil, devendo a Douta Sentença ser revogada e ser ordenado o levantamento da providência ordenada”.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e pela consequente revogação da decisão recorrida.
A Requerente apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:
1 - Determinar se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 1.6 e 1.7 dos factos provados e aos pontos 2.1 e 2.2 dos factos não provados;
2 - Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

1.1. Em 02/02/2016, a Requerente comprou ao Requerido, a M. P., M. F. e L. F., o imóvel em causa nos autos – doc. de fls. 57 vº e ss).
1.2. Tal imóvel fazia parte do acervo da herança aberta por óbito do Pai do requerido marido, A. M., do qual eram herdeiros, a Mãe do Autor, M. P., o Requerido e os seus irmãos, M. F. e L. F..
1.3. O referido imóvel foi partilhado pelos indicados herdeiros, tendo estes, em resultado da partilha, adquirido o mesmo em compropriedade, registada pela AP 248 de 18/12/2015.
1.4. Em 02/02/2016, incidiam sob o imóvel incidiam várias hipotecas a favor da Fazenda Nacional constituídas pelos então herdeiros e depois comproprietários indicados em 1.3. para garantia de todas e quaisquer dividas da sociedade A. P. e Filhos, Lda, designadamente pelas AP 103 de 18/02/2014 de € 125.000,00, Ap. 4102 de 06/05/2015, 501 de 05/11/2014, 213 de 10/12/2014 que foram canceladas nesse mesmo dia.
1.5. Em 02-02-2016, os Requeridos celebraram com a Requerente um contrato a que foi dado o título de locação financeira imobiliária, junto pela Requerente, que tem por objeto a fração em causa nestes autos.
1.6. Para além da notificação relativa à resolução contratual, já junta com a petição inicial, a Requerida foi também notificada do incumprimento do contrato – cf. docs. de fls. 68 vº a 72: os avisos de recepção correspondentes às notificações de interpelação e resolução, respectivamente.
1.7. Tais avisos de recepção vieram devolvidos, com a indicação de “non réclame”.
1.8. Tais cartas foram remetidas para a morada contratualmente indicada no contrato (cf. fls. 7 vº), e que até correspondem à morada constante da procuração forense junta com a oposição (cf. fls. 59).
1.9. Tal como estava contratualmente acordado “as comunicações que, nos termos legais, a locadora deva obrigatoriamente remeter ao locatário em formato papel, serão enviados, por meio de carta simples e sem aviso de recepção, para os endereços por este indicado no contrato, que se obriga, desde já, a manter actualizado, o qual, para efeitos das referidas comunicações, incluindo citação ou notificação judicial, se considera ser o domicílio convencionado”. (cfr. nº 2 da cláusula vigésima do contrato junto aos autos com o requerimento inicial).
1.10. Mais, “quaisquer alterações ao domicílio convencionado devem ser comunicadas à CAIXA ..., no prazo máximo de trinta dias após essa alteração” (cfr. nº 3 da cláusula vigésima do mesmo contrato).
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

2.1. A Requerida não recebeu a alegada carta de resolução junta como documento 4, fls. 23 (aquela onde consta o seu nome e morada).
2.2. Nem nunca foi “devidamente” interpelada para cumprir.
2.3. A Requerente celebrou o contrato de “locação financeira” bem sabendo que o imóvel estava ocupado pela Sociedade “A. P. e Filhos”, e que este era e é a sede da referida sociedade.
2.4. A Requerente celebrou o contrato de “locação Financeira” bem sabendo que essa ocupação já se fazia há cerca de 30 anos, nunca tendo colocado qualquer obstáculo a tal ocupação e aceitando-a como fez.
2.5. O contrato de compra e venda e o contrato de locação financeira têm subjacente um contrato de mútuo no montante de 100.000,00€ (cem mil euros).
2.6. A Requerente comprou o imóvel em causa nos autos ao Requerido e família, entregando a quantia de €100.000,00 e, no mesmo dia, celebrou com os Requeridos o contrato de locação financeira relativo ao mesmo imóvel pelo mesmo valor.
2.7. Ou seja, com estes contratos, o que as partes pretenderam foi, efetivamente, a celebração de um contrato de mútuo, pois a Requerente emprestou € 100.000,00 (cem mil euros) ao Requerido e sua família através da compra do referido imóvel e os Requeridos ficaram titulares do contrato de locação financeira, com acordo de todos os intervenientes no negócio, com opção de compra do imóvel no final, para que o mesmo retornasse à família.
2.8. A Requerente sabia que o valor do preço do contrato de compra e venda se destinava, como se destinou ao pagamento ao Serviço de Finanças das dívidas da Sociedade A. P., Lda para que fossem canceladas as hipotecas que impendiam sobre o imóvel.
2.9. A Requerente também sabia que o preço da compra do imóvel era bastante inferior ao valor de mercado do referido imóvel o qual, 02/02/2016, era de 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) e, atualmente, não é inferior a €230.000,00.
2.10. No entanto, foi o valor de € 100,000,00 (cem mil euros) que a Requerente impôs como preço a pagar pelo imóvel.
2.11. Assim, sob a capa de um contrato de compra e venda e de um contrato de locação financeira existe um verdadeiro contrato de mútuo.
2.12. Desde logo, a Requerente concedeu um crédito de €100.000,00( cem mil euros) sob a forma de pagamento do preço no contrato de compra e venda, seguido, por um acordo de financiamento pelo mesmo valor, no caso, a locação financeira, com opção de compra a final.
2.13. Não podendo a Requerida deixar de referir que a Requerente sabia, ao celebrar os negócios de compra e venda e de locação financeira, que era essencial para os Requeridos, e sobretudo para o Requerido marido e família,-intervenientes no contrato de compra e venda- que o imóvel permanecesse como sede da sociedade A. P., Lda, enquanto esta existisse, como até ali tinha acontecido, bem como sabia e aceitou que a sociedade continuasse a ocupar o imóvel como comodatária, nos mesmos termos.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

O recurso interposto pela Requerida visa a reapreciação da decisão de facto.
Decorre do n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
A Recorrente cumpriu satisfatoriamente os ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil, cumprindo conhecer do recurso.
Sustenta a Recorrente que existe erro de julgamento quanto aos pontos 1.6 e 1.7 dos factos provados e aos pontos 2.1 e 2.2 dos factos não provados, invocando para o efeito a prova documental junta aos autos da qual não resulta, em seu entender, que tenha recebido ou tenha podido receber as comunicações enviadas pela Recorrida, designadamente as comunicações referentes à interpelação admonitória e à resolução.

Entende, por isso, que:
- deve ser dado como provado que a Requerida não recebeu a carta de resolução;
- deve ser dado como provado que nunca foi devidamente interpelada para cumprir;
- deve ser dado como provado que a carta de resolução datada de 18 de março de 2019 foi devolvida com a indicação de “mudança de residência”;
- deve ser dado como provado que em março de 2019, a Requerida residia na morada contratualizada o que faz desde 10/05/2010;
- deve ser dado como provado que a Requerida não recebeu a carta de interpelação datada de 08 de janeiro de 2019;
- deve ser dado como provado que a carta de interpelação datada de 08 de janeiro de 2019 foi devolvida com a indicação “ non reclame”, dela não constando que tenha sido deixado qualquer aviso para levantamento da carta e dela constando que os correios portugueses não assinalaram qualquer causa de devolução;
- deve ser dado como provado que o documento 2 junto com o Requerimento de 16/10/2020, foi devolvido com a indicação “non reclame” dele não constando que tenha sido deixado qualquer aviso para levantamento de carta e dele constando que os correios portugueses não assinalaram qualquer causa de devolução.

Vejamos então se lhe assiste razão.

Os referidos pontos da matéria de facto provada e não provada têm a seguinte redacção:

“1.6. Para além da notificação relativa à resolução contratual, já junta com a petição inicial, a Requerida foi também notificada do incumprimento do contrato – cf. docs. de fls. 68 vº a 72: os avisos de recepção correspondentes às notificações de interpelação e resolução, respectivamente.
1.7. Tais avisos de recepção vieram devolvidos, com a indicação de “non réclame”.
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2.1. A Requerida não recebeu a alegada carta de resolução junta como documento 4, fls. 23 (aquela onde consta o seu nome e morada).
2.2. Nem nunca foi “devidamente” interpelada para cumprir”.

Analisando a motivação exposta pelo tribunal a quo, consta da mesma que:

“Quanto aos factos provados, o Tribunal considerou novamente a prova documental e testemunhal indicada pela requerente; considerou os documentos juntos pela requerida a fls 55 e ss e teor da procuração de fls. 59 (quanto à morada da oponente). Mais considerou em complemento da alegação e prova inicial os documentos de interpelação da oponente constante de fls. 68 vº a 72vº, devolvidos por não terem sido reclamados pela oponente, o que de resto sucedeu igualmente com a citação para a presente providência cautelar – devolução da citação por não reclamação da requerida ora oponente (cf. devolução registada a 21/1/2020)”.
Mas, considerando a prova documental junta aos autos, entendemos que efetivamente deve ser outra a redacção dada aos pontos 1.6. e 1.7., a qual deve corresponder às comunicações enviadas e aos avisos de receção que vieram devolvidos, retirando-se posteriormente, em sede de apreciação jurídica, a conclusão se a Recorrente foi ou não notificada da resolução do contrato e da interpelação para cumprimento.
Da mesma forma, devem ser eliminados da matéria de facto não provada os pontos 2.1. e 2.2. pois que se a carta e o aviso de receção foram devolvidos não se pode considerar como não provado que a Requerida não recebeu a carta, o que é distinto de se determinar quais as consequências dessa devolução e se a declaração da Requerente de resolução do contrato deve ser considerada eficaz (cfr. artigo 224º do Código Civil) o que adiante analisaremos; sendo certo que saber se a Requerida não foi (ou foi) “devidamente” interpelada para cumprir é também conclusão a retirar em sede de apreciação jurídica em face dos factos que sejam julgados provados.
A este propósito cumpre referir que hoje não consta do Código de Processo Civil preceito equivalente ao anterior artigo 646º n.º 4 que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”.
Contudo, constando da matéria de facto formulações de pendor exclusivamente genérico e conclusivo e manifestamente de direito, entendemos que deve continuar a ser eliminada.
Actualmente prevê-se que a produção de prova em audiência tenha por objecto temas da prova e a opção do legislador recaiu em inscrever a decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, decidindo-a no momento da elaboração desta (cfr. artigo 607º n.º 3 do Código de Processo Civil), eliminando o prévio julgamento da matéria de facto.
Conforme refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, 2014, página 248 e 249) em face “desta modificação e ainda da opção de na mesma sentença se proceder à respectiva integração jurídica, segundo o método pendular que implica a ponderação conjugada de elementos de facto e de questões de direito, parece-nos defensável uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais que deixem a justiça à porta do tribunal. (…) Por isso a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como “matéria de facto provada” pura e inequívoca matéria de direito (…)” (no mesmo sentido Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, página 721, afirmam em anotação ao artigo 607º que a opção do legislador “não significa, obviamente, que seja admissível doravante a assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da decisão da matéria de facto”).
Não obstante subscrevermos também uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (actual) Código de Processo Civil, entendemos que, não constituindo facto a considerar provado na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil, por conter matéria de direito, o ponto 2.2. não só deve ser eliminado dos factos não provados, como também não pode ser tal matéria levada à factualidade provada.
Quanto à prova documental a considerar releva a carta junta pela Requerente com a petição inicial, o documento junto pela Requerida em 30/10/2020 (A/R e envelope) e os documentos juntos pela Requerente em 16/10/2020 (carta e aviso de receção).

Assim, devem ser eliminados dos factos não provados os pontos 1.1. e 2.2. e deve ser alterada a redacção dos pontos 1.6. e 1.7. nos seguintes termos:
“1.6. A Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de receção, datada de 18 de março de 2019, para a Rua ..., n.º ..., Vigo, onde consta que continuando por regularizar o contrato de locação financeira imobiliária n.º ......-000036-4, a notificava da resolução do mesmo contrato, nos termos e para os efeitos do disposto na cláusula 15ª das Clausulas Gerais, bem como para restituir o imóvel locado no prazo máximo de oito dias e proceder ao pagamento da quantia de €26.471,60, a qual foi devolvida constando do aviso de receção a indicação de “Mudança de residência”.
1.7. A Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de receção, datada de 08 de janeiro de 2019, para a Rua ..., n.º ..., Vigo, onde consta, relativamente ao contrato de locação financeira imobiliário n.º ......-000036-4, “constituíram-se V. Exas., em incumprimento, por não terem procedido ao pagamento das rendas e juros vencidos, no montante de € 3.218,80 (Três mil, duzentos dezoito euros e oitenta cêntimos). Nos termos Contratuais fica V. Exa., interpelada pela presente, para proceder à regularização dos montantes em dívida no prazo máximo de 60 (sessenta dias). O incumprimento tornar-se-á definitivo caso V. Exas., não procedam ao pagamento da dívida, no prazo supra indicado, repondo a situação que se verificaria se não tivesse havido incumprimento, com as consequências daí resultantes”, a qual foi devolvida constando do aviso de receção a indicação de “non reclamé” e do verso do envelope a menção “Ausente 23/01/2019”.
Quanto aos documentos 3 a 5 juntos pela Requerida em 30/10/2020 não provam por si só que em Janeiro e março de 2019 a Requerida se encontrava efectivamente a viver na morada em causa, o mesmo ocorrendo com a procuração junta aos autos pois não obstante constar da mesma que a Requerida tem residência na Rua ..., n.º ..., Vigo (…/Espanha), a procuração tem a data de 05/10/2020.
No mais, entendemos que aos factos provados devem ser levadas as menções constantes dos documentos e não o que dos mesmos não consta.

Considerando o teor do documento (aviso de receção) junto pela Requerente em 16/10/2020 importa ainda aditar mais um ponto à matéria de facto provada, o qual passará a ser o 1.7.-A e terá a seguinte redacção:

“1.7.-A A Requerente enviou à Requerida carta registada com aviso de receção para a Rua ..., n.º ..., Vigo, a qual foi devolvida constando do aviso de receção a indicação de “no retirado” e de “ausente” e a data de 8/07/2019 e do envelope a indicação de “non reclamé” e a data de 19/07/2019”.

Em face do exposto passará a matéria de facto a ter a seguinte formulação:
“Factos Provados
1.1. Em 02/02/2016, a Requerente comprou ao Requerido, a M. P., M. F. e L. F., o imóvel em causa nos autos – doc. de fls. 57 vº e ss).
1.2. Tal imóvel fazia parte do acervo da herança aberta por óbito do Pai do requerido marido, A. M., do qual eram herdeiros, a Mãe do Autor, M. P., o Requerido e os seus irmãos, M. F. e L. F..
1.3. O referido imóvel foi partilhado pelos indicados herdeiros, tendo estes, em resultado da partilha, adquirido o mesmo em compropriedade, registada pela AP 248 de 18/12/2015.
1.4. Em 02/02/2016, incidiam sob o imóvel incidiam várias hipotecas a favor da Fazenda Nacional constituídas pelos então herdeiros e depois comproprietários indicados em 1.3. para garantia de todas e quaisquer dividas da sociedade A. P. e Filhos, Lda, designadamente pelas AP 103 de 18/02/2014 de € 125.000,00, Ap. 4102 de 06/05/2015, 501 de 05/11/2014, 213 de 10/12/2014 que foram canceladas nesse mesmo dia.
1.5. Em 02-02-2016, os Requeridos celebraram com a Requerente um contrato a que foi dado o título de locação financeira imobiliária, junto pela Requerente, que tem por objeto a fração em causa nestes autos.
1.6. A Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de receção, datada de 18 de março de 2019, para a Rua ..., n.º ..., Vigo, onde consta que continuando por regularizar o contrato de locação financeira imobiliária n.º ......-000036-4, a notificava da resolução do mesmo contrato, nos termos e para os efeitos do disposto na cláusula 15ª das Clausulas Gerais, bem como para restituir o imóvel locado no prazo máximo de oito dias e proceder ao pagamento da quantia de €26.471,60, a qual foi devolvida constando do aviso de receção a indicação de “Mudança de residência”.
1.7. A Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de receção, datada de 08 de janeiro de 2019, para a Rua ..., n.º ..., Vigo, onde consta, relativamente ao contrato de locação financeira imobiliário n.º ......-000036-4, “constituíram-se V. Exas., em incumprimento, por não terem procedido ao pagamento das rendas e juros vencidos, no montante de € 3.218,80 (Três mil, duzentos dezoito euros e oitenta cêntimos). Nos termos Contratuais fica V. Exa., interpelada pela presente, para proceder à regularização dos montantes em dívida no prazo máximo de 60 (sessenta dias). O incumprimento tornar-se-á definitivo caso V. Exas., não procedam ao pagamento da dívida, no prazo supra indicado, repondo a situação que se verificaria se não tivesse havido incumprimento, com as consequências daí resultantes”, a qual foi devolvida constando do aviso de receção a indicação de “non reclamé” e do verso do envelope a menção “Ausente 23/01/2019.
1.7.-A A Requerente enviou à Requerida carta registada com aviso de receção para a Rua ..., n.º ..., Vigo, a qual foi devolvida constando do aviso de receção a indicação de “no retirado” e de “ausente” e a data de 8/07/2019 e do envelope a indicação de “non reclamé” e a data de 19/07/2019.
1.8. Tais cartas foram remetidas para a morada contratualmente indicada no contrato (cf. fls. 7 vº), e que até correspondem à morada constante da procuração forense junta com a oposição (cf. fls. 59).
1.9. Tal como estava contratualmente acordado “as comunicações que, nos termos legais, a locadora deva obrigatoriamente remeter ao locatário em formato papel, serão enviados, por meio de carta simples e sem aviso de recepção, para os endereços por este indicado no contrato, que se obriga, desde já, a manter actualizado, o qual, para efeitos das referidas comunicações, incluindo citação ou notificação judicial, se considera ser o domicílio convencionado”. (cfr. nº 2 da cláusula vigésima do contrato junto aos autos com o requerimento inicial).
1.10. Mais, “quaisquer alterações ao domicílio convencionado devem ser comunicadas à Caixa ..., no prazo máximo de trinta dias após essa alteração” (cfr. nº 3 da cláusula vigésima do mesmo contrato).
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

2.1. A Requerente celebrou o contrato de “locação financeira” bem sabendo que o imóvel estava ocupado pela Sociedade “A. P. e Filhos”, e que este era e é a sede da referida sociedade.
2.2. A Requerente celebrou o contrato de “locação Financeira” bem sabendo que essa ocupação já se fazia há cerca de 30 anos, nunca tendo colocado qualquer obstáculo a tal ocupação e aceitando-a como fez.
2.3. O contrato de compra e venda e o contrato de locação financeira têm subjacente um contrato de mútuo no montante de 100.000,00€ (cem mil euros).
2.4. A Requerente comprou o imóvel em causa nos autos ao Requerido e família, entregando a quantia de €100.000,00 e, no mesmo dia, celebrou com os Requeridos o contrato de locação financeira relativo ao mesmo imóvel pelo mesmo valor.
2.5. Ou seja, com estes contratos, o que as partes pretenderam foi, efetivamente, a celebração de um contrato de mútuo, pois a Requerente emprestou € 100.000,00 (cem mil euros) ao Requerido e sua família através da compra do referido imóvel e os Requeridos ficaram titulares do contrato de locação financeira, com acordo de todos os intervenientes no negócio, com opção de compra do imóvel no final, para que o mesmo retornasse à família.
2.6. A Requerente sabia que o valor do preço do contrato de compra e venda se destinava, como se destinou ao pagamento ao Serviço de Finanças das dívidas da Sociedade A. P., Lda para que fossem canceladas as hipotecas que impendiam sobre o imóvel.
2.7. A Requerente também sabia que o preço da compra do imóvel era bastante inferior ao valor de mercado do referido imóvel o qual, 02/02/2016, era de 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) e, atualmente, não é inferior a €230.000,00.
2.8. No entanto, foi o valor de € 100,000,00 (cem mil euros) que a Requerente impôs como preço a pagar pelo imóvel.
2.9. Assim, sob a capa de um contrato de compra e venda e de um contrato de locação financeira existe um verdadeiro contrato de mútuo.
2.10. Desde logo, a Requerente concedeu um crédito de €100.000,00( cem mil euros) sob a forma de pagamento do preço no contrato de compra e venda, seguido, por um acordo de financiamento pelo mesmo valor, no caso, a locação financeira, com opção de compra a final.
2.11. Não podendo a Requerida deixar de referir que a Requerente sabia, ao celebrar os negócios de compra e venda e de locação financeira, que era essencial para os Requeridos, e sobretudo para o Requerido marido e família,-intervenientes no contrato de compra e venda- que o imóvel permanecesse como sede da sociedade A. P., Lda, enquanto esta existisse, como até ali tinha acontecido, bem como sabia e aceitou que a sociedade continuasse a ocupar o imóvel como comodatária, nos mesmos termos.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, começando por analisar os demais fundamentos constantes da apelação.
Sustenta a Recorrente que para a resolução do contrato de locação financeira por incumprimento de obrigações, como pressuposto da entrega do imóvel, era necessário estar provado cumulativamente, que a Recorrida interpelou a Requerida para cumprir, sob pena de resolução, e que procedeu, em relação à Recorrente, à comunicação da resolução do contrato por carta registada com aviso de receção, nos termos do nº 3 da Clausula Décima Quinta das Clausulas Gerais do Contrato.
Entende a Recorrente que tal não ocorre no caso concreto pois todas as cartas enviadas pela Recorrida foram devolvidas, uma com a indicação de mudança de residência, as outras com a indicação de “Non reclame”, não resultando de qualquer dos documentos juntos que a Recorrente tenha sido avisada para proceder ao levantamento das referidas cartas, e resultando provado que nunca mudou de residência.
Importa começar por salientar, tal como já referimos, que não resulta demonstrado que a Requerida à data dos factos (envio das cartas) estivesse efectivamente a morar na residência indicada.
De todo o modo, o que releva no caso concreto é que a Requerida efectivamente não recepcionou nenhuma das cartas enviadas pela Requerente, seja a carta da interpelação datada de 08/01/2019, seja a carta da resolução do contrato, datada de 18/03/2019, pois que ambas vieram devolvidas, a primeira por não ter sido reclamada e a segunda com a menção de mudança de residência.
A questão que importa então apreciar é a da eficácia dessas notificações realizadas pela Requerente, sendo certo que não se suscitam dúvidas que ambas foram efetuadas para a morada da Requerida que consta do contrato de locação financeira, e que esta sustenta ser a sua residência, a qual coincide com a indicada na procuração junta aos autos.
Tal questão remete-nos ainda para a eficácia da declaração negocial e o regime previsto no artigo 224º do Código Civil.
Nos termos deste preceito “1. A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada. 2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida. 3. A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é ineficaz”.
O declaratário fica, por isso, vinculado logo que conheça o conteúdo da declaração, ainda que o texto ou o documento não lhe tenham sido entregues mas também logo que a declaração chegue ao seu poder, ainda que não tome conhecimento dela.
O disposto no referido artigo 224º traduz a assunção da teoria da recepção “de tal modo que a eficácia da declaração negocial (ainda que de natureza resolutiva) depende do seu recebimento pelo destinatário, a tal equivalendo também a situação em que a declaração entra na sua esfera de influência” (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2012, Processo n.º 3792/08.5TBMAI-A.P1.S1, Relator Conselheiro Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt).
Como refere Heinrich Hörster (“Sobre a formação do contrato segundo os arts. 217º e 218º. 224º a 226º e 228º a 235º do CC”, Revista de Direito e Economia, n.º 9, página 135) bem pode dizer-se que a “solução legal dá relevância jurídica, no sentido de originar a perfeição da declaração negocial, àquele pressuposto que se verifica primeiro, combinando, nesta medida, a teoria da recepção (“… logo que chega ao poder …”) com a teoria do conhecimento (“ … logo que … é dele conhecida”). Ou, como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição Revista e Atualizada, página 214) adotaram-se simultaneamente “os critérios da receção e do conhecimento. Não se exige, por um lado, a prova do conhecimento por parte do destinatário; basta que a declaração tenha chegado ao seu poder (…) Mas, provado o conhecimento, não é necessário provar a receção para a eficácia da declaração.”
No entanto, e como medida de protecção do declarante, também se considera eficaz a declaração que foi remetida e que só por culpa do destinatário não foi pelo mesmo oportunamente recebida (cfr. n.º 2 do referido artigo 224º), o que remete para a chamada teoria da expedição; é o caso por exemplo do destinatário se ausentar para parte incerta ou de se recusar a receber a carta ou ainda de a não ir levantar à posta-restante (vide Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e página citadas). E também, “se é entregue uma carta em sobrescrito fechado, na caixa de correio da morada correspondente à residência habitual do destinatário, espera-se que o mesmo a vá recolher, que a abra e que leia a comunicação dela constante. Em coerência com este pensamento, se for o destinatário a impedir, culposamente, que a declaração chegue à sua esfera de poder, tudo se passa como se ela tivesse sido oportunamente recebida” (vide Acórdão da Relação do Porto de 26 de Novembro de 2019, Processo n.º 2413/16.7T8AVR.P1, Relator João Diogo Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt).
Em sentido idêntico, refere Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª Edição, 2017, páginas 403 e 404) que no n.º 2 do artigo 224º “é reforçada a orientação de fazer equivaler ao conhecimento efetivo da declaração a sua colocação à disposição e ao alcance do declaratário. Torna-se também perfeita e eficaz , segundo aquele preceito legal, a declaração recipienda que só por culpa do declaratário não foi por ele oportunamente recebida. Este regime contraria as práticas relativamente vulgares, por parte dos destinatários de declarações negociais e não negociais, de se furtarem à recepção das comunicações que lhe são dirigidas. Esta prática é vulgar no que respeita a cartas registadas que os seus destinatários se recusam a receber e acabam por ser devolvidas aos respetivos remetentes.”, concluindo por isso ser “necessário demonstrar que, sem acção ou abstenção culposas do declaratário, a declaração teria sido recebida. A concretização deste regime não dispensa um juízo cuidadoso sobre a culpa, por arte do declaratário, no atraso ou na não receção da declaração”.
O preceituado no n.º 2 do referido artigo 224º tem sido objecto de frequentes apreciações dos tribunais, cumprindo salientar que tal apreciação deve ser feita sempre casuisticamente uma vez que a aplicação do regime ali consagrado exige a formulação de um juízo sobre a culpa do declaratório na não receção da declaração.
Como se afirma no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2012 “A dificuldade está na apreciação dos comportamentos (acções ou omissões) do destinatário susceptíveis de integrar tal situação. Lidando com conceitos indeterminados conexos com elementos subjectivos da responsabilidade contratual (a culpa e a exclusividade da culpa), a apreciação deve ser feita casuisticamente, ponderando designadamente o específico contexto contratual. (…) Na ausência de outro critério delimitador do conceito de culpa para este efeito, teremos de nos socorrer do disposto no art. 799º, nº 2, do CC, sobre a culpa no âmbito da responsabilidade contratual e, por via remissiva, do art. 487º, nº 2, do CC, nos termos da qual esse elemento subjectivo deve ser concretamente aferido através do critério de um devedor criterioso e diligente”.
Neste Acórdão salienta-se ainda, por relevante, a diferença que deverá existir consoante o juízo a levar a cabo seja formulado “no âmbito de um contrato em que nada tenha sido acautelado a respeito da forma das comunicações ou do seu destino, em comparação com outro em que as partes tenham estabelecido endereços para onde deveriam remeter as comunicações relevantes em termos contratuais”.

No caso em apreço, resulta dos factos provados que as cartas em causa foram enviadas pela Requerente para a morada contratualmente indicada no contrato; estava acordado que “as comunicações que, nos termos legais, a locadora deva obrigatoriamente remeter ao locatário em formato papel, serão enviados, por meio de carta simples e sem aviso de recepção, para os endereços por este indicado no contrato, que se obriga, desde já, a manter actualizado, o qual, para efeitos das referidas comunicações, incluindo citação ou notificação judicial, se considera ser o domicílio convencionado” (cfr. n.º 2 da cláusula vigésima do contrato).

In casu as partes previram expressamente para onde deviam ser enviadas as comunicações e a Requerente cumpriu com o acordado enviando as comunicações para a morada constante do contrato.
Porém, as cartas registadas com aviso de receção enviadas em 08/01/2019 e 18/03/2019 foram devolvidas, a primeira por não ter sido reclamada, constando do verso do envelope a menção “Ausente 23/01/2019”, e a outra com a indicação de “Mudança de residência”.
Por outro lado, se efectivamente não consta a menção de que foi deixado aviso para levantamento da carta, o mesmo ocorrendo com a carta enviada pela Requerente para a mesma morada da Requerida que foi devolvida com a indicação no aviso de receção de “no retirado” e de “ausente” e a data de 8/07/2019 (constando do envelope a indicação de “non reclamé” e a data de 19/07/2019, a verdade é que daí não se pode inferir que o mesmo não foi deixado; aliás, também a carta registada com aviso de receção enviada para citação em 05/12/2019, para a residência da Recorrente, veio devolvida com a menção “non reclamé” em 21/01/2020.
Estamos a falar de um período alargado de praticamente um ano em que é manifesta a impossibilidade de contactar a Recorrente mediante comunicação por carta registada com aviso de receção para a morada pela mesma indicada uma vez que as cartas não são por si rececionadas, sem que resulte demonstrado nos autos, e nem sequer alegado pela Recorrente, que nesse período tivesse existido efectivamente qualquer problema com o recebimento de correspondência na sua residência ou qualquer deficiente cumprimento por parte dos serviços postais espanhóis.
Por outro lado, não há dúvidas que a Recorrente assumiu, juntamente com o marido, o Requerido A. P., a obrigação de pagar à Requerente 180 rendas prestações mensais, antecipadas e indexadas, sendo a primeira renda no valor de €8.296,60 e as demais no valor de €744,68 cada uma e que os Requeridos não pagaram a renda de 05/11/2018, nem qualquer uma restantes vencidas após aquela data, pois que tal não vem questionado no presente recurso. A Recorrente não desconhecia, por isso, estar em incumprimento desde novembro de 2018.

No caso sub judice importa ter em consideração não só que estamos perante um contrato de locação financeira imobiliária no qual consta expressamente uma cláusula destinada regular a efectivação das comunicações, com indicação da morada dos locatários, aqui Requeridos, para esse efeito, mas também o facto destes, designadamente da Recorrente (pois o Requerido uma vez citado não deduziu oposição à providência) estarem cientes de que se encontravam em situação de incumprimento desde novembro de 2018; e, em face dessa situação de incumprimento, não podia também a Recorrente desconhecer que certamente a credora, aqui Requerente, reagiria no sentido de fazer valer os seus direitos, designadamente mediante interpelação para o cumprimento, com fixação de prazo para o efeito, e subsequente declaração resolutiva em caso de manutenção da situação do incumprimento, em conformidade com o contratualmente previsto na cláusula décima quinta.
De resto, também não resulta dos autos, nem foi alegado pela Recorrente (seja na oposição deduzida seja no presente recurso) que, sabendo encontrar-se em incumprimento, tivesse diligenciado junto da Requerente pela regularização da situação ou pelo menos tivesse estabelecido qualquer contacto para esse efeito, sendo certo que entre o início do incumprimento e a instauração da providência cautelar decorreu mais de um ano.
Julgamos, por isso, ser legítimo imputar aos devedores e potenciais destinatários das comunicações em causa “um especial dever de diligência no sentido de assegurarem que a correspondência respeitante a tal contrato” e que sendo dirigidas para o endereço indicado “seria recebida sem mais impedimentos” (cfr. o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2012).
Conforme decorre do disposto no artigo 406º do Código Civil os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que esta exigência abarca as prestações essenciais, mas também as obrigações acessórias.
No caso concreto a Requerente demonstrou ter cumprido com o que se havia obrigado, enviando as comunicações para a morada indicada em conformidade com o previsto no contrato, já a Recorrente, além de não ter cumprido com a sua obrigação principal de pagamento das rendas devidas, não demonstrou ter efectuado qualquer diligência para assegurar que as comunicações que lhe fossem dirigidas para a morada por si indicada fossem por si recepcionadas ou chegassem ao seu conhecimento.
Do exposto decorre, ser de concluir que as cartas só por culpa da Requerida não foram oportunamente recebidas, sendo de considerar eficazes as declarações que foram realizadas através das cartas enviadas pela Requerente por força do preceituado no n.º 2 do artigo 224º do Código Civil.
Não violou, por isso, o Tribunal a quo o disposto no artigo 224º do Código Civil, não tendo o artigo 332º deste diploma (“Absolvição e interrupção da instância e ineficácia do compromisso arbitral”) qualquer aplicação no caso concreto.
Impõe-se por isso julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade da Recorrente atento o seu decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n º 7 do Código do Processo Civil)

I - Conforme preceituado no artigo 224º do Código Civil, a declaração negocial recipienda ou receptícia torna-se eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, mas é também eficaz quando só por sua culpa exclusiva não foi oportunamente recebida.
II - Na apreciação da culpa no não recebimento da declaração devem ser casuisticamente ponderadas todas circunstâncias relevantes, designadamente o grau de diligência concretamente exigível ao destinatário, atendendo também à natureza e teor do contrato a que respeita a declaração.
III - Tendo sido acordado num contrato de locação financeira imobiliária que todas as comunicações que a locadora devesse remeter ao locatário em formato papel, seriam enviadas para os endereços por este indicado no contrato, que este se obrigou a manter actualizado, são de considerar eficazes a interpelação para o cumprimento e a resolução do contrato remetida pela locadora financeira por carta registada com aviso de receção para o endereço indicado no contrato apesar de terem sido devolvidas.
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IV. Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 11 de fevereiro de 2021
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Margarida Sousa (2ª Adjunta)