Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6348/22.6T8VNF-B.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
APENSAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Não há que distribuir o inventário para partilha dos bens comuns subsequente ao divórcio decretado nos Juízos de Família e Menores, previsto no artigo 1133º do Código de Processo Civil, porquanto este corre por apenso a esse processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Recorrente:  AA
Recorrido:  BB

Apelação em inventário em consequência de divórcio

I- Relatório

No seu requerimento inicial, a Requerente invocou a dissolução do seu casamento com o Requerido, por divórcio, ocorrido no processo ao qual requereu a apensação do inventário.
Foi proferido o seguinte despacho: “[…]Em suma, defendemos que o processo de inventário não corre por apenso, porquanto o artº 1133º do CPC não o prevê, conforme dispunha o artº 1404º, nº 3, do Código de Processo Civil anterior, e porque não sendo da competência exclusiva dos tribunais, podendo o inventário efectuar-se no Notário, não poderá, obviamente, correr por apenso.
Assim sendo, e pelos fundamentos expostos, determino, após trânsito, a desapensação destes autos ao processo de divórcio e a oportuna distribuição.
Notifique.”

É deste despacho que a Recorrente apela, com as seguintes
conclusões:

a) A Recorrente foi notificada do despacho, datado de 23/01/2023, do qual recorre, nos termos do qual o Tribunal a quo determinou a desapensação desse processo de inventário ao processo de divórcio e sua oportuna distribuição, fundamentando que “o processo de inventário não corre por apenso ao processo de divórcio, porquanto o artigo 1133.º do CPC não o prevê, conforme dispunha o Art.º 1404.º, n.º 3 do Código de Processo Civil anterior, e porque não sendo da competência exclusiva dos tribunais, podendo o inventário efetuar-se no Notário, não poderá, obviamente, correr por apenso.” 
b) A Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro revogou o regime jurídico do processo de inventário, instituído pela Lei nº 23/2013, de 5.3, aprovando um novo regime do inventário notarial e reintroduzindo no Código de Processo Civil (arts. 1082 a 1135) o inventário judicial.
c). Assim, estabelece essa referida Lei a repartição de competências para a tramitação do inventário entre os tribunais judiciais e os cartórios notariais, delimitando o art. 1083 do C.P.C. os casos em que o processo de inventário é da competência exclusiva dos primeiros.
d) O processo de inventário será, nomeadamente, da competência exclusiva dos tribunais judiciais “Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial” (al. b) do nº 1 do art. 1083 do C.P.C.).
e). Por sua vez, estabelece o art. 1133, nº 1, do C.P.C., que: “Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”
f) O inventário para separação de meações constitui evidente dependência do processo de divórcio judicial, na medida em que é consequência do que nele foi decidido, pois é da sentença de divórcio que emerge o direito à partilha dos bens comuns do casal. g) Donde, é linear concluir que o inventário tem de correr nos tribunais judiciais (juízos de família e menores) quando seja subsequente a ação de divórcio judicial, de acordo com a referida al. b) do nº 1 do art. 1083 do C.P.C., e tendo em vista o disposto no nº 2 do art. 122 da LOSJ, a qual dispõe que “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexis-tência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
h). Conforme se observa no despacho recorrido, o art. 1133 do C.P.C. não prevê, de forma expressa, que o inventário requerido na sequência de divórcio seja tramitado por apenso ao processo judicial onde este foi decretado, ao contrário do que sucedia com o nº 3 do art. 1404 do C.P.C. que lhe correspondia na versão do DL nº 329-A/95, de 12.12.
i). No entanto, afigura-se-nos que é precisamente a dependência e a conexão entre ambos os processos que justificará a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar tais inventários.
j). Ora, nos termos do nº 2 do art. 206 do C.P.C. “As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.”
k)    Cremos, com o devido respeito, que a regra da apensação, justificada pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, é a que melhor se coaduna com a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar, nomeadamente, o inventário requerido na sequência de divórcio judicial, sendo ainda a mais conforme com o princípio da economia processual, já que do processo de divórcio poderão constar elementos relevantes para a decisão da partilha (cfr. art. 1789 do C.C., com a epígrafe “Data em que se produzem os efeitos do divórcio”).
l). Pelo que, tendo em conta o disposto no art. 206, nº 2, do C.P.C., não podemos retirar do confronto entre o atual art. 1133 do C.P.C. e o correspondente art. 1404 do C.P.C. de 1961 que o inventário será tramitado de forma autónoma e independente nos tribunais de família e menores ainda que aí tenha corrido termos a ação que lhe deu origem e que com ele é conexa. 
m)   Em suma, pugna a Recorrente que, cabendo aos juízos de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil (sem prejuízo das competências atribuídas às conservatórias do registo civil em matéria de divórcio ou separação por mútuo consentimento), cabe-lhes ainda tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos arts. 122, nº 2, da LOSJ, e 206, nº 2, do C.P.C..
n) Pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1083.º, n,º 2, b) e 206.º, n.º 2, do CPC.
 Termos em que Deverão V.as Ex.as revogar o despacho datado de 23/01/2023, proferido pelo Tribunal a quo, substituindo-o por outro que admita a tramitação do presente processo de inventário por apenso ao processo de divórcio, desta forma se fazendo a habitual JUSTIÇA!.”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Face ao teor das conclusões das alegações, há que verificar:
-- se processo de inventário subsequente a divórcio decretado em processo judicial deve ser distribuído ou se deve seguir desde logo por apenso àqueles autos.

III- Fundamentação de Direito

No âmbito do DL 329-A795 de 12 de Dezembro, o artigo 1404º do Código de Processo Civil impunha, sob a epígrafe “Inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento”: “1 - Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação. 2 - As funções de cabeça-de-casal incumbem ao cônjuge mais velho. 3 - O inventário corre por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação e segue os termos prescritos nas secções anteriores.”
Esta norma foi revogada, após a alteração da regulação do inventário, tendo a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro (que instituiu “regime do inventário notarial”), aditado ao Código de Processo Civil o artigo 1133º, com a seguinte epígrafe e dizeres: “Separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento”: “1 - Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns. 2 - As funções de cabeça de casal incumbem ao cônjuge mais velho. 3 - Sempre que o entenda conveniente, o juiz pode determinar a remessa do processo para mediação, aplicando-se, quanto ao mais, o disposto no artigo 273.º
Assim, omitiu-se neste normativo a já tradicional menção sobre a apensação do processo de inventário ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação.
Face a esta omissão, tem-se posto a questão de saber se se mantém a imposição de tal apensação.
Na procura da solução acertada, há que ter em conta que estamos perante problema de natureza puramente adjetiva, de natureza formal, havendo que dar forte peso à confiança inerente à fixação de regras processuais claras, que concedam critérios seguros aos cidadãos sobre a forma como devem recorrer aos tribunais (se o inventário segue ou não por apenso).
A jurisprudência da 2ª instância (e não a encontrámos do Supremo Tribunal de Justiça) [1] mostra-se praticamente pacificada no sentido pugnado pela Recorrente, apenas se tendo encontrado um acórdão, muito convincente e de impecável lógica jurídica, diga-se, no sentido pugnado pela decisão recorrida[2].
A doutrina, mormente aqueles que colaboraram na elaboração do diploma em causa, pronunciou-se sobre a matéria de modo direto:
“O artigo não reproduz a norma que constava do art. 1404.º, n.º3, CPC/61, que estabelecia a instauração do inventário por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação (norma que, naturalmente, tinha sido retirada do articulado do RJPI). Coloca-se, assim, o problema de determinar a competência material para o processo de inventário:
.a) Apesar da referida omissão, o inventário para partilha de bens comuns não deixou de constituir dependência de uma ação matrimonial (designadamente, de um processo de divórcio), já que o mesmo se configura como decorrência ou consequência da sentença que dissolveu ou considerou inválido o casamento ou que decretou a separação de pessoas e bens. Opera, por isso, o efeito de conexão estabelecido no art. 206.º, n.º 2, nos termos do qual as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.
Aliás, esta dependência do inventário perante a antecedente ação matrimonial resulta da norma que regula o tribunal que é materialmente competente para esse inventário. A competência material encontra-se atribuída aos juízos de família e menores nos termos seguintes: “Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos” (art. 122.º, n.º 2, LOSJ). Ou seja: o conceito de dependência está associado a situações em que a instauração do inventário para partilha de bens comuns é desencadeada pelo que ocorre num outro processo judicial.
Isso é o que acontece com a separação de meações que é realizada por apenso do processo executivo (arts. 740.º, n.º 2, e 741.º, n.º6) ou do processo de insolvência (art. 141.º, n.º 1, b), CIRE). Também assim é com os inventários que sejam consequência de sentença proferida num processo matrimonial. É o que ocorre com as seguintes sentenças: sentença de divórcio ou de separação de pessoas e bens sem consentimento do outro cônjuge (art. 932.º); sentença de divórcio ou de separação de pessoas e bens por mútuo consentimento quer nas situações em que o processo tenha sido instaurado no tribunal (art. 1773.º, n.º 2, CC), quer nos casos em que o processo, instaurado como divórcio sem consentimento do outro cônjuge, tenha sido convertido, por acordo das partes, em divórcio por mútuo consentimento (art. 931.º, n.º 3); por fi m, sentença de anulação do casamento.
Principalmente agora que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário (→art. 1083.º, n.º 1), faz todo o sentido que os processos de inventário que sejam consequência de uma decisão judicial que tenha decretado o divórcio ou a separação de pessoas e bens ou que tenha anulado o casamento devam ser tramitados nesses tribunais.
Deste modo, os inventários subsequentes a sentenças proferidas pelos tribunais judiciais decretando o divórcio ou a separação de pessoas e bens ou anulando o casamento, para além de serem da competência exclusiva dos tribunais judiciais (→art. 1083.º, n.º 1, al. b)), correm por dependência dos respetivos processos e a eles devem ser apensados (art. 206.º, n.º 2). Afinal o inventário é dependente de outro processo judicial, porque a partilha de bens é consequência do decidido neste processo. Como a competência para as ações matrimoniais é atribuída aos juízos de família e de menores (art. 122.º, n.º 1, als. c) e d), LOSJ), a eles compete também tramitar, por apenso, os inventários subsequentes quer pela via do art. 122.º, n.º 2, LOSJ (devidamente interpretado em função de ter sido restaurada a competência dos tribunais judiciais para o processo de inventário), quer pela do art. 206.º, n.º 2.” (cf Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pag 158).
De qualquer forma, o artigo 122º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que procedeu à organização do sistema judiciário, estabeleceu que os Juízos de família e menores têm competência relativa ao estado civil das pessoas e família, alargando o seu âmbito para processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil.
Daqui resulta que nosso o sistema legal concebeu a necessidade das questões relativas aos estado civil e da família exigirem tribunais especializados em razão da matéria para o seu tratamento e que tal tratamento se estende aos inventários na sequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, que por isso se consideram como dependentes daqueles, para os efeitos a que se reporta o artigo 206º nº 2 do Código de Processo Civil.
Assim, fixada a competência dos tribunais de família para este tipo de processos, a menção no artigo 1083º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil à dependência existente entre estes processos, dada a subordinação lógica entre o inventário para separação decorrente de divórcio e o próprio processo de divórcio, há que aceitar a apensação nos termos do artigo 206º do Código de Processo Civil, regulando de forma uniforme a questão em disputa, limando arestas no acesso ao direito. Esta é, aliás, a solução “…mais conforme com o princípio da economia processual, já que do processo de divórcio poderão constar elementos relevantes para a decisão da partilha (cfr. art. 1789º do C.C….)”, como se escreveu no citado (em rodapé) acórdão proferido no processo 699/16.6T8CSC-D.L1-7.
Assim, há que manter a apensação destes atos ao processo que lhe deu causa e que dele depende: o processo de divórcio.

V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, mantendo-se a apensação destes aos de divórcio.
Custas da apelação pela recorrente (visto que dele tirou proveito, sem que exista parte vencida – artigos 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes


[1] (acórdãos proferidos no processo nº 720/21.6T8ETR.P1, a  17.04.2022, no processo nº 1744/20.6T8FIG-A.C1, a 8 de julho de 2021, no processo nº 14/14.3TBLSD-C.P1, a 25.5.2021, no processo nº 435/20.2T8PBL-A.C1, a 23/2/2021, no processo nº 699/16.6T8CSC-D.L1-7, a 14.7.2020, no processo nº 153/17.9T8PTM-A.E1, a  09-06-2022, no processo nº 6983/19.0T8VNF-D.G1, a 27/05/2021, no processo nº 17/21.1T8PTM.E1, a   23 de setembro de 2021, no processo nº  685/20.1T8BJA.E1, ae 29 de abril de 2021 e  a decisão singular processo no processo 4890/22.8T8BRG-A.G1, a 04 de janeiro de 2023, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt) 
[2]  o acórdão deste tribunal proferido no processo nº 1070/18.0T8VNF-A.G1, de 2 de junho de 2021