Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5396/15.7T8VNF.G2
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DISTRIBUIÇÃO DE LUCRO
DELIBERAÇÃO ABUSIVA
SÓCIO MINORITÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I) - Os lucros de exercício de uma sociedade podem ser retidos como reserva, podem ser distribuídos pelos sócios e podem ser parcialmente retidos e parcialmente distribuídos, tendo os sócios neste domínio um elevado grau de discricionariedade na deliberação, observados os limites definidos na lei.

II) - Em termos de normalidade, face à imposição legal de verificação anual da situação da sociedade, os lucros de exercício, havendo-os, são distribuídos anualmente pelos sócios, sem prejuízo da constituição de reservas eventuais, de acordo com uma administração prudente e de molde a fazer face às sempre variáveis circunstâncias da conjuntura económica.

III) - O artº. 33º do CSC define situações em que não podem ser distribuídos lucros aos sócios, razão pela qual, sendo proibida por lei essa distribuição, a mesma não está na disponibilidade dos sócios. Trata-se de uma norma imperativa que visa a cobertura de prejuízos transitados ou de reservas, operando uma delimitação negativa do lucro distribuível, fixando um regime que não pode ser afastado por deliberação dos sócios.

IV) - O regime do artº. 217º, nº. 1 do CSC permite que a assembleia geral de sócios delibere, por maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social nela reunido, sobre a distribuição e/ou aplicação de lucros, desde que se não verifiquem as situações previstas no artº. 33º do CSC. e sempre que tal se entenda necessário à luz dos interesses da sociedade, permitindo deste modo que o interesse social se sobreponha ao interesse particular do sócio.

V) - Resulta do regime dos artºs 33º e 217º, nº. 1 do CSC que o direito dos sócios aos lucros não é absoluto e pode ceder perante o interesse da sociedade, que se pode sobrepor ao interesse individual de cada sócio, caso existam razões que o justifique.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Maria intentou a presente acção de anulação de deliberações sociais, sob a forma de processo comum, contra F. – Fiação, Lda., pedindo que sejam declaradas nulas ou anuladas as deliberações sociais aprovadas na sessão ordinária da Assembleia Geral da Ré de 26/05/2015.
Para fundamentar a sua pretensão, alega, em breve síntese, que é titular de duas quotas no capital social da Ré, no valor de € 212 500,00 e € 37 500,00, titularidade essa que lhe adveio por sentença proferida na acção de divisão de coisa comum que identifica.
Em 26/05/2015 foi realizada a Assembleia Geral ordinária da Ré, com a ordem de trabalhos indicada no artº. 3º da petição inicial, tendo na mesma sido aprovadas, sem o voto favorável da Autora, as seguintes deliberações sociais:

- quanto ao primeiro ponto da ordem de trabalhos – foram aprovados o relatório de gestão, o balanço e contas referentes ao exercício de 2014;
- quanto ao segundo ponto da ordem de trabalhos - «relativamente aos resultados líquidos apurados no exercício de dois mil e catorze, no montante global de oitenta e oito mil oitocentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos, foi deliberado constituir reservas legais no montante de quatro mil quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos, reserva especial para lucros retidos e reinvestidos de setenta e seis mil euros e constituir reservas livres no montante de oito mil quatrocentos e doze euros e treze cêntimos.»
Mais alega que, na senda de que tem sucedido desde o ano de 2010 (ano em que faleceu o seu pai e anterior sócio), a deliberação social aprovada é abusiva e nula, porquanto visou vedar à A. o acesso a qualquer benefício inerente à participação social de que é titular, bem como a perpetuação dos gerentes (que são os demais sócios – a tia e o irmão da A.) no controlo e fruição absolutos e exclusivos de todos os activos da sociedade, retirando à participação social da A. todo o valor financeiro e societário, sendo a actuação daqueles guiada pelo objectivo de colocar a A. à margem do funcionamento e dos negócios da sociedade Ré.
Após tecer algumas considerações de natureza conclusiva relativamente ao controlo e utilização dos activos da Ré pelos demais sócios, em seu próprio benefício, e arguir a nulidade ou, pelo menos, a anulabilidade das deliberações sociais em causa, acrescenta que foi vedado à A. integrar a Assembleia Geral com o fundamento de que “uma vez que nos termos do disposto no artº. 242º-A do Código das Sociedades Comerciais, a divisão de quotas quanto à Drª Maria é ineficaz relativamente à sociedade, uma vez que esta não registou a referida aquisição por divisão, nem promoveu esse registo”.
Sobre esta matéria alega que dispunha do prazo de dois meses desde o trânsito em julgado da decisão proferida na acção de divisão de coisa comum (ou seja, até 4/07/2015), não podendo ser exigível à A. que renunciasse ao prazo legal de que dispunha para registar a divisão das quotas, nem sendo esse registo condição para que a A. fosse aceite a participar na Assembleia Geral realizada em 26/05/2015, o que, em seu entender, gera nulidade.

Conclui, acrescentando que a situação financeira da sociedade Ré permite a distribuição de lucros, pois aquela não carece de ser dotada de meios financeiros para além dos que já tem, face ao seu avultado activo e ao seu elevado volume de negócios, nunca tendo sido aventada a eventual necessidade da Ré em ser dotada de mais dinheiro, não necessitando esta do montante emergente dos resultados do exercício de 2014.

A Ré apresentou contestação, impugnando a matéria alegada pela Autora não documentada e refutando a sua pretensão, por, em suma, não reconhecer como verdadeiras as acusações da Autora.
Termina, pugnando pela improcedência da presente acção.

Findos os articulados, realizou-se a audiência prévia, na qual estiveram presentes os mandatários de ambas as partes, tendo sido proferido despacho saneador, que conheceu do mérito da causa por o Tribunal “a quo” considerar que «a matéria assente pelo acordo das partes ou provada por documentos é suficiente e a necessária para a apreciação do pedido formulado, resultando inútil a produção da prova requerida pelas partes, dado que a matéria que resulta controvertida não se mostra relevante para a boa decisão da causa ou para alterar a decisão a proferir», tendo concluído «pela inexistência de qualquer nulidade na deliberação em apreço, ou causa de anulabilidade», julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido contra ela formulado.

Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, invocando a violação do princípio do contraditório por ter sido proferida uma decisão surpresa sem que tivesse tido oportunidade de se pronunciar sobre a possibilidade da presente acção ser decidida no saneador, bem como do princípio do dispositivo por o Tribunal ter ultrapassado os limites da alegação da A. e, por sua própria iniciativa, definido os limites da demanda totalmente fora dos limites traçados pelas próprias partes e até fora de todo o enquadramento legal e factual que tinha sido delineado pela Ré na sua contestação.

Defendeu, ainda, naquele recurso que a petição inicial integra a factualidade mais do que suficiente para o prosseguimento dos autos e para a produção de prova correspondente, com vista à sua procedência, mas caso assim não se entenda, deveria ter havido lugar à prolação de convite ao aperfeiçoamento, sendo que ao não ter dado cumprimento a tal dever, o Tribunal recorrido incorreu em nulidade insanável, emergente da violação do disposto no artº. 590º, nº. 4 CPC.
Termina pugnando pela procedência do recurso e substituição da sentença recorrida por acórdão que determine o prosseguimento dos autos até final, com produção de prova tendo em vista a procedência do pedido.

A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 180 e remetido a este Tribunal da Relação.

Foi proferido acórdão nesta instância superior que decidiu julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando-se que o Tribunal “a quo” convide a recorrente a suprir as insuficiências da alegação de facto e de direito constantes da petição inicial, nos termos expostos.

Na sequência da notificação feita à Autora e em cumprimento do determinado por este Tribunal da Relação, foi apresentada nova petição inicial aperfeiçoada em que é alegada, para além da matéria articulada na primitiva petição, nova matéria factual e ainda de carácter conclusivo, explanada nos artºs 20º a 75º, 84º a 88º e 188º a 194º.

A Ré, por sua vez, apresentou nova contestação, na qual mantém a posição assumida na primeira contestação, alegando, ainda, a omissão de invocação de factos concretos e suficientes que permitam sustentar a pretensão da A., na nova petição inicial, por verificar que esta reincide no juízo especulativo, recorre fastidiosamente a juízos conclusivos e não alega um único facto concreto que permita concluir por um aperfeiçoamento processualmente capaz, no sentido de sustentar a sua pretensão.
Termina, defendendo a validade e legalidade das deliberações sociais em causa e pugnando pela improcedência do pedido.

Em 20/12/2017 realizou-se nova audiência prévia, na qual foi proferido despacho que considerou que a A., no novo articulado, extravasou o convite que lhe foi feito para aperfeiçoamento da petição inicial, ao pronunciar-se sobre alegações da Ré neste processo posteriores à apresentação da primeira petição inicial e ao alegar factos de ocorrência posterior ao da apresentação da primeira petição inicial e, consequentemente, considerou como não escritos os artºs 67º e 73º a 75º da petição inicial aperfeiçoada.
Foi, também, proferido despacho saneador que conheceu do mérito da causa por o Tribunal “a quo” considerar que os factos alegados pela A. se mostram suficientes e os necessários para proferir decisão, fazendo consignar que altera o entendimento professado no saneador sentença proferido em 22/02/2016, referindo que «a matéria assente pelo acordo das partes ou provada por documentos é suficiente e a necessária para a apreciação do pedido formulado, resultando inútil a produção da prova requerida pelas partes, dado que a matéria que resulta controvertida não se mostra relevante para a boa decisão da causa ou para alterar a decisão a proferir», tendo decidido pela procedência da acção e anulado, nos termos do artº. 58º, nº. 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais, a deliberação social tomada na Assembleia Geral da sociedade Ré realizada a 26/05/2015, na parte em que decidia distribuir os lucros do exercício de 2014 no montante global de € 88 854,87 constituindo reservas legais no montante de € 4 442,74, reserva especial para lucros retidos e reinvestindo € 76 000,00 e constituindo reservas livres no montante de € 8 412,13, privando a A. do recebimento da sua parte dos lucros.

Inconformada com tal decisão, a Ré dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

1. O presente recurso vem interposto do despacho saneador/sentença que anulou a deliberação social tomada na Assembleia Geral da ré realizada a 26-05-2015, na parte em que decidiu não distribuir lucros do exercício de 2014, no montante global de oitenta e oito mil, oitocentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos constituindo reservas legais no montante de quatro mil quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos, reserva especial para lucros retidos e reinvestindo setenta e seis mil euros e constituindo reservas livres no montante de oito mil, quatrocentos e doze euros e treze cêntimos.
2. Não existe na decisão recorrida, seja na parte expositiva, seja na parte dispositiva, seja nos factos provados, seja na sua apreciação segundo as regras de direito, qualquer facto provado que permita declarar o cariz abusivo da deliberação "sub judice".
3. A decisão recorrida conclui que a deliberação anulada foi apropriada a prejudicar a autora e visou efectivamente, simplesmente, prejudicá-la, sem que exista, na modesta perspectiva da ora recorrente, qualquer elemento de sustentação dessa conclusão.
4. Sempre que não são distribuídos lucros, em abstracto, todos os sócios são prejudicados por essa decisão, na justa medida dos montantes que deixam de receber.
5. Este prejuízo (a não distribuição de lucros) é no entanto admissível, mesmo quando não há unanimidade de todos os sócios nesse sentido, podendo ser afastado o direito aos lucros sempre que tal se entenda necessário à luz dos interesses da sociedade, desde que votem nesse sentido ¾ do capital social reunido em assembleia. [n.º 1 do art.º 217.º do CSC.]
6. No caso vertente, não foi só a autora que ficou privada dos montantes a que teria direito em sede de distribuição de lucros, tendo os demais sócios ficado privados da parte que lhes cabia. [esta não alega - nem podia por não ser verdade - que foi a única que não recebeu a quota parte dos lucros que cabiam aos sócios]
7. Sendo a decisão de não distribuir lucros permitida por lei quando tomada por ¾ do capital, permitindo deste modo que o interesse social se sobreponha ao interesse particular do sócio, não pode ser esta deliberação, por si só, considerada abusiva.
8. A possibilidade de deliberar a não distribuição de lucros por ¾ do capital social reunido em assembleia, não constitui qualquer espécie de ditadura de maioria, mas sim uma válvula que permite que a sociedade não fique refém dos interesses egoístas dos sócios minoritários, tratando-se de uma maioria qualificada que estabelece um critério de ponderação nos interesses antagónicos dos sócios; do contrário, o legislador teria exigido a unanimidade para a não distribuição de lucros.
9. A não distribuição de lucros atingiu todos os sócios e não apenas a autora, pelo que a mera constatação de não distribuição de lucros em determinado período, não se pode extrair que a deliberação é abusiva ou que é apropriada a prejudicar a autora ou ainda, que houve, simplesmente, intenção de a prejudicar.
10. A não distribuição de lucros "desde 2010" é facto que se considerou provado sem se atender ao contexto da sua alegação e à posição sobre ele tomada pela ré, para efeito de, do mesmo, se poder concluir pelo cariz abusivo da deliberação.
11. Os factos invocados pela ré na contestação, designadamente nos artigos 82.° e 217.° a 276.°, impediam que se pudesse, sem mais, declarar a deliberação como abusiva, anulando-a.
12. O período de crise que afectou recorrentemente o sector têxtil, é razão suficiente para que haja prudência na distribuição de lucros, sobretudo nos casos em que há endividamento e necessidade de se fazerem novos investimentos.
13. O art.º 33.° do CSC define situações em que não podem ser distribuídos lucros, razão, pela qual, sendo proibida por lei essa distribuição, a mesma não está na disponibilidade dos sócios, ao contrário do que sucede no regime do n.º 1 do art.° 217.° do CSC, cujo regime permite a constituição de reservas livres para as finalidades distintas das previstas no art.º 33° do CSC.
14. Por esta razão, para que tivesse sido decidido não distribuir lucros, não era necessário alegar e demonstrar os requisitos do art.º 33.° do CSC.
15. Os factos alegados na nova petição inicial (à semelhança do que sucedia na primeira versão) são insuficientes para permitir concluir pela procedibilidade dos pedidos formulados pela autora, tendo sido dado como provados factos que estão controvertidos sem que tivesse sido produzida prova e tendo sido desconsiderados outros factos importantes para uma boa decisão da causa;
16. Quanto à fixação da matéria de facto, no que se refere à alínea H) dos factos julgados provados, a declaração de que a mesma não foi impugnada carece de algum "granus salis" na contextualização do modo como a mesma vem alegada e do enquadramento que desta matéria a ré dela faz e que não foi tido em conta na decisão recorrida.
17. A respeito desta alínea, o Tribunal dá o facto como assente invocando que se trata de matéria factual alegada pela autora e não impugnada expressamente pela ré.
18. Porém, está sujeito a crítica o modo como o Tribunal acolheu este facto, dando-­o por assente de modo a poder concluir pela invalidade da deliberação, o que no modesto entendimento da recorrente não poderia ter sucedido.
19. No art.º 33.° da contestação, a ré impugna os art.º 20° e seguintes da petição inicial, quer pelo sentido que a autora pretendia extrair da alegação que fez, quer pelo erro dos montantes ali exarados.
20. No cotejo da configuração da nova petição inicial e da contestação a esta apresentada, o que resulta é a invocação, pela autora, na petição inicial de uma prática reiterada de não distribuição de lucros, com o único propósito dos demais sócios de a prejudicar, impedindo-a de aceder aos lucros, e por parte da ré, da invocação das razões que levaram a que não houvesse lugar a distribuição de lucros (cfr. art.ºs 38° a 47°, 82.°, 221° a 274° da contestação) isto para além dos termos da impugnação especificada do art.º 33.° da contestação.
21. Não era pois possível dar este facto "tout court" como provado.
22. Todavia, dando-o como provado, não o poderia o julgador ter valorado este facto, sem mais, no sentido de dele se servir para concluir que houve intenção de prejudicar a autora e, portanto, que a deliberação sob escrutínio é abusiva.
23. Bem andou o Tribunal em considerar que a deliberação de não distribuição de lucros não prejudicou a sociedade, antes a beneficiou, pois que esta passou a beneficiar (naturalmente em prol da sua actividade) dos fundos resultantes dessa não distribuição que, do contrário, sairiam da sua esfera jurídica.
24. Daí que, dando-se por bom que a retenção dos lucros beneficia a sociedade, não seja possível concluir-se que se pretendeu prejudicar a sócia minoritária.
25. O juízo de que a não distribuição de lucros prejudica a sócia minoritária, salvo melhor opinião em contrário, não é suficiente pada permitir concluir pelo cariz abusivo da deliberação anulada.
26. Na verdade, por efeito da deliberação de não distribuição de lucros, saem prejudicados todos os sócios, que se veem privados do seu direito a quinhoar nos lucros e, portanto, este prejuízo não é apenas do sócio minoritário, mas, também, dos demais sócios, ou seja da sócia maioritária M. C. e do outro sócio minoritário Manuel.
27. O direito aos lucros não é absoluto e pode ceder em face do interesse da sociedade, o que se extrai do regime dos art.ºs 33.° e 217.° do CSC.
28. Quanto à questão referente ao facto da alínea H) de que desde 2010 não há distribuição de lucros, é certo que se trata de resultados de exercício e que portanto, sendo o resultado de exercício positivo, em princípio, há lucros para distribuir.
29. Porém, o Tribunal ignorou - por considerar, indevidamente, irrelevante - os factos alegados na contestação nos artigos 82.°, 217.°, 218.° [onde se refere que desde sempre os lucros têm sido reinvestidos] 219°, 220°, 221°, 222° a 276.°, relativos ao financiamento da ré e à manutenção da sua actividade - são essenciais para se compreender das razões de não distribuição de lucros.
30. Se não podia dar como provados estes factos, pelo menos teria que ter sido produzida prova quanto aos mesmos.
31. Na verdade, se é certo que ao sócio cabe o direito de quinhoar nos lucros, não é menos verdadeiro que se a distribuição de lucros comprometer a própria existência da sociedade, a gerência tem a responsabilidade de propor o seu uso para se financiar - ainda que em parte.
32. No artigo 217.° do Código das Sociedades Comerciais o legislador não instituiu qualquer carácter de excepcionalidade.
33. O juízo de que uma deliberação, ainda que votada por maioria de 3/4 dos votos, no sentido de não distribuir qualquer quantia a título de lucros de uma sociedade num determinado exercício aos sócios, designadamente a um sócio minoritário contra a sua vontade, deve revestir carácter excepcional, sob pena de, através de uma ditadura da maioria, se perder o escopo essencial de uma sociedade, não só não decorre da lei, como pelo contrário, é tido pela doutrina como uma ponderação de equilíbrio entre os interesses de sócios maioritários e minoritários, na prossecução do escopo social.
34. Em todo o caso, e no que se refere a um suposto quadro de excepcionalidade, o julgador não entrou em linha de conta com contexto como as circunstâncias próprias de dificuldades e crises estruturais do sector têxtil em que labora a ré.
35. Assim, a actuação de não distribuição de lucros não tem uma intenção ad hominem, é determinada por razões de subsistência da empresa ré e cumpre com requisitos legais pelo que não era possível, também por esta razão concluir pela intenção ou propósito de prejudicar a autora.
36. O art.º 33.º do CSC é uma norma imperativa que visa a cobertura de prejuízos transitados ou de reservas, operando uma delimitação negativa do lucro distribuível, fixando um regime que não pode ser afastado por deliberação dos sócios.
37. Já as matérias que referentes à possibilidade de os sócios deliberarem por maioria de 3/4 dos votos a não distribuição de lucros nos termos do artigo 217.º do CSC, não respeitam às situações previstas no art.º 33.º do CSC, pois que a distribuição de lucros, nestes casos, não carece de deliberação, outrossim decorre de proibição legal, não estando por isso na disponibilidade dos sócios.
38. Por isso, a falta de alegação de que a impossibilidade de distribuição de lucros decorre do regime do artigo 33.º do CSC, em circunstância alguma impede que a não distribuição de lucros possa ser deliberada com a maioria prevista no art.º 217.º do CSC, não se podendo daqui extrair o cariz abusivo da deliberação em causa.
39. Não estando demonstrado o cariz abusivo da deliberação, salvo o devido respeito, não há que apreciar a questão de se saber se, sem os votos dos sócios titulares de participações sociais representativas de 3/4 do capital social, ainda assim, a deliberação anulada seria aprovada.
40. A conjugação de todos os elementos presentes na fundamentação da decisão, por todo o exposto, não são susceptíveis de permitir concluir que a deliberação em crise foi tomada com o propósito de, simplesmente, prejudicar a autora.
41. A petição inicial, apesar de aperfeiçoada não traz factos concretos que permitam concluir pela intenção de prejudicar a autora - apenas juízos de valor e processos de intenções.
42. O cariz abusivo da deliberação é infirmado pela conduta da própria autora que sem exprimir uma só linha sobre o passivo da ré, impediu qualquer entendimento quanto à divisão das quotas indivisas que lhe foram legadas e a seu irmão, por seu pai, em partes iguais, não consentido, sequer, na divisão por acordo, pelo que em rigor, o direito aos lucros está na sua disposição apenas a partir de 2015;
43. Impõe-se a prolação de acórdão que, revogando o acórdão recorrido, retome a decisão inicialmente proferida em primeira instância e julgue a acção improcedente, ou, subsidiariamente, revogue a decisão recorrida e determine o prosseguimento da audiência prévia, nos demais termos do processo.

6. Normas jurídicas violadas:

Alínea b) do n.º 1 do art.º 58.º e art.º 217.º do Código das Sociedades Comerciais.
Termina entendendo que o acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que julgue a acção improcedente, ou, subsidiariamente, que revogue a decisão recorrida e determine o prosseguimento da audiência prévia, nos demais termos do processo.

A Autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 453 e remetido a este Tribunal da Relação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Ré, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) - Saber se deve ser alterada a alínea H) dos factos provados;
II) – Saber se deverá ser alterada a decisão jurídica da causa:

Na decisão recorrida foram considerados provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:

A. A Ré é uma sociedade comercial por quotas, tendo por objecto a indústria de fiação.
B. O seu capital social é de € 1.000.000,00, que, de início, se encontravam distribuídas por quatro quotas, duas de € 425.000,00 e outras duas de € 75.000,00, pertencendo duas quotas nos valores de € 425.000,00 e de € 75.000,00 João e outras duas quotas de € 425.000,00 e de € 75.000,00 a M. C..
C. Após o falecimento de João, as quotas transmitiram-se para os seus filhos M. V. e a A., Maria (registo efectuado a 11/11/2010), que são agora proprietários, cada um de:

- uma quota do valor nominal de € 212.500,00,
- uma quota do valor nominal de € 37.500,00.
D. A titularidade das mencionadas participações sociais adveio à A. e a seu irmão por sentença proferida na acção de divisão de coisa comum que correu termos na Secção Cível - J3 da Instância Local de Vila Nova de Famalicão sob o nº 611/14.7TJVNF, tendo o registo relativo às quotas da A. sido efectuado a 17/6/2015.
E. No dia 26/5/2015, foi realizada a sessão ordinária da assembleia-geral da R. tendo como ordem de trabalhos a seguinte:

Primeiro - Deliberar sobre o relatório de gestão e contas de exercício referentes ao ano de 2014;
Segundo - Deliberar sobre proposta de aplicação de resultados do exercício de 2014.
F. Foram aprovadas as seguintes deliberações:

- quanto ao primeiro ponto da ordem de trabalhos - foram aprovados o relatório de gestão, o balanço e contas referentes ao exercício de 2014;
- quanto ao segundo ponto da ordem de trabalhos – “relativamente aos resultados líquidos apurados no exercício de dois mil e catorze, no montante global de oitenta e oito mil oitocentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos, foi deliberado constituir reservas legais no montante de quatro mil quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos, reserva especial para lucros retidos e reinvestidos de setenta e seis mil euros e constituir reservas livres no montante de oito mil quatrocentos e doze euros e treze cêntimos”.
G. As referidas deliberações foram aprovadas por 75% do capital social, concretamente, com os votos favoráveis dos sócios M. C. e Manuel.
H. Desde 2010 não é distribuída qualquer quantia à A. a título de lucros da sociedade R..

O Tribunal “a quo fundamentou a decisão de facto da seguinte forma [transcrição]:

As alíneas A) a D) da matéria de facto assente resultam da análise à certidão comercial relativa à sociedade R., junta com a petição inicial e confirmativa de tais factos. Quanto à alínea D) foi ainda observada a cópia da acta da Conferência de Interessados realizada no âmbito do processo nº 611/14.7TJVNF – acção de divisão de coisa comum que correu termos na Secção Cível - J3 da Instância Local de Vila Nova de Famalicão.
As alíneas E) a G) da matéria de facto assente resulta da análise à cópia da acta da assembleia-geral da R. realizada a 26/5/2015, que foi junta pela A. com a petição inicial
A alínea H) resulta de matéria factual alegada pela A. e não impugnada expressamente pela R..
A demais e extensa factualidade alegada pela A. na sua petição inicial e pela R. na sua contestação mostra-se absolutamente irrelevante para a boa decisão da causa, não tendo, por isso, sido incluída acima, nos factos relevantes a apreciar.
*
Apreciando e decidindo.

I) - Saber se deve ser alterada a alínea H) dos factos provados:

Entende a Ré, ora recorrente, que o Tribunal “a quo” não podia ter dado como provado o facto constante da alínea H) com fundamento de que se trata de matéria factual alegada pela A. e não impugnada expressamente pela Ré, sem atender ao contexto da sua alegação e à posição sobre ele tomada pela Ré, pois esta no artº. 33° da sua contestação impugna os artºs 20° e seguintes da petição inicial, quer pelo sentido que a A. pretendia extrair da alegação que fez, quer pelo erro dos montantes ali exarados.

Vejamos se lhe assiste razão.
Conforme consta da sentença recorrida, na mencionada alínea H) está dado como assente que “desde 2010 não é distribuída qualquer quantia à A. a título de lucros da sociedade Ré”, declarando o Tribunal “a quo” que esta alínea resulta da matéria factual alegada pela A. e não impugnada expressamente pela Ré.

Acontece, porém, que no artº. 33° da contestação a Ré impugna especificadamente os artºs 5º a 19º, 20° (quer pelo sentido que a A. pretendia extrair da alegação que fez, quer por os montantes ali exarados estarem errados), 21º a 46º, 48º a 75º, 77º a 81º, 83º a 103º, 106º a 134º, 136º a 171º, 173º a 210º, todos da petição inicial aperfeiçoada.

Com efeito, alega a A. no artº. 20º da petição inicial aperfeiçoada que desde 2010 deixou de auferir os montantes que ali especifica (os valores dos lucros totais e os valores correspondentes à participação social de 25% da A. referentes aos anos de 2011 a 2014), referindo no artº. 21º: “ou seja, foi vedado à A. o acesso a um rendimento médio de cerca de 1500 euros mensais (equivalente à sua quota-parte nos mencionados lucros não distribuídos)”.

Do cotejo da matéria alegada na nova petição inicial e na contestação, resulta a invocação, pela A., na petição inicial (nomeadamente nos artºs 5º a 7º, 11º a 15º, 20º a 44º, 48º a 64º, 92º a 97º, 100º, 102º e 103º e 176º a 186º), de uma prática reiterada de não distribuição de lucros correspondentes à sua participação social, com o propósito dos demais sócios de prejudicar os interesses da A., impedindo-a de aceder aos lucros, e de utilizarem essas verbas em exclusivo benefício pessoal daqueles, bem como a impugnação da utilização de tais recursos financeiros na gestão da empresa; e a invocação, por parte da Ré, das razões que determinaram a deliberação de não distribuição de lucros (cfr. artºs 82° e 217° a 274° da contestação) - isto para além dos termos da impugnação especificada do artº. 33° da contestação como acima referimos, que não permitiria ao julgador, sem mais, dar aquele facto como provado.

O Tribunal “a quo” considerou provado o facto constante da alínea H), de modo a poder concluir pela invalidade da deliberação, sem atender ao contexto da sua alegação e à posição sobre ele tomada pela Ré; ou seja, foi dado como provado um facto que se mostra controvertido, atenta a forma como foi alegado no artº 20º da nova petição inicial e o facto de ter sido impugnado pela Ré nos termos supra referidos, sem que sobre o mesmo tivesse sido produzida prova.

Assim sendo, entendemos que a matéria constante da mencionada alínea H) deverá ser excluída dos “factos provados” enunciados na decisão recorrida, procedendo, nesta parte, o recurso interposto pela Ré.
*
II)Saber se deverá ser alterada a decisão jurídica da causa:

Vem a Ré interpor recurso do saneador-sentença que, pondo termo ao processo, anulou a deliberação social tomada na Assembleia Geral realizada a 26/05/2015, na parte em que decidiu não distribuir pelos sócios os lucros do exercício de 2014, no montante global de € 88 854,57, constituindo reservas legais no montante de € 4 442,74, reserva especial para lucros retidos e reinvestidos de € 76 000,00 e reservas livres no montante de € 8 412,13.
Discorda a recorrente do modo como o Tribunal “a quo” chegou à conclusão de que a deliberação anulada é abusiva, por ser apropriada a prejudicar a A. e por visar, simplesmente, prejudicá-la, valendo-se para isso da invocação do facto de que a esta não são distribuídos lucros desde 2010.
Entende a recorrente que não existe na decisão recorrida qualquer elemento que sustente tal conclusão, sendo que os factos alegados pela Ré na contestação, designadamente nos artºs 82º e 217º a 276º, impediam que se pudesse, sem mais, considerar a deliberação abusiva, anulando-a, tendo sido dado como provados factos que são controvertidos sem que tivesse sido produzida prova e desconsiderados outros factos importantes para a boa decisão da causa.
Fazendo referência ao regime dos artºs 33º e 217º do CSC, alega, ainda, que o Tribunal “a quo” ignorou - por considerar indevidamente irrelevante - os factos alegados na contestação nos artºs 82°, 217°, 218° [onde se refere que desde sempre os lucros têm sido reinvestidos], 219°, 220°, 221° e 222° a 276°, relativos ao financiamento da Ré e à manutenção da sua actividade, factos esses que, no seu entender, são essenciais para se compreender as razões de não distribuição de lucros, sendo que se não podia dar como provados estes factos, pelo menos teria que ter sido produzida prova quanto aos mesmos.

Na decisão sob censura julgou-se a presente acção procedente e anulou-se a referida deliberação, com os seguintes fundamentos [transcrição parcial]:

«(…)
Assim, nos termos do art. 56º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, são nulas as deliberações dos sócios:

a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto;
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;
d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.

Por outro lado, são anuláveis as deliberações que:

“a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56º, quer do contrato de sociedade;
b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;
c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação” – art. 58º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais”.

Vejamos então se as deliberações em apreço se enquadram em alguma das alíneas supra citadas, analisando a questão do ponto de vista do direito à repartição de lucros da sociedade R. pelos sócios e, em concreto, pela A., que constitui (a não repartição) um dos fundamentos invocados pela A. para sustentar a invocada anulabilidade da deliberação social em causa.
Um dos direitos que assiste aos sócios é o de quinhoar nos lucros da sociedade, na proporção das suas quotas – cfr. arts. 21º, nº 1, al. a) e 22º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, o que constitui o objectivo final de uma sociedade: a sociedade existe para proporcionar aos sócios a repartição dos lucros do seu exercício.
O quinhão de lucros que cabe a cada sócio encontra-se indexado à sua proporção no capital da sociedade, pois cada sócio receberá uma parte dos lucros de acordo com a proporção que detém no capital social da sociedade.
Note-se a importância que o legislador confere à distribuição de lucros pelos sócios, considerando mesmo nula a cláusula que exclui um sócio da comunhão nos lucros (salvo o disposto quanto a sócios de indústria) e nula a cláusula pela qual a divisão de lucros seja deixada ao critério de terceiro – cfr. art. 22º, nºs 3 e 4 do Código das Sociedades Comerciais.
Quanto às sociedades por quotas, como é o caso da sociedade R., a lei é precisa ao dispor que “Salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível” – art. 217º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.

Conforme explica Jorge Manuel Coutinho de Abreu (in Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª Edição, Almedina, pág. 414) “Não quer dizer que, quando haja lucros distribuíveis, cada sócio pode exigir da sociedade, a todo o tempo, o seu quinhão ou a quota parte na totalidade desses lucros. Só pode exigi-lo se e quando os lucros forem (ou devam ser) distribuídos (normalmente por força de deliberação dos sócios), e tendo em conta a medida da distribuição.

É por isso comum na doutrina contrapor o direito abstracto aos lucros (o direito de quinhoar nos lucros de que falamos, enquanto direito integrante da participação social) ao direito concreto aos lucros (o direito de crédito a quota-parte dos lucros distribuídos). No entanto, o direito abstracto (rectius, potencial) aos lucros não é mera expectativa jurídica, contém já direitos concretos (rectius, actuais), poderes ou faculdade actualmente exercitáveis. Na verdade, todo o sócio tem o poder jurídico de exigir permanentemente da sociedade que não seja excluído da comunhão dos lucros”.
(…)
Quanto à primeira deliberação, nada parece haver a apontar à mesma, dado que não se verificam nenhuma das situações previstas nas várias alíneas dos arts. 56º e 58º do Código das Sociedades Comerciais.
Quanto à segunda deliberação, há que realçar que a mesma foi tomada com maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, pelo que se encontra acobertada pelo art. 217º, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.
A questão que se nos coloca, então, é a de saber se será esta deliberação abusiva, na medida em que apropriada para:

- satisfazer o propósito de um dos sócios;
- de conseguir, através do exercício do direito de voto;
- vantagens especiais para si ou para terceiro;
- em prejuízo da sociedade ou de outros sócios – cfr. art. 58º, nº 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais.

Conforme ensina António Menezes Cordeiro (Direito das Sociedades, I, Parte Geral, 3ª edição ampliada e actualizada, Almedina, pág. 796) “Estes dois últimos elementos podem ser substituídos por uma única proposição:

- o propósito de, simplesmente, prejudicar a sociedade ou (os) outros sócios.”

Diz-nos Pinto Furtado (Deliberações de Sociedades Comerciais, Colecção Teses, Almedina, pág. 696), que “…a al. b) do art. 58-1 CSC não refere a deliberação abusiva unicamente ao propósito de um dos sócios conseguir vantagens especiais para si ou para terceiros, mas também, em vez disso, ao objectivo de prejudicar a sociedade ou os outros sócios.
Contemplam-se neste passo, entre as abusivas, as deliberações emulativas.
(…)
Num caso e noutro, seja o acto vantajoso ou simplesmente emulativo, recorre-se à ideia de abuso de direito.”
(…)
Assim, no caso das deliberações abusivas, previstas no art. 58º, nº 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais, “Em causa estão deliberações que se apresentam formalmente como regulares - que não contrariam formalmente a lei nem o contrato de sociedade - mas que lesam ou ameaçam interesses da sociedade ou dos sócios em termos tão chocantes que se impõe e justifica a possibilidade da sua impugnação.

E, na verdade, aquele preceito tem subjacente a ideia de que as deliberações sociais e o exercício do direito de voto devem ser direccionados para a realização do interesse da sociedade (ou do interesse comum dos sócios) e não apenas para satisfazer interesses de alguns sócios ou de terceiros, em prejuízo da sociedade ou de alguns (outros) sócios” – cfr. acórdão do STJ de 9/10/2003, da lavra do Juiz Conselheiro Santos Bernardino, disponível na internet em www.dgsi.pt.

(…)
Centrando-nos agora na deliberação em apreço, constatamos que esta não prejudica a sociedade, antes pelo contrário, na medida em que lhe permite reter e destinar em seu proveito quantias que, de outra forma, sairiam da sua esfera patrimonial.
Mas prejudica, claramente, a A., sócia minoritária, que deixa de receber quantia considerável a título de lucros da sociedade.
E esta situação tem-se repetido todos os anos já desde o exercício de 2010, pois provou-se que desde essa data que não é distribuída qualquer quantia à A. a título de lucros da sociedade R. (note-se que, não obstante o registo das quotas a favor da A. ter ocorrido apenas a 17/6/2015, já estas lhe tinham sido transmitidas por decesso de seu pai, pelo menos a 11/11/2010), não obstante se perceber, do alegado pela A. no art. 20º da petição inicial e da posição assumida quanto ao mesmo pela R. no art. 33º da contestação, que resultaria quantia suficiente a título de lucros para distribuir.

Como de forma lapidar escreve o Juiz Conselheiro Santos Bernardino no acórdão já citado, “A acção de anulação de deliberações sociais é hoje vista, não tanto como instrumento de defesa da legalidade societária, mas sobretudo como instrumento de defesa da participação social e dos interesses do respectivo titular e como meio de garantir a protecção da situação das minorias, da posição jurídica e dos interesses dos membros da corporação, perante a maioria e os seus instrumentos de poder”.
Não foi alegado pela R. que os lucros em causa revistam a natureza prevista no art. 33º do Código das Sociedades Comerciais e não sejam, por isso, distribuíveis.
O objectivo final de uma sociedade é o da distribuição de lucros pelos seus sócios.
Uma deliberação, ainda que votada por maioria de três quartos dos votos, no sentido de não distribuir qualquer quantia a título de lucros de uma sociedade num determinado exercício aos sócios, designadamente a um sócio minoritário contra a sua vontade, deve revestir caracter excepcional, sob pena de, através de uma ditadura da maioria, se perder o escopo essencial de uma sociedade.
Finalmente, não se provou que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos, pelo contrário, com os votos restantes, os da A., a deliberação não teria sido aprovada.

Em face do exposto, pensamos poder afirmar com serenidade que a deliberação social em causa visou satisfazer o propósito dos sócios votantes, de conseguir, através exercício do direito de voto, o propósito de, simplesmente, prejudicar a sócia minoritária A. (lançando aqui mão da formulação de António Menezes Cordeiro, supra referida).
Por isso, não podemos senão concluir pela anulabilidade da deliberação social em apreço, na parte em que não permitiu a distribuição de lucros à sócia A., nos termos do art. 58º, nº 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais.
(…).»
Entre as faculdades ou poderes que integram a participação social conta-se a de participar nos lucros da sociedade (artº. 21º, nº. 1, al. a) do CSC), sendo a participação nos lucros, na falta de preceito especial ou convenção em contrário, segundo a proporção dos valores nominais das respectivas participações no capital (artº. 22º, nº. 1 do mesmo Código).
O lucro do exercício é apurado pela contabilidade da sociedade, nas contas anuais que são primeiramente aprovadas pela gestão, depois pelo conselho fiscal ou pelo fiscal, se existirem, e finalmente sujeitas à deliberação dos sócios em assembleia geral anual.
As contas culminam com o resultado do exercício e, em princípio, o lucro deve ser apurado e distribuído no termo do exercício. O relatório de gestão deve conter uma proposta de aplicação dos resultados devidamente fundamentada e, havendo lucro, essa proposta deve indicar aos sócios o destino que lhe deve ser dado (artº. 66º, nº. 5, al. f) do CSC). O lucro pode ser retido como reserva, pode ser distribuído pelos sócios e pode ser parcialmente retido e parcialmente distribuído: também neste domínio os sócios têm um elevado grau de discricionariedade na deliberação, observados, evidentemente, os limites definidos na lei.
Na verdade, a lei proíbe a distribuição dos lucros que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas legais ou estatutárias e enquanto não estiverem amortizadas as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento, excepto se cobertos por reservas livres (artº. 33, nºs 2 e 3 do CSC). É também proibida a distribuição de verbas provenientes de reservas ocultas (artº. 33, nº. 3 do CSC).
Os lucros que seja lícito distribuir, mas que seja deliberado reter constituem as reservas livres: estas são constituídas através da retenção de lucros na própria sociedade.
A retenção de lucros, através da constituição de reservas, tem, para os sócios e para a sociedade, vantagens e inconvenientes.
Para a sociedade tem, evidentemente, a vantagem de reforçar a sua robustez financeira, de acautelar antecipadamente perdas futuras e de diminuir a sua dependência de capitais alheios, cuja obtenção e custo podem ser problemáticos; o inconveniente consiste na redução dos dividendos, criando tensões entre os sócios.

Para os sócios, a retenção dos lucros na sociedade tem vantagens para quem investir a longo prazo, tornando economicamente sólida e mais valiosa, a médio e a longo prazo, a participação social, e elimina ou reduz a exigência de prestação de garantias pelos sócios para a obtenção de financiamento; o inconveniente traduz-se na redução, no exercício considerado, dos dividendos (cfr. acórdão da RC de 19/02/2013, proc. nº. 89/10.4TBTCS, acessível em www.dgsi.pt).

Em termos de normalidade, face à imposição legal de verificação anual da situação da sociedade, os lucros de exercício, havendo-os, são distribuídos anualmente pelos sócios, sem prejuízo da constituição de reservas eventuais, de acordo com uma administração prudente e de molde a fazer face às sempre variáveis circunstâncias da conjuntura económica (cfr. acórdão da RC de 21/12/2010, proc. nº. 210/09.5TBTCS, acessível em www.dgsi.pt).

Na sequência do que atrás se deixou dito relativamente ao relatório de gestão da sociedade, este deve conter uma proposta de aplicação dos resultados positivos obtidos, devidamente fundamentada, com a indicação dos pressupostos e razões em que assenta a proposta de não distribuição de lucros aos sócios e da sua retenção em eventuais reservas, relatório esse que será objecto de discussão e votação em assembleia geral de sócios, que apreciará e deliberará sobre a aplicação dos lucros, caso existam.

Analisando o caso em apreço, constata-se estar em causa a validade da deliberação tomada na Assembleia Geral da Ré realizada em 26/05/2015, na parte em que aprovou, por unanimidade do capital representado, a proposta de aplicação dos resultados do exercício de 2014 nos seguintes termos: “relativamente aos resultados líquidos apurados no exercício de dois mil e catorze, no montante global de oitenta e oito mil oitocentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e sete cêntimos, foi deliberado constituir reservas legais no montante de quatro mil quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos, reserva especial para lucros retidos e reinvestidos de setenta e seis mil euros e constituir reservas livres no montante de oito mil quatrocentos e doze euros e treze cêntimos”.

Em primeiro lugar, importa referir que sendo retirada dos factos provados a matéria constante da alínea H) nos termos acima expostos, na qual o Tribunal “a quo” se estribou para anular aquela deliberação, por considerar a mesma apropriada a prejudicar a A. e ter havido intenção de a prejudicar, deixou de existir base de sustentação para essa conclusão, tanto mais que foi alegada pela Ré, na contestação (designadamente nos artºs 82° e 217° a 274°), matéria que se mostra controvertida e que, a provar-se, impediria que se considerasse tal deliberação apropriada a prejudicar a A. ou que houve, simplesmente, intenção de a prejudicar.

Com efeito, na contestação foram alegados factos que, na versão apresentada pela Ré, são justificativos da deliberação de não distribuição de lucros aos sócios e da sua aplicação na constituição de reservas, factos esses que se prendem essencialmente com a gestão/redução do passivo, o recurso ao autofinanciamento e a consequente diminuição da dependência de financiamento bancário, a redução do volume de negócios e de produção da Ré em 2014 face ao ano de 2013 e a realização de investimentos na modernização das estruturas e equipamentos, para melhoria da produtividade e competitividade da empresa e por forma a dotá-la de maior capacidade negocial junto dos credores e da banca – matéria esta vertida no relatório de gestão da sociedade Ré que se encontra junto a fls. 78 a 81 dos autos, no qual consta ainda a proposta de aplicação do resultado líquido de 2014, no valor de € 88 854,87, na constituição de reservas tal como foi aprovado na deliberação em causa tomada na Assembleia Geral de 26/05/2015: reserva legal - € 4 442,74; reserva especial para lucros retidos e reinvestidos - € 76 000,00 e reservas livres - € 8 412,13.
No relatório de gestão relativo ao exercício de 2014 são indicadas as razões para a apresentação de tal proposta de aplicação daquele resultado líquido nos seguintes termos:

“À semelhança dos anos anteriores, a gerência volta a não propor a distribuição de lucros aos sócios. Como já referido, a obtenção de resultados positivos tem sido resultante da conservação de capital próprio de forma a reduzir a dependência do financiamento bancário. Num ambiente cada vez mais competitivo, a empresa tem conseguido manter resultados líquidos positivos e uma estrutura financeira equilibrada resultado da política de reforço de capitais próprios seguida.
Neste sentido, também a obtenção de benefícios fiscais ao investimento impossibilitam a distribuição de parte dos lucros.
Atendendo à conjuntura económica global e ao plano de investimento previsto para 2015, é de esperar uma maior necessidade financeira.
O reforço dos capitais próprios irá permitir uma gestão financeira mais autónoma e mais económica. Trata-se assim de uma medida prudencial que nos possibilite a continuidade do crescimento e melhoria da performance da empresa.”
Ora, tendo sido alegados na contestação os factos supra referidos (relativos ao reinvestimento dos lucros na empresa, ao financiamento da Ré e à gestão e manutenção da sua actividade), e sendo aqueles factos, a nosso ver, essenciais para se aferir das razões de não distribuição de lucros aos sócios e, eventualmente, se demonstrar que não houve intenção de prejudicar a A. com a deliberação de constituir reservas com tais lucros, não podendo os mesmos ser considerados provados no saneador-sentença por se mostrarem controvertidos, deveriam os autos prosseguir seus termos e ser produzida prova quanto aos mesmos.
Se atentarmos ao disposto no artº. 217º, nº. 1 conjugado com o artº. 33º ambos do CSC, a decisão de não distribuir lucros aos sócios é permitida por lei quando tomada por ¾ do capital social reunido em assembleia, sempre que tal se entenda necessário à luz dos interesses da sociedade, permitindo deste modo que o interesse social se sobreponha ao interesse particular do sócio.
O artº. 33º do CSC define situações em que não podem ser distribuídos lucros aos sócios, razão pela qual, sendo proibida por lei essa distribuição, a mesma não está na disponibilidade dos sócios. Trata-se de uma norma imperativa que visa a cobertura de prejuízos transitados ou de reservas, operando uma delimitação negativa do lucro distribuível, fixando um regime que não pode ser afastado por deliberação dos sócios, pelo que, em rigor, a assembleia geral de sócios não poderia deliberar sobre a matéria que vem regulada neste preceito legal.

Por seu turno, o regime do artº. 217º, nº. 1 do CSC permite que a assembleia geral de sócios delibere, por maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social nela reunido, sobre a distribuição e/ou aplicação de lucros, desde que se não verifiquem as situações previstas no citado artº. 33º do CSC. Ou seja, os lucros sobre os quais os sócios podem deliberar no quadro da previsão do artº. 217° do CSC, designadamente no sentido da sua não distribuição aos sócios e/ou para constituição de reservas para finalidades distintas das previstas no artº. 33º, são aqueles que estão na sua disponibilidade e cuja possibilidade de distribuição não está vedada por lei.

No seguimento do que atrás se deixou dito, podemos extrair do regime dos artºs 33º e 217º, nº. 1 do CSC que o direito dos sócios aos lucros não é absoluto e pode ceder perante o interesse da sociedade, que se pode sobrepor ao interesse individual de cada sócio, caso existam razões que o justifique.

Ora, tendo a Ré, na contestação, alegado factos que integram as razões que justificaram a deliberação de constituir reservas com o resultado líquido do exercício de 2014 (e, consequentemente, a não distribuir os lucros aos sócios), razões essas que também constam do relatório de gestão junto aos autos, submetido a votação e aprovado por deliberação da dita Assembleia Geral de 26/05/2015 (ponto um da ordem de trabalhos), deverão os mesmos, a nosso ver, ser objecto de discussão e de produção de prova.

Por tudo o que se deixou exposto, entendemos que a decisão recorrida deverá ser revogada, sendo substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos até final, com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova abarcando toda a matéria controvertida que se mostre relevante para a boa decisão da causa nos moldes acima expostos, marcação da audiência de julgamento para discussão da causa e produção de prova sobre tais factos controvertidos e, em resultado da prova produzida, prolação da sentença final.

Nestes termos, terá de proceder o recurso de apelação interposto pela Ré.
*
III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Ré F. – Fiação, Lda. e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos com a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova abarcando toda a matéria controvertida que se mostre relevante para a boa decisão da causa nos termos acima expostos, seguindo o processo os seus ulteriores termos até final.

Custas pela recorrida.
Notifique.
Guimarães, 10 de Maio de 2018
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)


(Maria Cristina Cerdeira)
(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Almeida Fernandes)