Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
423/13.5TBAMR-B.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LETRA
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Não se encontra prescrita a acção cambiária contra o avalista, constando na livrança dada a execução a data de vencimento de 22.04.2013 e tendo a acção executiva dado entrada em 19.07.2013.
II - Não se encontrando prescrita a acção cambiária com base no título de crédito, não está o exequente obrigado a concretizar no requerimento executivo a relação subjacente à emissão da livrança.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório
J… veio deduzir oposição à execução que o Banco…, SA. lhe instaurou e onde são também executados M…, Lda., S…, S… e M…, alegando inexistência de título executivo com o fundamento de que o mesmo se encontra prescrito (o que, em seu entender a exequente admite) e esta não alegou, como era sua obrigação, a relação causal subjacente à emissão da livrança. Mais invocou a inexistência/nulidade do aval porquanto inexistindo título executivo, o aval prestado não pode subsistir.
O exequente contestou, alegando que a livrança junta é um título de crédito, obedecendo aos requisitos legais para ser considerada como título executivo, não estando dependente da junção ou alegação da existência do contrato que a mesma titula, de onde emerge a relação jurídica subjacente, nem da alegação de factos relativos ao respectivo pacto de preenchimento. Não obstante, juntou cópia do contrato de abertura de conta dinâmica que subjaz à subscrição da livrança.
Foi dispensada a realização de uma audiência preliminar. Foi proferido despacho saneador/sentença que julgou procedente a oposição.
A exequente não se conformou e interpôs o presente recurso, onde ofereceu as seguintes conclusões:
Primeira: A livrança, como título cambiário que é, constitui em si própria um título executivo à luz da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil.
Segunda: Baseando-se a presente execução na livrança exequenda, apresentada com o respectivo requerimento executivo, livrança esta que se encontra preenchida segundo as normas da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, e é exigível segundo esta Lei, a mesma vale como título de crédito, em toda a sua plenitude, e, por isso, contendo em si as características de autonomia, literalidade e abstracção dos títulos de crédito, o que dispensa o exequente, seu legítimo portador, de, ainda que estejamos no domínio das relações imediatas, invocar a relação jurídica subjacente para efeitos de ser validamente instaurada a correspondente execução.
Terceira: No presente caso, o título executivo é, assim, a própria livrança apresentada à execução, e a respectiva causa de pedir da acção executiva instaurada é a obrigação cambiária e cartular emergente da emissão, preenchimento e subscrição da livrança apresentada, e não a relação jurídica subjacente à emissão da mesma livrança, tendo sido aquela obrigação ou relação cambiária plenamente alegada pelo exequente no requerimento executivo apresentado.
Quarta: Só para os casos (entre os quais não se inclui o presente) em que os títulos de crédito não valham como tal, porque, nos termos da respectiva Lei Uniforme, se achem desconformes na sua emissão, eficácia ou exigibilidade (v.g. por estarem prescritos), é que é obrigação do exequente alegar e demonstrar a respectiva relação jurídica subjacente, dado que, neste caso e embora os títulos em causa se mantenham como títulos executivos nos termos da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil (se tiverem ou mantiverem os requisitos previstos nesta norma legal), a causa de pedir não pode assentar ou basear-se na relação jurídica cambiária ou cartular, que validamente não existe, antes devendo ser complementado o título assim apresentado com a alegação dos factos constitutivos da relação causal ou subjacente.
Quinta: Não sendo obrigado, no caso, o exequente e aqui recorrente, a invocar a
relação jurídica subjacente à livrança apresentada à execução, não podia o Meritíssimo Juiz a quo julgar procedente a oposição com base na omissão dessa alegação.
Sexta: Foram violados os artigos 45º e 46º, alínea c), do Código de Processo Civil, e artigo 75º da LULL, entre outros.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e, em sua substituição, proferido acórdão que declare improcedente, por não provada, a oposição à execução apresentada.
A parte contrária contra-alegou e apresentou as seguintes conclusões:
I- A sentença recorrida nenhuma censura merece.
II- O exequente no requerimento executivo refere que o documento apresentado à execução é “um documento particular, assinado pelos respectivos de devedores e que importa a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária de montante determinado- - cfr alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil.”
III- Com efeito, o exequente no seu pedido e causa de pedir enquadra o título de que é possuidor como sendo um documento particular que importaria o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado.
IV- Os executados, perante tal configuração do próprio exequente, aceitaram sem reservas a qualidade atribuída pelo exequente ao documento apresentado à execução.
V- Assim, tendo em conta o manifesto acordo das partes no que à qualificação do documento apresentado pelo exequente na acção executiva diz respeito, tal factualidade terá de ser entendida como assente.
VI- Como facilmente se extrai do requerimento executivo, o exequente não alega qualquer facto passível de integrar qualquer relação causal ou subjacente.
VII- É pacifico que as execuções fundadas em documento particular de confissão de divida é essencial que seja alegada, e não necessariamente provada, atento o artigo 458º do código Civil, a relação causal ou subjacente que justifica qualquer relação obrigacional.
VIII- Outra não poderia ser a decisão do Tribunal a quo, ao entender e bem que foi o próprio exequente que instaurou a acção executiva tendo por base um documento particular de reconhecimento de divida, sendo que nessa circunstância entendeu, igualmente bem, que o exequente não alegou qualquer relação causal ou subjacente.
IX- O que imperativamente retira qualquer força ao titulo executivo, impondo-se a extinção da acção executiva por manifesta falta de titulo executivo.
X- Considerando-se como se considerou que o que o documento apresentado à execução revestia apenas e somente a forma de documento particular de reconhecimento de divida terá igualmente de se concluir pela nulidade o aval alegadamente prestado, o que não concede.
XI- Uma vez que o aval é uma figura intrinsecamente vinculada e dependente das relações cartulares, inexistindo título cambiário inexiste aval.
Nestes termos e nos melhores de Direito deverá a Apelação dos opoentes ser julgada totalmente improcedente por não provada, devendo a sentença recorrida ser mantida e em confirmar-se a decisão recorrida extinguindo-se, assim a instância executiva nos que os recorridos diz respeito, assim se fazendo habitual e inteira

II - Objecto do recurso
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão a decidir é a seguinte: tem ou não o exequente título executivo para a execução.

III – Fundamentação
Mostram-se apurados os seguintes factos com interesse para a decisão do presente recurso:
.O exequente apresentou requerimento executivo, onde, nomeadamente, fez constar o seguinte texto:
" O Banco aqui exequente é legítimo portador da livrança ora junta e aqui dada à execução, da importância de e 14.562,37 (catorze mil quinhentos e sessenta e dois euros e trinta e sete cêntimos), emitida em 20.10.2008 e vencida em 22.04.2013.

Esta livrança foi subscrita pelos representantes legais da sociedade aqui executada M…, LDA, os quais apuseram, nessa sua qualidade, as suas correspectivas assinaturas no rosto dessa mesma livrança, após a correspondente declaração ou promessa de pagamento, com o que ficou aquela sociedade obrigada ao respectivo pagamento, na respectiva data de vencimento. E foi a mesma livrança avalizada pelos aqui demais executados, S…, S…, J… e M… os quais igualmente apuseram as suas correspectivas assinaturas no verso dessa livrança e a seguir à expressão, por eles manuscrita, de "bom para aval", com o que ficaram tais avalistas obrigados ao pagamento da dita livrança, da mesma forma que a entidade por eles afiançada.

Porém, chegada que foi a data de vencimento de tal livrança, e apresentada que foi a mesma a pagamento à sua subscritora e aos avalistas, não veio ela a ser paga por qualquer destes ou por quem quer que seja, total ou parcialmente, e nem sequer em data posterior a esse vencimento e a essa apresentação.

Assim, o Banco aqui exequente é credor das quantias que se deixam melhor discriminadas infra no campo "Liquidação da Obrigação ", quantias essas que, por intermédio da presente execução, se reclamam dos aqui executados, solidariamente.

A livrança aqui dada à execução é título executivo bastante porquanto se apresenta como sendo um documento particular, assinado pelos respectivos devedores e que importa a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária de montante determinado - cfr alínea c) do artigo 46° do Código de Processo Civil".

. Acompanha o requerimento executivo uma livrança onde consta como local e data de emissão 20.10.2008 e como data de vencimento, 22.04.2013, com o valor de 14.562,37 e onde é mencionado “titulação do contrato de crédito conta dinâmica 453668510”.
. É subscritora da livrança a sociedade M…, Lda.
. No verso da mesma debaixo da menção “Bom para aval” consta, entre outras, a assinatura do executado/apelado.
. O requerimento executivo deu entrada em 19 de Julho de 2013.

Do Direito
À execução podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto - art.º 46.°, nº 1, al. c), do anterior CPC (aplicável por força do art.º6.°, n.º3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, tendo em conta a data da instauração da execução).

E, como referem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto[1], a exequibilidade das livranças enquadra-se na alínea c) do n.º 1 do art.º 46.° do CPC. Mas, apesar da livrança ser considerada como documento particular na previsão do art.º 46.°, n.1, al. c), do anterior CPC, não perde a natureza de título cambiário.

Todas as acções contra o avalista relativas a livranças prescrevem em três anos a contar do seu vencimento (artº 70º 1º parágrafo, 32º 1º parágrafo e 77º da LULL). Tendo em conta a data de vencimento da livrança e a data da entrada do requerimento executivo, é manifesto que não ocorreu a prescrição (artº 323/1/2 do CC).
Lido o requerimento executivo, não vislumbramos que a apelante tenha admitido que a acção baseada na livrança estava prescrita, como alegou o apelado na oposição. O que o apelante vem referir é que o título que apresenta à execução se enquadra na alínea c) do nº 1 do artº 46º do CPC (último parágrafo do requerimento executivo), enquadrando devidamente o título executivo livrança numa das alíneas do artº 46º.
E não tendo prescrito, a questão suscitada pelo apelado nem sequer se coloca. A necessidade da referência à relação subjacente apenas se poderia equacionar nesse caso.
Quando o cheque (ou a letra ou a livrança) não valem como títulos cambiários, por a acção com base na relação cartular se encontrar prescrita, discute-se se, não obstante, não continuarão a constituir título executivo, face ao que dispõe a alínea c) do nº 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil.

A resposta não é unânime. A partir da nova redacção dada pela reforma processual de 1995 à al. c) do nº1 do artº 46º do CPC, a jurisprudência hesitou na solução a adoptar sobre a interpretação deste novo preceito.

Para uns, extinta a obrigação cambiária, o título já não pode valer como título executivo. O portador terá que instaurar acção declarativa para ver previamente reconhecido o seu direito e só após instaurar execução, em caso de não pagamento voluntário. Para os defensores deste entendimento as alterações processuais introduzidas pela reforma de 1995 não tiveram por fim alterar o regime consagrado na Lei Uniforme do Cheque ou na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças nem modificar os requisitos de exequibilidade desses títulos[2].

Para outros, considerando que a referida reforma processual ampliou os títulos executivos, extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, estes mantêm a sua natureza de título executivo, enquanto documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo, podendo ser impugnada pelo executado na oposição que vier a deduzir e desde que a obrigação a que se reporta não resulte de um negócio jurídico formal, tendo em consideração o regime de reconhecimento de dívida previsto no artº 458º do CC e a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda[3]. Do disposto do artº 458º do CC resulta uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.

Esta posição é maioritária.

Existe ainda uma outra posição que difere das posições anteriores. Esta diferente posição considera que não é necessário a invocação da relação subjacente nem no título nem no requerimento executivo, baseando-se no artº 458º do CC[4], bastando que o título seja à ordem e nos encontremos no domínio das relações imediatas, pois caso contrário, não se poderá afirmar que o devedor reconheceu uma dívida perante o credor.

No caso, porque não prescreveu a obrigação cambiária, é a relação cartular que fundamenta a execução, não estando o apelante obrigado a fazer constar os factos constitutivos da relação subjacente. Mas ainda que se encontrasse prescrita, a relação subjacente não deixou de ser invocada pelo apelante, conforme se constata pela mera leitura da livrança junta, onde está mencionado que se destina “à titulação do contrato de crédito conta dinâmica 4536685101”, alegação que o apelante completou na contestação à oposição, tendo ainda junto cópia do contrato.

Deve assim ser revogada a decisão recorrida.

Sumário:

. Não se encontra prescrita a acção cambiária contra o avalista, constando na livrança dada a execução a data de vencimento de 22.04.2013 e tendo a acção executiva dado entrada em 19.07.2013.

. Não se encontrando prescrita a acção cambiária com base no título de crédito, não está o exequente obrigado a concretizar no requerimento executivo a relação subjacente à emissão da livrança.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e julgando, consequentemente, improcedente a oposição.

Custas pelo apelado.

Guimarães, 9 de Outubro de 2014

Helena Melo

Heitor Gonçalves

Amílcar Andrade

__________________

[1] Código de Processo Civil Anotado, VoI. l, Coimbra Editora, 1999, p.91.
[2] Acs. de 29.02.00, CJ/STJ 2000, I, 124, de 16.10.01, CJ/STJ 2001, III, 89, de 20.11.03, CJ/STJ 2003, III, 154, Acs. R.P. 25.01.2001, CJ 2001, I, 192 e Ac. R.L. de 26.02.2004 (Pº 1090/2004-8), este acessível na Internet no sítio www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que sejam citados, sem indicação da fonte.
[3] Acs. do STJ de 18.01.01, CJ/STJ 2001, I, 71, de 29.01.02, CJ/STJ 2002, I, 64, de 16.12.04, CJ/STJ 2004, III, 153, e ainda Acs. STJ de 30.10.03 (Pº P03B3056), 19.01.2004 (Pº 03ª3881), e Ac. R.L. de 14.04.2005 (Pº 2070/2005-6); Acs. R.P. de 26.10.2004 (Pº JTRP 00037288) e de 13.02.2007 (Pº JTRP00040049) e Ac. R.C. de 26.06.2007 (Pº 2432/05.9TBPMS.C1), estes últimos acessíveis no citado sítio da Internet.
[4] Ac. STJ de 11.05.1999, CJ/STJ 1999, II, 88, Ac. R.L. de 27.06.2002, CJ 2002, III, 121 e Ac. R.C. de 12.06.2007 (Pº 22/06.8TBSVV.A.C1), Ac. do TRP de 08-07-2004 (proc. 0433578). Neste mesmo sentido se pronunciou António Santos Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, Revista “Themis”, ano IV – Nº 7 (2003), 60-65.