Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
9/17.5T9MTR.G1
Relator: ISABEL CERQUEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIDADE INFORMÁTICA E PECULATO
CONCURSO REAL
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 - As condutas que violam o mesmo bem jurídico devem ser juridicamente “unificadas”, desde que não ofendam bens eminentemente pessoais, quando o modo da sua execução, e a sua proximidade temporal impliquem que devam ser vistas não em si mesmas, mas como um comportamento global, pela concorrência de circunstâncias exteriores que facilitam o “…alargar o âmbito da actividade criminosa.”.
2- Circunstâncias exteriores que podem ser integradas pelo aspecto de o agente actuar quando se verifica a mesma oportunidade, “… que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa” (Prof. Figueiredo Dias, in Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, pág.247, edição de 1983, que continua: “Típica hipótese deste grupo é … a do caixa que vai igualmente descaminhando em proveito próprio o dinheiro que lhe é entregue;”.
3 – Prof. que no seu Direito Criminal, II Volume da edição de 1971, ao pagina 208 e seguintes, diz “Pois quando bem se atente, ver-se-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico - e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.”
4 – Diminuição da culpa que pode ser indiciada, designadamente, pela proximidade temporal entre as diversas condutas que integram a continuação criminosa.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Isabel Cerqueira
Adjunto: Fernando Chaves

Acordam, em conferência, na Secção Criminal deste Tribunal:

Relatório

No Juízo Central Criminal de Vila Real – Juiz 1, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi, em 21/10/2019, proferido o douto acórdão que condenou o arguido P. M., pela prática, em concurso real, de seis crimes de falsificação de documento, de treze de falsidade informática e de treze de peculato, respectivamente, previstos e punidos pelos art.ºs 255º alínea a) e 256º n.ºs 1 alíneas a) e e) e 4 do Código Penal (a partir de agora apenas sempre designado por CP), 3º n.ºs 1 e 5 do DL 109/09, de 15/08 e 375º n.º 1 também do CP, nas penas respectivas de 10 meses, 8 meses e 2 anos de prisão por cada um daqueles crimes, e em cúmulo jurídico na pena única de 4 anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, e ainda n de proibição de exercício das funções para que foi nomeado, por esse período de tempo.
Desta decisão interpôs aquele arguido o presente recurso, no qual, nas suas conclusões (pelas quais se afere o seu âmbito), alegando integrar a sua conduta apenas tês crimes na forma continuada, um de falsificação de documento, outro de falsidade informática e o outro de peculato, e não o número de crimes considerado no acórdão recorrido, e que a não se entender assim sempre teria que ser considerado que cometeu aqueles e só aqueles três crimes de trato sucessivo ou execução prolongada, e sem conceder, que mesmo a ser condenado nos termos em que o foi, a pena única deveria ter sido fixada de forma mais benevolente, e em medida nunca superior a 18 meses de prisão suspensa na sua execução.
A Magistrada do M.P. junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto, pugnando pela sua total improcedência.
A Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal emitiu o douto parecer que antecede, pronunciando-se igualmente pela total improcedência do recurso interposto.
Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417º do CPP, foram colhidos os vistos legais, e procedeu-se à conferência, cumprindo decidir.
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Foram as seguintes a fundamentação de facto e a motivação da douta decisão recorrida (que se transcrevem apenas parcialmente, não se transcrevendo a motivação da decisão de facto, face ao objecto do recurso):

Factos provados.

1. O arguido P. M. foi contratado por tempo indeterminado para o exercício de funções públicas no Município ... para a carreira e categoria de Técnico Superior (Gestão), com efeitos a partir de 15.12.2010, na sequência dos procedimentos concursais abertos pelo aviso n.º 11916/2010, publicado na 2.ª série do Diário da República, n.º 114, de 15.06.2010, retificado pela declaração de retificação n.º 1558/2010, publicada no Diário da República n.º 149, 2.ª série, de 03.08 e conforme aviso n.º 26963/2010 publicado na 2.ª série do Diário da República, n.º 246, de 22.12.2010.
2. Nos anos de 2015 e 2016, o arguido P. M. exerceu assim o cargo de técnico superior, em regime de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, integrado na unidade orgânica informal designada por núcleo de aprovisionamento, dependente hierárquica e funcionalmente do Departamento de Administração e Finanças do Município ....
3. O Município ... é uma pessoa coletiva territorial, de direito público, pertencente à administração local do Estado português.
4. No âmbito das suas funções, o arguido P. M. estava incumbido de proceder à contratação de serviços e bens necessários para o cumprimento das competências da autarquia, sendo o responsável pela concretização dos procedimentos prévios à contratação dos contratos de seguro do município, bem como pelo acompanhamento da execução dos mesmos, fazendo conferência e confirmação dos avisos/recibos, partilhando o mesmo espaço físico do núcleo da contabilidade.
5. Pelo exercício das suas funções, o arguido P. M. auferiu o correspondente vencimento.
6. O arguido bem conhecia o conteúdo das competências e deveres advindos do exercício das suas funções, desde logo, o dever de prossecução do interesse público, dever de isenção, dever de imparcialidade, dever de zelo, dever de obediência e dever de lealdade, previstos no art. 73.º, da Lei n.º 35/2014, de 20.06, na sua redação atual (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas).
7. Assim como conhecia, enquanto funcionário, o Código de Ética e de Conduta da Câmara Municipal ..., em vigor desde 30.03.2003, e os princípios aí constantes que deveriam pautar a sua atuação, como sejam, princípio de serviço público, de legalidade, de lealdade, de integridade, de imparcialidade e independência, e o Plano de Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações conexas desse mesmo Município, em vigor desde 02.02.2010.
8. Em virtude das funções exercidas, o arguido tinha acesso à aplicação informática de contabilidade/aprovisionamento do Município ... (introduzido no sistema integrado de Gestão Municipal e Autárquica – SIGMA), disponibilizada pela Madidata, através da introdução do username “…”, que lhe foi atribuído, e da introdução da password de acesso por si criada e só por si conhecida, tendo-lhe sido atribuído um perfil de administração dessa aplicação, o que permitia fazer alteração da ficha de clientes, sendo um dos campos o IBAN/NIB.
9. Mercê da posição especial detida no Município ..., o arguido P. M. apercebeu-se de que lhe seria possível lançar mão de dinheiros daquele Município, aproveitando-se, para tanto, do seu estatuto e das suas funções, e, em complemento, de estratagemas que acabou por colocar em prática.
10. Em data não concretamente apurada, mas em meados do mês de março de 2015, o arguido P. M. apercebendo-se que estava em curso, no serviço de contabilidade do Município ..., processo de transferência da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) para a “Associação Recreativa Cultural ... – ...”, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da mencionada Associação e inseriu o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que o arguido é titular.
11. Com isso, conseguiu o arguido P. M. que, depois da respetiva ordem de pagamento, que ocorreu em 23.03.2015 com o n.º 573, para aquela conta bancária, de que era titular, fosse transferido o montante de 5.000,00€ (cinco mil euros), o que veio a suceder em 27.03.2015, data em que se apoderou de tal montante em seu benefício.
12. Em data não concretamente apurada, mas entre os meses de abril e maio de 2015, o arguido decidiu apoderar-se de mais quantias monetárias daquele Município, em seu benefício próprio, sob a égide de prémios de seguros contratados com a “X, Companhia de Seguros, S.A.”, atual ”Y Seguros, S.A.” (doravante X).
13. Para camuflar os seus propósitos e atuação, o arguido decidiu elaborar recibos, fazendo crer que correspondiam a reais transações relativas a prémios de seguros contratados com a X e apresentá-los para pagamento no serviço de contabilidade do Município ....
14. Mais decidiu que, sempre que se apercebesse que no serviço de contabilidade do Município ..., estava em curso o processo de pagamento dos recibos por si elaborados, que não correspondiam a uma real transação, ou os recibos respeitantes a prémios de seguros contratados com a X, iria aceder ao sistema informático supra descrito e alterar a ficha de cliente dessa empresa “X”, substituindo o IBAN desta (………) pelo IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, sediada no Banco …, de que é titular.
15. O que fazia por forma a que, efetuada a ordem de pagamento, os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro fossem canalizados para a sua conta, sem que ninguém se apercebesse, e justificar a saída de montantes do Município ....
16. Depois de efetuado o pagamento, o arguido voltava a aceder à aludida plataforma
e repunha o IBAN original, ou seja, correspondente à X.
17. Os processamentos de pagamento eram realizados por ficheiro codificado, que não permitia o acesso direto à informação.
18. Assim, em data não concretamente apurada, mas no início do mês de maio, o arguido P. M. elaborou três recibos, respetivamente com os n.ºs 25058815, 39767233 e 39767287, que não correspondiam a verdadeiras transações, fazendo neles constar como emitente a X, o dia 11.05.2015 como data de emissão, o objeto de prémios de seguro, e os montantes de 3.059,13 € (três mil, e cinquenta e nove euros e treze cêntimos), 305,14 € (trezentos e cinco euros e catorze cêntimos) e 329,57 € (trezentos e vinte e nove euros e cinquenta e sete cêntimos), respetivamente.
19. Em data não concretamente apurada, mas entre 11.05.2015 e 22.05.2015, no âmbito das suas funções, o arguido P. M. apresentou tais recibos a pagamento na contabilidade do Município ....
20. Nessas mesmas circunstâncias de tempo, apercebendo-se que estava em curso o processo de pagamento desses recibos, o arguido P. M. acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 22.05.2015 com o n.º 1327, para esta fossem transferidos os valores dos recibos, o que veio a suceder em 27.05.2015, como infra se descreve:
21. Em data não concretamente apurada, mas no início do mês de julho, o arguido P. M. elaborou mais dois recibos que não correspondiam a verdadeiras transações, respetivamente com os n.ºs 42064313 e 42064641, fazendo neles constar como emitente a X, data de emissão 01-07-2015, o objeto de prémios de seguro, e os montantes de 3.429,56 € (três mil, quatrocentos e vinte e nove euros e cinquenta e seis cêntimos) e 922,17 € (novecentos e vinte e dois euros e dezassete cêntimos), respetivamente.
22. Entre 01.07.2015 e 24.07.2015, o arguido P. M. apresentou tais recibos a pagamento na contabilidade do Município ....
23. Nessas mesmas circunstâncias de tempo, apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos mencionados recibos, o arguido P. M. acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 24.07.2015 com o n.º2492, para esta fossem transferidos os valores dos recibos, o que veio a suceder em 31.07.2015, como infra se descreve:

24. Entre 14.08.2015 e 01.09.2015, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 42885829 e 42886155, emitidos pela X, respeitantes a prémios de seguro, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 01.09.2015 com o n.º 2941, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 04.09.2015, como infra se descreve:

25. Entre 16.09.2015 e 24.09.2015, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 43145818, 43262856 e 43256726, emitidos pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 24.09.2015 com o n.º3337, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 06.10.2015, como infra se descreve:
26. Entre 17.11.2015 e 10.12.2015, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 43594433, 43685634 e 43793620, emitidos pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 10.12.2015 com o n.º 4285, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 21.12.2015, como infra se descreve:


27. Entre 27.11.2015 e 15.12.2015, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 43948416, 43945344 e 43948576, emitidos pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 15.12.2015 com o n.º 4367, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 21.12.2015, como infra se descreve:

28. Entre 28.12.2015 e 07.01.2016, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 44147744, 44071721, 44148604 e 44193221, emitidos pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 07.01.2016, com o n.º 14, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 13.01.2016, como infra se descreve:

29. Entre 29.12.2015 e 18.01.2016, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 44253355 e 44253450, emitidos pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 18.01.2016, com o n.º 112, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 25.01.2016, como infra se descreve:
30. Entre 22.01.2016 e 05.02.2016, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento do recibo n.º 44499975, emitido pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 05.02.2016 com o n.º 313, para esta fosse transferido o montante respeitante ao pagamento do prémio de seguro contratado, o que veio a suceder em 17.02.2016, como infra se descreve:
31. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 16.02.2016, o arguido P. M. elaborou um recibo, com o n.º 28064402, que não correspondia a uma verdadeira transação, fazendo nele constar como emitente a X, a data de emissão 12.02.2016, o objeto de prémio de seguro e o montante de 3.059,13€ (três mil, cinquenta e nove euros e treze cêntimos).
32. Em data não concretamente apurada, mas entre 12.02.2016 e 16.02.2016, no âmbito das suas funções, o arguido P. M. apresentou o recibo n.º 28064402 a pagamento na contabilidade do Município ... juntamente com o recibo n.º 44499975, emitido pela X.
33. Após, apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento desses recibos acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 16.02.2015 com o n.º 381, para esta fossem transferidos os valores dos recibos, o que veio a suceder em 24.02.2016, como infra se descreve:
34. Entre 16.02.2016 e 02.03.2016, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibos n.º 44735585, 44744275 e 44744455, emitidos pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento do município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 02.03.2016 com o n.º 497, para esta fossem transferidos os montantes respeitantes ao pagamento dos prémios de seguro contratados, o que veio a suceder em 08.03.2016, como infra se descreve:
35. Entre 29.02.2016 e 14.03.2016, o arguido P. M., apercebendo-se que estava em curso processo de pagamento dos recibo n.º 44803417, emitido pela X, acedeu às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento do município e procedeu à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o IBAN ........., referente à conta n.º .........-000-0001, de que é titular, de modo a que, depois da ordem de pagamento, que ocorreu em 14.03.2016 com o n.º 674, para esta fosse transferido o montante respeitante ao pagamento do prémio de seguro contratado, o que veio a suceder em 18.03.2016, como infra se descreve:
36. Assim, no ano de 2015, o arguido apoderou-se da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) referentes a uma transferência para a “Associação Recreativa Cultural ... – ...” e 29.684,62€ (vinte e nove mil, seiscentos e oitenta e quatro euros e sessenta e dois cêntimos) referentes a prémios de seguro e, no ano de 2016, do montante de 31.332,58€ (trinta e um mil, trezentos e trinta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), referentes a prémios de seguros, o que perfaz a quantia global de 66.017,20€, sessenta e seis mil, dezassete euros e vinte cêntimos (5.000,00€ + 61.017,20€ = 66.017,20€), que utilizou em seu benefício e em prejuízo da sua entidade patronal, conforme quadro que se segue:
37. O arguido P. M. agiu com o propósito concretizado de aceder às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e proceder à alteração da ficha de cliente da “Associação Recreativa Cultural ... – ...”, e inserir o seu IBAN, bem sabendo que inseria informações que não correspondiam à mencionada Associação, e por isso à verdade, e que essa alteração implicaria a transferência do montante de 5.000,00€ (cinco mil euros) para a sua conta bancária, o que efetivamente conseguiu.
38. Ao inserir o seu IBAN na ficha de cliente desta Associação, arguido P. M. fê-lo com intenção de se apropriar desse montante, em proveito próprio, bem sabendo que o referido valor monetário pertencia ao Município ... e que atuava sem o consentimento e contra a vontade deste, tendo consciência de que não detinha aquele valor, por qualquer direito ou título e, não obstante, atuou com a intenção o integrar no seu património, o que conseguiu.
39. O arguido P. M., na senda de um plano que previamente delineou, agiu ainda com o propósito conseguido de fabricar, preencher e utilizar cada um dos recibos supra indicados e discriminados nos quadros dos artigos 18, 20, 21, 23, 31 e 33, que sabia não serem correspondentes a qualquer transação real, o que fez com o objetivo de alcançar para si um benefício ilegítimo.
40. Ao atuar na forma descrita nos artigos 19 a 35, em cada um dos acessos à mencionada plataforma e alteração dos dados descritos, o arguido P. M. agiu com o propósito concretizado de aceder às bases informáticas da contabilidade/aprovisionamento desse município e proceder à alteração da ficha de cliente da empresa “X” inserindo o seu IBAN, sempre que se apercebesse que estava em curso processo de pagamento dos recibos relativos as prémios de seguro, bem sabendo que inseria informações que não correspondiam à cliente “X”, e por isso à verdade, e que essas alterações implicariam a transferência dos montantes correspondentes aos recibos para a sua conta bancária, o que efetivamente conseguiu.
41. Ao apresentar a pagamento recibos que não correspondiam a qualquer transação real e alterar no sistema informático o IBAN da cliente X, antes de cada ordem de pagamento a esta respeitante, o arguido P. M. fê-lo com intenção de se apropriar dos montantes supra descritos, em proveito próprio, bem sabendo que os referidos valores monetários pertenciam ao Município ... e que atuava sem o consentimento e contra a vontade deste, tendo consciência de que não detinha aqueles valores, por qualquer direito ou título e, não obstante, atuou com a intenção os integrar no seu património, o que conseguiu.
42. O arguido tinha a perfeita noção de que apenas logrou atingir tais desideratos por ser funcionário do município com acesso ao referido sistema informático e a quem incumbia a função de prover pela concretização dos procedimentos prévios à contratação dos contratos de seguro do município, bem como pelo acompanhamento da execução dos mesmos, fazendo conferência e confirmação dos avisos/recibos, violando a confiança funcional que nele foi depositada.
43. Mais sabia o arguido que, ao atuar das formas descritas violava de forma manifesta e grave, os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo, obediência e lealdade, que sobre ele impendiam como funcionário de pessoa coletiva de direito público, integrada na administração local do estado português e que visa a prossecução de interesses próprios da população respetiva, pertencente ao respetivo município (autarquia local).
44. As atuações do arguido supra descritas pautaram-se por uma grave e manifesta violação dos deveres que lhe eram inerentes ao exercício da sua função enquanto funcionário do Município ..., atentos os montantes em causa e a sua persistência temporal, revelaram indignidade do mesmo para o exercício de tal cargo e violaram a confiança funcional que nele foi depositada, o que o arguido representou e quis.
45. Assim, em todas as suas condutas, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
46. Nos anos de 2015 e 2016, o arguido procedeu, por diferentes meios, ao pagamento dos Seguros contratados pelo Município junto da referida companhia de seguros, no valor de 49.936,16€ e efetuou um depósito da quantia de 14.735,17€, em numerário, na conta bancária do Município ..., no dia 07.10.2016, e da quantia de 1.455,99€, no dia 23.01.2018, repondo os montantes ilicitamente apropriados.
46. O arguido não tem antecedentes criminais.
47. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação.
48. O arguido está arrependido.
49. O arguido actuou pelo modo que ficou demonstrado no contexto da ruptura de uma relação afectiva e no âmbito de um problema de adição de jogo “on line”.
50. O arguido é filho único e provém de um agregado familiar de mediana condição socioeconómica, sendo o pai mecânico auto e a mãe revendedora de roupa, tendo crescido em Lisboa em zona residencial sem problemáticas de assinalar, tendo o seu agregado familiar pautado a sua vivência pelo cumprimento das regras e pela transmissão de valores socialmente tidos como normais.
51. Teve percurso escolar normal, tendo concluído a licenciatura em Gestão, com especialização em Fiscalidade, e com frequência de pós-graduação em Auditoria, que não concluiu.
52.Iniciou o seu percurso laboral como caixa do Banco …, por um ano, e como Gestor de Clientes, na mesma instituição bancária, nos quatro anos seguintes; após, fixou residência em … (terra natal da mãe), tendo iniciado actividade por conta própria, na mesma área profissional; em 2005, iniciou funções na Câmara Municipal do …, como prestador de serviços, tendo depois celebrado com esta instituição contrato de trabalho por tempo indeterminado para exercício de funções pública, na carreira de técnico superior, gestão, com funções no Departamento de Administração e Finanças da mesma.
53. Aos 39 anos iniciou relação afectiva que terminou um anos depois.
54. Iniciou nova relação com a actual companheira em 2015, da qual tem uma filha, com 3 anos de idade.
55. Durante este período manteve adição de jogo “on line”.
56. Na sequência dos factos objecto do presente processo foi despedido da Câmara Municipal ..., tendo passado a viver numa segunda residência dos seus pais, na Costa da Caparica, iniciando-se na atividade de motorista por conta de outrem (Uber).
57. Aufere rendimentos no valor de € 1.700,00 mensais, a que acresce o subsídio de desemprego da companheira, no valor de € 590,00, e tem despesas fixas de cerca de € 1.000,00 mensais, entre as quais o colégio da filha, de cerca de € 300,00 mensais.
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Factos não provados: nenhum.
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Fundamentação de facto e de direito

O recorrente, acusado e condenado em 1ª instância pela prática de 6 crimes de falsificação de documento, 13 de falsidade informática e igual número de crimes de peculato, vem defender que os factos imputados não integram aquele número de crimes mas sim um único crime de cada um dos tipos supra referidos, na forma continuada.

Tendo como certo que, em princípio, o número de crimes se determina pelo tipo de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente (art.º 30º n.º 1 do CP), nem sempre a unificação da conduta implica que se esteja perante um crime na forma continuada, sendo necessário para tal e como se diz nos n.ºs 2 e 3 deste normativo legal, que a realização plúrima do mesmo tipo de crimes ou de vários tipos que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico e que não sejam bens eminentemente pessoais, seja executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua de forma acentuada a culpa do agente.

Ou, e como diz Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Código Penal, na obra já citada, em anotação àquele normativo legal, “O crime continuado consiste numa unificação jurídica de um concurso efectivo de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, fundada numa culpa diminuída…”.

No caso concreto, o recorrido, funcionário do Município ... desde 2010, cujas funções eram a contratação de bens e serviços para a autarquia, incluindo-se nelas a concretização dos procedimentos prévios à contratação de contratos de seguro daquela, o acompanhamento da execução dos mesmos, fazendo a conferência e confirmação dos avisos/recibos, nos anos de 2015 e 2016, aproveitando-se dessas mesmas funções, e consequentemente violando a confiança funcional de que beneficiava, através de meios informáticos a que tinha acesso pelo exercício das mesmas funções, apropriou-se, em 13 circunstancialismos de tempo diferentes, de montantes pertencentes aquele Município, aos quais tinha acesso pela mesma razão.
Integrou esses montantes no seu património, bem sabendo que os mesmos eram deste órgão autárquico, e que o fazia sem o consentimento e contra a vontade dele.
Apropriações que ocorreram, entre Março de 2015 e Março de 2016, por alteração das fichas de cliente de uma Associação, e da X, para as quais o Município ia transferir a quantia de 5.000,00 euros, ou montantes correspondentes a pagamento de prémios de seguros, inserindo nelas o IBAN da sua conta bancária, ou através da elaboração em circunstancialismo de tempo diferentes, de vários recibos, que alegadamente titulavam pagamentos à X de seguros da autarquia, mas que a nada correspondiam, conseguindo sempre que tais quantias chegassem à sua conta bancária.
De todas as 13 vezes em que se apropriou de montantes da autarquia, o arguido conseguiu-o através do acesso e da alteração de dados do sistema informático do Município ..., alterando dados daquele sistema, o que fez em 13 ocasiões diferentes, dados a que tinha apenas acesso para o exercício das suas funções de funcionário público e com a intenção conseguida de provocar engano nas relações jurídicas existentes entre aquela autarquia e uma Associação, ou entre aquela e a X.
Citando o douto Acórdão do STJ de 6/04/2016 (in www.dgsi.pt), “O crime continuado configura, afinal, um conjunto de crimes repetidos, com uma característica peculiar: a repetição dá-se porque, acompanhando a nova acção, se repete também (ou simplesmente permanece), uma circunstância exterior ao agente que a facilita. Essa circunstância que o agente aproveita, e que de alguma maneira o incita para o crime há-de ser tal que, se desaparecesse, a sucessão de crimes ver-se-ia provavelmente interrompida.
Criada pelo autor com a primeira conduta, ou surgida de modo casual, sem a sua intervenção, funciona como ocasião propícia ou tentação; em linguagem dogmática, como causa de diminuição da exigibilidade de uma conduta conforme ao direito; em último termo, como factor que afasta de forma significativa o comportamento em análise do grau 'típico' de culpa correspondente àquele crime (conjunto de crimes) e reflectido na sua consequência jurídico-penal.
Segundo Eduardo Correia o crime continuado tem na sua génese uma conexão de resoluções criminosas. Aparentemente autónoma, cada resolução depende, na verdade, da anterior, de tal modo que apenas a primeira se pode dizer normal. O nexo subjectivo - sustentado do lado do ilícito pela homogeneidade das condutas e pela unicidade do tipo ou do bem jurídico contra o qual atentam - determina a conveniência de excluir o comportamento do regime habitual do concurso efectivo de crimes.
Assim, tudo converge para um juízo de exigibilidade diminuída. Será este que impede uma sanção semelhante a outro conjunto de crimes repetidos, subjectivamente conexionados entre si, mas dos quais não possa fazer-se avaliação semelhante.”.

A unidade ou pluralidade de infracções não pode, pois, ver-se apenas por referência do comportamento humano a bens ou valores jurídico-criminais violados, ou pelo número de vezes que os mesmos são violados, não se podendo esquecer que o pressuposto do crime é a censura dum facto típico ao agente, e que “…a consideração da “culpa”, elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções pela unidade ou pluralidade de tipos realizados.” – Ac. supra citado.
A culpa como juízo de censura dum facto típico ao agente tem que ser, pois, o critério que separa a unidade e pluralidade de infracções, e esta é consideravelmente diminuída quando as plúrimas violações do mesmo tipo de crime são executadas de forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma situação externa, “…como disposição exterior das coisas para o facto…”, que facilita a repetição da resolução e da actividade criminosas, “…tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.” (mesmo acórdão do STJ).
Situação externa que pode também ser integrada pela circunstância de o agente actuar quando se verifica a mesma oportunidade, “… que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa”. – Prof. Figueiredo Dias, in Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, pág.247, edição de 1983.
Que continua: “Típica hipótese deste grupo é … a do caixa que vai igualmente descaminhando em proveito próprio o dinheiro que lhe é entregue;”.

As condutas que violam o mesmo bem jurídico devem, pois, ser juridicamente “unificadas”, desde que não ofendam bens eminentemente pessoais, quando o modo da sua execução, e a sua proximidade temporal impliquem que devam ser vistas não em si mesmas, mas como um comportamento global, pela concorrência de circunstâncias exteriores que facilitam o “…alargar o âmbito da actividade criminosa.” (ibidem).

Ora, as condutas descritas em 18, 21 e 31 da matéria provada correspondem ao fabrico de 6 recibos que não correspondiam a qualquer transacção com o Município ..., mas que “simulavam” o pagamento por ele de quantias à X, quantias que o recorrente integrou no seu património, e que no douto acórdão recorrido foi decidido integrarem 6 crimes de falsificação de documentos, além de 3 crimes de falsidade informática e de 3 de peculato.

Por sua vez, nas situações descritas em 20, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 34 e 35, o arguido, sempre no exercício das suas funções que exercia no Município ..., não forjando recibos, mas aproveitando o facto de se encontrarem em prazo de pagamento quantias devidas pela autarquia a terceiros, apropriou-se em 12 ocasiões distintas das quantias tituladas por esses recibos:
Tendo para o efeito viciado igual número de vezes e previamente dados existentes no sistema informático da sua entidade patronal, apondo-lhes o IBAN da sua conta bancária, em vez do das entidades às quais alegadamente tinham sido feitos os pagamentos titulados por aqueles recibos, e por estes foi condenado pela prática de 13 crimes de falsidade informática, em concurso real com 13 crimes de peculato.
Não tendo sido questionada a qualificação jurídica dos factos, nem havendo qualquer razão para o ser, a única questão a decidir, é se cada um daqueles 13 crimes e os 6 de falsificação de documento, constituem esse número de crimes ou apenas um crime de cada um daqueles tipos legais, na forma continuada, tendo em atenção os ensinamentos doutrinais e jurisprudencial já referidos, e em especial os do Prof. Eduardo Correia como “pai” do actual Código Penal, e consequentemente do seu art.º 30º, que apenas foi alterado, na Revisão de 1995, que lhe introduziu o seu n.º 3, este alterado posteriormente pela L. 59/2007, de 3/09.

Ora, este Professor, no seu Direito Criminal, II Volume da edição de 1971, ao pagina 208 e seguintes, diz “Pois quando bem se atente, ver-se-á que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico - e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que, portanto, em princípio atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), todavia devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.”.

No caso sub judice, o recorrido praticou os factos em causa nos autos, entre Março de 2015 e Março de 2016, de forma essencialmente homogénea, já que se apropriou sempre de dinheiro de um Município, no qual trabalhava, aproveitando montantes correspondentes a recibos “reais” ou outros documentos que titulavam montantes a pagar ou entregar pela autarquia, ou “forjando” recibos “falsos” a pagar por esta, e integrando o montante desses documentos no seu património. O que fez, aproveitando sempre o acesso ao sistema informático da entidade patronal que tinha pelo exercício das suas funções, correspondendo o período de tempo supra referido a parte de uma época difícil em que era adicto de jogos on line, e no contexto de uma ruptura de uma relação afectiva.

Praticou, pois, uma pluralidade de factos que embora externamente separáveis constituem “… uma acção unitária”, por os diversos actos corresponderem “…a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural.” (expressões do acórdão do STJ supra citado).

Devem pois ser unificadas juridicamente entre si todas as condutas, que correspondem a factos integradores, respectivamente, dos crimes de falsificação de documento, de falsidade informática e de peculato, designadamente, face à proximidade no tempo entre os diversos actos que integram cada um daqueles crimes, e que constitui um “índice de que os factos foram praticado quadro da de uma mesma situação exterior… “ (douto Acórdão do TRE de 29/10/2013, relatado pelo Senhor Desembargador António João Latas, que no acórdão do mesmo tribunal de 7/03/2017, qualifica como peculato, na forma continuada, factos muito semelhantes aos destes autos, mas praticados por vereador de um Município, no exercício das suas funções e abusando delas, por a prática do primeiro lhe criar o convencimento de ausência de punição da conduta, que suportou e anima a decisão de repetir os mesmos actos).

Também no acórdão do TRL de 12/02/2019, Relatado Pelo Desembargador Vieira Lamim, se considerou ser uma solicitação exterior a diminuir a culpa da arguida o aspecto de esta ter acesso ao cartão bancário da ofendida e de o sucesso em cada acto facilitar a decisão para um dos seguintes.
Pois, esta solicitação externa diminutiva da culpa só não se verifica quando o agente procura ou provoca a situação, em cumprimento de projecto anteriormente traçado (neste sentido Acórdão deste Tribunal de 29/04/2019, relatado pela Senhora desembargadora Teresa Coimbra, in www.dgsi.pt, tal como todos os que se citaram ou se citem a partir de agora), o que acontece no caso vertente, em que a situação que facilitou a repetição das condutas - o exercício de funções, e o acesso ao sistema informático de uma autarquia são anteriores à primeira resolução criminosa (neste sentido, ver também Acórdão do TRP de 26/05/2010 relatado pelo Sr. Desembargador Joaquim Gomes).
Assim, atento tudo o exposto, o recorrente praticou apenas um daqueles crimes, de falsificação de documento, de falsidade informática e de peculato, mas na forma continuada, cumprindo fixar as penas parcelares e única a aplicar-lhe.
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A cada um dos 3 crimes supra referidos e praticados pelo recorrente, correspondem, em abstracto e respectivamente, as penas de prisão, de 1 a 5 anos, de 2 a 5 anos e de 1 a 8 anos.
A escolha e a fixação da medida da pena têm de fazer-se de harmonia com o disposto nos art.ºs 40º, 70º e 71º do CP, ou seja, em função da culpa do agente, sem nunca a poder ultrapassar, e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração daquele, e relativamente a crimes continuados ainda nos termos do art.º 79º n.º 1 daquele diploma legal (embora sem relevância no caso vertente, por cada um dos crimes continuados ser integrado por condutas a que corresponderia a mesma pena).
As finalidades da punição são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e no caso concreto, as exigências de prevenção especial não assumem especial acuidade, por o arguido não ter antessentes criminais, ter encetado uma nova vida, tendo pago integralmente as quantias de que se apropriou, o que indicia uma personalidade conformada com os valores ético-jurídicos.

Já o mesmo não se pode dizer relativamente as razões de prevenção geral se põem com acuidade, dado o significativo número de crimes desta natureza ou semelhantes que vêm surgindo, e ao prejuízo público e alarme social que causam.

A cada um dos crimes cometidos pelo arguido correspondia apenas pena de prisão, e esta, como diz Figueiredo Dias citado no Comentário do Código Penal de Paulo Pinto de Albuquerque em anotação ao art.º 40º, visa a prevenção geral positiva, ou de protecção de bens jurídicos, fornecendo “…uma moldura de pena dentro de cujos limites actuam considerações de prevenção especial, constituindo a culpa o limite máximo da moldura e a defesa da ordem jurídica o limite mínimo da moldura.”.

Impunha-se, pois, no caso sub judice, a aplicação de penas parcelares de prisão, e com excepção das penas aplicadas relativamente aos crimes de falsificação de documento e de falsidade informática, as fixadas pelo tribunal a quo mostram-se justas, adequadas e proporcionadas, atendendo, designada e especialmente, ao arrependimento demonstrado, à confissão integral dos factos e à entrega ao Município lesado da quantia de que se tinha apropriado.
E disse-se com aquelas excepções porque o mínimo das penas abstractas aplicáveis aos crimes de falsificação de documento e de falsidade informática eram de respectivamente de um e dois anos de prisão, mantendo-se no entanto as aplicadas, neste recurso interposto pelo arguido, face à proibição de reformatio in pejus, que salvo melhor opinião se aplica também às penas parcelares (ver neste sentido entre outros o Acórdão do STJ de 13/07/2017 relatado pelo Sr. Conselheiro Maia Costa, in www.dgsi.pt).
Impõe-se agora proceder ao cúmulo jurídico daquelas penas parcelares de 10 meses, 8 meses e 2 anos de prisão, que terá de ser no mínimo de 2 anos de prisão e no máximo de 3 anos e 6 meses de prisão.
Considerando, de novo, os factos no seu conjunto e a personalidade do recorrente, como impõe o n.º 1 do art.º 79º do CP, entende-se como adequada, justa e proporcionada a pena única de 2 anos e seis meses de prisão, que, pelas circunstâncias supra referidas e também consideradas em 1ª instância, se suspende por igual período de tempo, mantendo no mais o douto acórdão recorrido (designadamente a pena acessória, que não foi impugnada pelo recorrente).
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Decisão

Pelo exposto, os juízes deste Tribunal acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido P. M., e consequentemente, como autor de um crime de falsificação, em concurso real, com um de falsidade informática e outro de peculato, todos na forma continuada, e respectivamente previstos e punidos pelos art.ºs 256º n.ºs 1, alínea a) e 4 do CP, 3º n.ºs 1 e 5 do DL 109/09, de 15/08 e 375º também do CP, em condena-lo mas penas parciais respectivas de 10 meses, 8 meses e 2 anos de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, mantendo-se no mais o douto acórdão recorrido (pena acessória).
Sem custas.
Guimarães, 11 de Maio de 2020