Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
86/16.6GDGMR-B.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
INJÚRIA
OMISSÃO ELEMENTO SUBJECTIVO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Tendo sido deduzida pelo assistente, como sucede no caso dos autos, acusação totalmente omissa quanto à actuação livre da arguida (isto é podia ela agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), se actuou conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e, finalmente, se sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude), impõe-se concluir pela sua rejeição, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no artº 311º, nº 2, al, a) e 3, als. cb) e c), do CPP.

II) Esta orientação tem vindo a ser seguida pela jurisprudência dos nossos tribunais, após o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2015, da qual, aliás, só é admissível divergência se existir uma especial fundamentação, não bastando, como in casu a invocação de razões de discordância que não são novas, porquanto já foram rebatidos no referido aresto, correspondendo à posição que ficou vencida.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção de tribunal singular nº86/16.6GDGMR-B.G1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães – J3, em que é assistente M. S. e arguida C. F., ambas com os demais sinais nos autos, por despacho de 16.03.2017, foi decidido rejeitar a acusação particular que aquela deduziu contra esta por se ter considerado ser a mesma manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2 al. a) e 3 alínea b) e c) do C.P.Penal.

2. Não se conformando com a mencionada decisão, dele interpôs recurso a assistente, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:

1ª) Por despacho de fls. …, e por aplicação das normas constantes do art.º 311º n.º 2 al. a) e n.º 3 b) do Código de Processo Penal, veio a Mma. Senhora Juiz de Direito rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pela assistente contra a arguida C. R., imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, previsto e punido pelo art.o 181º do Código Penal.

2ª) Alicerça o douto despacho o juízo de falta de fundamentação manifesta da acusação particular, em resumo, porque “Num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo), entendendo-se que a factualidade vertida na acusação não é suficiente para configurar o crime imputado à arguida.

3ª) Entende a recorrente, porém, que a decisão em causa não pode manter-se.

4ª) Como bem explica o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 25/02/2015 e disponível em www.dgsi.pt: “I – O erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade que exclui o dolo (art.º 16º 1 CP) apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos. II - Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artº 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável. III - A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social.”, sendo certo que, no caso em apreço falamos de crimes conhecidos de todos como tal e que fazem parte da consciência social.

5ª) Como se ensina em Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 18/11/2013, “A solução está nas normas do art. 17º do Cod. Penal, sendo que a consequência não é a improcedência da acusação. A falta da consciência da ilicitude só exclui a culpa se o erro não for censurável. (…) Se o erro radicar numa “deficiência da própria consciência ética do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico penais e que por isso revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal”, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo (art. 17 nº 2).

6ª) Como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 2-2-2005, Proc. JTRP00037657 (Relator António Gama) disponível no sítio do ITIJ daquele tribunal, ‘o conhecimento da proibição legal só é indispensável quando o tipo de ilícito objetivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. (…) Sendo os factos narrados na acusação suscetíveis de fundamentarem uma condenação, não é caso de manifesta improcedência.”.

7ª) Ao contrário do que parece resultar ser a interpretação do douto despacho de que se recorre, “ A consciência da ilicitude não respeita ao dolo do tipo, mas antes à culpa. Enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tem que ser alegado e provado em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se inserem os crimes de difamação e injúria.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 05/03/2013, disponível em www.dgsi.pt.

8ª) No caso em apreço, não será de negar que a acusação particular oferecida é simplicidade manifesta e que nela não se recorreu ao uso textual da fórmula habitualmente usada pelo Ministério Público, mas será de considerar que esta contém o bastante para que, considerado provado o que nela se alega, condenar o arguido pelos crimes que lhe são imputados.

9ª) Na verdade, nela se imputam à arguida factos que circunstanciam o tempo e o espaço das imputações feitas, os actos por si praticados e, em especial: que os mesmos são adequados a ofender a da assistente; que a arguida tinha consciência que os seus actos eram aptos a ofender a honra da assistente; que a arguida agiu com a intenção de ofender a honra da assistente; e, ainda, que os actos praticados pela arguida, de facto, concretizaram o seu propósito, isto é, lesaram a honra da assistente.

10ª) Tanto basta para concluir que a acusação particular deduzida contem todos os elementos elencados pelo n.º 3 do art. 283º do Código de Processo Penal, imputando-lhe a prática de factos de natureza objectivamente criminosa e, bem assim, o intuito de praticar esses crimes, pelo que mal andou o douto despacho de fls…. ao rejeitar a acusação particular oferecida e, em consequência, rejeitar o pedido de indemnização civil deduzido, por conter a indicada peça todos os elementos legalmente exigidos.

11ª) Assim e pelas razões supra expostas deverá o douto despacho agora colocado em crise e que não recebeu a acusação particular e, em consequência, não recebeu o pedido de indemnização civil formulado, ser revogado e consequentemente ser substituído por outro que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil apresentados pela assistente, submetendo a arguida a julgamento por todos os factos aí narrados.

12ª) Neste termos, o douto despacho recorrido violou os art.os 16º, 17º e 181º do Código Penal e, bem assim, os art.os 311º, n.º 2 al. a) e n.º 3 al. b), c) e d); art. 283º n.º 3, estes do Código de Processo Penal.

NESTES TERMOS e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido e, em consequência, ser revogado o despacho que rejeitou a acusação particular deduzida e, em consequência, rejeitou o pedido de indemnização civil formulado, substituindo-se por outro, que receba a acusação particular e o pedido de indemnização civil, a bem da JUSTIÇA!

3. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso, tendo concluído no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.

4. Nesta instância, o Exmo Senhor Procurador- Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve ser mantida a decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.

5. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, apenas a arguida respondeu, manifestando a sua concordância com o parecer do Exmo Senhor Procurador- Geral Adjunto, pelo que concluiu no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente.

6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão recorrida

1.1- O Exmo Sr Juiz proferiu o seguinte despacho [transcrição]:

“Veio a assistente M. S., a fls. 152 e segs., deduzir acusação particular contra C. F., imputando-lhe a prática dos factos constantes de fls. 152/153.


*

Nos termos do artigo 311º nº 2, alínea a), do CPP, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

A acusação considera-se manifestamente infundada, quando não contenha a narração dos factos ou se não indicar as disposições legais aplicáveis – artigo 311º nº 3, alíneas b) e c),do CPP.


*

Ora, analisando a acusação particular deduzida a fls. 152 e segs., parece-nos ser manifesto que a factualidade objectiva imputada à arguida apontará para a prática de um crime de injúria.

Em conformidade com o disposto no artigo 181º, nº 1 do Código Penal, comete o crime de injúrias, “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.

Por seu turno, dispõe o artigo 143º, nº 1, do Código Penal que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Em qualquer uma das modalidades tipicamente previstas, o crime de injúria é um crime tipicamente doloso e, no caso do crime previsto no artigo 143º, nº 1, é, igualmente, doloso.

A noção de dolo é-nos dada pelo artigo 14° nº 1, do Código Penal, segundo o qual age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.

Segundo o Professor Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo).

Ainda segundo o mesmo Professor, na obra citada, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do artigo 16º do Código Penal, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo.

No mesmo sentido aponta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs.332 e 333.

Segundo aquele Professor a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, sendo o conhecimento o momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto.

Acerca do momento intelectual do dolo do tipo, escreveu aquele Professor na obra e local citados: "Do que neste elemento verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (...) das circunstâncias do facto (...) que preenche um tipo objectivo de ilícito (art. 16.º - 1). A razão desta exigência deve ser vista à luz da função que este elemento desempenha: o que com ele se pretende é que, ao actuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o sucedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título. Com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo o dolo terá, desde logo, de ser negado (...). Fala-se a este respeito, com razão, de um princípio de congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso. "

Para o Professor Germano Marques da Silva, na obra citada, "A exigência de que a consciência da ilicitude faça parte do dolo resulta do art. 16.º, pois aí se dispõe que o erro sobre elementos de facto ou de direito ou sobre proibições cujo conhecimento for indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude exclui o dolo, o que significa que a consciência da ilicitude é também elemento do dolo, pois se faltar o dolo é excluído ".

Ora, num crime doloso, da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo) – Acórdão da Relação de Coimbra, 01-06-2011, publicado em www.dgsi.pt.

Aliás, veja-se, o recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, segundo o qual «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»

Conforme é referido no citado Acórdão do STJ: “Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.”

Analisando o teor da acusação particular, verifica-se que a única alusão ao elemento subjectivo é a seguinte “ (…) com tais palavras pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu (…).”

Com efeito, na acusação em lado algum se diz que a arguido actuou com a consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei, ou seja, com a consciência do desvalor da sua conduta e que com essa avaliação se conformou (consciência da ilicitude), facto que integra seguramente o elemento subjectivo da infracção.

Não constando da referida acusação todos os factos integradores do tipo subjectivo, nos termos supra referidos, deve a acusação particular ser rejeitada por manifestamente infundada – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 09-05-2012, publicado em www.dgsi.pt.


*

Face ao exposto, nos termos do artigo 311º, nº, 2 alínea a) e 3 alínea b) e c), do CPP, rejeita-se a acusação particular deduzida a fls. 152 e segs., por ser manifestamente infundada.

Notifique.

Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.


*

Face à rejeição da acusação particular, conforme supra referido, rejeita-se liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante a fls. 153 e segs., atento o princípio da adesão (artigo 71º, do CPP).

Notifique.”

2- Apreciação do recurso

2.1- O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso(1) do tribunal.

O nº 1 do artigo 412º do C.P.P. estabelece que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

Como salienta Germano Marques da Silva (2) a propósito da referida norma, “As conclusões devem ser concisas, precisas e clara, porque são as questões nelas sumariadas que hão-de ser objeto de decisão.”
Nas conclusões do recurso, o recorrente deverá fazer uma síntese das razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, tal como se encontram delineadas na respetiva motivação.

Assim, a questão essencial a decidir no presente recurso, tal como se encontra delimitada pelas respetivas conclusões, consiste em saber se a conduta descrita na acusação deduzida pela assistente contém ou não, na sua plenitude, o elemento subjetivo do imputado tipo legal de crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º do C. Penal. E, em caso negativo, se tal omissão constituiu ou não motivo de rejeição da acusação por dever ser considerada manifestamente infundada.

2.2- A acusação deduzida pela assistente contra a arguida, no que releva para a questão a decidir, tem a seguinte redação:

“No dia 3 de Abril de2016, por volta das 17,30 horas, a arguida C. F., melhor identificada nos presentes autos, dirigiu-se à ofendida, enquanto ambas se encontravam no espaço comum das suas residências, chamando-lhe de “sua vaca, sua filha da puta”.
Com tais palavras pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu, até porque tal comportamento aconteceu no espaço exterior comum às habitações de ambas, na presença do filho da ofendida, J. P., menor à data dos factos, bem como percetível a quem por ali passava e que assistiu ao chorrilho de injúrias dirigidas à assistente, o que lhe causou enorme vergonha e embaraço social.
Assim, a arguida incorreu na prática de um crime de Injúria p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.”
2.3- A questão colocada no presente recurso acima enunciada tem que ver com os poderes e os limites do tribunal de julgamento ou, dito por outro modo, com o objeto do processo. E, tal como foi referido na decisão recorrida, bem assim pelo M.P. ( quer na primeira instância quer neste Tribunal da Relação ), tal questão encontra resposta no Ac. de fixação de jurisprudência do STJ nº 1/2015, in DR, 1ª Série, de 27.01.2015.

Como é sabido o sistema processual português não é acusatório puro, mas obedece a uma estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material.

Com efeito, o nº 5 do artigo 32º da CRP diz que “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.

O princípio da acusação significa que o julgador não pode acumular as funções de acusação e investigação, mas pode apenas julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferente (entre nós, MP ou juiz de instrução).

A intencionalidade do princípio é a garantia de imparcialidade do julgador e a igualdade de armas. Por isso mesmo, o MP não pode ser dono do processo nas fases de instrução e julgamento.

O princípio da acusação impõe a vinculação temática e a limitação dos poderes de cognição do juiz de instrução (artigo 309º, nº 1 ) e do juiz de julgamento (artigo 284º, nº1, 359º, nº 1,e, nos crimes particulares, artigo 285º, nº 1, 359º, nº 1), cfr. Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina 2014, pág. 203-204.

O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento” cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206.

O processo penal de tipo acusatório opõe-se ao processo penal de tipo inquisitório, em que o juiz investiga livremente e sem limitação alguma, independentemente de qualquer acusação e, mesmo que tal acusação exista, ela apenas determina o se da investigação judicial, não o seu como nem o seu quanto, cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, pag. 136 e segs.

Após esta breve referência aos princípios em que se insere o âmbito da questão a decidir nos presentes autos, é altura de nos ater ao caso concreto,

No caso vertente, como se salienta na decisão recorrida, a única referência ao elemento subjetivo do tipo legal de crime de injúria imputado consiste nos dizeres que se passam a transcrever “ (…) com tais palavras pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu (…).”

Dos referidos dizeres, julgamos poder concluir que na acusação apenas se faz referência à intenção da arguida (é o que parece depreender da expressão “pretendia”) que era de atingir a assistente na sua honra e consideração social, tendo logrado concretizar esse seu desiderato, o que decorre da expressão “o que conseguiu”.

Para além disso, nada mais se diz na acusação sobre o elemento subjetivo do tipo legal de crime de injúria que é imputado.

As injúrias são infrações dolosas, consistindo este num dolo genérico, como é entendimento pacífico entre nós desde há muito tempo, ou seja, não é necessário para o preenchimento do crime que haja dolo específico, que se traduz na intenção de ofender a honra ou consideração alheias (vide v.g. Ac. STJ de 17.2.1983, p. 36867, citado por M. Gonçalves, C.P. Anotado, 8ª Ed., p. 660).

Mas, como se refere na fundamentação do A.F.J. acima citado (ponto 10.2.3) “…a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS.

Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).”

No que se refere à consciência da ilicitude, depreende-se das conclusões de recurso, que a recorrente sustenta que a consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tem que ser alegado e provado em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se inserem os crimes de difamação e injúria (vide conclusão 7ª).

Assim, se bem interpretamos as conclusões do recurso em apreciação, a recorrente defende que a consciência da ilicitude deve ser extraída dos factos objetivos descritos, sendo, pois, de presumir, encontrando-se implicitamente referida na acusação. É que, salvo melhor opinião, não se trata apenas de “simplicidade manifesta” (sic, vide concussão 8ª) da acusação particular, mas da omissão de elementos relativos ao tipo subjetivo do imputado crime de injúria”.

Todavia, não podemos concordar com argumentação expendida, porquanto a mesma corresponde à posição que ficou vencida no A.F.J. citado, sendo que na fundamentação deste (ponto 10.2.3.1) pode ler-se “Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobe a ilicitude, contemplada no art. 17.º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art. 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro.

Escreve FIGUEIREDO DIAS, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito (Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.)

Diz ainda o mesmo Autor, noutra passagem da mesma obra, que o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objectivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento (sublinhados nossos) [ob. cit., p. 351).”

E, no ponto 10.2.4, acrescenta-se “De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).

Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objectiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus De Alegar E De Provar Em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142)”.

Por isso, se concluiu no citado AFJ no sentido de que (ponto 11.1) “Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).

Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.”

“Tendo a acusação passado no crivo do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art. 358.º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.

Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.

Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).

Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.” (cfr. ponto 11.2 da fundamentação)

Daí que aí se tenha concluído no sentido de que «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.”

No caso em apreço, no que se refere ao elemento subjetivo do imputado tipo legal de crime de injúria, a acusação deduzida pela assistente quedou-se, como se viu, pela mera referência à intenção da arguida - traduzida pela referência à expressão “pretendia”- que logrou alcançar. Na verdade, os dizeres constantes da acusação, quanto ao tipo subjetivo, foram apenas: “ (…) com tais palavras pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu (…).”

Ora, como resulta do que ficou dito supra, a consciência da ilicitude é uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do facto típico. Ela acresce, como elemento emocional, ao conhecimento e vontade de realizar o facto típico (elementos do dolo do tipo), traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso). Logo, teria de constar da acusação, mas não consta.

No caso, a acusação é totalmente omissa quanto à atuação livre da arguida (isto é, podia ela agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), se atuou conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e, finalmente, se sabia ser sua conduta proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

A ausência dos aludidos elementos da acusação, como decorre da fundamentação da fundamentação da decisão recorrida e do aludido A.F.J., deverá conduzir à sua rejeição (3), que foi o que sucedeu no caso destes autos, cfr. artigos 283º, nº 3 al. b), 284º, nº 2, e 311º, nº 3 als. b) e d) do C.P.P..

Não vemos razões para discordar da jurisprudência fixada, até porque os argumentos da recorrente não são novos, porquanto já foram rebatidos no referido aresto, correspondendo à posição que ficou vencida (4).

A jurisprudência uniformizada não é obrigatória, cfr. nº 3 do artigo 445º do C.P.P.. No entanto, em caso de discordância exige um especial dever de fundamentação. Neste sentido, com bem refere Pereira Madeira (5) “o tribunal judicial divergente não pode limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer relevante argumento novo não ponderado ainda, sem perceção de alteração notória nas conceções ou da composição do Supremo vg, através de arestos publicados, baseando essa divergência tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal”.

Após o A.F.J. que vimos repetidamente de citar, a jurisprudência não tem divergido sobre a questão em apreço, sendo disso exemplo o Ac. RG de 06.02.2017, processo nº 149/15.5PBCHC.G1.G1, relatora Laura Maurício, e o Ac. RC de 02.03.2016 Proc. nº 2572/10.2TALRA.C2, relator Vasques Osório, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

Em suma, concorda-se com a posição que foi seguida pela decisão recorrida, tanto mais que a mesma se ancorou no Ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2015, pelo que bem andou o tribunal recorrido ao rejeitar a acusação particular deduzida pela assistente.


*

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos exposto, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, com 3 Ucs de taxa de justiça - artigos 515º, nº 1 al. b) do C.P.P. e artigo 8º, nº 9 do RCP e tabela III anexa a este último diploma legal.


Guimarães (6), 06.11.2017

(Armando da Rocha Azevedo)
(Clarisse Machado S. Gonçalves)

1. Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995 e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..

2. Direito Processual Penal Português, Do Procedimento (Marcha do Processo), 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335.

3. O juiz deve apenas controlar os vícios estruturais graves da acusação referidos no artigo 311º, nº 3, aditado pela Lei nº 59/98, de 25.08. Já foi notado, com razão, que estes vícios se sobrepõem às nulidades sanáveis do artigo 283º, nº 3 als. a), b) e c) (“sob pena de nulidade”), pelo que as ditas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal (Germano Marques da Silva, 2000 b:2007 e 2008), cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 790.

4. Aliás não será por mero acaso que jurisprudência citada pela recorrente é anterior ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2015.

5. Vide Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2014, pág. 1591.

Elaborado e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).