Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
363/14.0TBAVV.G2
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
SENTENÇA LIQUIDANDA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A ação/incidente de liquidação destina-se tão somente a obter a concretização do objeto de condenação obtido na ação liquidanda, com respeito pelo caso julgado por aquela estabelecido, não cabendo na mesma discutir eventual incumprimento da obrigação que se pretende liquidar, já que tal assunto está abrangido pelo caso julgado formado com o trânsito em julgado da sentença liquidanda.
II- Numa liquidação de sentença, o Autor faz da sentença liquidanda o fundamento da segunda ação. Assim, a sentença liquidanda impõe a sua autoridade na ação/incidente de liquidação, impedindo que a primeira decisão seja contraditada pela segunda.
Decisão Texto Integral:
Relatório:

M. G. deduziu o presente incidente de liquidação contra os RR. M. C. e M. S..
Para o efeito alegou, em síntese que, desde 17 de Maio de 2014, por força da conduta dos RR., se encontra impedida de utilizar a água no seu prédio e, consequentemente, de colher os diversos produtos agrícolas que até ali colhia, pelo que se viu na necessidade de os adquirir por compra, para a sua alimentação diária e de se privar do consumo de alguns deles, o que que lhe acarretou um prejuízo patrimonial mensal nunca inferior a 150,00 €.
Alega ainda que, em face da conduta dos RR., sofreu danos de natureza não patrimonial que quantifica em 10.000,00 €.
Finda pedindo a procedência do incidente, devendo ser liquidado o valor de 5.250,00€ a título de danos patrimoniais e de 10.000,00€ a título de danos não patrimoniais, sendo que sobre a primeira quantia acrescem juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa legal desde 24 de Abril de 2017 até integral pagamento.
Notificados os RR. para deduzirem oposição prazo legal, vieram fazê-lo alegando, desde logo, que a A. apenas pode circunscrever o pedido de liquidação de prejuízos aos factos dados como provados na sentença, sendo que desse elenco não consta a factualidade alegada no artigo 2.º da p.i. com o sentido que lhe dá a preposição “desde” e que levou a A. a calcular o período de produção dos danos por si alegados nos artigos 8.º e 9.º em 35 meses ininterruptos correspondentes ao tempo decorrido continuadamente de 17.05.2014 até 24.04.2017.
Impugnou a restante factualidade alegada pela A., pronunciando-se pela improcedência do incidente. Notificada para o efeito pelo Tribunal, a A. veio responder à exceção alegada pelos RR., defendendo a improcedência da mesma.
Dispensada a realização da audiência prévia, o Tribunal decidiu, porque na p.i. não foram alegados, que os danos de natureza não patrimonial não seriam considerados no âmbito do incidente de liquidação em curso. Após, proferiu-se despacho saneador e identificou-se o objeto do litígio e os temas da prova
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Realizou-se o julgamento na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

Na parcial procedência do presente incidente de liquidação, fixo em 500,00 € (quinhentos euros) a indemnização devida pelos RR. M. C. e M. S. à A. M. G. em virtude dos danos patrimoniais decorrentes da factualidade descrita nos pontos 13, 14 e 21 do elenco de factos provados da sentença.”.
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Inconformada veio a Autora recorrer formulando as seguintes conclusões:

1. Tendo a referida sentença transitado em julgado no dia 24 de Abril de 2017, estão os RR. obrigados a pagar uma indemnização à A., pelo menos, pelos danos provocados entre os dias 17 de Maio de 2014 e 24 de Abril de 2017.
2. Pois, como é óbvio, o impedimento de utilização da água persistiu durante o dito período, não se resumindo ao momento em que os atos ilícitos foram praticados pelos RR.
3. E, por isso, é que na presente liquidação se deu como provado que tal situação acarretou para a A. um prejuízo patrimonial mensal nunca inferior a 150,00€.
4. E não se deu como provada a matéria alegada pelos RR. nos artigos 12º (A A. não tem estado privada da aludida água) e 13º (Mantém, ainda hoje, cultivado o seu campo), a qual se reputa de primordial importância para a decisão final.
5. Pois caberia aos RR. repor a situação no seu estado primitivo, isto é, retirar a pedra e o motocultivador, refazer os regos, não desviar a água e destapar o mesmo rego.
6. Matéria que os RR. também não lograram provar, nem sequer alegaram
7. Em suma, a prova de que a A. utilizou normalmente a água durante o dito período caberia aos RR. .
8. Ora, estes não lograram fazer tal prova.
9. Pelo que devem ser condenados na totalidade do pedido formulado.
10. Ao assim não decidir, a sentença recorrida fez errada interpretação do disposto nos artigos 358º do Código de Processo Civil e 566º do Código Civil, violando-os.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exa., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida, substituindo-a por outra que condene os RR. na totalidade do pedido.
Assim se fazendo a costumada J U S T I Ç A.
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Os Réus contra-alegaram pedindo a improcedência do recurso:
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Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. No prédio identificado no ponto 1 do elenco de factos provados da sentença proferida nos autos, a A. colhia pelo menos os seguintes produtos: milho, vinho, batatas, feijão, tomates, alface, cenouras, couves, erva e flores.
2. Produtos que deixou de poder colher, em consequência da falta de água de rega.
3. A A. dedica-se à agricultura, cultivando e colhendo os produtos referidos para consumo próprio.
4. O identificado prédio é o único que possui para tal fim.
5. Ao ver-se privada de tais produtos, a A. viu-se na necessidade de os adquirir por compra, para a sua alimentação diária e de se privar do consumo de alguns deles.
6. O que lhe acarretou um prejuízo patrimonial mensal nunca inferior a 150,00 €.
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Factos não provados:

1. Para além do referido no ponto 3 do elenco de factos provados, a A. colhe e cultiva os produtos identificados no ponto 1 do mesmo elenco também para a alimentação de galinhas que sempre possui.
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Cumpre apreciar e decidir:

Preceitua o art. 619º, nº 1 do C. P. Civil que, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º (conceito de litispendência e caso julgado) e 581º (requisitos da litispendência e caso julgado), sem prejuízo do disposto nos artigos 696ª a 702º (preceitos referentes ao recurso de revisão).

O caso julgado incide não só sobre a decisão e seus fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, incluindo o julgamento das questões invocadas pelo réu como meio de defesa (A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e atualizada, pág. 713) mas também, com o caso julgado preclude o direito de o Réu invocar exceções que poderia ter invocado por serem invocáveis (v. Lebre de Freitas e outros, ob. cit., pág. 683 e Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 713).

Por outro lado, como é sabido, o caso julgado material pode valer, não só como exceção de caso julgado, quando o objeto da ação posterior é idêntico ao objeto da ação antecedente mas também como autoridade de caso julgado, quando o objeto da ação subsequente é dependente do objeto da ação anterior.

Na verdade, o instituto do caso julgado tem dois efeitos, um negativo e um positivo. O primeiro traduz-se na inadmissibilidade duma segunda ação (proibição de repetição: exceção de caso julgado), o segundo consiste na constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado) (v. José Lebre de Freitas e outros, ob. cit., pág. 678).

A autoridade do caso julgado justifica-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas e tem uma dupla função: impedir o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda ação e um efeito positivo que é o de impor uma decisão como pressuposto indiscutível de uma segunda decisão, a fim de evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior, o conteúdo da decisão anterior (v. Prof. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado”, vol. III, pág. 93, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, p. 171, Ac. do STJ de 12/01/1990, Ac. da R. do P. de 13/01/2011 e Ac. da R. de C. de 15/05/2007, publicados em www.dgsi.pt ).

No caso de uma liquidação de sentença, o Autor faz da sentença liquidanda o fundamento da segunda ação. Assim, a sentença liquidanda impõe a sua autoridade na ação /incidente de liquidação, impedindo que a primeira decisão seja contraditada pela segunda.

No caso concreto, na sentença liquidanda decidiu-se que os RR. tinham que pagar à Autora uma indemnização a fixar em liquidação de sentença, com base no que aí ficou demonstrado nos pontos 13, 14, 21 e 22 dessa sentença.

O teor desses factos é o seguinte:

“13. No dia 17 de maio de 2014, o 2º R., com o conhecimento e ordens da 1ª R., colocou uma pedra de grandes dimensões no leito do rego a céu aberto referido em 6, aterrou-o e aí colocou um motocultivador, impedindo a passagem da água e destruiu os dois regos alegados em 8.
14. Impedindo a A. utilizar a água no seu prédio. …
21. Os RR., no dia 31 de maio de 2014, colocaram um cadeado na cancela de ferro alegada em 20 e ramos de madeira e um ferro, suportado em videira e esteios em pedra, no local onde o caminho atinge o prédio da A.
22. Nos dias 22, 24 e 28 de julho de 2014, cerca das 19:30 h, desviaram a água que era captada no ribeiro e nos dias 27 de julho de 2014, pelas 20:00 h, e 30 de julho de 2014, pelas 11:15 h, a ré mulher, tapou o rego que conduz a água para a poça e tapou um dos regos que da poça conduz a água para o prédio da A., numa altura em que esta se encontrava a regar o seu mesmo prédio.

Em face da redação destes pontos da matéria de facto que serve de base à decisão em causa neste recurso, há que concluir como concluiu a sentença recorrida que havia apenas que apurar os danos sofridos nos dias aí mencionados pois tal factualidade não permite que se computem os danos sofridos desde o dia 17 de maio de 2014 até ao dia 27 de abril de 2017. Na verdade na matéria de facto referida não é utilizada qualquer palavra ou expressão que indique que a conduta danosa se prolongou para além dos dias aí referidos, como por exemplo aconteceria se tivesse sido utlizada a preposição “desde”.
Não pode pois, a Apelante vir para o incidente de liquidação alegar factos que não alegou ou demonstrou na ação de que depende o presente incidente.

Por outro lado, o facto de no dia 17/5 ter sido impedida a passagem da água e de nos dias 22, 24, 27, 28 e 30 de julho ter sido novamente desviada e tapada tal passagem, inculca no intérprete a convicção, resultante das regras de experiência comum, que, para que existam novos atos impeditivos da passagem da água é porque a água, antes dos mesmos, já se encontrava novamente a seguir o seu curso normal, pelo que, também com este argumento, seria incoerente aceitar a contabilização dos danos pelo período indicado pela Apelante.

Desde modo, por inteiramente acertada, mais não resta que confirmar a decisão recorrida.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
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Guimarães, 14 de maio de 2020

Alexandra Rolim Mendes
Maria de Purificação Carvalho
Maria dos Anjos Melo Nogueira