Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
460/11.4TBGC-A.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO CUNHA
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
DATA DE VENCIMENTO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. Uma livrança em branco é uma livrança incompleta, em que falta algum dos requisitos essenciais, mas onde existe, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário.
II. Depois da emissão da livrança em branco, poderá o título de crédito vir a ser dotado dos elementos necessários para que possa produzir efeitos como livrança, sendo necessário, porém, que esses requisitos constem nela na altura do seu vencimento.
III. Nos casos em que não conste da livrança em branco a data do vencimento, o preenchimento desta data do vencimento da livrança deve, em princípio, coincidir com a data em que o incumprimento definitivo das obrigações do devedor se verifique e/ou com a data em que o credor declare a resolução do contrato fundamental subjacente à subscrição da livrança.
IV. Não se pode assim considerar abusivo o preenchimento da livrança em branco, quanto à data que a exequente apôs no local destinado a esse efeito na Livrança, se essa data coincide com a data em que a exequente declarou a resolução do contrato de mútuo celebrado e no âmbito do qual foi subscrita a livrança em branco.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.
I. RELATÓRIO.
Recorrente: B.;
Recorrida: Banco C., S. A.;
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Por apenso à execução comum, para pagamento de quantia certa, que lhe move a sociedade Banco C., S. A., veio o executado B. deduzir oposição à execução mediante os presentes embargos de executado.
Para tanto alegou, em síntese, que :
-apesar de admitir ter subscrito a livrança em branco, não é devedor de qualquer importância, sendo que aquele título de crédito nunca lhe foi apresentado para pagamento.
-arguiu que, no início do ano de 2009, decidiu adquirir um veículo automóvel, tendo-se dirigido ao Stand designado por “D.”, de E., e optado por uma viatura, havendo ficado convencionado que a sua legalização ficava por conta do vendedor, pois tratava-se de um veículo automóvel de matricula estrangeira.
-Expôs que, como era necessário obter financiamento para pagamento do preço acordado, o dono do Stand, E., ofereceu-se para negociar o crédito que necessitava para a compra do veículo junto de uma instituição financeira com quem costumava trabalhar, a exequente, bem como obter a legalização do veículo, ou seja, obter matrícula portuguesa.
-Alegou que E. lhe solicitou a assinatura de uns impressos alegadamente necessários à proposta de crédito, ficando incumbido de tratar de tudo, admitindo que entre os impressos, estivesse incluída a livrança dada à execução, a qual não se encontrava preenchida, desconhecendo as condições do empréstimo e até a matrícula do veículo.
-Relatou que E. obrigou-se a fazer o registo de aquisição do veículo em seu nome e logo que se mostrasse registado a entregar-lhe os documentos, bem como a viatura devidamente legalizada, sendo que, em abril de 2009, pagou à exequente a quantia de € 222,91.
-Arguiu que, como o veículo não lhe foi entregue, alegadamente pela demora na legalização, nada mais pagou até à sua entrega, tendo tal entrega ocorrido só em setembro de 2009.
-Descreveu que, a partir do final do ano de 2009, viu-se confrontado com graves dificuldades económicas e financeiras e decidiu abordar E. e Castro dando-lhe conta da situação, isto é, fazendo-lhe ver que não tinha condições de continuar a pagar as prestações, tendo este, já em janeiro de 2010, lhe exposto que podia entregar o carro pelo valor da divida, que na altura, segundo afirmou, rondava os €10.000,00.
-Relatou que, na sequência do acordado com E., no início do mês de janeiro de 2010, o carro foi entregue a este, que na altura se fazia acompanhar por uma terceira pessoa que se apresentou como representante da C., SA, ficando, assim, a dívida liquidada.
Concluiu que nada deve à exequente, tanto mais que o veículo foi posteriormente vendido pelo mesmo E., a F., e extinta a reserva de propriedade que a exequente tinha sobre a viatura.
Mais expôs que não recebeu qualquer exemplar do contrato de crédito, nem a livrança se mostrava preenchida quando nela apôs a sua assinatura, daí que se verifica a nulidade desse escrito, nunca tendo sido ajustados os termos em que deveria definir-se a obrigação cambiária, designadamente a fixação do montante, tempo de vencimento, sede de pagamento e demais condições relativas ao seu conteúdo.
Concluiu pela extinção da acção executiva.
Notificada do articulado de embargos de executado, a embargada veio pugnar pela sua improcedência.
Com efeito, arguiu, em síntese, que :
-no âmbito da sua actividade e a pedido de B., em 04-03-2009, concedeu àquele um crédito no valor de € 11.662,93, para financiar a aquisição de um automóvel, de marca Renault, modelo Megane, Diesel, com a matrícula …-IC-…, o qual haveria de ser reembolsado em 84 prestações mensais e sucessivas no valor de € 222.91 cada.
-Mais arguiu que os pagamentos seriam debitados, mensalmente, de uma conta bancária do Banco G., sendo que, para o efeito, o titular assinou uma autorização de débito em conta, e entregou vários documentos pessoais.
-Expôs que não teve qualquer intervenção na negociação ou escolha do bem, tendo intervindo, apenas, na parte respeitante ao financiamento, tendo, aquando da celebração do contrato, a quantia financiada de imediato sido entregue ao Stand.
-Arguiu que, atento o incumprimento, o contrato acabou por ser resolvido, a 07-04-2011, mediante comunicação escrita remetida para a residência do executado, sita em Bragança, sendo que, desde a data de celebração do contrato até à data de entrega do veículo, este apenas pagou o total de € 1.427,46, e entregou-o de tal forma danificado que o valor da reparação ascendeu a €1.258,00, pelo que nunca poderia valer € 10.000,00.
-Descreveu todo o processo até à entrega do veículo, o qual foi adquirido, pelo valor de €6.000,00, pela sociedade “H., Lda.”, quantia que foi abatida ao montante em dívida.
-Alegou que o embargante atua em manifesto abuso de direito, tendo assinado a livrança e subscrito o contrato subjacente à mesma de modo livre e voluntário, encontrando-se estipulado os termos do preenchimento que foi aceite por aquele, que, de certeza, leu o seu o teor, mas se não o fez foi por sua culpa.
Concluiu pugnando pela improcedência dos embargos de executado.
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Em sede de saneamento dos autos, foi dispensada a realização da audiência prévia, a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do pertinente formalismo legal.
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De seguida, foi proferida a sentença que constitui o objecto do presente Recurso, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão:
“…III. DECISÃO
Pelo exposto, julgo improcedentes os presentes embargos de executado intentados por B. contra a sociedade Banco C., S. A. “.
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É justamente desta decisão que o Embargante/Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
1º- Nos autos de execução comum para pagamento de quantia certa, fundada em Livrança, subscrita pelo executado B., no valor de 10.129,79€, com data de vencimento de 07/04/2011, veio a exequente BANCO C., S.A., requerer o pagamento coercivo de tal montante.
2º- O executado deduziu oposição, alegando não ser devedor de qualquer importância, embora admitindo ter obtido financiamento da exequente BANCO C., S.A., para aquisição de um veículo automóvel. Mais alega ter pago algumas prestações e que oportunamente entregou o veículo adquirido para pagamento do valor em divida.
3º- Por isso, considera, além do mais, verificar-se a nulidade do contrato de mutuo, uma vez que não lhe foi entregue cópia nem o seu conteúdo lhe foi explicado; e ter havido preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente, sendo que a quantia aposta na livrança não é devida.
4º- Em sede de contestação de embargos de executado, veio a embargada BANCO C., S.A., alegar, em síntese, que em 04/03/2009, concedeu ao executado um crédito no valor de 11.662,93€, para financiar a aquisição de um veiculo automóvel, o qual haveria de ser reembolsado em 84 prestações de mensais iguais e sucessivas de €222,91; que resolveu o contrato, por incumprimento no pagamento das prestações por parte do executado, em 07/04/2011, sendo que aquele, até aquela data apenas havia pago o valor global de 1.427,46€ e que o valor em divida ascendia a 10.129,79€, admitindo que o veículo automóvel lhe foi entregue pelo executado/oponente em 10/03/2010, o qual foi vendido, pelo valor de € 6.000,00, quantia que foi abatida á divida.
5º- Efetuada a audiência de julgamento, resultou “provada” e “não provada”, a factualidade que da douta decisão se infere e que supra se deixou transcrita, sendo que por brevidade, aqui se dá por reproduzida.
6º- A douta sentença aqui posta em crise julga improcedentes os embargos de executados intentados pelo executado oponente B. contra a sociedade Banco C., S.A., porquanto considera que a exequente logrou demonstrar que, na data da subscrição do contrato, foi entregue ao embargante um exemplar do escrito subjacente à livrança dada à execução, em cumprimento das suas instruções, por um lado, e, por outro, que o executado embargante não logrou demonstrar o preenchimento abusivo da livrança dada à execução.
7º- Apesar do respeito devido, o executado/oponente discorda da douta decisão proferida, por duas ordens de razões:
-A primeira, por considerar que não resulta dos factos provados que a embargada entregou um exemplar do contrato subjacente à livrança;
- A segunda, pelo facto de o Tribunal não ter apurado, como devia, qual o valor devido pelo executado/embargante à data da entrega do veículo.
Vejamos:
8º- Lida a matéria de facto dada como assente na douta sentença proferida, dela não resulta que a embargada tenha entregue ao executado/embargante o exemplar do contrato escrito a que se alude na alínea c) dos factos assentes ou que o seu conteúdo lhe tenha sido explicado.
9º- Portanto, no caso, o Tribunal recorrido decidiu em desconformidade com a matéria de facto dada como assente.
10º- O DL. nº 359/91, de 21.9, prevê, no seu artigo 6°, os requisitos a que deve obedecer tal contrato, estabelecendo no seu nº 1 que - O contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respetiva assinatura, sendo que nos termos do artigo 7° mesmo diploma legal, o contrato de crédito é nulo quando não for observado o prescrito no nº 1 ou quando faltar algum dos elementos referidos nas alíneas a), c) e d) do nº 2, nas alíneas a) a e) do nº 3 e no nº 4 do artigo anterior.
11º- Por outro lado, dispõe o nº 4° desse artigo que a inobservância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor.
12º- De acordo com a lei (maxime, DL. nº 351/91, de 21.08), quem tinha o ónus de alegar e provar que havia entregue um exemplar do contrato ao executado/embargante era a exequente/embargada e não o recorrente provar a sua não entrega (vd., entre outros, arts. 6°, n°1 e 7°, nº1 e nº 4 do dito DL n° 351/ 91, de 21.08).
13º- Assim, apesar do respeito que sempre nos merece opinião diversa, cremos que a douta sentença proferida não apreciou nem interpretou corretamente os factos dados como provados.
14º- Na verdade, a exequente não logrou provar (como lhe era exigível) que, no ato de assinatura do contrato com base no qual foi preenchida a livrança dada à execução, entregou ao oponente um exemplar do dito contrato.
15º- Por isso que se verifica, in casu, a nulidade de tal contrato (cfr. art. 7°, nº 1, DL. nº 351/91, de 21.08); e, em consequência, a inexequibilidade da livrança dada à execução, nulidade que o Tribunal recorrido estava legalmente obrigado a conhecer, face ao disposto no art. 18°, do DL. nº 351/91, de 21.08.
16º- Desta feita, a decisão recorrida violou, entre outras, as normas dos artigos 2°, nº1, a); 4°; 6°; 7° e 18° do DL. nº 359/ 91, de 21/09; e 615°, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.
17º- Por fim, embora se admita que o embargante não tenha conseguido demonstrar que a entrega do veículo determinaria a liquidação da quantia em divida, já não se admite que o tribunal não tenha considerado o valor obtido com a venda do veiculo para diminuir à divida naquela data, uma vez que o contrato está incumprido.
18º- De facto, o tribunal não apurou, como devia, qual o valor devido pelo executado/embargante à data da entrega do veículo.
19º- No caso, não é aceitável que se aguarde cerca de doze meses para se apurar o valor devido e que posteriormente foi inscrito na livrança dada à execução.
20º- Dos fatos assentes pode concluir-se com segurança que o valor em divida à data da entrega do veículo seria de €4.234,42, assim discriminado [(11.662,92 – €1.427,46 = €10.234,42) - €6.000,00].
21º- Ora, sem qualquer razão ou justificação plausível, a exequente apenas comunica ao executado/embargante a sua decisão de resolver o contrato cerca de um ano depois, mais concretamente em 07/04/2011, referindo que o valor em divida naquela data ascendia a €10.129,79.
22º- Portanto, é abusivo o preenchimento da livrança com um valor substancialmente superior ao devido, segundo os factos provados.
23º- Com efeito, resultando provado que o incumprimento por parte do executado/embargado em 10/03/2010, data em que entregou o veiculo para abater à divida, não é admissível que se aceite que o incumprimento apenas ocorreu em 07/04/2011.
24º- Pelo que, independentemente do entendimento do Tribunal a quo, com o qual, com o devido respeito, se não concorda, de que o executado/embargante não logrou demonstrar o preenchimento abusivo, no caso, o preenchimento mostra-se abusivo uma vez que não ficou demonstrado que esse preenchimento foi feito em conformidade com o valor devido na data da entrega do veículo.
25º- Desta feita, temos para nós que a decisão recorrida, nesta parte, não se mostra fundamentada, o que gera a sua nulidade, face ao disposto no artigo 615º, nº 1, alínea e) do CPC.
Nestes termos e nos mais de direito que mui doutamente serão supridos, concedendo provimento ao recurso, revogando a douta sentença proferida de modo a se decida pela inexequibilidade da livrança dada à execução, fará este Venerando Tribunal, como sempre, JUSTIÇA
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente/ Embargante coloca as seguintes questões que importa apreciar:
I)-nulidade do contrato de mútuo, uma vez que não lhe foi entregue cópia nem o seu conteúdo lhe foi explicado;
II)-preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente, sendo que a quantia aposta na livrança não é devida, por dois fundamentos:
a) o valor em divida à data da entrega do veículo seria de €4.234,42, assim discriminado [(11.662,92 – €1.427,46 = €10.234,42) - €6.000,00];
b) o incumprimento por parte do executado/embargado ocorreu em 10/03/2010, data em que entregou o veiculo para abater à divida, pelo que não é admissível que se aceite que o incumprimento apenas ocorreu em 07/04/2011;
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
“A) FACTUALIDADE PROVADA
Produzida a prova, resultou provada a seguinte factualidade:
a) A sociedade Banco C., S. A., intentou ação executiva, para pagamento de quantia certa, contra B., para deste haver a quantia global de €10.136,72.
b) A sociedade Banco C., S. A., fundou a execução mencionada em a), no facto de ser legítima portadora de um escrito, nos termos do qual ordenou B. que lhe pagasse, por essa única via de livrança, a si ou à sua ordem, a quantia de €10.129,79 - cfr. documento de fls. 5 dos autos executivos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
c) O escrito aludido em b) foi entregue à exequente garantia do escrito junto a fls. 51-52, nos termos do qual a exequente concedeu ao executado o montante de €11.662,92, para aquisição do veículo automóvel, da marca Renault, Megane II, Break Diesel, de matrícula …-IC-…, que aquele se obrigou a restituir em 84 prestações, iguais, mensais e sucessivas de €222,91 - cfr. documento de fls. 51-52 destes autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
d) O embargante subscreveu o escrito denominado “Seguro de Proteção ao Crédito” junto a fls. 54-55 destes autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
e) Os pagamentos das prestações mencionadas em c) seriam debitados, mensalmente, de uma conta bancária do Banco G., sendo que, para o efeito, o titular assinou uma autorização de débito em conta.
f) No ato da outorga do escrito mencionado em c), foram entregues à embargada os seguintes documentos:
- Fotocópia do Bilhete de Identidade e do cartão de contribuinte do embargante;
- Fotocópia dos três últimos recibos de vencimento do embargante;
- Comprovativo de titularidade de conta bancária no Banco G..
g) A embargada não teve qualquer intervenção na negociação ou escolha do bem.
h) Aquando da celebração do escrito mencionado em b), a quantia mencionada nesse escrito foi de imediato entregue ao Stand.
i) O escrito mencionado em b) foi resolvido aos 07-04-2011, mediante comunicação escrita remetida para a residência do embargante, sita em Bragança.
j) Aquando da resolução, encontrava-se em dívida o valor de €10.129,79.
m) O veículo foi entregue danificado, tendo a reparação custado €1.258,00.
n) Em meados de julho de 2009, a embargada contactou o embargante, telefonicamente, uma vez que se encontravam já três prestações em atraso.
o) Neste contacto, o embargante referiu que ainda não tinha o veículo na sua posse, alegadamente por falta de legalização e que, por esse motivo, não iria pagar as prestações até receber o bem.
p) A situação descrita em o) era alheia à embargada, a qual respondeu isso mesmo, sugerindo ao embargante que resolvesse a situação junto da entidade que lhe vendeu o automóvel, o qual era responsável pela entrega.
q) Perante esta resposta, o embargante respondeu à embargada que o dono do Stand era seu primo e que iria aguardar que o mesmo resolvesse a questão em falta no que toca a matrícula e legalização.
r) A embargada informou o embargante das consequências do incumprimento, uma vez que, como não remeteu qualquer declaração de revogação da declaração negocial, o mesmo estava já em incumprimento.
s) O embargante já tinha conhecimento, na data de celebração do contrato, de que o mesmo não estaria, ainda, disponível para circulação.
t) O embargante aceitou adquiri-lo naquela data.
u) Em agosto de 2009, mantendo-se o incumprimento, a embargada contactou o Stand, o qual referiu que o veículo já havia sido entregue ao titular.
v) No início de setembro de 2009, o embargante solicitou à embargada o deferimento da prestação para o dia 12 de cada mês, tendo esta anuído.
w) Em janeiro de 2010, a embargada recebeu uma chamada de um individuo que se disse chamar I, alegando ser o pai do titular, informando que este se havia mudado para Bragança.
x) Nesse contacto, o Sr. I solicitou que não lhe voltassem a enviar correspondência já que a morada indicada aquando da celebração do contrato era residência dele e da esposa e não do titular.
y) Em Fevereiro de 2010, numa das visitas à morada contratual, um funcionário da embargada falou com a alegada mãe do titular, a qual reiterou que o filho estaria a residir em Bragança, com a namorada, confirmando a morada indicada pelo Sr. I.
z) Após esse contacto, a embargada contactou o titular, o qual confirmou a informação, isto é, confirmou que residia em frente ao …, mais concretamente na ….
aa) Nesse contacto, afirmou estar desempregado há cerca de 6 meses, motivo pelo qual não se encontrava a cumprir com as prestações acordadas, acrescentando que pretendia proceder à entrega do veículo.
ab) Adiantou, ainda, que tinha um conhecido a propor a aquisição do veículo pelo valor de €6.000,00.
ac) Assim, em 10 de março de 2010, um funcionário da embargada deslocou-se à morada do embargante, sita em Bragança, por forma a proceder à recolha do veículo financiado.
ad) Nessa deslocação, o embargante assinou:
- A ficha de recuperação do veículo;
- O pedido de venda do veículo– no qual se responsabilizou pelo pagamento do remanescente em divida – e, ainda,
- A necessária declaração a autorizar a venda do veículo pelo valor de € 6.000,00– na qual reiterou a sua responsabilização pelo remanescente da divida.
ae) O veículo veio a ser adquirido, pelo valor de €6.000,00, pela sociedade comercial designada “H., Lda.”.
af) O valor aludido em ae) foi abatido ao montante em falta.
ag) A embargada impõe às entidades vendedoras que o clausulado seja explicado e que seja fornecida cópia do contrato.
ah) Tendo o embargante assinado uma declaração nesse sentido.
ai) O embargante intitulava-se primo do dono do Stand, pelo que seguramente lhe deu um exemplar.
aj) E deu a ler o seu conteúdo.
ak) Após o descrito em ae), o veículo foi vendido a F., residente …– cfr. certidão registral cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Como supra se referiu as questões que importa apreciar e decidir consistem em:
I)- nulidade do contrato de mútuo, uma vez que não lhe foi entregue cópia nem o seu conteúdo lhe foi explicado;
II)-preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente, sendo que a quantia aposta na livrança não é devida, por dois fundamentos:
a) o valor em divida à data da entrega do veículo seria de €4.234,42, assim discriminado [(11.662,92 – €1.427,46 = €10.234,42) - €6.000,00];
b) o incumprimento por parte do executado/embargado ocorreu em 10/03/2010, data em que entregou o veiculo para abater à divida, pelo que não é admissível que se aceite que o incumprimento apenas ocorreu em 07/04/2011;
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Comecemos por analisar a primeira questão apresentada pelo Recorrente como fundamento do Recurso.
-Nulidade do contrato de mútuo, uma vez que não lhe foi entregue cópia nem o seu conteúdo lhe foi explicado;
Quanto a esta questão o Tribunal de Primeira Instância desenvolveu uma argumentação no sentido de julgar improcedente a pretensão da Embargante com fundamento no facto de ter sido considerado provado, contrariamente ao alegado pelo Embargante, que ao Embargante, não só lhe foi entregue um exemplar do contrato, como também o conteúdo ( teor ) do contrato foi explicado, no caso por terceiro ( primo, dono do Stand )
Na verdade, ficou provado que :
“ag) A embargada impõe às entidades vendedoras que o clausulado seja explicado e que seja fornecida cópia do contrato.
ah) Tendo o embargante assinado uma declaração nesse sentido.
ai) O embargante intitulava-se primo do dono do Stand, pelo que seguramente lhe deu um exemplar.
aj) E deu a ler o seu conteúdo.”
E daqui o Tribunal de Primeira Instância retirou a consequência de que “… da factualidade provada e seguindo as regras do ónus da prova, verifica-se que a exequente logrou provar que, na data da subscrição do contrato, foi entregue ao embargante um exemplar do escrito subjacente à livrança dada à execução, em cumprimento das suas instruções e até pelas relações familiares entre este e o primo do dono do Stand.
Deste modo, falece a nulidade invocada.
Mais arguiu a embargante que não leu o teor do contrato em questão.
Por seu turno, a embargada/exequente veio arguir seguramente que foi lido o contrato subjacente ao título dado à execução, dadas as relações familiares entre o embargante e o primo do dono do Stand, o vendedor do bem…”
( e mais à frente… )
“… Mais arguiu a embargante que não leu o teor do contrato em questão.
Por seu turno, a embargada/exequente veio arguir seguramente que foi lido o contrato subjacente ao título dado à execução, dadas as relações familiares entre o embargante e o primo do dono do Stand, o vendedor do bem.
A exegese dos factos provados indicia claramente que tal oneração, incidente sobre a parte que submeteu as cláusulas gerais à apreciação da contraparte, se encontre cumprida.
Com efeito, entendemos que o dever de comunicação é cumprido quando se proporcione ao outro contraente a possibilidade razoável de, usando de comum diligência, tomar real e efetivo conhecimento do teor das cláusulas.
Nada impõe que essa comunicação tenha que ser oral, a não ser que o outro contraente/aderente não saiba ler, o que não consta que seja o caso.
(…) Isto posto e vertendo ao caso em sujeito, derivou como provado que o primo do dono do Stand leu o escrito ao embargante.
Destarte e na senda do supra analisado, falece a nulidade invocada pelo embargante…”.
Importa ponderar se esta argumentação do Tribunal de Primeira Instância que parte da matéria de facto provada pode ter acolhimento, tendo em consideração nomeadamente o regime jurídico aplicável ao caso concreto.
Por outro lado, independentemente do acolhimento da tese defendida pelo Tribunal de Primeira Instância (e mesmo que se considere que existe um qualquer vicio que conduza à nulidade do contrato), importa ponderar se, mesmo que assim não seja, não existirá aqui uma situação de abuso de direito (art. 334º do CC) na invocação da nulidade por parte do Embargante, tendo em conta a conduta que anteriormente tinha adoptado e a expectativa que a Embargada tinha de que o Embargante não iria invocar a nulidade do contrato com esse fundamento.
Ora, em primeiro lugar, importa dizer que, em face da matéria de facto provada -que não foi impugnada pelo Recorrente- é inequívoco que resulta da mesma que ao Embargante, não só lhe foi entregue um exemplar do contrato, no caso por Terceiro, como também o conteúdo (teor) do contrato foi explicado, no caso por terceiro (primo, dono do Stand) de acordo, aliás com a imposição que a embargada efectua às entidades vendedoras, sendo que (ah) o embargante inclusivamente assinou uma declaração nesse sentido.
A questão que se coloca é a de saber se, conforme invoca o Embargante, ainda assim se deve considerar nulo o contrato por violação dos preceitos legais previstos no DL 359/91 de 21 de Setembro, nomeadamente os seus arts. 6º e 7º (regime jurídico do crédito ao consumo, aplicável ao contrato em apreço), uma vez que a Embargada, enquanto financiadora ou mutuante, alegadamente não procedeu à entrega de um exemplar do contrato de crédito em apreço.
Em primeiro lugar, importa ter por assente que, de facto, ao caso concreto é aplicável aquele regime jurídico.
Com efeito, para efeitos do citado diploma, é considerado «contrato de crédito, o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante» (cfr. art. 2º, n.º 1 al. a)- do citado diploma legal), assim como é tido como consumidor «a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente diploma, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional» (cfr. al. b)- do n.º 1 do citado art. 2º), ao passo que é «credor, a pessoa singular ou colectiva que, no exercício da sua actividade comercial ou profissional, concede o crédito.» (cfr. al. c)- do n.º 1 do mesmo art. 2º).
No caso concreto, estamos em presença de um contrato (acordo de vontades) pelo qual o credor (banco exequente) concedeu ao executado, que aceitou, o empréstimo/mútuo (bancário) de determinada quantia em dinheiro, destinando-se essa quantia à aquisição de um veículo automóvel, quantia esta que foi entregue directamente pelo financiador/mutuante ao vendedor do veículo (1).
Nesta sede legal, dispõe o art. 6º, n.º 1 deste DL n.º 359/91 que “…o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura.”
Através da entrega de um exemplar do contrato no acto de assinatura potencia-se o efectivo conhecimento do seu conteúdo por via da sua leitura e uma mais cuidada e ponderada reflexão por parte do consumidor.(2)
As causas de nulidade do contrato de crédito ao consumo estão descritas no nº 1 do art. 7º do citado DL.
De entre as ditas causas, e no que ora releva, avulta as do citado n.º 1 do art. 6º, concretamente a não redução a escrito do contrato e a não entrega de um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura.
No caso concreto, não está em causa a preterição sob a forma como foi manifestada a vontade negocial, pois que o contrato de mútuo observou a forma escrita.
O que se discute é antes a falta de entrega do exemplar desse contrato no momento da respectiva outorga, o que, do mesmo modo, implica a nulidade do contrato, não obstante não se tratar de um vício de forma, mas antes de um vício procedimental.(3)
A aludida norma, como se referiu, pretende acautelar, numa perspectiva e justificada lógica de protecção do consumidor, a boa informação deste sobre o modo como se vinculou perante a instituição de crédito e quais as concretas obrigações que resultam dessa sua vinculação.
Por outro lado, ainda, segundo o art. 7º, n.º 4, a inobservância do aludido requisito (entrega de exemplar do contrato) presume-se imputável ao credor e a aludida invalidade só pode ser arguida pelo consumidor.
Assim, perante a alegada (pelo consumidor) falta de entrega do exemplar do contrato e atenta a presunção «iuris tantum» (cfr. art. 350º do Cód. Civil) que decorre do citado art. 7º, n.º 4, incumbe ao financiador/exequente a prova de que esse exemplar foi entregue no momento da subscrição do contrato.(4)
Ainda, como último aspecto geral, importa referir que nada obsta, à partida, à invocação da dita nulidade, pois que, encontrando-se a livrança exequenda nas relações imediatas (isto é nas relações entre as partes na convenção ou negócio subjacente à subscrição do título), a aludida excepção pode ser suscitada em sede de oposição à execução – vide art. 731º do actual CPC (correspondente ao anterior art. 816º do CPC, na versão anterior).
Aqui chegados, importa reverter para o caso concreto.
Como se referiu, tratando-se, de um contrato de crédito ao consumo, a que é aplicável ainda o regime jurídico que se encontrava estabelecido no Dec. Lei nº 359/91, de 21.09 importa ter em atenção o disposto no art. 6º, nº 1 onde se refere que o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura.
Ora, conforme decorre do teor do próprio preceito legal, a única exigência que se mostra estipulada no preceito legal é a de que seja entregue um exemplar do contrato ao consumidor no momento da respectiva assinatura ( do consumidor ) , não se exigindo, assim, que essa entrega seja efectuada pela Embargante/ Financiador/ Mutuante ( sucede, aliás com frequência, que essa entrega seja efectuada pelo próprio Stand (5)).
Nesta conformidade, não exigindo a lei que a entrega do contrato seja efectuada directamente pela Embargada (mas sim apenas que essa entrega seja efectuada no momento da celebração do contrato), e tendo a Embargada logrado provar que essa entrega foi efectuada (por terceiro), pode-se concluir que, de acordo com a matéria de facto provada, o disposto no art. 6º Dec. Lei nº 359/91, mostra-se integralmente cumprido no que concerne à entrega de “ um exemplar do contrato “- tal como decorre da matéria de facto provada que, como se disse, não foi impugnada pelo Embargante/ Recorrente.
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Aqui chegados, importa entrar na outra questão que o Recorrente/ Embargante coloca e que deriva da alegação de que não lhe foi explicado o conteúdo do contrato.
Quanto a esta questão, o Embargante faz apelo ao regime das cláusulas contratuais gerais previsto no DL 446/85
De facto, no seu art. 5º, nº 2 encontra-se estabelecido que a comunicação do conteúdo do contrato deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento.
Nesta sede, dúvidas não existem que as cláusulas constantes do contrato de crédito aqui em discussão são cláusulas contratuais gerais.
Segundo o Prof. Mota Pinto (6), os contratos de adesão são os contratos celebrados através da aceitação de cláusulas prévia e unilateralmente redigidas para todos os (ou para determinada categoria de) contratos que a empresa venha a celebrar no futuro, as denominadas cláusulas contratuais gerais ou condições negociais gerais.
Para Almeno de Sá (7) as cláusulas contratuais gerais são as estipulações predispostas em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco, sem negociação individualizada ou possibilidade de alterações singulares. Pré-formulação, generalidade e imodificabilidade são, assim, as características da figura. (8)
Esta noção acolhida pela doutrina tem também sido perfilhada pela nossa jurisprudência e tem expressa consagração no art. 1º, n.º 1 do DL n.º 446/85 de 25.10, com as alterações decorrentes do DL n.º 220/95 de 31.08 e do DL n.º 249/99 de 7.07.
Com efeito, ali se prevê que “ as cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma. ” – art. 1º, n.º 1 do DL n.º 446/85.
Em suma, como se expôs, trata-se de cláusulas pré-elaboradas pelo proponente, sem prévia negociação individual, dirigidas a um grupo indeterminado de destinatários e que estes se limitam a aceitar (a aderir) sem possibilidade de discutir ou modificar o conteúdo que lhe é proposto.
As características de pré-formulação, generalidade e imodificabilidade de tais cláusulas - realçadas pela doutrina e jurisprudência - resultam da própria noção e formulação legal.
No caso concreto, estamos, de facto, em face de um tipo de contrato em que uma das partes - in casu, o mutuário - apenas se limita a aceitar o texto que a outra parte contratual - mutuante/financiadora - lhe propõe.
Tal como ocorre em outras áreas da contratação (v.g. nos contratos de seguro), também nos contratos de financiamento para aquisição de bens de consumo, o que se verifica é que a sua generalidade obedece a condições uniformemente estabelecidas pelas empresas de crédito e que os mutuários não têm poder de não aceitar ou de modificar, não tendo a menor participação na preparação das respectivas cláusulas contratuais gerais, limitando-se a aceitar o texto que o outro contraente lhes oferece.
Por outro lado, igualmente, dúvidas não há que, sendo as cláusulas do contrato de crédito aqui em discussão de natureza contratual, a sua interpretação tem necessariamente que ser feita ao abrigo das regras ou princípios gerais dos contratos, em especial, e no caso específico em apreciação, o já citado Dec.-Lei nº 446/85.
A questão em apreciação respeita, como se referiu, à comunicação ou informação sobre as cláusulas contratuais gerais incluídas no contrato de crédito em apreço, imposta pelo art. 5º do DL n.º 446/85.
Com é bom de ver, o exercício efectivo, eficaz, da autonomia privada impõe que a vontade de contratar por banda dos aderentes aos contratos se encontre bem formada, desde logo, com completo conhecimento de todo o clausulado.
É imperioso que os contraentes conheçam com rigor as cláusulas a que se vão vincular. Por isso, devem as mesmas, ainda antes da subscrição ou outorga do contrato, ser dadas a conhecer aos aderentes.
É, no fundo, uma elementar imposição do princípio da boa fé contratual, a impor a comunicação, na íntegra, dos projectos negociais – cfr. art. 227º do CC.
Com efeito, através da consagração de um tal dever de comunicação/informação, visa-se, em última instância, assegurar que o aderente possa ter um conhecimento efectivo das cláusulas antes de subscrever a proposta, pois apesar de estarem pré-formuladas são estipulações negociais, que por isso pressupõem um acordo (esclarecido) de ambas as partes, em particular do aderente.
Neste sentido, refere ANA PRATA (9), que «Os deveres de informação e de esclarecimento designadamente os relativo ao conteúdo contratual, sua composição e seu significado, assumem particular relevância quando se esteja perante dois sujeitos cujo poder negocial se apresente desequilibrado, revestindo então essas obrigações maior amplitude para aquela das partes que detenha uma posição negocial susceptível de lhe permitir impor à contraparte cláusulas, que esta, em consequência da sua debilidade contratual, não aperceba no seu integral significado ou de que, mais simplesmente, nem sequer tome conhecimento.”
Ora, se assim é para o dever de informação e esclarecimento, por maioria de razão será para a comunicação efectiva de tais cláusulas.
Este dever (pré-contratual) de comunicação mostra-se acolhido expressamente pelo artº 5º, n.º 1 do DL n.º 446/85, ao ali prever que:
“1. As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2. A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a sua extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3. O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante determinado que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais”.
Trata-se de um dever ou encargo que incumbe, portanto, a quem pretenda prevalecer-se das cláusulas.
Daqui que, segundo o citado n.º 3, a respectiva prova pertença ao predisponente de tais cláusulas ou de contratos que delas façam uso.
Ora, quanto às consequências dessa não prova (da aludida comunicação das clausulas contratuais gerais), a lei também não deixa dúvidas ao consignar no art. 8º, al. a)- do DL n.º 446/85 que tais clausulas (não comunicadas) se consideram excluídas dos contratos onde sejam inseridas(10).
Voltando ao caso presente, temos que a exequente deu à execução uma livrança subscrita pelo ora executado/ Embargante, a qual, ao abrigo do clausulado geral do contrato, o mesmo executado havia entregado àquela em branco, devidamente assinada, a fim de que esta a viesse a preencher em caso de incumprimento das obrigações assumidas no contrato.
Assim, tendo o executado deixado de cumprir com as prestações a que no contrato se obrigou e tendo a exequente resolvido o contrato de mútuo, veio a exequente/mutuante, após preenchimento da livrança, dar a mesma à execução.
Ora, com vista a impedir a exequente de fazer valer o seu alegado direito de crédito, veio o executado alegar que o conteúdo do contrato não lhe foi explicado, pelo que, atentos os citados preceitos legais, deve ser decretada a nulidade do contrato de mútuo, e como consequência, deve ser considerado que existe preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente.
Neste quadro, tendo sido alegada a falta de comunicação do clausulado do contrato de mutuo (e ao executado apenas incumbia este ónus de alegação), incumbia, como decorre do exposto, à exequente/mutuante (parte que elaborou o contrato e de que cujas clausulas se pretende fazer valer) fazer a prova da comunicação das respectivas cláusulas contratuais gerais àquela parte a quem as submeteu - cfr. n.º 3 do citado art. 5º do DL 446/85 -, sob pena de, não logrando fazer essa prova, as mesmas clausulas se terem por excluídas do contrato de crédito – cfr. 8º, al. a) do citado DL..
Ora, conforme já se referiu, decorre da matéria de facto provada- não impugnada pelo Recorrente- que a Embargada cumpriu o dever de comunicação que lhe era exigível no contrato, não só porque o próprio Embargante prestou por escrito declaração nesse sentido, mas também porque ficou provado que “o primo, dono do Stand” leu o escrito ao embargante”.
Nesta conformidade, podia-se só por aqui concluir pela Improcedência do Recurso, nesta parte.
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Sucede que, conforme já se referiu, a toda esta argumentação derivada da matéria de facto provada, acresce o facto de, mesmo que não se acolhesse esta fundamentação (que no essencial já tinha sido desenvolvida pelo Tribunal de Primeira Instância), sempre ter-se-ia que ponderar a aplicação no caso concreto do instituto do abuso de direito (art. 334º do CC), no caso, do abuso de direito de invocar a nulidade do contrato com estes fundamentos, o qual é de conhecimento oficioso do Tribunal.
Vejamos.
Segundo o disposto no art. 334º do CC é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O legislador consagrou no aludido normativo um critério objectivo, segundo o qual o abuso de direito se manifesta na oposição à função social do direito, na violação da boa fé e dos bons costumes, sem indagar da consciência ou intenção do agente (11).
A boa fé vale aqui como um princípio normativo de conduta, pelo qual todos devem actuar num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade, de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança geradas na outra parte.
Uma das vertentes do aludido abuso de direito consiste no denominado “venire contra factum proprium”.
Tal como vem sendo o ensino da doutrina, a censura do ”venire contra factum proprium” supõe que o titular do direito crie naquele com quem entre em relação uma situação de confiança que veio a frustrar por conduta posterior contrária à que motivou essa confiança. A confiança digna de tutela deve ser objectivamente motivada, sendo, pois, aquela que resulte de uma apreciação objectiva do conjunto dos actos e comportamentos das partes no quadro económico e social em que se desenvolve o processo de constituição e exercício das relações jurídicas entre elas.
Essa confiança deve assim filiar-se em conduta da outra parte que, objectivamente considerada, revele intenção de se vincular a determinado modo de agir futuro, sendo nessa conduta concludente que a contraparte cria expectativas legítimas, nela confiando e investindo, orientando a sua vida em conformidade.
Na verdade, contraria o princípio da boa fé que alguém exerça um direito em contradição com conduta anteriormente assumida, frustrando as legítimas expectativas da outra parte que adquiriu convicção fundada de que aquele não viria a adoptar conduta oposta ou contrária no futuro.
Em suma, no «venire contra factum proprium» deparamos com uma relação especial entre o agente e o confiante, sendo a confiança assim estabelecida nessa relação (atingida por uma conduta que a pretende contrariar) que, por definição, leva à proibição do comportamento contraditório(12).
No caso em apreço, é nosso julgamento que, de facto, a conduta assumida pelo executado, e ora Recorrente, configuraria uma situação de abuso de direito, nesta modalidade de «venire contra factum proprium», o que implicaria a paralisação do eventual direito à declaração das invalidades por ele suscitadas.
Se não, vejamos.
-O contrato de crédito ao consumo em apreço foi celebrado a 4.3.2009.
-Desde a data de celebração do escrito aludido em b) até à data de entrega do veículo, o embargante pagou o montante de € 1.427,46.
- O veículo foi entregue aos 10-03-2010.
- O embargante já tinha conhecimento, na data de celebração do contrato, de que o mesmo não estaria, ainda, disponível para circulação.
- O embargante aceitou adquiri-lo naquela data.
- Em agosto de 2009, mantendo-se o incumprimento, a embargada contactou o Stand, o qual referiu que o veículo já havia sido entregue ao titular.
- No início de setembro de 2009, o embargante solicitou à embargada o deferimento da prestação para o dia 12 de cada mês, tendo esta anuído.
- Nesse contacto, afirmou estar desempregado há cerca de 6 meses, motivo pelo qual não se encontrava a cumprir com as prestações acordadas, acrescentando que pretendia proceder à entrega do veículo.
- Adiantou, ainda, que tinha um conhecido a propor a aquisição do veículo pelo valor de €6.000,00.
- Assim, em 10 de março de 2010, um funcionário da embargada deslocou-se à morada do embargante, sita em Bragança, por forma a proceder à recolha do veículo financiado.
- Nessa deslocação, o embargante assinou:
- A ficha de recuperação do veículo;
- O pedido de venda do veículo– no qual se responsabilizou pelo pagamento do remanescente em divida – e, ainda,
- A necessária declaração a autorizar a venda do veículo pelo valor de € 6.000,00– na qual reiterou a sua responsabilização pelo remanescente da divida.
Decorre, pois, desta matéria de facto provada que, durante o período de vigência «normal» do contrato, e enquanto terá sido viável ao executado proceder ao pagamento das prestações, não existe notícia nos autos que o Recorrente tenha (em forma verbal ou por escrito) suscitado ou reclamado de uma qualquer invalidade ou irregularidade do contrato de crédito em apreço.
Porém, para além da conduta antes exposta, acresce que, tendo entrado em incumprimento das prestações a seu cargo, o executado procedeu, em Março de 2010, à entrega do veículo em apreço à exequente e para que esta procedesse à sua venda e para pagamento da dívida resultante do incumprimento do contrato, mais ali declarando que se responsabilizava pelo pagamento do remanescente em divida.
Assim, na sequência dos vários contactos que existiram entre a exequente e o executado, tanto quanto o demonstram os autos, o executado/ recorrente nada reclamou, nem invocou qualquer irregularidade ou invalidade, designadamente do contrato de crédito em apreço.
Nunca, pois, no período de vigência do contrato de crédito, o executado invocou em seu prejuízo a falta do exemplar do contrato e/ou a ausência de comunicação do seu clausulado, o que apenas veio a fazer já em sede dos presentes autos.
Em suma, pode-se concluir que a actuação do executado, sempre dando, no período de vigência do contrato, sinais objectivos de cumprimento do contrato ou, pelo menos, de auto vinculação ao mesmo, fez, como faria a qualquer pessoa agindo de boa fé, que a exequente confiasse e tivesse como adquirido a posição jurídica dele resultante, e orientasse a sua conduta de acordo com essa legítima expectativa, executando o contrato nos termos que lhe eram exigidos, nomeadamente recolhendo o veículo a pedido do executado e para aplicação do produto da sua venda no pagamento da dívida, abatendo o seu valor à dívida, informando do valor sobrante em dívida, sem que, repete-se, mesmo perante esta conduta da exequente (claramente indiciadora de que a mesma estava convicta, face à conduta do executado, da vinculação dos mesmos ao aludido contrato), tivesse o mesmo invocado uma qualquer irregularidade ou vício do contrato em apreço e do financiamento de que beneficiou.
Como se refere nos Acs. da RP de 22.02.2005 e de 15.12.2005 e o Ac. RG de 9.04.2015 (13), (em situações perfeitamente similares à dos presentes autos), o executado foi cumprindo o contrato enquanto tal lhe convinha e apenas quando deixou de poder cumprir o mesmo e esse cumprimento lhes foi exigido por via judicial (deixando, assim, de lhes interessar o dito cumprimento, tanto mais que já havia procedido à entrega do veículo) é que se lhe suscitou a nulidade do mesmo por falta de entrega do exemplar do contrato e por não comunicação/esclarecimento das suas cláusulas.
Assim, se conclui que a invocação tardia da questão formal relativa ao não cumprimento do dever de informação quanto às cláusulas do contrato de crédito e à não entrega de um seu exemplar “...fere a legítima e justificada expectativa da apelante (no caso sobre que versa o Acórdão em referência a financiadora/mutuante) de que as mesmas não mais seriam invocadas e constitui claro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium “ (14) .
Assim, se mais não fosse, mesmo que não se julgasse improcedente a argumentação da Recorrente, como atrás amplamente se demonstrou, sempre a pretensão da Recorrente- mesmo que o Tribunal aceitasse a sua tese da invalidade do contrato- ter-se-ia de considerar abusiva nos termos expostos por se tratar da invocação de um direito em claro abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium.” (15).
Independentemente desta conclusão, ainda se poderia dizer, nomeadamente no que concerne ao preenchimento abusivo da livrança invocado, e à eventual alegação de desconhecimento por parte do executado do pacto de preenchimento da mesma, que nunca poderia existir uma situação de preenchimento abusivo com esse fundamento, pois que “… quem subscreve e entrega uma letra ou livrança em branco no instante em que celebra um contrato de financiamento não poderá, em princípio, deixar de possuir uma noção sumária de que está com esse comportamento a assumir uma garantia de cumprimento do contrato, a qual poderá, portanto, ser accionada (através do preenchimento do título) em caso de incumprimento. Sendo assim, como é possível sustentar que tal cláusula que afinal se limita a reproduzir graficamente semelhante conteúdo de vontade não foi comunicada ao aderente?“ (16).
Termos em que, por todas as razões explanadas, se tem que concluir pela improcedência do Recurso nesta parte, com a consequência de se considerar que não existe, por força desta fundamentação apresentada pelo Recorrente, qualquer ilegalidade ou abuso da exequente quanto ao preenchimento do título cambiário dado em execução.
E conclui-se, assim, que a decisão recorrida não violou as normas dos artigos 2°, nº1, a); 4°; 6°; 7° e 18° do DL. nº 359/ 91, de 21/09; e 615°, nº 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.
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Vejamos, então, o outro fundamento do Recurso apresentado pelo Recorrente/Embargante.
II)- preenchimento abusivo da livrança por parte da exequente, sendo que a quantia aposta na livrança não é devida, por dois fundamentos:
a) o valor em divida à data da entrega do veículo seria de €4.234,42, assim discriminado [(11.662,92 – €1.427,46 = €10.234,42) - €6.000,00];
b) o incumprimento por parte do executado/embargado em 10/03/2010, data em que entregou o veiculo para abater à divida, não é admissível que se aceite que o incumprimento apenas ocorreu em 07/04/2011;
4. Por último, importa, ainda, conhecer do alegado preenchimento abusivo da livrança dada à execução, sendo certo que, segundo os executados e ora Recorrentes, ainda que não vingasse a sobredita nulidade do contrato de crédito/financiamento, sempre o aludido preenchimento do título exprimiria uma actuação em abuso de direito por parte da ora exequente.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário, é patente que não assiste qualquer razão ao Recorrente/ Embargante quanto à questão do preenchimento da livrança no que concerne ao valor nele aposto.
Como se vê do documento a fls. 65 dos autos («pedido de venda de viatura»), o ali declarante e executado B. procedeu à entrega do veículo em apreço para venda e para imputação do respectivo produto na dívida existente por via do incumprimento do já citado contrato de crédito/financiamento.
Mais, ainda, ali declarou o mesmo executado que a venda seria efectuada nas condições e pelo preço que o exequente entendesse por mais conveniente.
Por outro lado, ainda, o mesmo responsabilizou-se pela dívida que viesse eventualmente a subsistir após a aplicação do produto da venda do veículo.
Realce-se que esta declaração unilateral do Embargante, mostrando-se subscrita pelo mesmo e não estando demonstrada a falsidade da assinatura, a falta de vontade ou qualquer outro vício da vontade, produz prova plena quanto às declarações nela contidas, “máxime” as que forem contrárias aos interesses do respectivo declarante – cfr. art. 376º, n.ºs 1 e 2 do CC.
Mais ficou provado que:
- Que o Embargante prestou a necessária declaração a autorizar a venda do veículo pelo valor de € 6.000,00– na qual reiterou a sua responsabilização pelo remanescente da divida.
-O veículo veio a ser adquirido, pelo valor de €6.000,00, pela sociedade comercial designada “H., Lda.”.
-O valor aludido em ae) foi abatido ao montante em falta.
Ora, à luz da consideração destes factos – e sendo certo que o Embargante não logrou demonstrar que lhe tivesse sido garantido que o veículo entregue seria o bastante para solver toda a dívida resultante do incumprimento do contrato- não se vislumbra que a exequente tenha actuado de forma censurável quanto à venda do veículo em apreço e posterior preenchimento do título dado em execução, apondo nela o valor remanescente em divida que, conforme resulta do ponto j) da matéria de facto provada (não impugnada pelo Recorrente ) coincidia com o valor de €10.129,79 ( ponto j): “Aquando da resolução, encontrava-se em dívida o valor de €10.129,79… “).
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A Recorrente invoca, no entanto, que existe preenchimento abusivo da livrança, também porque não é admissível que se aceite que o incumprimento apenas ocorreu em 07/04/2011.
Como resulta da factualidade assente, o Embargante subscreveu a livrança estando esta apenas preenchida no local destinado a apor a assinatura dos subscritores (onde consta a assinatura do Embargante)
Nesta conformidade, a livrança em causa, deve ser considerada como um título em branco.
Com efeito, uma livrança em branco é uma livrança incompleta, em que falta algum dos requisitos essenciais, mas onde existe, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário.
É necessário que tal assinatura, como é evidente, seja aposta num título donde conste a palavra «livrança» (art. 75º nº 1 da L.U.).
Na verdade, de acordo com o preceituado no art. 77º da L.U.L.L., são aplicáveis às livranças as disposições relativas às letras em branco ( o art. 10º fala de letra incompleta ).
Por isso, é legalmente admissível a livrança em branco.
A livrança em branco pode definir-se como sendo aquela a que falta algum dos requisitos indicados no art. 75º, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária (17).
Assim, a livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento: o denominado acordo ou pacto de preenchimento.
Deste modo, o preenchimento de uma livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos normalmente resultantes das livranças, faz-se de harmonia com o referido contrato de preenchimento.
Tal contrato configura-se, pois, como o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento e a sede do pagamento.
Tal contrato pode ser expresso – quando as partes estipularam certos termos em concreto – ou tácito – por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
Logo, o título deverá ser preenchido de harmonia com tais estipulações ou cláusulas negociais, sob pena de vir a ser considerado tal preenchimento como abusivo.
Por conseguinte, nos casos de livrança em branco, podem os demandados opor ao exequente a inobservância do acordo de preenchimento, contanto que este o haja desrespeitado.
Donde resulta que, nas relações imediatas – como aqui sucede – se a livrança foi preenchida pelo primeiro adquirente e é este quem reclama o pagamento, pode sempre ser-lhe oposta a excepção de preenchimento abusivo.
É claro que esta excepção de preenchimento abusivo, como facto impeditivo do direito do exequente emergente do título de crédito, tem de ser alegada e provada por quem a deduz, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC.
Efectivamente, segundo jurisprudência praticamente uniforme dos nossos Tribunais Superiores, o ónus da prova desse preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário.
Ou seja: é ao embargante que cabe alegar e provar os termos do acordo de preenchimento e a desconformidade do completamento da livrança em relação a esse acordo (18).
Aliás, perante a doutrina do Assento do STJ de 14/05/96 (19) – no qual se consignou que, “… em processo de embargos, é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido em branco e posteriormente completado pelo tomador a seu mando, que recai o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância…” – não se vislumbra razão para que se não siga a mesma orientação relativamente às livranças.
No presente caso concreto, o Recorrente/ Embargante invoca a excepção de preenchimento abusivo da livrança dada à execução (que estava também subjacente ao primeiro fundamento já apreciado), mas agora com o especifico fundamento de que não é admissível que tenha sido aposto na livrança, como data de vencimento, o dia 7.4.2011.
Como se disse, a livrança em branco, deverá ser entregue pelo subscritor, ao credor, dando-lhe a autorização para a preencher. O preenchimento da livrança incompleta é uma condição imprescindível para que o título possa produzir os efeitos como livrança.
Ora, já se referiu em cima que esse preenchimento deverá ser efectuado segundo o acordo ou contrato de preenchimento. Este concretizará, assim, os termos em que a obrigação cambiária se deverá constituir (indicação do montante, do tempo de vencimento, do lugar do pagamento, da estipulação de juros etc.).
E só quando, no uso da autorização que concede o acordo de preenchimento, o possuidor do título o preenche, dotando-o de requisito próprios da letra, é que surge para o primeiro signatário, para aquele que entrega o título incompleto, a obrigação cambiária.
Conforme se referiu, o acordo ou contrato de preenchimento pode ser expresso ou tácito. Existirá o primeiro, quando a estipulação, em relação ao preenchimento, é declarada expressamente. Ocorrerá o acordo tácito, quando o preenchimento deriva e é definido pelo conteúdo da relação jurídica fundamental subjacente.
A livrança em branco é, claramente, admitida nos arts. 77º e 10º da L.U.L.L., disposição que estabelece que “se uma letra (livrança) incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Deste artigo resulta que não é indispensável que a letra/livrança contenha, logo de princípio, todos os requisitos a que alude o art. 75º da L.U.L.L..
Do confronto entre os arts. 75º e 76º da L.U.L.L (em que, respectivamente, se estabelecem os elementos que a livrança deve conter e em que se demarcam os requisitos, cuja falta determina a invalidade do título como letra), por um lado, e o art. 10º, por outro, concluiu-se que o momento decisivo para se determinar a validade da letra não é o da emissão, mas sim o do vencimento (20).
Depois da emissão, poderá o título vir a ser dotado dos elementos necessários para que possa produzir efeitos como livrança, sendo necessário, porém, que esses requisitos constem nela na altura do seu vencimento. Se, neste momento, a livrança se não encontrar preenchida, então, nos termos dos arts. 75º e 76º, não poderá produzir efeitos como livrança.
A letra/livrança deve ser completada de harmonia com os acordos realizados. No caso de existir um preenchimento abusivo, como refere o mencionado art. 10º, “não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Quer dizer, ao portador de boa fé não será possível opor a excepção do preenchimento com inserção de elementos não convencionados. Pretende-se salvaguardar o desígnio do respeito pela convicção legítima do portador, com intuitos de facilitar a circulação da letra, a que se refere, também, o art. 16º da L.U.L. L.. A má fé, para esse efeito, consistirá no conhecimento ou na ignorância indesculpável (negligente) do preenchimento abusivo.
A doutrina (21) costuma distinguir, no que diz respeito à excepção do preenchimento abusivo da letra/livrança, os casos em que o título foi preenchido pelo primeiro adquirente, dos casos em que o documento foi completado por terceiro. Trata-se de saber quais os meios de defesa que a lei concede ao subscritor, em relação ao portador, no caso de inobservância da convenção de preenchimento.
No caso de preenchimento pelo primeiro adquirente (a pessoa a quem o subscritor a entregou) e sendo este que reclama o pagamento, é evidente que a excepção lhe poderá ser oposta.
É esta a situação dos autos.
Assim, para o que aqui interessa e porque a livrança em causa está no domínio das relações imediatas, a excepção do preenchimento abusivo poderia ser oposta à portadora, no caso concreto, à Embargada.
Como se disse, resulta do disposto no art. 342º nº 2 do CC, competia à recorrente/ Embargante a prova da excepção.
A questão que agora cumpre apreciar diz respeito à alegação da Recorrente / Embargante de que se verificará preenchimento abusivo da livrança no que concerne à data de vencimento aposta pela exequente, já que a data nela aposta (07/04/2011) não coincide com a data do incumprimento que, segundo o Recorrente, devia antes coincidir com a data da entrega do veículo, devendo a livrança ser preenchida com o valor que nessa data estaria em divida ( julga-se que tal cálculo, dentro do raciocínio do Recorrente seria impossível de efectuar, porque, desde logo, o valor pela qual a venda do veículo veio a ser efectuada ainda não se mostrava concretizado… ).
Importa, no entanto, conforme decorre do exposto, atender a que subjacente à entrega da livrança em branco, as partes, desde logo, estabeleceram um acordo ou pacto de preenchimento da livrança.
Na verdade, decorre desse pacto de preenchimento da livrança que (o Recorrente/Embargante declarou o seguinte):
“… e declaro(amos) autorizar expressamente que o Banco C. a preencher qualquer livrança por mim ( por nós ) subscrita e não integralmente preenchida, designadamente no que se refere à data do vencimento, ao local de pagamento e aos seus valores, até ao limite das responsabilidades assumidas por mim ( por nós) perante o Banco C., acrescido de todos os encargos com a selagem dos títulos… “.
Neste pacto preenchimento da livrança subscrita pelo executado dá-se, assim, sem qualquer dúvida, à exequente a possibilidade de preencher a livrança, por decisão dela própria.
Assim, por força do pacto de preenchimento foi concedida à Embargada/exequente a possibilidade de preencher o título conforme a sua própria conveniência com vista, evidentemente, a ser ressarcida da quantia monetária adiantada (mutuada) ao subscritor do título.
Acrescenta-se designadamente, no pacto de preenchimento, que a exequente/ Embargada ficava expressamente autorizada a preencher a livrança, “…designadamente no que se refere à data do vencimento... “
Ora, se interpretarmos este pacto de preenchimento, chegamos à conclusão que nele não se consagra a obrigatoriedade da exequente preencher a livrança na data em que foi entregue o veículo automóvel para, na sequência da sua venda, o produto da venda ser abatido no crédito da exequente, sendo evidente que a interpretação da Recorrente não encontra qualquer apoio na convenção de preenchimento, já que nesta expressamente se autoriza a exequente a definir a data do vencimento da livrança (obviamente, como iremos referir, não de uma forma discricionária).
Ora, deve entender-se que, não se mencionando especificamente qual era “ a ocasião” que permite à exequente definir a data do vencimento da livrança, tal “ocasião” tem que coincidir com o momento em que a exequente converta a simples mora em incumprimento definitivo e/ou resolva o contrato subjacente à Livrança de que é portador legítimo. (22)
Na verdade, “… o ponto nevrálgico da solução a adoptar é fornecido pelo evento- tipicamente, o incumprimento e/ou a resolução do contrato fundamental- cuja superveniência legitima o portador a preencher o título… “.(23)
Na verdade, entende-se que, em casos como aquele que aqui se discute, o preenchimento da data do vencimento da livrança deve coincidir com a data em que o incumprimento definitivo das obrigações do devedor se verifique e/ou com a data em que o credor declare a resolução do contrato fundamental subjacente à subscrição da livrança.
Trata-se, no entanto, de um critério interpretativo geral que deve ser aferido, em cada caso concreto, em função do teor do próprio pacto de preenchimento, quando o mesmo, como sucede no caso concreto, é estipulado por escrito e de uma forma expressa.
Com efeito, nada impede que essa data de vencimento aposta pelo credor na livrança em branco não coincida com as aludidas datas (de incumprimento e/ou resolução do contrato), desde que a referida data que nela seja aposta seja próxima daqueles momentos (por exemplo, pode coincidir com a data em que a exequente decide obter coercivamente a obrigação). (24)
Assim, como refere Carolina Cunha (25),“…se é verdade que (o credor…) não está propriamente obrigado a preencher o título no exacto momento em que procede à resolução do contrato fundamental por incumprimento, a verdade é que impende sobre si o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de decorridos (no máximo) três anos (referindo-se ao prazo de prescrição previsto no art. 70º, nº1 da L.U.L.L.) sobre este instante perder definitivamente a possibilidade de exercitar o titulo cambiário… “.
Ora, no caso concreto, a exequente cumpriu integralmente estas premissas que resultavam do pacto de preenchimento e das considerações doutrinárias e jurisprudenciais que se acabam de referir.
Na verdade, não se pode considerar abusivo o preenchimento da livrança em branco, quanto à data que a exequente apôs no local destinado a esse efeito na Livrança, se essa data coincide com a data em que a exequente declarou a resolução do contrato de mútuo celebrado e no âmbito do qual foi subscrita a livrança em branco.
Com efeito, ficou provado que :
-A data de vencimento aposta na livrança pela exequente é 7-4-2011;
-O escrito mencionado em b) foi resolvido aos 07-04-2011, mediante comunicação escrita remetida para a residência do embargante, sita em Bragança.
-Aquando da resolução, encontrava-se em dívida o valor de €10.129,79.
Ora, em face desta matéria de facto provada, não podem haver dúvidas de que, tendo a data do vencimento aposta pela exequente na livrança sido justamente a data da resolução do contrato fundamental, a exequente cumpriu integralmente as obrigações que para ela decorriam do pacto de preenchimento, não existindo qualquer preenchimento abusivo da sua parte quanto à aposição da data de vencimento na mesma nos termos em que o efectuou.
Nesta conformidade, sem necessidade de mais alongadas considerações, conclui-se também pela improcedência do Recurso nesta parte.
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Aqui chegados, pode-se concluir pela improcedência do Recurso, já que, à luz do exposto, nenhuma conduta da exequente se logrou demonstrar que possa qualificar a sua actuação como abusiva e/ou sequer censurável, antes se limitando esta, na sequência do incumprimento do executado, a preencher a livrança nos termos convencionados e a procurar, por via executiva, a cobrança do seu crédito.
O que, em conclusão, conduz à improcedência total do Recurso.
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Sumário ( elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC ):

“I. Uma livrança em branco é uma livrança incompleta, em que falta algum dos requisitos essenciais, mas onde existe, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário.
II. Depois da emissão da livrança em branco, poderá o título de crédito vir a ser dotado dos elementos necessários para que possa produzir efeitos como livrança, sendo necessário, porém, que esses requisitos constem nela na altura do seu vencimento.
III. Nos casos em que não conste da livrança em branco a data do vencimento, o preenchimento desta data do vencimento da livrança deve, em princípio, coincidir com a data em que o incumprimento definitivo das obrigações do devedor se verifique e/ou com a data em que o credor declare a resolução do contrato fundamental subjacente à subscrição da livrança.
IV. Não se pode assim considerar abusivo o preenchimento da livrança em branco, quanto à data que a exequente apôs no local destinado a esse efeito na Livrança, se essa data coincide com a data em que a exequente declarou a resolução do contrato de mútuo celebrado e no âmbito do qual foi subscrita a livrança em branco.
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III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
-o Recurso interposto pelo Recorrente/ Embargante B. totalmente improcedente, confirmando-se, assim, integralmente a Sentença recorrida.
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Custas pela Recorrente (artigo 527.º nº 1 do CPC );
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Guimarães, 20 de Outubro de 2016
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(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)
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(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)
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(Dra. Elisabete de Jesus Santos de Oliveira Valente)
(1) Vide, sobre a noção de contrato de crédito ao consumo, por todos, F. Gravato Morais, “ Contratos de Crédito ao Consumo ”, pág. 41-50.
(2) Vide, neste sentido, F. Gravato Morais, op. cit., pág. 107.
(3) vide, neste sentido, F. Gravato Morais, op. cit., págs. 104-105
(4) vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 7.01.2010 (relator Maria Beleza), AC RL de 9.05.2006 ( relator Maria Ribeiro) e AC RP de 22.02.2005 (relator Henrique Araújo), in dgsi.pt .
(5) Como refere F. Gravato Morais, op. cit., págs. 97 e 98 “É muito comum que a subscrição do contrato pelo consumidor e a correspondente entrega do documento seja efectuada perante o vendedor com poderes para representar o financiador. Aliás, ao fornecedor são muitas vezes remetidas pelo dador de crédito” propostas de financiamento” que depois de preenchidas com a ajuda do comerciante e no seu estabelecimento, são por este enviadas para o credor. Embora o vendedor não disponha da faculdade de aprovação do crédito que compete exclusivamente ao financiador ele intervém activamente na fase preparatória da celebração do contrato e no exacto momento da sua celebração. Porém, aqui não se suscita nenhuma dificuldade, já que a contratação opera entre presentes… “
(6) In, “ Teoria Geral do Direito Civil “, pág. 113-114
(7) In“ Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas “, pág. 212
(8) Vide, ainda, Almeida Costa, in “ Direito das Obrigações “, pág. 244-245, I.. Galvão Telles, in “ Manual dos Contratos em Geral “, pág. 318-319 e A. Pinto Monteiro, in “ Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil “, pág. 340-342.
(9) In “Notas sobre responsabilidade pré-contratual ”, pág. 51
(10 Vide, neste sentido, F. Gravato Morais, op. cit., pág. 139, Almeno de SÁ, op. cit., pág. 251 e Ana Prata, “ Contratos de Adesão e Clausulas Contratuais Gerais ”, pág. 266.
(11) Vide, neste sentido, P. Lima/, A. Varela, in “ Código Civil Anotado ”, I volume, pág. 298 e I. Galvão Telles, in “ Direito das Obrigações ”, pág. 13-14.
(12) Vide, neste sentido, L. Menezes Leitão, “ Direito das Obrigações ”, I volume, pág. 59, AC RG de 9.04.2015 (relator António Santos), AC RC de 24.02.2015 (relator Henrique Antunes), AC RP de 19.10.2010 (relator Maria Agante), AC RP de 22.02.2005 (relator Henrique Araújo), AC STJ de 16.11.2011(relator Pereira Rodrigues), AC STJ de 31.03.2009 (relator Moreira Camilo) e AC STJ de 7.07.2009 (relator Oliveira Rocha), todos in dgsi.pt .
(13) Disponíveis em Dgsi.pt;
(14)v. por exemplo, o AC RP de 15.12.2005 (relator Fernando Baptista), in Dgsi.pt;
(15) É hoje praticamente unânime o entendimento de que nada obsta a que o financiador se socorra do instituto do abuso do direito para, através dele, se paralisar os efeitos da invocação pelo consumidor da nulidade formal do contrato de crédito ao consumo, sendo v.g. e em rigor “ legitima a pretensão do financiador que sustenta que a arguição da nulidade formal ou procedimental pelo consumidor configura um venire contra factum proprium já que o direito está a ser exercido em contradição com a sua conduta anterior” - Cfr. Fernando de Gravato Morais, in “Os Contratos de Crédito Ao Consumo”, págs. 108 e segs..
(16) Carolina Cunha, in “ Manual de letras e livranças”, pág. 222 e 223;
(17) Cfr. Abel Delgado, « Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças », 7ª edição, págs. 78/79;
(18) Cfr., entre muitos, os Acs. do STJ de 11/11/2004 ( Relator : Ferreira de Almeida ), de 16/10/2003 ( Relator : Araújo de Barros), de 03/05/2005 ( Relator : Azevedo Ramos), e de 24/05/2005 ( Relator : Nuno Cameira), todos in dgsi.pt
(19) In D.R. II Série, de 11/07/96 e BMJ, 457, 59
(20) v., o Ac. do STJ de 20-5-2004, in dgsi.pt, em sintonia com este entendimento, ponderou, a propósito de se saber em que momento a letra se deve considerar integrada por todos os elementos essenciais, que a questão não é resolvida pelos arts. 1º e 2º da L.U., mas antes pelo art. 10º, razão por que se fica a saber que o momento decisivo não é o da emissão da letras, mas sim o do seu vencimento;
(21) V., Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial- Vol III- Letra de Câmbio”, págs. 131 e ss;
(22) V. por exemplo, o ac. do Stj de 20.10.2015 ( relator: Garcia Calejo ); no mesmo sentido, v. acs. da RP de 4.4.2002 e do Stj de 25.3.2004 e de 29.11.2005, disponíveis em Dgsi.pt; defendeu-se até no ac. da RP de 6.7.2000, in Dgsi.pt que “…Não se tendo provado qualquer acordo das partes sobre a ocasião em que uma letra em branco deveria ser preenchida, a mesma pode sê-lo em qualquer altura uma vez que a lei não fixa qualquer prazo para o efeito…”- posição que, como se irá referir, aqui não se defende;
(23) Carolina Cunha, in “Manual de Letras e Livranças”, pág. 202;
(24) v. por ex. o ac. do Stj de 20.10.2015 ( relator: Garcia Calejo ), in dgsi.pt
(25) In “Manual de Letras e Livranças”, págs. 205/206;