Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2627/13.1TBGMR.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: CAUSA DE PEDIR
CONTRADIÇÃO
INCOMPATIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) Existe contradição entre a alegação de que, por acordo dos intervenientes numa escritura de compra e venda de um prédio urbano, foi decidido ser desnecessário que um logradouro, anexo àquele, fizesse parte do objeto vendido, com o pedido formulado pela autora de pretender incluir na referida escritura que o logradouro fizesse parte do objeto vendido;
2) Existe cumulação de causas de pedir incompatíveis quando se alega que a autora é proprietária do referido logradouro, ou, pelo menos constitui, face à existência de sinais visíveis e permanentes de passagem, uma servidão de passagem.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
A) D – Confecções, Lda, veio intentar ação com processo comum, na forma sumária contra M – Administração de Imóveis, SA, Fernando F e mulher Maria A, Armando T e mulher Maria C e Jorge T e mulher Maria M, onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência, condenados todos os réus:
a) A reconhecerem que, através da escritura várias vezes referida, celebrada entre a ré M e a autor, esta e aquela quiseram que, do objeto vendido, fizesse parte o logradouro atrás citado;
b) Verem retificada escritura pública e os correspondentes registo predial e inscrição matricial do prédio transmitido por forma a refletir essa pertença do logradouro à autora; Quando assim se não entenda, ou não se venha a provar, deve a ré M ser condenada a:
c) Devolver à autora a importância de Esc2.000.000$00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da escritura até ao pagamento efetivo à autora;
Devem ainda todos os réus ser condenados a:
d) Deixarem permanentemente o logradouro em causa completamente livre e devoluto, salvo para passagens ocasionais, por forma a jamais ser embaraçado o acesso da autora ao seu prédio, quer com pessoas, quer com quaisquer veículos automóveis, designadamente, camiões que aí precisam de carregar e descarregar a mercadoria produzida pela autora;
e) Pagarem uma sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a €100,00 por cada vez que eles próprios ou os seus veículos automóveis se colocarem em condições de dificultar ou impedir o livre acesso da autora, visto que deram causa à ação.
Os réus Jorge T e Maria M apresentaram contestação (fls. 262 e segs.), onde concluem entendendo dever ser julgada totalmente improcedente, por não provada, a ação e os ora réus absolvidos do pedido com todas as devidas e legais consequências.
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Entretanto, face ao falecimento do réu Fernando F, ocorrido em 12/12/2013, foi deduzida pela autora D – Confecções, Lda, a habilitação de herdeiros, tendo sido proferida sentença que julgou habilitados, como herdeiros do de cujus:
a) Fernando M;
b) António F;
c) Maria B;
d) Maria F;
e) Manuel F;
f) Luís F; e
g) Ana F.
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Os réus Armando T e mulher Maria C apresentaram contestação e deduziram pedido reconvencional onde concluem entendendo que:
a) Devem ser julgadas procedentes por provadas as supra invocadas exceções e os réus absolvidos da instância e ou do pedido, com todas as devidas e legais consequências;
Ou e quando assim se não entender,
b)Deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada, a ação e os 3ºs réus absolvidos do pedido, com todas as devidas e legais consequências.
c)Deve a autora ser ainda condenada em custas condigna procuradoria e no mais que for de lei. Por outro lado, e quando assim se não entender,
d)Deve ser julgada totalmente procedente por provada a reconvenção e a autora/reconvinda, por via dela ser condenada a reconhecer que:
e) Os 3 réus são donos e legítimos possuidores do prédio descrito no nº 17 deste articulado;
f) A favor dos 3ºs réus/reconvintes e em benefício daquele seu prédio se encontra constituída uma servidão de passagem pelo logradouro em questão nestes autos, com o traçado aqui invocado em nºs 50º, 51º e 58º deste articulado e para os indicados fins, constituída por destinação de pai de família e por usucapião.
g) Condenar-se a autora a abster-se da prática de atos ofensivos de tal posse.
h) Deve a autora ser ainda condenada em custas condigna procuradoria e no mais que for de lei.
Por sua vez a ré M – Administração de Imóveis, SA, apresentou contestação (fls. 333 vº) onde conclui entendendo que:
a) Deve ser julgada procedente, por provada, a exceção invocada e a ré absolvida da instância, com todas as devidas e legais consequências, ou, quando assim se não entender,
b) Deve a ação ser julgada improcedente, por não provada e a ré absolvida do pedido, sempre com todas as devidas e legais consequências.
Pela autora D – Confecções, Lda, foi apresentada réplica onde conclui como na petição inicial, devendo a reconvenção ser julgada não provada e improcedente com as legais consequências.
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Foi proferido o despacho de fls. 358, onde se admitiu a reconvenção, se fixou em €50.500,01 o valor da causa e se entendeu que a instância local – onde o tribunal restava a ser tramitado – deixou de ter competência para preparar e julgar a causa, determinando a remessa, após o trânsito, à Instância Central – Secção Cível, de Guimarães (comarca de Braga).
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B) Realizou-se audiência prévia, tendo as partes sido previamente notificadas da sua finalidade, destinada a facultar às partes a discussão de direito por eventual verificação da exceção dilatória da nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial (artigo 186º nº 2 b) e c) do Código de Processo Civil).
Foi proferido o seguinte despacho (fls. 393):
D - CONFECÇÕES, LDA, com sede na Rua de S. Dâmaso, 973, freguesia de Oliveira do Castelo, desta cidade de Guimarães, comarca de Braga, intentou contra: M - Administração de Imóveis, SA, com sede na indicada Rua de S. Dâmaso, freguesia de Oliveira do Castelo, desta cidade de Guimarães; FERNANDO F e mulher MARIA A, residentes na Avenida D. João IV, Bloco 10º, 7º esq.º, nesta cidade; ARMANDO T e mulher MARIA C, moradores na Rua do Monte de Trás, da dita freguesia de Oliveira do Castelo, deste concelho; e contra JORGE T e mulher MARIA M, residentes na Rua de Santa Maria, 1913, freguesia de Atães, deste concelho, a presente a ação de condenação, formulando os seguintes pedidos: todos os Réus serem condenados a: a) reconhecerem que, através da escritura várias vezes referida, celebrada entre a Ré M e a Autora, esta e aquela quiseram que do objeto vendido fizesse parte o logradouro atrás citado; b) verem retificada a escritura pública, e os correspondentes registo predial e inscrição matricial do prédio transmitido por forma a refletir essa pertença do logradouro à Autora. Quando assim se não entenda, ou não se venha a provar, deve a Ré M ser condenada a: c) devolver à Autora a importância de 2.000.000$00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da escritura até ao pagamento efetivo à Autora; Devem ainda todos os Réus ser condenados a: d) deixarem permanentemente o logradouro em causa completamente livre e devoluto, salvo para passagens ocasionais, por forma a jamais ser embaraçado o acesso da Autora ao seu prédio, quer com pessoas, quer com quaisquer veículos automóveis, designadamente camiões que aí precisam de carregar e descarregar a mercadoria produzida pela Autora; e) pagarem uma sanção pecuniária compulsória, de valor não inferior a 100,00€ por cada vez que eles próprios ou os seus veículos automóveis se colocarem em condições de dificultar ou impedir o livre acesso da Autora ao seu prédio; f) pagarem as custas do processo e procuradoria condigna a favor da Autora, visto que deram causa à ação.”
Alega, para tanto, que é proprietária de um prédio que identifica, o qual comprou à 1ª Ré por escritura pública de 23 de outubro de 2001, do qual faz parte integrante um terreno livre com cerca de 234 m2, tendo a celebração dessa escritura sido precedida de negociações com o 2º Réu Fernando F, enquanto representante daquela 1ª Ré.
Prossegue referindo que foi o 2º Réu quem propôs à Autora comprar também o referido terreno de 234 m2, pelo preço suplementar de 2.000 contos, o que foi aceite pela Autora que pagou o referido valor no ato da escritura.
Todavia, por diversos motivos, foi aceite pelos intervenientes naquela escritura que o negócio referente a tal terreno não fosse incluído na referida escritura pública de compra e venda.
Subsidiariamente e para o caso de os dois primeiros pedidos não serem procedentes, a Autora invocou o instituto do enriquecimento sem causa para sustentar o pedido de devolução dos 2.000 contos pagos autonomamente para compra daquele terreno livre de 234 m2, até porque a Autora já viu ser julgada improcedente uma ação de preferência em que alegava ser proprietária desse terreno para preferir na venda que a 1ª Ré fez aos 3ºs Réus de um outro prédio que, tal como o prédio dos Autores, beneficia de uma servidão de passagem, constituída por destinação do pai de família, sobre o referido terreno livre de 234 m2.
Cumulativamente com este pedido, pretende a Autora que todos os Réus deixem livre o referido terreno de 234 m2, alegando, para o efeito, que os 3ºs e 4ºs Réus vêm ocupando o referido logradouro com veículos, impedindo o acesso ao prédio da Autora.
Regular e pessoalmente citados, os 4ºs Réus Jorge T e mulher vieram contestar a fls. 262 e seguintes, alegando que o referido terreno livre nunca pertenceu à Autora e sempre foi utilizado por todos os proprietários dos quatro prédios com ele confinantes. Mais alegam que a carta subscrita por uma Srª. Advogada e junta pelos Autores a fls. 90 constitui uma prova nula, por não ter sido precedida da respetiva autorização da Ordem dos Advogados, de tudo o que concluem pela improcedência da ação.
A fls. 316 vieram os 3ºs Réus, Armando T e mulher, apresentar contestação, na qual aludiram à anterior ação de preferência intentada pela Autora contra a 1ª Ré e contra os 3ºs. Réus, e afirmaram que a Autora nessa ação não conseguiu provar que o terreno em causa fosse sua pertença e fizesse parte integrante do seu prédio, pelo que excecionaram o caso julgado e, para o caso de se entender que este não se verifica, esgrimiram também a exceção da autoridade de caso julgado. Mais alegaram que o acesso ao prédio de sua propriedade sempre foi efetuado através do terreno de logradouro em causa nos autos, pelo que concluíram pela improcedência da ação e, subsidiariamente, para o caso de a ação ser julgada procedente, deduziram o seguinte pedido reconvencional, peticionando a condenação da Autora a reconhecer que: “Os 3 RR. são donos e legítimos possuidores do prédio descrito no n.º 17 deste articulado; A favor dos 3ºs RR/ reconvintes e em benefício daquele seu prédio se encontra constituída uma servidão de passagem pelo logradouro em questão nestes autos, com o traçado aqui invocado em n.ºs 50º, 51º e 58º deste articulado e para os indicados fins, constituída por destinação de pai de família e por usucapião. g) Condenar-se a A. a abster-se da prática de atos ofensivos de tal posse.
Também a Ré M, S.A. apresentou contestação a fls. 233 verso e seguintes, na qual excecionou o caso julgado e, para o caso de se entender que este não se verifica, esgrimiu também a exceção da autoridade de caso julgado e impugnou a factualidade alegada pelos Autores, mais afirmando que não vendeu, nem transmitiu para a Autora a propriedade da parcela em causa, nem participou nas habilidades que permitiram à Autora, depois de realizar a compra do seu prédio, falsear a descrição matricial do respetivo artigo 1064. Mais alegou que não outorgou qualquer mandato ao Réu Fernando Marques Freitas para que o mesmo estabelecesse qualquer negociação com a Autora, sendo também incompreensível que a Autora vendesse essa parcela de terreno e deixasse encravado o seu prédio, que depois vendeu aos 3ºs. Réus, do que concluiu pela sua absolvição da instância, ou quando assim não se entenda, pela improcedência da ação.
Os Autores não deixaram de replicar a fls. 352 e seguintes, rejeitando a invocada ocorrência do caso julgado, dada a ausência de coincidência de causa de pedir e de identidade das partes e impugnou a factualidade alegada em sede de reconvenção, pugnando pela improcedência desta.
Constatado o falecimento do 2º Réu Fernando F, foi instaurado incidente de habilitação de herdeiros, no qual foram habilitados os respetivos herdeiros, os quais foram posteriormente também citados para a presente demanda.
Face às pretensões dos Autores, põe-se a questão da contradição do pedido com a causa de pedir e, por outro lado, incompatibilidade dos pedidos formulados a título subsidiário.
Diz-se inepta a petição quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir – art. 186º/2 b). do C. P. Civil.
O pedido deve ser corolário ou a consequência lógica da causa de pedir ou dos fundamentos em que assenta a pretensão do autor.
No caso, a Autora pretende que todos os Réus sejam condenados a verem a retificada a escritura pública, pese embora só a Autora e a 1ª Ré tenham tido intervenção na dita escritura pública, o que, não fora a infra demonstrada contradição, sempre teríamos uma ilegitimidade relativamente aos demais demandados.
Porém, verifica-se, desde logo, a nulidade de todo o processo, vista a contradição entre a causa de pedir e os ditos pedidos de declaração de que através da escritura quiseram vender o logradouro em causa e de verem retificada a escritura.
Com efeito, na sua alegação, a Autora alega precisamente que, por acordo dos intervenientes na dita escritura, foi decidido ser desnecessário que tal logradouro fosse incluído na escritura pública.
Tal alegação, enquanto parte da causa de pedir invocada, é manifestamente contraditória com o pedido formulado, porquanto é a própria Autora que alega que as partes não quiseram incluir na referida escritura o logradouro que agora, por via da retificação, pretende agora fazer introduzir na escritura.
Se a vontade das partes foi a de que tal logradouro não fosse incluído na escritura, é evidente que os dois pedidos formulados em primeiro lugar (de que as partes quiseram que o logradouro fizesse parte da escritura e a subsequente retificação) e a título principal são contraditórios com tal alegação.
De resto, sempre se dirá que tais pedidos estariam condenados à improcedência.
Com efeito, a retificação da escritura pública em causa só seria possível se e quando o respetivo notário tivesse nela inscrito qualquer erro de escrita ou nela tivesse exarado declarações diferentes das transmitidas pelas partes, sendo certo que, no caso, as declarações exaradas na escritura correspondem ao que foi querido pelas partes, ou seja, deixar de fora do objeto da escritura pública o terreno em causa com 234 m2.
Em suma, há ineptidão da petição inicial por contradição da causa de pedir com os pedidos formulados nas alíneas a). e b). da douta petição inicial.
Tal ineptidão determina, desde logo, a nulidade de todo o processo e a consequente absolvição dos Réus da instância.
Mas verifica-se ainda uma outra causa de ineptidão, por referência aos demais pedidos.
A ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis determina também a nulidade de todo o processo e, do mesmo modo, classifica-se legal e doutrinalmente como uma exceção dilatória, conducente à absolvição do R. da instância (cfr. artºs. 186º/1 e 2, 577º/1 b). e 278º/1 b). do Código de Processo Civil).
Nos termos do disposto no artº. 555º/1 do Código de Processo Civil, são de considerar incompatíveis os pedidos cuja procedência produza efeitos jurídicos incompatíveis entre si ou quando o reconhecimento de um deles exclua a possibilidade de verificação dos restantes.
Assim, são de considerar incompatíveis, não só os pedidos que mutuamente se excluam como também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis (neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”; 2ª Ed.; p.246; nota 4).
Relativamente à incompatibilidade de pedidos, ensina o Professor Alberto dos Reis que tal incompatibilidade é intrínseca ou substancial, ou seja, respeita «à incompatibilidade de providências que o autor solicita ao tribunal ou à incompatibilidade de efeitos jurídicos que o autor se propõe obter com os vários pedidos» (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.°, Coimbra Editora, 1945, p.390).
Em suma, a incompatibilidade substancial entre pedidos pressupõe que o juiz seja colocado perante pretensões que se excluem reciprocamente, de tal modo que não é possível dar procedência a todas elas.
Verifica-se, desde logo, uma cumulação de causas de pedir que se excluem mutuamente.
Com efeito, a Autora tanto alega que é proprietária do logradouro em causa, como também se refere a tal logradouro como constituindo o solo, com sinais visíveis e permanentes de passagem, de uma servidão de passagem a favor do seu prédio (cfr. artº. 30º da douta petição inicial), alegação essa que, obviamente, é totalmente contraditória nos seus próprios termos.
Por outro lado, os dois últimos pedidos formulados não o são em termos alternativos, nem mesmo numa relação de subsidiariedade, apresentando-se, antes pelo contrário, sob a forma de cumulação pura e simples, ou simultânea, pretendendo os Autores a procedência, por igual, de todos esses pedidos formulados sob as alíneas c). e d). da petição inicial.
No caso em apreço, verifica-se uma incompatibilidade dos efeitos jurídicos pretendidos pelos Autores com os dois pedidos apresentados a título subsidiário neste processo.
Com efeito, no primeiro dos pedidos subsidiários, a Autora pretende obter o reembolso dos Esc. 2.000.000,00 que alega ter pago pelo terreno em causa (pressupondo, portanto, que se considere que o mesmo não é de sua propriedade), com base no enriquecimento sem causa, ao mesmo tempo, que pretende que todos os Réus deixem o terreno de logradouro em causa, completamente livre e devoluto.
Ora, é evidente que não pode a Autora pretender que a 1ª Ré lhe devolva o preço que diz ter pago pelo logradouro e ao mesmo tempo que esta seja condenada a deixar o terreno livre e devoluto, posto que o primeiro pressupõe a destruição dos efeitos do alegado negócio de compra e venda e o segundo desses pedidos implicar a manutenção desses mesmos efeitos.
Ou seja, é substancialmente contraditória a pretensão de manter a livre disponibilidade e utilização do terreno em causa com a pretensão de se ver reembolsada do valor da respetiva putativa compra não formalizada, ademais quando é convocado o instituto subsidiário do enriquecimento sem causa.
Acresce, ainda, que relativamente ao pedido formulado em d). da douta petição inicial há uma evidente falta de causa de pedir no que se refere aos 1º e 2º Réus, porquanto não foi alegado qualquer facto do qual se possa concluir que estes impedem a passagem da Autora pelo referido trato de terreno ou, por qualquer meio, ocupam tal logradouro.
Como é sabido e resulta dos citados normativos, a ineptidão da petição inicial é insuprível, salvo no caso – que aqui não ocorre – de ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir e desde que o réu conteste arguindo essa ineptidão e, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (cfr. artº. 186º/1 a). e 3 do C. P. Civil).
Nos restantes casos, como é o presente, a ineptidão é insuprível e implica a nulidade de todo o processo.
Por tudo o exposto e nos termos das supra citadas normas, julgo inepta a petição inicial e, em consequência, declaro nulo todo o processo e absolvo os Réus da instância.
Custas a cargo da Autora.
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C) Inconformada, a autora D – Confecções, Lda, veio interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 447).
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Nas alegações de recurso da autora D – Confecções, Lda, são formuladas as seguintes conclusões:
1 – A autora propôs a ação alegando que:
a) Em 23/10/2001 comprou à 1ª ré M, após negociações estabelecidas em nome desta pelo 3.º réu Fernando F, um prédio urbano destinado a indústria, e, conjuntamente com este, e por um preço autónomo, um terreno anexo ao mesmo prédio, que as partes pretenderam, efetivamente, vender e comprar, mas que, por erro por elas cometido, não foi integrado previamente na inscrição matricial do prédio urbano adquirido, que é completamente encravado, consistindo aquele erro no facto de terem suposto que, como ato prévio à escritura, era dispensável a retificação da matriz e do registo predial, atentas as boas relações pessoais existentes entre as partes e a convicção de que por isso a questão da omissão de transmissão nunca seria posta;
b) Ficou desde logo ocupando esse terreno, para acesso de e para o seu prédio urbano, pelo qual também tinham necessariamente de passar os proprietários de um outro prédio urbano, então também da autora e que esta viria a vender aos 3.ºs réus, Armando T e mulher Maria C, mais tarde, em 3/10/2005, o mesmo sucedendo com um outro prédio urbano existente no local, este pretensamente pertencente aos 4.ºs réus Jorge T e mulher Maria Ms, e que estes igualmente teriam adquirido da 1.ª ré, após aquela última data;
c) Aquando da transmissão do prédio urbano adquirido pela autora, no referido logradouro anexo ficaram sinais visíveis e permanentes (escadas, terreno cimentado defronte do prédio da autora) que evidenciavam, pelo menos, a existência de uma servidão de passagem por destinação do antigo proprietário, comum a todos os prédios, e em benefício de todos os proprietários em causa;
d) Após a venda pela 1.ª ré aos 3.ºs réus do prédio urbano destes, a autora, porque convencida de que era proprietária efetiva do referido logradouro, sobre o qual o prédio urbano dos 3.ºs réus tinha uma servidão legal de passagem, propôs ação de preferência na venda, que viria a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado, por ter sido entendido que o terreno em questão não podia ser considerado como vendido pela ré M, sendo ainda de sua propriedade, por não ter sido integrado no título de transmissão, e o negócio nessa parte não poder ser dado por provado, por resultar apenas do depoimento de testemunhas, em conformidade com o artigo 394.º do Código Civil, e dever constar de documento.
2 – Considerando que a 1ª ré se arroga da propriedade do terreno, que os 2.ºs réus, que representaram a 1.ª ré nas negociações que precederam a escritura, negam que existiu o propósito de inclusão do terreno no negócio projetado, que os 3.ºs e 4.ºs réus ocupam parcialmente esse terreno, pelo qual a autora tem o único acesso possível ao seu prédio, invocando, não apenas que o terreno é propriedade da 1.ª ré, como que esta lhes transmitiu direitos sobre o mesmo, designadamente de trânsito, acesso e permanência, a autora propôs, então a ação contra os mesmos réus, formulando os seguintes pedidos:
De condenação de todos os Réus a (numa das hipóteses apenas da ré vendedora):
- Reconhecerem que, através da escritura referida, a autora e a ré M quiseram que do objeto vendido fizesse parte o logradouro em causa; e, por isso,
- Verem retificada a escritura pública, e os correspondentes registo predial e inscrição matricial do prédio transmitido por forma a refletir essa pertença do logradouro à autora ou; em alternativa,
- Devolver (somente a ré M) à autora a importância de 2.000.000$00, acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da escritura até ao pagamento efetivo à autora;
- Deixarem permanentemente o logradouro em causa completamente livre e devoluto, salvo para passagens ocasionais, por forma a jamais ser embaraçado o acesso da Autora ao seu prédio, quer com pessoas, quer com quaisquer veículos automóveis, designadamente camiões que aí precisam de carregar e descarregar a mercadoria produzida pela Autora;
- E pagarem uma sanção pecuniária compulsória por cada vez que qualquer desses réus por si ou com seus veículos automóveis dificultarem ou impedirem o acesso da autora ao seu prédio.
3 – O despacho recorrido julgou inepta a petição inicial, com a consequência de declarar nulo todo o processo e de os réus serem absolvidos da instância, julgando, ainda, que a ineptidão é insuprível nos termos do artigo 186.º, n.º 1 e 2 al. a) (falta ou ininteligibilidade da causa de pedir ou do pedido), b) (contradição do pedido com a causa de pedir) e c) (cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis) do Código de Processo Civil, invocando para o efeito as seguintes razões:
a) Sendo alegado pela autora, como causa de pedir, que ela e a 1.ª ré aceitaram que da escritura de compra pela autora do prédio urbano identificado na petição inicial fosse excluído o negócio referente a um terreno que a autora reivindica como seu, e cuja venda teria sido simultaneamente combinada entre as partes, não pode a autora formular o pedido de retificação da escritura pública por omissão dela relativamente ao referido negócio do indicado terreno, porque esse pedido é incompatível com a referida causa de pedir;
b) Sendo invocado pela autora, como causa de pedir, para a hipótese de a retificação da escritura não ser ordenada, o instituto do enriquecimento sem causa para lhe ser devolvido o preço pago autonomamente para compra desse terreno, não pode a autora, cumulativamente, pedir que todos os réus sejam condenados a deixar livre esse terreno, que os réus ocupam, porque a ser-lhe devolvido o preço, o negócio ficará destruído, e por isso ela ficará sem título bastante para reivindicar o que quer que seja em relação ao terreno;
c) Pretendendo a autora que ela e a 1.ª ré retifiquem a escritura pública de compra atrás citada, mercê dos factos apontados atrás como causa de pedir, como na retificação da escritura só a autora e a 1.ª ré deviam intervir, os restantes réus são partes ilegítimas, não sendo admissível o mesmo pedido em relação a eles;
d) Tendo a autora alegado, como causa de pedir que por acordo entre os intervenientes na escritura foi decidido ser desnecessário que tal logradouro fosse incluído na mesma escritura, tal alegação, enquanto parte causa de pedir invocada, é contraditória com o pedido formulado, porque se a vontade das partes foi que o logradouro não fosse incluído na escritura, quer o pedido de retificação desta, quer o pedido de condenação dos réus a reconhecerem que o logradouro fazia parte da escritura, são contraditórios com aquela alegação;
e) Os pedidos – de retificação da escritura ou, em alternativa, de devolução do preço pago – sempre estariam condenados à improcedência, pois a retificação da escritura só seria possível quando o notário tivesse cometido qualquer erro de escrita ou feito constar declarações diferentes das transmitidas pelas partes, o que não sucedeu, o que acarreta ineptidão da petição inicial por contradição entre esses pedidos formulados sob as alíneas a) e b);
f) Existe incompatibilidade substancial entre pedidos, por formulação de pretensões que se excluem reciprocamente, e, por isso, cumulação de causas de pedir que igualmente se excluem, porque a autora tanto alega que é proprietária do terreno em causa, como alega que tem sobre ele um direito de servidão de passagem a favor do seu prédio, o que é contraditório nos seus próprios termos;
g) Os dois últimos pedidos formulados, sob as alíneas d) e e) (condenação de todos os réus a deixarem o logradouro em causa completamente livre e devoluto por forma a não ser embaraçado o acesso da autora ao seu prédio com pessoas e veículos automóveis, designadamente para cargas e descargas de mercadoria, e condenação de todos os réus a pagarem uma sanção pecuniária compulsória se dificultarem ou impedirem efetivamente livre acesso da autora) não o sendo em termos alternativos, nem numa relação de subsidiariedade, mas sob a forma de cumulação pura e simples ou simultânea, são entre si incompatíveis quanto aos efeitos jurídicos pretendidos pela autora, pois, quanto à 1.ª ré se a autora pretende, em alternativa, que lhe seja devolvido o preço pago, o que pressupõe a destruição dos efeitos do negócio, não pode, ao mesmo tempo pretender que seja condenada a deixar o terreno livre e devoluto, porque esse pedido implica a manutenção dos efeitos do mesmo negócio;
h) No que respeita ao pedido formulado na alínea d) (condenação de todos os réus a deixarem o logradouro em causa completamente livre e devoluto por forma a não ser embaraçado o acesso da autora ao seu prédio com pessoas e veículos automóveis, designadamente para cargas e descargas de mercadoria) há uma evidente falta de causa de pedir no que se refere aos 1.º e 2.os réus, por falta de alegação de factos de onde se possa concluir que estes impedem a passagem da autora pelo referido trato de terreno.
4 – Ora, a decisão assim sumariada, para além de parcialmente nula, é desconforme ao direito, baseando-se, de resto, em pressupostos de facto inexistentes e diversos dos que foram alegados, o que só pode explicar-se por incompreensão da matéria articulada, ou por desatenção à mesma.
5 – Com efeito, ao referir-se no relatório do despacho em causa o objeto da ação, sustenta-se que a autora alegou que “foi aceite pelos intervenientes naquela escritura que o negócio referente a tal terreno não fosse incluído na referida escritura pública”, alegação que, porém, a autora em lado algum fez (cfr. os artigos 7º, 12º, 13º, 17º, 18º, 20º e 21º da petição inicial, de onde fácil é constatar o que a autora alegou foi, bem pelo contrário que o negócio de compra do terreno fazia parte do negócio formalizado pela escritura pública, porque assim foi querido, embora as partes tivessem entendido, por erro, que era desnecessário proceder previamente às retificações da matriz e conservatória que permitissem integrar o terreno no prédio urbano alienado), pelo que a afirmação feita naquele segmento da decisão recorrida é completamente destituída de correspondência com a realidade processual, carecendo de ser retificada, o que constitui a nulidade prevista pelo artigo 615.º, n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil (fundamentos em oposição com a decisão).
6 – Por outro lado, no mesmo douto despacho, ao pretender-se justificar uma cumulação, aliás inverificada, de causas de pedir incompatíveis sustenta-se que “a autora tanto alega que é proprietária do logradouro em causa como se refere a tal logradouro como constituindo (…) uma servidão de passagem a favor do seu prédio”, afirmação que é também completamente desconforme com o alegado, como se demonstra com o próprio artigo 30º da petição inicial que seria suposto fundamentá-la, pois o que aí se diz é que no logradouro ficaram sinais visíveis e permanentes “que evidenciavam, pelo menos, a existência de uma servidão legal de passagem (…) em benefício de todos os outros prédios”, isto é, a autora não apenas alegou que a servidão em causa, a existir, não se confundia com a propriedade que invocava (por isso usou a locução “pelo menos”) como alegou ainda que a servidão beneficiava não o seu prédio, mas todos os outros prédios, pelo que a citada passagem evidencia mais uma nulidade, desta vez por oposição entre os fundamentos e a decisão, de que importa conhecer, corrigindo-se a afirmação errada assim feita.
7 – Por último, ainda no domínio das nulidades, não tendo os 2.os réus contestado a ação daí poderiam resultar uma de duas consequências (ou, nos termos do artigo 567.º do Código de Processo Civil se consideravam confessados os factos articulados pela autora, ou, nos termos do artigo 568.º do mesmo Código se aproveitava quanto a eles o alegado pelos outros réus), mas o despacho recorrido, não aludindo sequer a qualquer delas, cometeu uma outra nulidade, esta por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, de que importa conhecer, decidindo-se o que não se decidiu.
8 – Para além da comissão dessas nulidades, o despacho recorrido é completamente inaceitável e viola manifestamente a lei, por total falta de fundamento, como se demonstra:
a) As partes (a autora e a 1.ª ré) não decidiram que o negócio de logradouro fosse excluído do negócio da venda do prédio urbano, antes não o incluíram por erro (cfr. artigo 7º da petição inicial), mas não é apenas a 1.ª ré que tem legitimidade para o pedido de retificação da escritura, apesar de só ela na retificação dever intervir, pois todos os outros réus têm de ser convencidos da legalidade desse pedido: os 2.ºs réus porque foram eles que, em representação da 1.ª ré, negociaram a venda do logradouro; os 3.ºs e 4.ºs réus porque, tendo comprado os respetivos prédios posteriormente ao da autora, já não podiam ter comprado qualquer direito de servidão ou uso sobre um terreno que já não era da 1.ª ré;
b) Não é verdade que esses pedidos (retificação da escritura ou devolução do preço) “estariam condenados à improcedência”, quer porque o fundamento invocado (a retificação da escritura só seria possível se tivesse havido um erro do notário) não é verdadeiro, quer porque o segundo pedido, sendo alternativo em relação ao primeiro, sempre seria de considerar na improvável hipótese de o mesmo improceder;
c) De resto, o pedido de retificação da escritura está feito em rigorosa conformidade com o que dispõe o artigo 132.º do Código do Notariado, pois o que a autora pede é que a 1.ª ré seja condenada (cfr. o pedido das alíneas a) e b) da petição inicial) a ver “retificada a escritura pública e os correspondentes registo predial e a inscrição matricial do prédio transmitido por forma a refletir essa pertença do logradouro à autora”), o que é expressamente previsto naquele dispositivo legal, sendo certo que em muitas outras hipótese é possível retificar escrituras sem que seja necessário invocar qualquer erro do notário (por exemplo quando for alegado erro, dolo, coação, reserva mental, incapacidade, divergência não intencional ou intencional entre o dito e o querido dizer, pelo que não ocorre, nessa parte qualquer ineptidão da petição inicial;
d) Também não existe qualquer contradição entre o pedido de retificação da escritura, a outorgar apenas pela 1.ª ré, e a condenação de todos os réus a verem a escritura retificada, porque, se é verdade que apenas a 1.ª ré tem de outorgar a escritura de retificação, não é menos verdade que em relação ao pedido os demais réus têm interesse em contradizer, porque eles terão adquirido, posteriormente à autora, da 1.ª ré direitos incompatíveis com o que virá a constar da escritura retificada, e eventualmente, poderão vira a ser prejudicados com as consequências da retificação, de onde resulta também a legitimidade de todas as partes quanto a esse pedido;
e) Por outro lado, não é verdade, como também já vimos a propósito da arguição da correspondente nulidade, que “A autora tanto alega que é proprietária do logradouro em causa, como também se refere a tal logradouro como constituindo o solo, com sinais visíveis e permanentes de passagem, de uma servidão de passagem a favor do seu prédio (cfr. artigo 30º da petição inicial) alegação essa que obviamente é totalmente contraditória nos seus próprios termos”, pois o que a autora refere é que se se não provar a sua propriedade sobre o terreno em causa, ou se este não lhe for transmitido, mercê da retificação da escritura, ela teria, como todos os demais proprietários dos prédios existentes no local, “pelo menos” uma servidão de passagem extensiva aos demais réus, pelo que de igual modo é incorreto afirmar que a autora formula pedidos entre si incompatíveis (cfr. os artigos 26º, 27º, 28º, 29º, 30º e 31º da petição inicial);
f) Ainda sem prescindir, também não é verdade que os dois últimos pedidos formulados (condenação de todos os réus a deixarem o logradouro em causa completamente livre e devoluto por forma a não ser embaraçado o acesso da autora ao seu prédio com pessoas e veículos automóveis, designadamente para cargas e descargas de mercadoria, e condenação de todos os réus a pagarem uma sanção pecuniária compulsória se dificultarem ou impedirem efetivamente livre acesso da autora) por o serem sob a forma de cumulação simples são incompatíveis com os efeitos jurídicos pretendidos com os dois pedidos formulados a título subsidiário no processo, pois o pedido de devolução do preço feito contra a 1.ª ré não é contraditório com a pretensão de a autora manter a livre disponibilidade e utilização do terreno em questão porque quer a autora seja proprietária do terreno, quer seja apenas titular de um direito de uso ou passagem pelo mesmo, sempre vem assacado aos 3.ºs e 4.ºs réus, na sequência de direitos que estes sustentam ter adquirido dos 1.ª e 2.ºs réus, a violação quer do direito de trânsito da autora pelo terreno, quer o direito de propriedade desta, pois aos 4.ºs réus é imputado também a ocupação do próprio prédio urbano da autora, como inequivocamente resulta do alegado no artigo 58º da petição inicial;
g) Por fim, não é também verdade que relativamente ao pedido formulado em d) haja falta de pedir relativamente aos 1.ª e 2.ºs réus, por não ter sido alegado que qualquer deles impedem a passagem da autora pelo referido trato de terreno, porque esses réus não podem deixar de ser corresponsabilizados com os 3.ºs e 4.ºs réus em relação aos atos a estes imputados, mas que eles realizam na sequência de pretensos negócios de transmissão de propriedade, celebrados com a 1.ª ré, não podendo esquecer-se que foi esta quem, em negócios sucessivos e distintos, transmitiu quer para a autora, quer para os 3.ºs e 4.ºs réus a propriedade dos prédios que estes adquiriram, devendo naturalmente assegurar a todos os necessários direitos de acesso aos mesmos prédios;
9 – Está assim plenamente justificada a legitimidade ativa e passiva das partes, e a compatibilidade formal e substancial de todas as causas de pedir e respetivos pedidos, pelo que não ocorre nulidade alguma da petição inicial, nem esta é inepta.
Termina entendendo dever revogar-se o despacho recorrido, por mal fundado, conhecer-se das apontadas nulidades, e, com ou sem verificação e decisão acerca destas, determinar-se o prosseguimento do processo.
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Os réus e apelados Armando T e Maria C apresentaram resposta, onde entendem dever ser negado provimento ao recurso interposto pela apelante e ser mantida a douta sentença recorrida, com todas as devidas e legais consequências.
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Por sua vez a ré e apelada M - Administração de imóveis, SA, apresentou resposta onde entende dever ser julgado improcedente o recurso interposto pela apelante e mantida a douta decisão proferida pelo tribunal a quo.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir na apelação são as de saber:
1) Se a decisão recorrida é nula;
2) Se deverá ser alterada a decisão recorrida.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) A autora D – Confecções, Lda, vem invocar a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil, por contradição entre a decisão e os fundamentos da mesma, na medida em que na decisão recorrida se afirma que:
a) “…foi o 2 Réu quem propôs à autora comprar também o terreno de 234m2, pelo preço suplementar de 2000 contos, o que foi aceite pela autora que pagou o referido valor no ato da escritura”.
E logo a seguir
b) “Todavia, por diversos motivos, foi aceite pelos intervenientes naquela escritura que o negócio referente a tal terreno não fosse incluído na referida escritura pública”.
“Esta última afirmação, se constasse do articulado, seria, de facto, incompatível com a primeira e com os pedidos, mas, o certo é que não consta. O que consta é coisa bem diferente.”
E, para justificar a sua posição, invoca o por si alegado nos itens 7º, 12º, 13º, 17º, 19º, 20º e 21º da petição inicial, onde consta:
“7º Esse terreno, livre e fronteiro ao prédio da autora como terreno de logradouro, tem uma área de cerca de 234m2 e só por lapso cometido pelas partes aquando da celebração da escritura pública, não foi, como devia ter sido formalmente integrado no prédio adquirido pela autora, visto que estava integrado e pertencia ao prédio propriedade da alienante M e esta quis transmitir a sua propriedade para a autora.
12º O referido Fernando F propôs-lhe então que comprasse também o referido terreno de logradouro, que acima se diz ter a área de 234 m2, para o que o mesmo lhe seria transmitido também em propriedade exclusiva, desde que a Autora pagasse, por esse trato de terreno, o preço suplementar de 2000 contos.
13º A Autora aceitou essa parcela do negócio, tendo, em consequência, ficado combinado que na venda do prédio se integrava esse outro terreno livre, de logradouro, situado, como se disse, a Norte, Poente e Sul da construção urbana destinada a fins industriais, e pagou os referidos 2.000 contos, no ato da escritura.
(…)
17º Todas as negociações que levaram à concretização do negócio foram assessoradas pela Exma. advogada desta comarca, Dra. Paula M, pessoa que era da confiança de ambas as partes, cujo escritório representava profissionalmente e há muitos anos o referido Fernando Freitas, e que recebeu no seu gabinete, não apenas as duas partes interessadas, como, depois de tudo combinado, um filho do referido Fernando F, que lhe fez a entrega dos documentos necessários à outorga da escritura.
18º Havia, assim, entre as partes intervenientes na escritura, e entre estas e advogada que ambas representou, mútuas e excelentes relações pessoais, e de grande confiança.
19º A Autora chamou a atenção daquela Senhora advogada para a vantagem de, previamente à escritura, serem retificadas quer a matriz predial, quer a inscrição registral, por forma a que estas refletissem essa realidade, ou seja, que o prédio destinado a indústria integrava também o referido logradouro ou terreno livre, como acima se designa.
20º No entanto, quer a M, quer essa Senhora advogada, considerando que o questionado terreno sempre esteve funcionalmente adstrito à construção fabril, porque nele, no passado, estiveram construídos os balneários do pessoal que laborava no prédio fabril, entenderam ser desnecessária qualquer outra formalização.
21º Por essa razão, a escritura de compra viria a ser outorgada na referida data, sem que no objeto do negócio fosse formalmente incluído o referido terreno, não obstante a Autora ter ficado, desde logo, na sua posse imediata e sem oposição de quem quer que fosse, designadamente da Ré M.”
Refere ainda a apelante que as partes assentaram que o negócio referente a esse terreno era incluído no negócio formalizado pela escritura pública.
Porém, não tem razão a apelante.
Com efeito, recorde-se que, conforme consta da decisão recorrida, a autora alega que, por acordo dos intervenientes na dita escritura, foi decidido ser desnecessário que o logradouro em causa fosse incluído na escritura pública, situação que resulta inequivocamente do teor dos artigos 19º, 20º e 21º da petição inicial, acima transcritos.
E, efetivamente, essa causa de pedir é manifestamente contraditória com o pedido formulado pela autora de pretenderem incluir na referida escritura que o logradouro fizesse parte do objeto vendido, retificando-se a escritura pública [alíneas a) e b) do pedido].
Quanto à segunda invocada nulidade resulta do facto de a decisão recorrida ter entendido – e bem – verificar-se a ineptidão da petição inicial por cumulação de causas de pedir incompatíveis resultantes da alegação da autora de ser proprietária do referido logradouro, como constituindo, face à existência de sinais visíveis e permanentes de passagem, uma servidão de passagem.
No item 30º da petição inicial afirma-se que “Aquando da venda do prédio à autora ficaram no referido logradouro, sinais visíveis e permanentes (escadas cavadas no solo, passagem em corredor e terreno defronte do prédio da autora, este cimentado em toda a sua extensão) que evidenciavam, pelo menos, a existência de uma servidão legal de passagem, constituída por destinação do antigo proprietário, sobre o referido terreno e em benefício de todos os outros prédios.”
Refere a apelante que “a expressão “pelo menos” tem evidentemente um sentido inequívoco: a autora é proprietária, mas, se não for, é “pelo menos” contitular de uma servidão de passagem.
Não pode haver dúvidas sobre a contradição existente mediante a invocação da qualidade de proprietário ou beneficiário de uma servidão de passagem, dado que têm uma estrutura diferente e são incompatíveis entre si e não é pelo facto de se intercalar a expressão “pelo menos” na alegação, que tal contradição é sanada.
É que a substância dos direitos reais em causa é diversa e contraditória e a expressão “pelo menos” não permite ultrapassar a contradição, face à incompatibilidade entre ambos.
De resto, o animus de quem possui em termos de proprietário, não é compatível, com a intenção de possuir em termos de direito de servidão de passagem, em termos de posse e de aquisição originária.
Daí que inexista a invocada nulidade que, aliás, nunca existiria, uma vez que nunca se verificaria a hipótese prevista no artigo 615º nº 1 alínea c) NCPC.
Mas a apelante vem ainda invocar uma terceira alegada nulidade decorrente o facto de a autora não ter sido notificada de qualquer contestação e terem sido alegados factos imputados apenas aos segundos réus, designadamente, ao réu marido, que teriam como consequência a confissão dos factos articulados pela autora, nos termos do disposto no artigo 567º do Código de Processo Civil, pelo que houve omissão de pronúncia (artigo 615º nº 1 alínea d) NCPC.
Mas sem qualquer razão, diga-se.
É que, desde logo, há uma ordem de conhecimento das questões suscitadas, ou que a lei permite conhecer oficiosamente e, a ineptidão da petição inicial, gera a nulidade de todo o processo (artigo 186º NCPC), constituindo uma exceção dilatória (artigo 577º alínea b) NCPC), de conhecimento oficioso (artigo 578º NCPC) e só após o conhecimento das questões de natureza processual referidas no artigo 595º nº 1 alínea a) NCPC), se podem apreciar as questões de natureza substantiva, motivo pelo qual não há qualquer omissão de pronúncia, assim improcedendo a invocada nulidade.
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Refere a apelante que todos os réus têm legitimidade passiva para serem demandados quanto aos pedidos formulados sob os itens a) e b), que – recorde-se – consiste na pretensão de condenação de todos os réus:
a) A reconhecerem que, através da escritura várias vezes referida, celebrada entre a ré M e a autora, esta e aquela quiseram que, do objeto vendido, fizesse parte o logradouro atrás citado;
b) Verem retificada escritura pública e os correspondentes registo predial e inscrição matricial do prédio transmitido por forma a refletir essa pertença do logradouro à autora.
Quanto a estes pedidos importa ter-se em consideração que, conforme se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/07/2015, relatado pelo Desembargador António Santos, “nesta matéria (a da legitimidade das partes), dispõe o artigo 30º do Cód. de Proc. Civil que:
«1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.»
A disposição legal acabada de citar como que define a legitimidade como o poder de dirigir o processo através da titularidade do objeto do processo (a relação controvertida).
Assim, pelo lado ativo, será parte legítima quem tiver interesse direto em demandar e, será parte legítima, como réu (lado passivo), quem tiver interesse direto em contradizer, sendo que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Já o nº 3 da disposição legal referida, ao fixar uma regra supletiva para a determinação da legitimidade, estipulando que sempre que a lei não disponha de outro modo, considerar-se-ão como titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida, tal com é ela configurada pelo autor, de uma vez por todas veio pôr termo à polémica entre os defensores da corrente subjetivista e os da corrente objetivista.
Elucidativa é, de resto e a propósito, o que no preâmbulo do D.L. 329-A/95, de 12/12 foi escrito, designadamente que "decidiu-se (..) após madura reflexão, tomar posição expressa sobre a vexata quaestio do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes visando" (…) “pôr termo a uma querela jurídico-processual que há várias décadas se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência sem que se haja até agora alcançado consenso".
E logo se acrescenta em seguida que “partiu-se, para tal, de uma formulação de legitimidade semelhante à adotada no D.L. 224/82 (de 8/06) e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto do Reis".
Ora, adiantando razões, dir-se-á que, na questão da escritura referenciada nos autos são titulares da relação controvertida as partes intervenientes na mesma, isto é, no que aqui interessa, a autora e a 1ª ré, sendo os demais réus parte ilegítima, quanto aos pedidos em causa, pelo que bem decidiu o tribunal recorrido.
Refere ainda a apelante que o que pretende quanto à retificação “é que a 1.ª ré seja condenada a corrigir o registo predial e a inscrição matricial correspondentes ao prédio que adquiriu e que, depois, seja retificada a escritura em conformidade, porque, segundo alega, “através da escritura (…) celebrada entre a ré M e a autora, esta e aquela quiseram que do objeto vendido fizesse parte o logradouro” (pedido da alínea a)) e, por isso, devem todos os réus ser condenados a “verem retificada a escritura pública, e os correspondentes registo predial e inscrição matricial do prédio transmitido por forma a refletir essa pertença do logradouro à autora”.
Conforme já tivemos oportunidade de aflorar, não faz qualquer sentido, de acordo com as regras da legitimidade, tal como se expôs, por não serem titulares da relação controvertida em causa – contrato de compra e venda – a intervenção dos réus, para além da autora e da primeira ré, uma vez que nenhum interesse direto têm na causa.
E nem se diga – como o faz a autora e apelante – que se a retificação fosse ordenada sem simultânea condenação dos demais réus, a autora teria posteriormente de em nova ação tentar convencer estes que, contra o que supunham, afinal nenhum direito ao terreno podiam ter adquirido da 1.ª ré, ou só podiam adquirir sobre ele qualquer direito se lhes fosse transmitido pela autora, uma vez que eventuais direitos que tenham adquirido da 1ª ré, relativamente ao logradouro, se pretender impugná-los, terá de o fazer numa outra ação, embora, para tanto, tenha, primeiro, de convencer sobre a titularidade sobre aquele.
Improcede, assim, a pretensão da apelante.
No que se refere à “pretensa” impossibilidade de retificação da escritura pública e a “pretensa” causa de pedir com os pedidos formulados nas alíneas a) e b), refere a apelante que no caso concreto foi invocado pela autora que, por erro dela e da 1ª ré, o terreno em causa não foi formalmente integrado no prédio efetivamente comprado pela autora, sendo a retificação possível desde que a ré vendedora, como ato prévio à retificação, corrija o que consta da matriz e o que consta da conservatória.
Conforme já se referiu, face à ineptidão da petição inicial por contradição entre as causas de pedir, já acima expostas, cujos fundamentos nos dispensamos de repetir, mostra-se inviável a pretensão formulada.
Também quanto à questão relativa à alegação simultânea da qualidade de proprietária e de beneficiária da servidão de passagem, já nos pronunciamos e remetemos para o acima expendido.
No que se refere à “pretensa” incompatibilidade entre os dois últimos pedidos (condenação de todos os réus a deixarem permanentemente o logradouro em causa livre e devoluto e a pagarem uma sanção pecuniária compulsória por cada vez que eles próprios ou os seus veículos automóveis embaracem o acesso da autora à sua fábrica), a apelante refere que “segundo o despacho recorrido, os dois últimos pedidos só poderiam ser formulados em alternativa ou numa relação de subsidiariedade, nunca sob a forma de cumulação pura e simples ou simultânea.”
Porém, não é exatamente isso que se afirma no despacho recorrido.
Antes aí se afirma que “no caso em apreço, verifica-se uma incompatibilidade dos efeitos jurídicos pretendidos pelos Autores com os dois pedidos apresentados a título subsidiário neste processo.
Com efeito, no primeiro dos pedidos subsidiários, a Autora pretende obter o reembolso dos Esc. 2.000.000,00 que alega ter pago pelo terreno em causa (pressupondo, portanto, que se considere que o mesmo não é de sua propriedade), com base no enriquecimento sem causa, ao mesmo tempo, que pretende que todos os Réus deixem o terreno de logradouro em causa, completamente livre e devoluto.
Ora, é evidente que não pode a Autora pretender que a 1ª ré lhe devolva o preço que diz ter pago pelo logradouro e ao mesmo tempo que esta seja condenada a deixar o terreno livre e devoluto, posto que o primeiro pressupõe a destruição dos efeitos do alegado negócio de compra e venda e o segundo desses pedidos implica a manutenção desses mesmos efeitos.”
As razões expostas pela decisão recorrida são perfeitamente válidas e, como tal, se manterão.
Por último, relativamente à “pretensa” incompatibilidade entre o pedido de devolução do preço pela 1.ª ré e da destruição do alegado negócio de compra à 1.ª ré com a condenação de todos os réus de deixarem o terreno livre e devoluto bem como a pretensa falta de causa de pedir relativamente ao pedido de condenação da 1.ª e dos 2.ºs réus a deixarem o logradouro disponível para a passagem e acesso da autora à sua fábrica), remetemos para a apreciação feita ao item anterior, bem como ao facto de, conforme se refere na decisão recorrida, não ter sido alegado qualquer facto do qual se possa concluir que o 1º e 2º réus impedem a passagem da Autora pelo referido trato de terreno ou, por qualquer meio, ocupam o referido logradouro.
Por todo o exposto, resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, confirmar-se a douta sentença recorrida.
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D) Em conclusão:
1) Existe contradição entre a alegação de que, por acordo dos intervenientes numa escritura de compra e venda de um prédio urbano, foi decidido ser desnecessário que um logradouro, anexo àquele, fizesse parte do objeto vendido, com o pedido formulado pela autora de pretender incluir na referida escritura que o logradouro fizesse parte do objeto vendido;
2) Existe cumulação de causas de pedir incompatíveis quando se alega que a autora é proprietária do referido logradouro, ou, pelo menos constitui, face à existência de sinais visíveis e permanentes de passagem, uma servidão de passagem.
***
III. DECISÃO
Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
*
Guimarães, 07/12/2016