Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3474/11.0TBBRG.G1
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: TRESPASSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Trespasse define-se como o contrato que consiste na transmissão a outrem da titularidade de um estabelecimento comercial ou industrial enquanto unidade global ou universalidade, de forma definitiva, gratuita ou onerosa.
II. O contrato celebrado com terceiro, mediante o qual o trespassante se comprometeu a adquirir certo produto (café) e recebeu, como contrapartida, certa quantia e certo equipamento (em regime de comodato), não se inclui no trespasse, ademais quando se visou transmitir o estabelecimento livre de passivo e de ónus ou encargos.
Decisão Texto Integral: Recorrentes: - D…, Lda, I… e, J…
Recorridas: - N…, SA
- A…, Lda.
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Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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N…, SA, com sede na Rua Alexandre Herculano, 8, Linda-a-Velha, intentou a presente acção ordinária demandando as RR D…, Lda, com sede na praça do Comércio 53/55/57, Braga, I…, com domicílio na Rua Padre Manuel Guimarães, 146, 1º dto, Real, Braga, e J…, com domicílio na Praça do Comércio, 106, Cave, S. Vicente, Braga, pedindo a condenação das RR no pagamento solidário da quantia de € 79.100,32, sendo € 75.810,36 de capital em dívida e € 3.289,96 de juros de mora vencidos, calculados à taxa supletiva de 8%, acrescida de juros vincendos e a condenação da 1ª R na devolução das cadeiras, cortinas, mesas e reclame referidos no art. 10º da petição inicial.
Alega, para tanto, ter celebrado com as RR, em 15.02.2009, contrato no âmbito do qual a 1ª R se obrigou a revender e publicitar, em exclusivo, café da marca Christina, lote Palace Hotel, num total de 5.400 Kg, através da compra mínima mensal de 90 Kg, durante os 60 meses do contrato, tendo a A entregue à 1ª R a quantia de € 36.000,00, IVA incluído.
Mais alega que, em incumprimento do contrato, em Agosto de 2010, a 1ª R deixou de consumir o café e trespassou o estabelecimento sem assegurar a transmissão dos direitos e obrigações decorrentes do contrato.
Contestaram as RR alegando que do contrato de trespasse decorreu a cedência da posição contratual do contrato de fornecimento de café à trespassária, tendo a A acompanhado toda a fase de negociação do trespasse e, por ser sabedora do trespasse, forneceu café à trespassária A…, Lda ao abrigo do contrato.
Requereu a intervenção principal provocada da trespassária A…, Lda.
Replicou a A alegando ter fornecido café à trespassária na expectativa de que esta e as RR acordassem na cessão da posição contratual, o que não veio a acontecer.
Mais alega não ter consentido, nem expressa nem tacitamente, em qualquer cessão da posição contratual e não se opôs à intervenção suscitada.
Admitida a intervenção, veio a chamada apresentar contestação alegando não ter tido conhecimento do contrato de fornecimento de cafés mas tão só dos quilos de consumo contratados, tendo-lhes transmitido não ter interesse em tomar o estabelecimento com esse ónus.
Foi proferido despacho saneador, em que se afirmou a validade e regularidade da instância, organizando-se de seguida factos assentes e base instrutória que não sofreram reclamação.
Procedeu-se a julgamento com observância de todo o formalismo legal.
A final foi proferida sentença que decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Absolveu a chamada A…, Lda dos pedidos;
b) Condenou as RR D…, Lda, I… e J… a pagarem solidariamente à A a quantia de € 74.885,36 (setenta e quatro mil oitocentos e oitenta e cinco euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento à taxa legal;
c) Condenou a R D…, Lda a devolver à A o material descrito no nº 1 da cláusula 6ª de fls. 13.
Inconformadas com o assim decidido, D….; I… e, J… vieram interpor recurso terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
(…)
Respondeu a A. N…, S.A terminando com as seguintes Conclusões:
(…)
A…, Lda., chamada nos autos em epígrafe, veio apresentar resposta ao recurso interposto, terminando com as seguintes Conclusões:
(…)

Colhidos os vistos legais cumpre agora decidir.
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Objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes (artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil), estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, e os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – das formuladas pela Apelante resulta que são as seguintes questões que são colocadas à nossa apreciação:
- A inoponibilidade da resolução do contrato de fornecimento de café às Rés e a responsabilidade da trespassária;
- A cláusula penal pelo incumprimento
- O conteúdo do contrato de trespasse.
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Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
1. A. e RR celebraram em 15/02/2009 o contrato que consta de fls. 11 a 15 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. A dos FA (factos Assentes);
2. De acordo com as cláusulas primeira e segunda, a 1ª R. obrigou-se, durante o período de duração do contrato, a revender e a publicitar, em exclusivo, café da marca Christina, lote Palace Hotel, no seu estabelecimento denominado “Pastelaria D…”, em Braga; a não adquirir a terceiros, nem publicitar ou revender outras marcas de café e descafeinado – al. B dos FA;
3. De acordo com o nº2 da cláusula segunda, a 1ª R. obrigou-se a adquirir à A. a quantidade de 5.400 kg de café, através de uma compra mínima mensal de 90 kg, durante os 60 meses do contrato previstos no nº1 da cláusula sétima – al. C dos FA;
4. Como contrapartida das obrigações assumidas e a título de comparticipação publicitária, a A. entregou à 1ª R., a quantia de 36.000,00 € com IVA incluído à taxa então em vigor, em cumprimento do nº 1 da cláusula quarta – al. D dos FA;
5. Consta do nº 2 da cláusula quarta que, resolvido o contrato por causa não imputável à A, a 1ª R. obrigava-se a restituir-lhe a comparticipação publicitária, deduzida do montante proporcional ao período contratual decorrido, contado em meses – al. E dos FA;
6. Na mesma quarta cláusula, no seu nº 3, estabeleceu-se que a violação das obrigações de consumo e exclusividade previstas no nº2 da cláusula segunda, de forma directa ou como consequência da resolução do contrato por incumprimento de outras obrigações nele previstas, faria incorrer a 1ª R. na obrigação de pagar à A., a título de cláusula penal, o montante de € 10,00, por cada kg de café contratado e não adquirido – al. F dos FA;
7. Como contrapartida das obrigações assumidas, de acordo com o nº1 da cláusula 5ª, a A. colocou no estabelecimento da 1ª R. uma máquina de lavar Faema F3 E, no valor de 1.440,00 €, um moinho Master 6 automático, no valor de 439,00 €, e um moinho Cimbali Special, no valor de 886,00 €, tudo acrescido de IVA à taxa então em vigor, no valor global de 8.424,00 € - al. G dos FA;
8. Consta do nº 6 da cláusula 5ª que, resolvido o contrato, com fundamento no incumprimento pela 1ª R., esta ficaria obrigada a indemnizar a A. pelo valor dos equipamentos, à data da resolução do contrato, determinado em função do número de anos decorridos e do prazo de amortização económica dos mesmos em cinco anos, ficando aqueles a pertencer à 1ª R – al. H dos FA.
9. Como contrapartida das obrigações assumidas pela 1ª R., a A., de acordo com o nº1 da cláusula sexta, colocou no estabelecimento daquela material publicitário de ponto de venda constituído por 64 cadeiras metálicas, no valor de 6.985,60 €, 15 cortinas, no valor de 1.740,00 €, 16 mesas metálicas, no valor de 2.338,88 € e 1 reclame luminoso, no valor de 1.195,00 €, tudo acrescido de IVA à taxa à data em vigor, perfazendo o valor global de 14.711,38 € - al. I dos FA;
10. Consta do nº4 da mesma cláusula que, resolvido o contrato com fundamento no incumprimento da 1ª R., esta ficaria obrigada a devolver à A. o material de ponto de venda reutilizável e a indemnizá-la pelo valor daquele que não fosse reutilizável, determinado à data da resolução do contrato, em função do número de anos decorridos e do seu prazo de amortização económica em cinco anos – al. J dos FA.
11. De acordo com o nº 1 da cláusula oitava se durante a vigência do contrato, a 1ª R trespassar ou ceder por qualquer título o seu estabelecimento, deverá o contrato expressamente incluir a transmissão de direitos e obrigações decorrentes deste contrato para o trespassário ou cessionário, ficando a 2ª R obrigada a comunicar por escrito tal facto e respectivos termos à A com a antecedência mínima de 30 dias – al. L dos FA;
12. Consta da cláusula 8ª nº 2 que transmitida a posição contratual nos termos do número anterior, o SEGUNDO OUTORGANTE assume perante a N… a qualidade de fiador do cessionário e principal pagador solidário, garantindo a satisfação de todas as obrigações deste e ficando pessoalmente obrigado perante a N… – al. M dos FA;
13. De acordo com a cláusula décima, as 2ª e 3ª RR assumiram-se como fiadoras e principais pagadoras solidárias, garantindo a satisfação de todas as obrigações que do contrato resultassem para a 1ª R., ficando pessoalmente obrigadas perante a A., com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia – al. N dos FA.
14. A A remeteu às RR as missivas datadas de 06.10.2010 que constam de fls. 18 a 20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. O dos FA;
15. A 1ª R remeteu à A a missiva datada de 20.10.2012 que consta de fls. 48 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. P dos FA;
16. A A remeteu às RR as missivas datadas de 25.10.2010 que constam de fls. 21 a 24 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. Q dos FA;
17. A 1ª R e A…, Lda celebraram em 15/07/2010 o contrato de trespasse que consta de fls. 50 a 55 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. R dos FA;
18. Consta da cláusula segunda do contrato de trespasse que a 1ª outorgante trespassa à 2ª outorgante, o estabelecimento como universalidade, composto por todos os móveis, utensílios e mercadorias discriminados na relação de inventário anexo a este contrato – cfr. consta do Anexo III junto a este contrato e que dele faz parte integrante – incluindo o direito ao arrendamento, mas livre de qualquer passivo, ónus ou encargo – al. S dos FA;
19. A R deu conhecimento à A de que havia trespassado o estabelecimento – al. T dos FA;
20. A trespassária foi constituída em 01.07.2008 e tem por objecto a exploração de café, snack-bar, pastelaria e pão quente. Comércio de jornais e revistas, conforme certidão permanente que consta de fls. 59 e 60 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido - al. U dos FA;
21. A partir de Agosto de 2010, a 1ª R. deixou de consumir no seu estabelecimento o café Christina Lote Palace Hotel da A. e não mais retomou o seu consumo – al. V dos FA;
22. A trespassária, após a celebração do contrato de trespasse, adquiriu café “CHRISTINA” à Autora, no final de Julho e em Agosto – al. X dos FA;
23. As RR informaram a trespassária que tinham um contrato de fornecimento de cafés e dos quilos de consumo contratados – al. Z dos FA;
24. A trespassária remeteu ao Mandatário das RR a missiva datada de 09.09.2010 que consta de fls. 84 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. Aa dos FA;
25. Em Agosto de 2010, a 1ª R havia consumido 979 kgs dos 5.400 kgs – resp. 1º da BI (Base Instrutória);
26. Por ter a expectativa de que A…, Lda assumisse o contrato, a A, a partir do dia 15 de Julho, forneceu-lhe 72 Kg de café – resposta explicativa ao art. 3º da BI;
25. Em inícios de Setembro, no estabelecimento denominado Pastelaria D… passou a ser consumido café de uma diferente marca, de nome DELTA – resposta explicativa ao art. 4º da BI;
26. A trespassária soube que existia um contrato de fornecimento de café celebrado, publicidade no estabelecimento comercial objecto de trespasse, aos cafés “CHRISTINA”, e equipamentos da N… – resposta restritiva aos arts. 5º e 6º da BI;
27. Foi assumida a venda do estabelecimento nos termos do contrato de trespasse que consta de fls. 50 a 55 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido - resp. explicativa ao art 8º da BI.
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FACTOS NÃO PROVADOS:
1. A A acompanhou toda a fase de negociação inerente ao trespasse – resp. 2º da BI;
2. Devido aos quilos contratados, a trespassária referiu às RR que não tinha interesse em tomar o estabelecimento com o contrato de fornecimento – resp. 7º da BI
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Vejamos então.

1. A inoponibilidade da resolução do contrato de fornecimento de café às Rés, a responsabilidade da trespassária e o conteúdo do trespasse.
Sustentam as apelantes que “A resolução do contrato de fornecimento de café é inoponível às Rés porquanto o fundamento exclusivo dessa resolução centrado no incumprimento de compra das quantidades de café fixadas porque se deu em data posterior à comunicação à Autora do trespasse e da cessão da posição contratual, só seria oponível à Chamada”.
Sustentam ainda que “A Autora teve amplo conhecimento desse trespasse e da cessão, conforme decorre dos factos dados como provados, em especial os nº 15, 19, 22 e 26 (parte final)” e que “A Autora ao não invocar a violação da cláusula 8ª (que previa a forma de comunicação da cedência da posição contratual naquele contrato de fornecimento) como causa da resolução, é porque a considerou válida”.
Acrescenta ainda que “Ainda que assim não se considere, ficou devidamente convencionado na cláusula 9ª nº 2 do contrato, um duplo requisito adicional acoplado ao eventual incumprimento daquela cláusula 2ª, centrado na [1] quantidade de desvio admissível e [2] no hiato de tempo inerente a essa mora (seis meses). No caso vertente, conforme decorre da conjugação dos factos provados nº 16 e 21 não foi cumprido o requisito do prazo de seis meses consecutivos, mas sim de somente cerca três meses. Destarte, à data da resolução não estavam cumpridos os requisitos contratuais a que as partes decidiram submeter o fornecimento de café e, por decorrência, o direito de resolução operado peca por ser manifestamente ilegal”.
Além disso alega que “A Autora com esse comportamento concludente demonstrou que teve conhecimento dessa cessão, revelando-se a posterior formalização dos documentos por parte da Chamada algo que sempre aconteceria quer estivesse expressa no contrato de trespasse a cessão da posição contratual, quer não estivesse”.
A sua argumentação é a seguinte (itálico de nossa autoria): “Conforme decorre dos factos dados como provados, nº 1 a 13, o contrato de fornecimento de cafés celebrado entre a Autora e as Rés no dia 15.02.2009 definia exaustivamente a forma como ele deveria ser cumprido mais estabelecendo as penalidades decorrentes desse incumprimento.
Seguindo esse clausulado, a Autora em 25.10.2010 veio resolver o contrato de fornecimento de cafés invocando a violação do nº 2 da cláusula 2ª desse contrato. É o que também decorre do facto provado nº 16.
Se observarmos o que aquela cláusula dispõe: “2. O SEGUNDO OUTORGANTE obriga-se a adquirir à N… ou a distribuidor por esta indicado, a quantidade de 5400,00 quilogramas de café, devendo tal aquisição ser efectuada através de uma compra mínima mensal de 90,00 quilogramas.”
O motivo da resolução cingiu-se assim ao incumprimento da compra de café, na quantidade fixada.
Este singelo facto permite retirar uma conclusão conexa: nessa data – 25.10.2010 – a Autora era conhecedora do contrato de trespasse celebrado entre a Ré a Chamada, que já tinha chegado ao seu conhecimento, pelo menos, desde Julho desse mesmo ano.
Os factos dados como provados, em especial os nº 15, 19, 22 e 26 (parte final), demonstram-no cabalmente:
“15. A 1ª Ré remeteu à A a missiva datada de 20.10.2010 que consta de fls. 48 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – al. P dos FA;
(…)
19. A R deu conhecimento à A de que havia trespassado o estabelecimento – al. T dos FA;
22. A trespassária, após a celebração do contrato de trespasse, adquiriu café “CHRISTINA” à Autora, no final de Julho e em Agosto – al. X dos FA”
26. Por ter a expectativa de que A…, Lda assumisse o contrato, a A, a partir do dia 15 de Julho, forneceu-lhe 72 Kg de café – resposta explicativa ao art. 3º da BI;”
Do exposto decorre que a Autora admite que teve conhecimento do contrato de trespasse e forneceu a chamada variadíssimas vezes, ao todo seis vezes, antes de resolver o contrato.
Mas, contudo, pela análise da resolução contratual operada naquele dia 25.10.2010, não foi o fundamento do contrato de trespasse não ter sido cumprido na sua cláusula 8ª seu nº 1 (cessão da posição contratual), no que tange à não menção escrita e expressa no aludido contrato de trespasse, da transmissão do contrato de fornecimento, que fez com o que este mesmo contrato fosse resolvido.
Isso significa que a Autora aceitou a aludida cessão da posição contratual porque não o resolveu com esse fundamento, o que necessariamente implica que toda e qualquer vicissitude posterior ao trespasse realizado em 15.07.2010 e, máxime, posterior aos fornecimentos feitos à Chamada, só seriam oponíveis à Chamada.
Melhor dizendo, era condição prévia ou cumulativa à Autora fazer cessar o contrato de fornecimento de café com a Ré por violação do estatuído na cláusula 8ª para que depois ou ao mesmo tempo pudesse imputar a essa mesma Ré o incumprimento da compra da quantidade de café contratada.
Mas como não o fez, e como só se cingiu ao incumprimento da obrigação de compra, então é porque contratualmente entendeu que aquela cessão era legítima ainda que não cumprida a exigência de forma, o que determinaria “a montante” que um qualquer eventual incumprimento da obrigação de compra só pudesse ser imputado à Chamada e não à Ré.
Aqui, segundo nos parece, está o cerne da inoponibilidade da resolução às Rés.
Para poder imputar o incumprimento de compra à Ré teria primeiro que considerar a cessão inválida, logo, ao não o ter feito, é porque a considerou válida, donde as vicissitudes posteriores, decorrentes da falta de vendas, só podiam ser exigidas a quem as incumpriu.
Estamos portanto perante uma resolução ilegal, sem fundamento, não oponível às Rés”.
Parece-nos, no entanto, que a argumentação da apelante labora em erro.
Na verdade, trata-se aqui de um contrato de fornecimento de café mediante o qual a Ré D… assumiu o compromisso contratual de compra e promoção dos produtos comercializados pela N…, nomeadamente Café marca Christina Lote Palace Hotel, em regime de exclusividade.
Ora, a cláusula 8.ª do referido contrato, destina-se a assegurar o cumprimento do contrato por parte da Ré, D…, Lda, ou por parte do trespassário ou cessionário, no caso de trespasse ou cedência da posição contratual.
Nesse caso (de trespasse ou cedência) a segunda contratante daquele contrato, obrigou-se, através daquela cláusula, a incluir expressamente a transmissão dos direitos e obrigações decorrentes do referido contrato para o trespassário ou cessionário (o sublinhado é nosso), obrigando-se ainda a comunicar o trespasse ou a cessão à N…, aqui A., por escrito com a antecedência mínima de 30 dias, e, depois de transmitida a posição contratual, assume a posição de fiador desse cessionário (n.º 2 da cláusula 8.ª).
Ora, como decorre da escritura de trespasse junta a fls. 50 e 51, a Ré D…, L.da não incluiu nele, expressamente, a transmissão do referido contrato e as obrigações daí decorrentes.
Dizem as apelantes que “era condição prévia ou cumulativa à Autora fazer cessar o contrato de fornecimento de café com a Ré por violação do estatuído na cláusula 8ª para que depois ou ao mesmo tempo pudesse imputar a essa mesma Ré o incumprimento da compra da quantidade de café contratada”.
No entanto, tal não é rigoroso.
Do incumprimento dessa cláusula, não decorre, como pretende a ora apelante, o direito de resolução do contrato por parte da N…, mas sim que a segunda outorgante, ora apelante D…, Lda, continua obrigado a cumprir as obrigações emergentes do contrato.
É o que está estipulado no n.º 4 da cláusula 8.ª em que se diz “Se durante a vigência deste contrato, o segundo outorgante, ceder, seja a que título for, a exploração do seu estabelecimento, tal facto não importa a transmissão dos direitos e obrigações decorrentes do presente contrato para o cessionário, continuando o segundo contratante obrigado a, por si ou por terceiro, cumprir as obrigações emergentes deste contrato”.
Ora, é este precisamente o caso vertente.
A ora apelante, violando o compromisso assumido no contrato com a A., trespassou o estabelecimento em 15 de Julho de 2010, a terceiro, sem aí fazer constar expressamente a transmissão dos direitos e obrigações decorrentes do referido contrato.
Consequência dessa omissão, como vimos, é continuar ela obrigada a cumprir o contrato perante a A.
Pretendem as apelantes que o contrato de trespasse realizado inclui o contrato de fornecimento de café.
Mas, mais uma vez, labora em erro.
O trespasse habitualmente define-se como o contrato que consiste na transmissão a outrem da titularidade de um estabelecimento comercial ou industrial enquanto unidade global ou universalidade, de forma definitiva, gratuita ou onerosa. (cfr Pinto Furtado, “Manual do Arrendamento Urbano”, 1996, pág. 510). Ou seja, o trespasse traduz-se numa cedência definitiva do estabelecimento e não temporária como acontece na cessão de exploração, que pode assumir natureza onerosa (venda) mas também gratuita (doação).
Afigura-se-nos primordial rememorar agora o conceito de estabelecimento comercial.
Numa definição simples e que basta para o que aqui importa ele significa “o conjunto ou complexo de coisas corpóreas e incorpóreas organizado para o exercício do comércio por determinada pessoa, singular ou colectiva” (É o conceito técnico-jurídico formulado por Barbosa de Magalhães, in “Do estabelecimento comercial (estudo de direito privado)”, 2ª edição, página 13).
Por consequência, do que se trata é de um certo acervo de elementos ordenados e vocacionados para uma certa aptidão funcional de conjunto (a que habitualmente se chama de aviamento), ou seja, uma “concreta organização de factores produtivos” (Pereira Coelho, “Direito Civil [I – arrendamento II – filiação)”, 1980, página 175]).], correntemente, o exercício de uma certa actividade ou ramo na mira da geração de proveitos, de um lucro. Significa que o estabelecimento é integrado por um agrupamento de factores, de geometria variável, consoante a sua própria natureza.
O estabelecimento constitui um bem jurídico próprio e autónomo.
O que vimos dizendo não merece controvérsia particular; e daí se pode inferir que o estabelecimento é um bem (é uma coisa) mais valioso do que o local em que esteja instalado; não podendo haver identificação exacta de posições jurídicas e de consequente tutela. O local de funcionamento constituirá, as mais das vezes, elemento essencial do estabelecimento; mas este não se esgota naquele, comportando uma mais vasta abrangência e amplitude.
A respeito do trespasse, e ao que aqui importa, convirá ter em linha de conta que ele se consubstancia num contrato de venda do próprio estabelecimento, pelo qual este é transmitido a título oneroso e inter vivos.[Pereira Coelho, obra citada, página 175.] Isto é, é o estabelecimento como bem que é adquirido, por negócio comum de compra e venda; e apenas sujeito às específicas regras jurídicas que sobre ele possam incidir.
Seja como for, o trespasse acarreta a transferência da propriedade do bem (da coisa) que é o estabelecimento da esfera patrimonial do trespassante para a esfera patrimonial do trespassário – que é o efeito essencial da venda.
Estará nele incluído o contrato de fornecimento ora em apreço?
Parece-nos que não, pelas razões que passamos a expor.
Por um lado, o contrato de exclusividade de consumo constante de fls. 11 a 15, tem prestações recíprocas ajustadas entre as partes, mediante o qual a A. fornece café que a Ré se compromete a adquirir em regime de exclusividade, e como contrapartida a título de comparticipação publicitária a A. entrega á Ré o montante de € 36.000,00 e, em regime de comodato, entrega-lhe o equipamento constante da cláusula 5.ª n.º 1, que é da propriedade da A.
Por outro lado, o contrato de trespasse efectuado pela ora apelante para a chamada A…, L.da, refere-se textualmente “ao estabelecimento como universalidade composto por todos os móveis, utensílios e mercadorias descriminadas na relação anexa, incluindo o direito ao arrendamento, mas livre de qualquer passivo, ónus ou encargo”.
Ora, nenhum dos bens dessa relação são os referidos na cláusula 5.ª do contrato de fornecimento aqui em análise.
Além disso, a transferência “livre de qualquer passivo, ónus ou encargos”, exclui, como parece líquido, o encargo contido naquele contrato de fornecimento.
Assim, como é bom de ver, o trespasse realizado pela ora apelante não incluiu, nem expressamente nem por inerência, o contrato de fornecimento de café em regime de exclusividade, nem o mobiliário que foi entregue pela A. na altura do contrato.
Consequência de tudo quanto fica dito é que, como já acima se disse, tendo violado o compromisso assumido na cláusula 8.ª do contrato com a A, continuar a apelante obrigada a cumprir o contrato perante a A.
Portanto, trata-se de resolução do contrato por incumprimento do contrato de fornecimento e não, como pretendem as apelantes, resolução fundada na não observância da cláusula 8.ª do contrato de fornecimento.
Não vemos assim como é inoponível ás ora apelantes a resolução do contrato operada pela A.
O regime da resolução contratual está previsto nos art. 432 e seguintes do C. Civil.
A resolução do contrato pode fazer-.se mediante declaração á outra parte, nos termos do art. 436 n.º 1 do C. Civil. Não tem de efectuar-se por via judicial, excepto quando a lei o determinar (pessoa Jorge, Obrigações, pág. 655) mas tem de existir uma declaração da parte que pretende exercer a resolução do contrato à outra parte. Esta declaração tem interesse porque marca o momento da resolução, mesmo que haja necessidade, posteriormente, de obter a declaração judicial de que o acto foi legalmente resolvido (P. de Lima e A. varela, C.Civil anotado, Vol. I, pág. 362, 2.ª edição).
Essa declaração de resolução, que tem um destinatário, só se torna eficaz quando chega ao seu poder ou é dele conhecida (art. 224 do C. Civil).
Consta dos factos provados que “A partir de Agosto de 2010, a 1ª R. deixou de consumir no seu estabelecimento o café Christina Lote Palace Hotel da A. e não mais retomou o seu consumo”.
Por isso, A A remeteu às RR as missivas datadas de 06.10.2010 que constam de fls. 18 a 20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido”, e, com data de 25/10/2010 remeteu carta às Rés comunicando a resolução do contrato por justa causa e exigindo as indemnizações aí referidas (fls. 21 a 24).
É certo que resultou provado que “A trespassária, após a celebração do contrato de trespasse, adquiriu café “CHRISTINA” à Autora, no final de Julho e em Agosto”, mas tal aconteceu “por ter a expectativa de que A…, Lda assumisse o contrato, a A, a partir do dia 15 de Julho, forneceu-lhe 72 Kg de café” .
Ora, como bem se diz na sentença recorrida, tendo sido consumidos no estabelecimento da R 1051 Kg, por em inícios de Setembro de 2010 ter passado a ser consumida marca concorrente, tal configura incumprimento contratual com violação da relação negocial que corresponde a um incumprimento definitivo do contrato”.
No entanto, mesmo que do contrato de trespasse constasse expressamente a inclusão do contrato celebrado entre a Recorrida e as Recorrentes, tal só por si não bastava para que a cessão da posição contratual se pudesse considerar eficaz.
De acordo com o artº 424º, nº 1 do Código Civil “No contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão”
Ora, de toda a matéria provada não resulta que alguma vez a Recorrida tenha consentido a cessão da posição contratual das recorrentes.
É certo que a Recorrida teve conhecimento de que a sociedade Recorrente havia trespassado o estabelecimento. Mas tal, só por si, não é suficiente para se retirar que tenha havido consentimento para a cessão, sendo certo que as Rés não conseguiram provar, como alegaram, que a A acompanhou toda a fase de negociação inerente ao trespasse.
Ao contrário do que pretendem fazer crer as apelantes, o silêncio do cedido não vale como consentimento, a não ser que no caso concreto a lei, uso ou convenção lhe atribua o valor de declaração negocial, o que não é o caso.
Por isso, cai pela base a argumentação das apelantes de que a resolução do contrato de fornecimento de café lhes é inoponível.
Alegam ainda as apelantes que ficou convencionado na cláusula 9ª nº 2, um duplo requisito adicional acoplado ao eventual incumprimento daquela cláusula 2ª, que se situava 1] na quantidade de desvio admissível e 2] no hiato de tempo inerente a essa mora, e de que entre Agosto de Outubro de 2010, apenas mediaram três meses, que não os seis as que as partes validamente se vincularam para considerar causa legítima de resolução a cláusula 2ª, seu nº 2, pelo que, à data da resolução não estavam cumpridos os requisitos contratuais a que as partes decidiram submeter o fornecimento de café e, por decorrência, o direito de resolução
operado peca por ser manifestamente ilegal.
A cláusula é a seguinte: “As partes expressamente convencionam que se considera incumprimento contratual e, consequentemente, fundamento de resolução do contrato um desvio nos consumos mensais acordados nos termos do número dois da Cláusula Segunda superior a 20%, por um período de seis meses consecutivos.”
Ora, dando-se provado que “A partir de Agosto de 2010 a 1ª R. deixou de consumir no seu estabelecimento o café Christina Lote Palace Hotel da A. e não mais retomou o seu consumo”, verifica-se incumprimento definitivo e não o desvio de consumo referido na cláusula invocada, a qual ´é aqui inaplicável.
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2. A cláusula penal pelo incumprimento
Sustentam as apelantes que, mesmo que se entenda legitima a resolução do contrato, o que apenas se considera como mera hipótese académica, urge alegar que a cláusula penal fixada, nos € 10,00 por cada quilograma de café é ilegal por violação do vertido no art. 811º nº 3 do Código Civil, quando estatui que “O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal.”
Sustenta ainda que “Das facturas juntas aos autos em sede de audiência de julgamento, a fls. .., a obrigação principal da Ré era pagar o preço do quilo de café, situado nos € 3,91 (6x1kg : 23,50), que não os € 10,00 constantes do contrato, pelo que, feitas as contas, somando aos quilos de café não vendidos, na ordem dos 4349kg (5400-1051), aquela quantia unitária de € 3,91/kg a Autora só teria direito à quantia de € 17.004,91, em vez dos 43.490,00 fixados, pelo que deve a indemnização ser reduzida aos seus exactos termos.
Como bem diz a apelada, era às Recorrentes que competia alegar e provar os factos através dos quais se pudesse concluir pela excesso da cláusula penal acordada no contrato.
Ora, alegando as apelantes a violação do artº 811, nº 3 do Código Civil, não se vislumbra em que factos assenta aquela pretensa violação.
Na verdade, analisando as facturas juntas aos autos em sede de julgamento (fls. 154 a 162), bem como as juntas a fls. 222 a 252, por aí se vê que o preço por quilo unitário do referido café era de 23€ e depois de € 23,50.
Efectivamente, as facturas referem no campo “descrição” a identificação do lote de café, seguido de 6x1kg, que apenas pretende identificar que as caixas contêm 6 embalagens com um quilo de café cada, pois logo a seguir, no campo “unidades” aí sim identifica os quilos de café fornecidos, seguido do valor por unidade (quilo).
Assim, acertada está a decisão constante da sentença recorrida quando diz que “Afigura-se-nos evidente que a cláusula penal, nos moldes em que foi estipulada, tem uma função indemnizatória, tratando-se da fixação antecipada da indemnização devida em caso de resolução contratual.''
Tal indemnização de € 10,00 por cada quilograma de café que faltar para o cumprimento integral do contrato não é de todo excessiva, atenta não só a evidente proporcionalidade constante da mesma e atendendo a que o valor fixado também terá seguramente levado em conta o dinheiro e equipamentos entregues no início do contrato.
No entanto, entendemos dever ser também descontados os quilogramas consumidos pela chamada por o terem sido na expectativa de vigência deste mesmo contrato, pelo que será devida à A, a este título, a quantia de € 43.490,00”.
Concordamos inteiramente com esta análise.
Improcede assim também este fundamento de recurso.
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Decisão:
Por isso e nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pelas Apelantes.
Guimarães, 6 de Novembro de 2014.
José Estelita de Mendonça
Conceição Bucho
Antero Veiga