Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6266/21.5T8BRG.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA DECISÃO
OBJECTO DO RECURSO
CONCLUSÕES
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A nulidade de ato processual prevista no art.º 195º do CPC distingue-se das nulidades específicas das sentenças e dos despachos (artigos 613º e 615º do CPC) bem como do erro material, da ambiguidade da decisão, e do erro de julgamento (de facto ou de direito). Enquanto estes casos respeitam a vícios de conteúdo, o vício gerador da nulidade do artigo 195º, bem como os que geram as nulidades previstas nos artigos 186º e ss. do mesmo diploma legal, respeitam à própria existência do ato ou às suas formalidades.
II- A reapreciação da decisão quanto à matéria de facto só deve ter lugar se for de alguma forma consequente para a apreciação das questões suscitadas no recurso, não se devendo proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais.
III- É pelas conclusões de recurso que se baliza o objeto do mesmo. Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostram-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões; têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: José Manuel Alves Flores
2ª Adjunta: Sandra Maria Vieira Melo
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I- RELATÓRIO:

AA, residente na Rua ..., ... ..., intentou a presente ação de processo declarativo comum contra a “Companhia de Seguros S... SEGUROS, S.A.”, com sede na Av. ..., ..., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 3.500,00€, relativa aos danos relativos à perda da sua viatura, com a matrícula ..-..-ST, perda essa ditada por um acidente de viação ocorrido no dia 23/11/2018, e em que foi também interveniente a viatura com a matrícula ..-..-PQ, segurada na ré, viatura que segundo a A foi a única causadora do sinistro, pretendendo ainda ser ressarcida do valor inerente à imobilização e privação do uso da sua viatura, à razão diária de 20,00€, a contar da data do acidente e até à data em que a ré lhe venha a pagar o supra referido valor de 3.500,00€, valor que liquidou, até à propositura da ação, na quantia total de 21.760,00€.
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Citada, a ré aceitou a culpa do seu segurado pela eclosão do sinistro, tendo impugnado a factualidade relativa aos danos reclamados, para o que aduziu que a autora só participou o acidente à sua seguradora, tendo a ré aceite, no âmbito da convenção IDS, que os danos sofridos pela autora fossem regularizados pela sua congénere “V... – Companhia de Seguros, S.A.”, do que a autora tomou conhecimento e aceitou, tendo-se a ré considerado desobrigada de proceder a qualquer diligência de apuramento ou regularização dos danos, não mais tendo sido contactada pela autora para pagamento de qualquer indemnização ou atribuição de um veículo de substituição.
Mais alega que à data do acidente era possível adquirir no mercado de usados um veículo igual ao da autora pelo valor de 1.600,00€, pelo que, considerando o valor do respetivo salvado, foi posta à disposição da autora, pela sua congénere, a quantia ajustada aos danos por si sofridos, sendo que, competindo àquela sua congénere a regularização do sinistro, não poderá a ré ser responsabilizada pelo dano derivado da privação do uso, que desconhecia, tratando-se de um dano não indemnizável, dado que, com a perda da viatura, a privação do uso é eterna, inexistindo também o necessário nexo de causalidade entre o não pagamento do valor do veículo e a indemnização assim pretendida.
Ademais, alegou que a autora não sofreu a privação do uso do veículo sinistrado, uma vez que tinha à sua disposição outros veículos, sendo que se lhe impunha que, ao invés de perpetuar o dano, tivesse procedido à substituição do veículo sinistrado, para o que certamente dispunha de condições financeiras, excedendo os limites da boa-fé a sua pretensão de obter uma indemnização por privação do uso que excede mais de 13 vezes o valor comercial do veículo perdido, o que configura abuso de direito, tanto mais que a autora demorou quase três anos a instaurar a presente ação.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida, a final, a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e, em consequência, condeno a ré a proceder ao pagamento à autora da quantia de 1.293,00€, absolvendo a ré do demais peticionado.
Custas pela autora e pela ré, na proporção do seu decaimento, nos termos do disposto no art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à autora..”
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a A. interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

“1. O ponto BB) dos factos dados como provados, comporta matéria conclusiva e que, por via disso, não pode elencar os “factos provados/não provados”.
2. O ponto BB) (parte final) tem carácter meramente conclusivo, porquanto é mencionado que, desde a data do acidente e até hoje a autora:
- teve e tem sob sua plena disponibilidade o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ...;
- tendo, mediante o uso do referido veículo, podido realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.
3. Ou seja, o conteúdo de tal ponto encerra, mais do que afirmações factuais, factos ou juízos de facto, asserções conclusivas/valorativas incidentes sobre questões do litígio, estando em causa expressões que não configurando, em si mesmas, factos materiais, se reconduzem à formulação de juízos conclusivos que antes se deveriam extrair dos factos materiais que os suportam e que se integram no thema decidendum.
4. Aliás, na própria decisão recorrida, o Tribunal menciona que a parte que consta do ponto BB) dos factos provados, configura uma conclusão:
“Ora, perante a referida constatação de que o BB era afinal o veículo de uso habitual do irmão da autora e a constatação de que o ... referido em BB. se manteve sempre registado em nome da autora até 30/12/2019, o tribunal logrou convencer-se que, contra o que a autora e a testemunha seu irmão procuraram fazer crer em julgamento, de facto, foi sempre o veículo ... o veículo de uso pessoal da autora”
5. Assim, o ponto BB) dos “factos provados” deverá ser eliminado, já que “em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum” - Ac. do STJ de 23.09.2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, acessível em www.dgsi.pt.
6. POSTO ISTO, impõe-se, pois, expurgar da matéria de facto dada como provada o ponto BB) (parte final), uma vez que o mesmo encerra exclusivamente matéria de natureza conclusiva, conforme o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
7. Assim, o ponto BB) da factualidade provada deverá passar a ter a seguinte redação “Desde a data do acidente e até 30/12/2019, a autora teve registado em seu nome o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ...
8. Sem prescindir,
9. Na opinião da recorrente o caminho seguindo pelo Tribunal de 1ª Instância, no que à questão controvertida das necessidades de transporte da autora diz respeito, configura uma DECISÃO SURPRESA, porquanto, a solução alcançada pelo Tribunal, não se afigurava previsível, nem tampouco foi configurada por qualquer uma das partes no processo.
10. A decisão surpresa configura uma violação do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
11. Conforme bem referiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-12-2019, processo 14227/19.8T8PRT.P1, que teve como relatora a Ex.ma Sra. Dra. Desembargadora Eugénia Cunha, disponível em www.dgsi.pt, referiu que: “(...) Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa[3]. A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade (…). Há decisão surpresa se o juiz de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[9], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade (…).
12. Ora, descendo ao caso concreto constatamos que foi exatamente uma decisão surpresa que o Tribunal a quo proferiu, quanto à fundamentação tida em conta para dar como provado a parte final do facto BB) “e, desde a data do acidente e até hoje, a autora teve e tem sob sua plena disponibilidade o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ..., tendo, mediante o uso do referido veículo, podido realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.”
Vejamos,
13. Na douta motivação do Tribunal a quo, é visível que alcançou a sua convicção e raciocínio lógico, no que à parte final do facto provado BB) diz respeito, no seguinte: “(...) As necessidades de transporte da autora (factualidade constante de P.) foram em uníssono declaradas pela própria e pelas testemunhas CC e DD, de forma não contrariada por qualquer prova produzida pela ré, não se tendo o tribunal, contudo, convencido que, à data do acidente, essas necessidades de transporte fossem supridas com o veículo ST, que se perdeu com o acidente, tal como o declararam as testemunhas arroladas pela autora, uma vez que tais declarações acabaram por ser frontalmente contrariadas pela prova objetiva carreada para os autos. Desde logo, dos dizeres dos emails que a autora endereçou à sua seguradora resulta evidenciado que o veículo sinistrado nos autos, apesar de registado em nome da autora, seria afinal utilizado normalmente pelo seu irmão, nas suas deslocações para o trabalho (veja-se o email de fls. 12 onde a autora menciona “o meu irmão não tem viatura de momento para se deslocar para o trabalho, ..., daí pedir urgência na resolução deste processo”), sendo que foi exatamente quando o veículo seguia sob condução do dito irmão da autora que veio a dar-se o acidente (vide participação amigável de fls. 37 verso) e foi exatamente em nome do seu irmão que vieram a ser emitidas as faturas de deslocação em táxi de que a autora procurou ser reembolsada junto da sua seguradora pela privação do uso daquele veículo (vide fls. 214 verso e 216), o que inculcou no tribunal a firme convicção de que, contra o por estes declarado, e o também declarado pela testemunha CC, amiga da autora, era afinal o veículo ... aquele que a referida testemunha DD utilizava habitualmente nas suas deslocações, e não o ..., pois que de outra forma não se compreende o teor das declarações que a autora fez constar dos ditos emails.”
14. Ou seja, a douta sentença sob censura, concluiu que o veículo alvo dos presentes autos não era usado pela autora nas suas deslocações, mas antes sim pelo irmão desta!
15. Sucede que tal questão não foi levada à decisão do Tribunal a quo, nem a autora, nem a ré, em nenhum dos seus articulados, ou intervenção aventou a solução alcançada pelo Tribunal.
16. A ré alegou que a autora não sofreu privação do uso, porquanto, tinha à sua disposição outros veículos e que dispunha de condições financeiras para adquirir outro veículo.
17. Assim, dúvidas não podem restar de que a conclusão que o Tribunal alcançou não era do conhecimento de nenhuma das partes nos presentes autos.
18. Andou mal o Tribunal quando concluiu que - do “email de fls. 12 onde a autora menciona “o meu irmão não tem viatura de momento para se deslocar para o trabalho, ..., daí pedir urgência na resolução deste processo”)” e das faturas de deslocação em táxi se encontrarem em nome do irmão da autora – “inculcou no tribunal a firme convicção de que, contra o por estes declarado, e o também declarado pela testemunha CC, amiga da autora, era afinal o veículo ... aquele que a referida testemunha DD utilizava habitualmente na suas deslocações, e não o ..., pois que de outra forma não se compreende o teor das declarações que a autora fez constar dos ditos emails.”, sem dar a conhecer tais “novos” factos às partes e ausculta-las quanto aos mesmos, porquanto, a verdade é que existe outra explicação para esses factos.
19. A ré notificada da participação do acidente (aquando da citação), bem como das faturas de deslocação de táxi em nome do irmão da autora, não conjeturou a possibilidade de ser o irmão da autora quem, na verdade, habitualmente, utilizava, nas suas deslocações, o veículo ST.
20. Posto isto, dúvidas não podem haver de que a solução alcançada pelo julgador, da decisão em escortino, não foi submetida pelas partes a juízo, aliás, nem os fundamentos explanados pelo Tribunal foram previamente analisados pelas partes.
21. Termos em que, deve este Tribunal superior usar os seus poderes de censura e determinar que o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório e proferiu decisão surpresa, quando considerou o que lhe parecia obvio, sem dar a palavra à autora, ora recorrente.
22. Assim, não tendo o Tribunal a quo dado a possibilidade de conhecer e se pronunciar sobre a nova questão de ser o irmão da autora, quem, habitualmente, usava, nas suas deslocações, o veículo ST, violou o direito ao contraditório da recorrente, uma vez que tal questão influiu decisivamente no exame e decisão da causa, o que constitui uma nulidade processual, nos termos no artigo 195.º do Código de Processo Civil.
23. Na mui opinião da ora recorrente tendo em conta a factualidade provada não é possível, sem mais, decidir, como o Tribunal decidiu, quanto à privação do uso da autora, ora recorrente.
24. No que à privação do uso diz respeito, a douta sentença deu como provado o ponto P) “A autora reside a cerca de 15km do seu local de trabalho e tem um filho menor – à data do acidente com poucos meses de vida -, que necessita de transportar para o colégio, atividades extracurriculares, consultas, etc..”
25. E o ponto BB) “Desde a data do acidente e até 30/12/2019, a autora teve registado em seu nome o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ..., e, desde a data do acidente e até hoje, a autora teve e tem sob sua plena disponibilidade o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ..., tendo, mediante o uso do referido veículo, podido realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.”
26. Assim, o ponto BB) deixa claro que na opinião do Tribunal a quo, as necessidades de deslocação da autora, desde a data do acidente e até hoje, se realizam através do veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ....
27. Porém, analisada a motivação, ou seja, o raciocínio logico e convicção do julgador, que o levaram a dar tal facto como provado, constatamos que afinal a solução alcançada pelo tribunal, não se compadece, tão só, com a factualidade provada, in casu apenas facto BB).
28. Pois bem,
29. A decisão do Tribunal a quo, de que a autora, fruto do sinistro do veículo ST, não padeceu de privação do uso, não teve na sua essência o facto de a mesma, ter registado em seu nome o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ... (ou pelo menos não só este),
30. mas sim, no facto de autora ter dito, no seu e-mail de participação do sinistro, que “o meu irmão não tem viatura de momento para se deslocar para o trabalho, ..., daí pedir urgência na resolução deste processo”, bem como, no facto de as faturas de deslocação de táxi terem sido emitidas em nome do irmão da autora.
31. Sucede que tais factos não constam da matéria factual, o que configura uma omissão na fundamentação de facto da sentença recorrida (isto é, nem integram o seu elenco de factos provados, nem de factos não provados).
32. Porém, contrariamente ao que se esperava do Tribunal, tais factos, são os únicos que mereceram motivação, bem como sobre os quais o Tribunal cuidou em explicar as razões de fundo e raciocínio seguido, de forma a explicar as conclusões que o Tribunal tirou desses factos e os motivos pelos quais decidiu como decidiu.
33. Posto isto, e tendo por base os factos acima transcritos, o tribunal concluiu que o veículo sinistrado era utilizado, habitualmente, pelo irmão da autora e, assim sendo, concluiu também que foi sempre o veículo ..., o veículo de uso pessoal da autora.
34. Logo, tendo o Tribunal a quo decidido como decidiu e verificando-se a omissão na fundamentação de facto da sentença recorrida, relativa aos factos acima mencionados, impõe-se a este Tribunal superior a anulação da decisão proferida pela 1.a Instância, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil.
35. Na opinião da recorrente a sentença em crise encontra-se em ERRO DE JULGAMENTO, uma vez que atenta a matéria factual fixada e a prova produzida, existem erros consubstanciados numa má e/ou errada avaliação das provas obtidas que conduzem a uma deficiente apreciação da matéria de facto.
36. Na mui opinião da ora recorrente, o Tribunal a quo NÃO PODERIA TER DADO COMO PROVADO que:
37. Ponto Z) da factualidade dada como provada “À data do acidente, era possível à autora, ou a qualquer outra pessoa, adquirir no mercado de usados um veículo igual ao referido em X., e no mesmo estado de conservação, pelo valor de 1.600,00€.”
38. A ora recorrente não pode aceitar, que o Tribunal recorrido não tenha dado grande valor probatório, ao depoimento da testemunha EE – mecânico habitual da viatura sinistrada, há vários anos –.
39. Ora, tendo em conta que a testemunha referiu que era o mecânico da viatura sinistrada há 7/8 anos, que a autora efetuava todas as reparações de mecânica necessárias, que também se preocupava com o estado geral do veículo, concretamente a nível de estofador e outros, impunha-se ao Tribunal analisar tal depoimento como bastante relevante para a questão controvertida.
40. Mais referiu que o veículo estava num excelente estado de conservação.
41. Quanto ao ano do veículo e quilometragem, a testemunha referiu que tal veículo seria de 2003/2004 e que teria percorrido cerca de 200 a 250 mil km...
42. Ora, sendo o veículo em causa do ano de dezembro de 2001 e apresentando uma quilometragem de 334km, não nos parece aceitável o Tribunal, fruto dessas diferenças, ter considerado tal depoimento impreciso e que a testemunha não teria conhecimentos bastantes para avaliar o veículo.
43. O Tribunal parece-se esquecer, que tal depoimento foi prestado mais de 4 (quatro) anos após a ocorrência do acidente e, num carro de mais de 20 (vinte anos), a testemunha “errar” o ano do veículo, por uma diferença de 2 (dois) anos, não nos parece o bastante para o Tribunal inviabilizar a validade probatória de tal depoimento.
44. Aliás, a testemunha declarou recordar-se que à data do acidente, um cliente seu comprou um veículo similar por quatro mil euros.
45. Mas o Tribunal não teve em conta tal depoimento e decidiu “esquecer” o mencionado pela testemunha.
46. Porém, estranhamente ao que seria espectável o Tribunal convenceu-se da justeza do valor do veículo sinistrado, com base no declarado pela testemunhas FF e GG, os quais, por sinal, são os peritos avaliadores contratados pela companhia de seguros O....
47. Ou seja,
48. O Tribunal preferiu acreditar na “palavra” dos peritos destacados pela seguradora, que mediou o acidente, e que avaliaram o veículo à data do sinistro (os quais na opinião da recorrente, serão sempre parte interessada em manter o valor do veículo, atribuído à data do sinistro, sob pena de a seguradora considerar que efetuaram um mau trabalho e perderem a “cliente”, pois recorde, tais peritos – ou empresa – são constatados “à peça”), em preterição, da avaliação da ... (no valor de €1.700,00 a 2.000,00€) que foi solicitada pelo próprio Tribunal, os quais são representantes oficiais da marca do veículo sinistrado (...) e que nenhum interesse detêm nesta causa.
49. Aliás, os próprios peritos mencionam ter recorrido à ..., mas “estranhamente”, na “palavra” dos mesmos, em 2018 a ... avaliou o veículo, abaixo do valor que à data de hoje apresentaram.
50. A recorrente lamenta o facto de o Tribunal não aplicar os mesmos critérios de apreciação das provas, porquanto, quanto à testemunha arrolada pela autora, EE, o facto de o mesmo ter referido que o veículo datava de 2003/2004, quando o mesmo é de DEZEMBRO de 2001 é valorado, pelo Tribunal, como uma testemunha “incapaz de enunciar as características do veículo da autora”,
51. mas quando os peritos, indicados pela seguradora O..., atribuem um valor de €1.600,00 ao veículo sinistrado e a ... apresenta uma avaliação situada entre €1.700,00 e €2.000,00, para o Tribunal a quo, tal valor é próximo do valor indicado pelos peritos!??
52. Ora, é facto que de €1.600,00 a €2.000,00 a diferença são “apenas” €400,00.
53. Porém, para um veículo com valor de mercado de, supostamente, €1.600,00, um aumento para €2.000,00 (valor que o Tribunal tinha que conjeturar ser possível, pois duvidas não há que o estado do veículo da autora era irrepreensível), implica uma valorização de mais de 20%!!
54. Ademais pelo depoimento do perito da seguradora - FF -, fica claro que, como a testemunha diversas vezes repetiu, a avaliação da marca do carro, in casu ..., é importante e credível, bem como que o valor atribuído pelo perito, varia de perito para perito!!
55. Posto isto, andou mal o Tribunal a quo quando, dentro do seu poder de livre apreciação das provas, decidiu “acreditar”, que o perito contratado para avaliar o veículo da autora, - o qual declarou que a sua avaliação assenta essencialmente nas pesquisas on-line que faz de preços de veículos, bem como que a sua seleção do valor, depende dos critérios particulares que tem, porquanto, das centenas de carros com as mesmas características, que lhe surgem, tem de optar por um valor -, fez um melhor trabalho com maior justeza, do que a avaliação da ... que mais não é do que a marca oficial do veículo sinistrado, e que nenhuma intervenção teve nos presentes autos!
56. Por conseguinte, o ponto Z) da factualidade dada como provada, deve ser dado como NÃO PROVADO.
57. Nesse sentido e tendo por base o estado do veículo da autora e a avaliação da ... (fls. 194), deve ser dado como provado que:
58. - “À data do acidente o veículo sinistrado, apresentava-se em bom estado de conservação” (como aliás na motivação o Tribunal reconhece;
59. - “A ... apresentou avaliação de um veículo com as mesmas características do veículo sinistrado, concretamente, ano, quilometragem e reportada ao ano do sinistro (2018), na qual atribuiu o valor de €1.700,00 a €2.000,00.”
60. - “À data do acidente, era possível à autora, ou a qualquer outra pessoa, adquirir no mercado de usados um veículo igual ao referido em X., e no mesmo estado de conservação, pelo valor de 1.900,00€”
Dando provimento ao presente recurso, farão V.as Ex.as a acostumada JUSTIÇA”.
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A ré/recorrida veio Responder ao recurso interposto, pugnando pela sua improcedência, com a manutenção da decisão recorrida.
Defende ainda a inadmissibilidade do recurso da Matéria de facto.
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II - OBJETO DO RECURSO

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:

- A de saber se existe nulidade processual por violação do princípio do Contraditório; e
- Se é de admitir o recurso da Matéria de Facto.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

Foram dados como provados na primeira instância os seguintes factos:

“A. A Autora celebrou com a sociedade V... - Companhia de Seguros, S.A., vulgo O..., um contrato de seguro sobre o veículo, da propriedade da autora, com a matrícula ..-..-ST, contrato esse que deu origem à apólice n.º ...54, no qual, a primeira transferiu para a segunda a obrigatoriedade de responsabilidade civil pela circulação do referido veículo.
B. No dia 23 de novembro de 2018, pelas 08h00, o veículo ST encontrava-se estacionado junto à estrada nacional N..1, concretamente na Rua ... na cidade ... e foi abalroado pelo veículo com matrícula ..-..-PQ, de marca ..., o qual se despistou e embateu diretamente no veículo da Autora.
C. O veículo PQ tinha transferida a responsabilidade derivada da sua circulação para a ré, através da apólice ...32.
D. Em resultado do acidente, como sua consequência direta e necessária, o veículo propriedade da autora sofreu diversos estragos, os quais impediram a sua reparação.
E. O acidente foi participado pela autora à sua seguradora no próprio dia em que ocorreu o sinistro, tendo tal participação dado origem ao processo n.º ...01.
F. A autora solicitou um veículo de substituição à O....
G. O veículo da autora foi alvo de peritagem no dia 27 de novembro de 2018.
H. Todas as comunicações sobre o sinistro em crise na presente ação foram realizadas pela autora e a sua seguradora – O... - ao abrigo do protocolo entre seguradoras - IDS – Indemnização Direta ao Segurado.
I. No dia 3 de dezembro de 2018, a seguradora da autora informou-a da proposta de perda total, na qual mencionou o seguinte: “Exma Senhora, Na sequência do contato telefónico com V. Exa. e no seguimento da peritagem efetuada ao veículo acima indicado, concluíram os nossos serviços técnicos (G...–Gestão de Peritagens, S.A.), que face aos danos estimados em € 2470,11, e em conformidade com o disposto no n.º 1 do Art. 41º do Dec. Lei 291/2007 de 21 de Agosto, se impõe a respetiva regularização como perda total. Entende-se que, um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, quando se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapasse 100% ou 120 % do valor venal do veículo imediatamente antes do sinistro, consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de 2 anos - alínea c) do nº 1 do Art.41º do citado Dec. Lei 291/2007. O valor do veículo vulgarmente conhecido por “Valor Venal” resultou, quer da consulta ao mercado da especialidade, quer das consultas às tabelas de desvalorização em uso nesta Seguradora onde se estabelece em € 1.600,00. Esclarecemos ainda que, a melhor proposta para a aquisição do salvado válida até 26-01-2019 foi de € 457, e apresentada por U... Lda, com morada em ... Julho ... Piso 2 - ... ..., Tel.: ...04, podendo V. Exa transacionar o salvado diretamente com esta entidade. Neste contexto, nos termos e para os efeitos previstos no Art.38º do DL 291/2007, colocamos à disposição de V. Exa o montante de € 1.143,00, já deduzido do valor do salvado, que se mantém na posse do seu proprietário. (...)”
J. A autora apresentou resposta, no dia 12 de dezembro de 2018, através da missiva de fls. 14 verso e 15, cujo teor aqui se dá por reproduzido, no qual constam, ademais, os seguintes dizeres: “(…) Sucede que não posso aceitar tal proposta pelo facto do meu veículo ter um valor de mercado (venal) bastante superior ao acima mencionado por V.as Ex.as, uma vez que o meu carro, não obstante a sua utilização e tempo, encontrava-se em extremo bom estado, tendo inclusive há pouco tempo sofrido uma revisão geral onde substituí diversas peças de forma a manter o seu excelente funcionamento. (…) Por isso, o veículo em apreço teria um valor de mercado de €3.500,00€. (…)”
K. Em 28/12/2018, a V..., Companhia de Seguros, S.A., reiterou a proposta e voltou a colocar à disposição da autora a quantia de 1.143,00€.
L. Mais uma vez, a autora rejeitou essa proposta, recusando-se a receber o valor de 1.143,00€ que lhe foi oferecido, não tendo remetido àquela seguradora os documentos necessários ao pagamento da indemnização.
M. Em 15 de maio de 2019, a autora entregou o seu veículo para destruição.
N. A O..., em nenhuma das respostas apresentadas à autora, apresentou qualquer veículo com as mesmas características do sinistrado, que estivesse no mercado pelo preço de €1.600,00.
O. Os danos que a viatura da Autora sofreu, em consequência do choque, impossibilitaram a sua circulação desde a data do acidente.
P. A autora reside a cerca de 15 km do seu local de trabalho e tem um filho menor – à data do acidente com poucos meses de vida -, que necessita de transportar para o colégio, atividades extracurriculares, consultas, etc..
Q. Quer a ré, quer a V... - Companhia de Seguros, S.A., eram, à data do acidente, como são ainda hoje, aderentes da “Convenção de Regularização de Sinistros”, que incluía um Protocolo de Indemnização Direta ao Segurado, o qual se regia pelo clausulado junto a fls. 38 a 75, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
R. A ré teve conhecimento da ocorrência do acidente no dia 27/11/2018, através de reclamação que lhe foi nessa data dirigida pela V...- Companhia de Seguros, SA, no âmbito do protocolo referido em Q..
S. A autora só participou a ocorrência do sinistro à sua seguradora – a V... Companhia de Seguros, S.A., mas não à ré, tendo-lhe remetido declaração amigável de acidente de viação para que aquela desse início ao processo de regularização do sinistro.
T. A ré aceitou a responsabilidade da sua segurada e ainda que a regularização dos danos sofridos pela autora fosse efetuada, diretamente, pela V...- Companhia de Seguros, S.A., que ficou encarregada de proceder à regularização dos danos sofridos pela autora, bem como às diligências tendentes ao seu apuramento.
U. A autora tomou conhecimento, logo após o sinistro, de que a regularização dos seus danos tinha ficado a cargo da V...- Companhia de Seguros, SA e aceitou, pelo menos numa fase inicial, que fosse esta seguradora a efetuá-la.
V. Desde a data do sinistro até à data em que foi citada para os termos desta ação, a ré não teve qualquer intervenção no processo de regularização do sinistro, ou de avaliação de danos, nunca tendo sido contactada pela autora, nem esta lhe solicitou o pagamento de qualquer indemnização ou a realização de peritagem ao veículo ST, nem a informou que se encontrava privada da utilização do seu veículo, nem lhe solicitou a atribuição de um veículo que substituísse o ST.
W. O custo da reparação dos danos que o ST sofreu em consequência do acidente foi orçamentada pelos serviços técnicos da V...- Companhia de Seguros, S.A., por estimativa, em 2.470,11€.
X. O veículo com a matrícula ..-..-ST era de marca ..., modelo ..., com motor a gasóleo de 1461 cm3, 65 cavalos de potência, tinha tido a sua primeira matrícula do ano 12/2001, dispunha de dois lugares e três portas.
Y. À data do acidente, esse veículo já tinha percorrido 334.399 km.
Z. À data do acidente, era possível à autora, ou a qualquer outra pessoa, adquirir no mercado de usados um veículo igual ao referido em X., e no mesmo estado de conservação, pelo valor de 1.600,00€.
AA. Os salvados do ST valiam, à data do acidente, pelo menos, 457,00€.
BB. Desde a data do acidente e até 30/12/2019, a autora teve registado em seu nome o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ..., e, desde a data do acidente e até hoje, a autora teve e tem sob sua plena disponibilidade o veículo com a matrícula ..-LG-.., de marca ..., modelo ..., tendo, mediante o uso do referido veículo, podido realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia…”.

E foram dados como não provados os seguintes:

“1. O custo para aquisição de um veículo similar ao ST e que cumpra as mesmas funções cifrava-se, à data do acidente, em €3.500,00.
2. Desde a data do acidente e até hoje, a autora teve sob sua disponibilidade e utilizou, pelo menos, os seguintes veículos:
• entre 08-02-2019 e 10-11-2019, a autora utilizou e teve sob a sua disponibilidade o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-FQ, de marca ..., modelo ...00;
• entre 23-04-2019 e 06-05-2020, a autora utilizou e teve sob a sua disponibilidade o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-ZS, de marca ..., modelo ....
3. Mediante o uso dos veículos referidos em 2., a autora pôde realizar, como realizou e realiza ainda hoje, desde a data do acidente, todas as deslocações inerentes ao seu dia-a-dia.
4. A autora dispunha de condições financeiras suficientes para proceder à substituição do ST por outro veículo que lhe propiciasse idênticas utilidades ou outro de valor inferior.”
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Da invocada nulidade processual:

Alega a recorrente que o caminho seguindo pelo Tribunal da 1ª Instância, no que à questão controvertida das necessidades de transporte da autora diz respeito, configura uma DECISÃO SURPRESA, porquanto a solução alcançada pelo Tribunal não se afigurava previsível nem tampouco foi configurada por qualquer uma das partes no processo, pelo que a mesma configura uma violação do princípio do contraditório, nos termos do artigo 3.º do Código de Processo Civil.
Assim sendo, e uma vez que tal questão influiu decisivamente no exame e na decisão da causa, a mesma constitui uma nulidade processual nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
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Começamos por dizer que a questão suscitada pela recorrente – da nulidade da decisão proferida, por alegada violação do princípio do contraditório -, convocando para o efeito o disposto no art.º 195º, nº 1 do CPC, o qual prevê que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” – não se enquadra no regime das nulidades processuais (previstas nos artºs 195º e ss. do CPC).
A propósito deste normativo, que no Código de Processo Civil pretérito tinha correspondência no artigo 201º, nº 1 (com a mesma redação hoje consagrada no art.º 195º do atual CPC), anota Lebre de Freitas (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 350), que “A nulidade de acto processual, de que cuida em geral o artigo 201º, distingue-se das nulidades específicas das sentenças e dos despachos (artigos 668-1, alíneas b) a e), e 663-3), bem como do erro material (artigo 667º), da ambiguidade da decisão (artigo 669-a)) e do erro de julgamento (de facto ou de direito). Enquanto estes casos respeitam a vícios de conteúdo, o vício gerador da nulidade do artigo 201º, bem como os que geram as nulidades previstas nos artigos 194º a 200º (…), respeitam à própria existência do acto ou às suas formalidades. Assim também, quando um despacho judicial aprecia a nulidade de um acto processual ou, fora do âmbito da adequação formal do processo, admite a prática dum acto que não podia ter lugar, ordena a prática dum acto inadmissível ou se pronuncia no sentido de não dever ser praticado certo acto prescrito por lei, a questão deixa de ter o tratamento das nulidades para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção passar a ser coberta pela decisão, expressa ou implicitamente, proferida, ficando esgotado, quanto a ela o poder jurisdicional (artigo 666-1). É o que usa ser traduzido com o aforismo “das nulidades reclama-se; dos despachos recorre-se”.
No mesmo sentido se pronunciava já, há muito, o Prof. José Alberto dos Reis, no seu Comentário ao Código de Processo Civil (Vol. II, pág. 507), onde pode ler-se o seguinte trecho: “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na  hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo”.
Dito isto, na situação presente, embora a recorrente invoque a nulidade processual, não retira da sua invocação qualquer consequência legal, inserindo o vício assinalado no âmbito da impugnação da matéria de facto, pretendendo no fundo ver revogada ou revertida por este tribunal de recurso a decisão que o tribunal recorrido proferiu quanto à alínea BB) da matéria de facto, porque alegadamente terá feito uso, na motivação daquele facto, para dar o mesmo como provado, de uma fundamentação relacionada com emails trocados entre a A e a seguradora, sem ter dado à recorrente a oportunidade de sobre ela se pronunciar, o que constitui, na otica da recorrente, uma decisão surpresa.
Não podemos esquecer no entanto que quanto à concreta questão sobre que incidiu aquela decisão se esgotou o poder jurisdicional do tribunal, pelo que, a acolherem-se os argumentos da recorrente, do que se trata é de erro de julgamento (da matéria de facto) e não de nulidade processual enquadrável no regime das nulidades.
Por isso a via a seguir para reverter tal decisão seria, necessariamente, a da sua impugnação através do competente recurso para este tribunal superior – o que a A, aliás, fez também.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar não verificada a invocada nulidade processual, a qual será apreciada em sede própria, que é a da impugnação da matéria de facto, designadamente da alínea BB) da matéria de facto provada (caso o recurso da mesma venha a ser admitido).
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Da admissibilidade do recurso da Matéria de facto:

Na sua Resposta ao recurso interposto pela A alega a Ré/recorrida que “como vem sendo unanimemente entendido pela nossa jurisprudência, a reapreciação da decisão proferida quanto à matéria de facto só deve ter lugar se for, de alguma forma, consequente para a apreciação das questões suscitadas no recurso. Isso mesmo se decidiu, entre muitos outros, no douto Ac. do TR de Lisboa de 26/09/2019, proferido no processo 144/15.4T8MTJ.L1-2, no qual se lê que “Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).” Por outro lado, é indiscutível que são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, como se decidiu, entre muitos outros, no douto acórdão do STJ de 06/06/2018, no processo 4691/16.2T8LSB.L1.S1, no qual se lê o seguinte: “São as conclusões que delimitam o objeto do recurso, não podendo o Tribunal “ad quem” conhecer de questão que delas não conste”. Ora, a primeira constatação a fazer depois da leitura das doutas alegações de recurso apresentadas pela Autora é a de que, para além da nulidade da douta sentença, esta pretende, tão só, a alteração da decisão proferida quanto a dois factos (BB) e Z) dos factos provados), sem que disso retire a mais pequena consequência jurídica. Efetivamente, ao longo das 32 páginas das doutas alegações de recurso e, seguramente, nas respetivas conclusões, a Autora não refere em que medida a alteração da decisão proferida quanto a estes factos teria implicações na decisão de direito proferida na douta sentença, ou, tão pouco, em que medida deveria ser modificada. Face ao exposto, salvo melhor opinião, sendo o recurso balizado pelas suas conclusões e não tendo a Autora suscitado a questão do erro da decisão de direito proferida, estará vedado ao Tribunal Superior retirar qualquer consequência jurídica da eventual procedência da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto. E, portanto, não podendo o Tribunal conhecer de questões que não tenham sido suscitadas nas alegações de recurso (e suas conclusões), não deve ser atendida, por ser irrelevante, a pretensão da recorrente de ver reapreciada a decisão proferida quanto à matéria de facto. O que impõe a improcedência do recurso e a confirmação da douta sentença…”.
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E temos de dar razão à recorrida.

Como é por demais sabido, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 640.º do CPC, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram "incorretamente julgados".
Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa então concluir que, afinal, existe um direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro direito cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a uma decisão diferente da anteriormente alcançada.
No fundo, o efetivo objetivo da impugnação da matéria de facto é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante, designadamente a procedência ou a improcedência da ação (cfr. neste sentido Acs. RL de 14-3-2013 e de 26/09/2019; da RC de 6-3-2012  e de 24-4-2012; da RP de 17-3-2014; e desta RG, de 15-9-2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
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Esta realidade tem também de ser compaginada com uma outra, a que a parte tem de obedecer em termos formais, que é a de formular conclusões, sendo elas que balizam a sua pretensão recursória, e não podendo o tribunal de recurso ir além do que é formulado em termos de pedido nas conclusões de recurso.
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida). Como se refere no art.º 637º nºs 1 e 2 do CPC, “Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão (…) o qual contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade…”
Também no art.º 635º do CPC, no que respeita à delimitação objetiva do recurso se estipula que “Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que se recorre. Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente o objeto inicial do recurso”.
Efetivamente, muito embora na falta de especificação, logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635º nº 2 do CPC), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art.º 635º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões; têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Como tem sido defendido de forma unânime, quer na doutrina, quer na jurisprudência, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando ius novarum, isto é, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ora, como se disse, não basta que o recorrente alegue; ao ónus de alegar, acresce-lhe o ónus de concluir (art.º 639º nº1 do CPC), pois que, como defende José Alberto dos Reis (“Código do Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 359), “…exercendo os recursos a função de impugnação das decisões judiciais, não fazia sentido que o recorrente não expusesse ao tribunal superior as razões da sua impugnação, a fim de que o tribunal aprecie se tais razões procedem ou não…”
Satisfaz-se assim o ónus de concluir pela indicação, resumidamente, dos fundamentos por que se pede a alteração da decisão, ou seja, pela enunciação abreviada dos fundamentos do recurso.
Em síntese, a interposição de um recurso em processo civil sujeita o recorrente a dois ónus: o de apresentar a sua alegação de recurso, pelo qual deverá expor de modo circunstanciado as razões de facto e de direito da sua divergência relativamente ao julgado; e o de finalizar essa peça, com a formulação de conclusões, contendo a indicação resumida dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
As especificações que a lei manda alinhar nas conclusões têm assim a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso, circunscrevendo o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento. Assim sendo, devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com o que foi decidido pelo tribunal a quo, incluindo, na parte final, aquilo que o recorrente efetivamente pretende obter – revogação, anulação ou modificação da decisão recorrida.
Como pondera Abrantes Geraldes (“Recursos em Processo Civil”, 7ª edição atualizada, Almedina, 2022) “as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com os argumentos de ordem jurisprudencial ou doutrinário, que não devem ultrapassar o setor da motivação”.
Ou como de forma redundante afirma João Aveiro Pereira (“O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, página 3, em www.trl.mj.pt.), “As conclusões assumem-se, portanto, como as ilações ou deduções lógicas terminais de um ou vários argumentos ou proposições parcelares, finalizando um raciocínio”.
Em termos práticos, traduzindo as conclusões uma síntese do objeto do recurso, é incontroverso que as mesmas se destinam a facilitar o trabalho do tribunal de recurso, ao permitir-lhe analisar, nessa condensação, quais as concretas questões em relação às quais o recorrente manifesta o seu inconformismo e que, por isso, impugna, ou seja, quais as questões em relação às quais sustenta ter ocorrido omissão de pronúncia; quais as concretas razões jurídicas pelas quais o recorrente entende ter o tribunal a quo incorrido em erro de direito ao decidi-las em determinado sentido, quando se impunha que as tivesse decidido noutro; ou eventualmente quais propugna pela declaração da sua nulidade.
Para além desta função de síntese e de consequente facilitação do trabalho do tribunal ad quem, as conclusões desempenham um outro papel, o qual, aliás, constitui, a nosso ver, o seu papel fundamental e primordial, que é a sua função delimitadora do objeto do recurso.
Com efeito, podendo o recorrente, nas conclusões da alegação restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso (art.º 635º, n.º 4 do CPC), é indiscutível que é pelas conclusões que resulta definido o objeto do recurso, do que deriva que as questões decididas na decisão recorrida mas que não constam das conclusões, não fazem parte do objeto do recurso, não podendo o tribunal ad quem, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia, delas conhecer, exceto se as mesmas forem do conhecimento oficioso do tribunal de recurso. Essas questões decididas e não impugnadas em sede de conclusões encontram-se definitivamente decididas, operando quanto às mesmas caso julgado.
As conclusões delimitam, assim, a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação. Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal de recurso (Ac. do STJ de 18/6/2013, www.dgsi.pt.).
Como ensina o Conselheiro Amâncio Ferreira (“Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª edição, págs. 172 e 173), “Expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão”. E acrescenta: “se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objecto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões” (negrito nosso).
Fazendo agora a ligação desta função (delimitadora) das Conclusões de recurso com a Impugnação da Matéria de facto, conclui-se que não há lugar à reapreciação da matéria de facto – ou de algum ponto impugnado dessa matéria -, quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica em termos de alteração (revogação ou simplesmente modificação) da decisão jurídica proferida pelo tribunal recorrido, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente e que, por isso mesmo, colide com os princípios da celeridade, da limitação dos atos, e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 130.º e 131.º do CPC (Acs. da RC de 24.04.2012 (acima já citado), e de 14.01.2014 e de 27.05.2014,  todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Vigora aqui plenamente o princípio de que a Impugnação da decisão da matéria de facto não se justifica de per si, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face àquela.
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Ora, no caso em apreço, a recorrente, referindo embora que interpõe recurso sobre a matéria de facto, expondo as razões da sua discordância quanto à decisão proferida sobre aquela matéria e concluindo pela sua alteração, não retira dessa alteração qualquer consequência prática, ou seja, não formula, a final, qualquer pedido a este tribunal, nomeadamente no sentido de pretender alterar a decisão jurídica proferida com base na alteração que pretende ver efetuada à matéria de facto que impugna, ficando este tribunal de recurso impedido de ir além do que vem invocado.
Do que se trata, no fundo, é de um caso semelhante à ausência de conclusões – enquanto indicação sintética e conclusiva das questões colocadas pelo recorrente ao tribunal de recurso, e nas quais se determina, de forma clara, aquilo que o recorrente efetivamente pretende obter do tribunal de recurso: a revogação, a anulação ou a modificação da decisão recorrida, definindo ainda, também de forma clara, qual o sentido que na sua ótica o tribunal de recurso deve seguir.
Ora, a ausência de conclusões leva a que o recurso não possa ser conhecido por falta de objeto, ou pela existência de circunstancialismo prejudicial a um julgamento de mérito (Cardona Ferreira, “Guia dos Recursos em Processo Civil”, 5ª ed., Coimbra Editora, pág. 163).
Em razão de todo o exposto, a Impugnação da matéria de facto pretendia pela recorrente não deve ser apreciada, impondo-se a rejeição do recurso quanto à mesma, com a manutenção da decisão recorrida (que a recorrente não põe em causa em termos de decisão de mérito).
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IV- DECISÃO:

Pelo exposto, Julga-se Improcedente o recurso interposto.
Custas (da Apelação) pela recorrente (art.º 527º nº1 do CPC).
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Guimarães, 2.3.2023