Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
339/14.8IDBRG-A..G1
Relator: ANA TEIXEIRA
Descritores: ACUSAÇÃO
JUIZ
JULGAMENTO
IRREGULARIDADE
REPARAÇÃO
DEVOLUÇÃO DE PROCESSO AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Se após a dedução da acusação, o juiz verificar a existência de irregularidade, não pode devolver o processo ao Mº Pº para a reparação desse vício praticado no inquérito.
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES SECÇÃO CRIMINAL
Acórdão

I - RELATÓRIO

No processo Comum tribunal Singular supra identificado, foi proferido o seguinte despacho []:

Conforme resulta de fls. 442, a sociedade arguida prestou Termo de Identidade e Residência subscrito pela sua legal representante, a igualmente aqui arguida CRISTINA RR.S.

Ora, a sociedade arguida não se encontra regularmente notificada do teor da acusação contra si proferida, motivo pelo qual ainda não decorreu o prazo para a abertura de instrução.

Com efeito, a sociedade arguida foi notificada por via postal registada e com prova de receção.

Sucede que tal notificação foi recebida por um terceiro, desconhecendo este Tribunal se o mesmo é funcionário da sociedade arguida, porquanto nada consta do aviso de receção nesse sentido.

No entanto, certo é que a sociedade arguida deveria ter sido notificada na pessoa da sua legal representante e, tendo sido prestado Termo de Identidade e Residência, através de via postal simples com prova de depósito remetido para a morada constante do Termo de Identidade e Residência de fls. 442, em obediência ao disposto no artigo 113.°, n.° 1, alínea c), e 283.°, n.° 6, ambos do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, declaro irregular a notificação da acusação por via postal registada à sociedade arguida…, LDA., e determino que os autos sejam devolvidos ao Ministério Público para que seja promovida a notificação da acusação à sociedade arguida na pessoa da sua legal representante e por via postal simples com prova de depósito, com integral respeito pelo legal formalismo.

Inconformado, o MP recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes

CONCLUSÕES
1º - Nos autos identificados em epígrafe foi deduzida acusação, em processo comum, a fls. 498 a 501, contra as arguidas Cristina RR.s e a sociedade…, Lda. pela prática em de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo art. 7.° e 105.° do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
2o - Remetidos os autos à distribuição, o Mm. A Juiz a quo, a fls. 517 proferiu despacho determinando a devolução dos autos ao Ministério Público, a fim do Ministério Público promover a notificação da sociedade arguida na pessoa da representante legal por via postal simples com prova de depósito, por considerar irregular a notificação por via postal registada com aviso de receção, uma vez que a sociedade prestou termo de identidade e residência, aludindo ao disposto nos artigos 113°, n.° 1, al. c) e 283.°, n.º 6 do CPP.
3o - Não pode, porém, em nosso entender, conformar-se o Ministério Público com esta decisão, porquanto não vislumbra nos autos ora em apreço qualquer nulidade ou irregularidade que sirvam de arrimo ao não recebimento da acusação de fls. 498 e ausência de despacho a designar data de audiência de julgamento, tal como estatui o artigo 312 0 do CPP.
4o - No caso vertente como supra referimos, a sociedade arguida foi notificada por carta registada, na morada que consta do TIR prestado a fls. 442, conforme resulta de fls. 513.
5o - Não obstante o Mm.0 Juiz a quo conclui que a sociedade arguida não se encontra validamente notificada por tal notificação não ter obedecido ao previsto no artigo 113.°, n.° 1, al. c) e 283.°, n.° 6 do CPP.
6o - Ora, considerando o disposto no artigo 283.°, n.° 6 e 113.° do CPP entendemos que, não obstante o arguido que prestou TIR dever ser notificado preferencialmente por via postal com prova de depósito, a lei igualmente prevê a notificação por contacto pessoal e por via postal registada.
7o - Ora, estas formas de notificação revestem uma maior segurança na comunicação dos atos processuais do que a notificação por via postal simples, que verdadeiramente consubstancia uma forma de agilização das notificações, a que só se poderá lançar mão quando reunidos determinados requisitos formais (no caso dos arguidos quando estes tenham prestado termo de identidade e residência).
8o - Assim não se compreende em que medida os direitos de defesa do arguido foram ou pudessem ser de algum modo abalados com a notificação que foi efetuada nos presentes autos, designadamente considerando a comprovação da notificação de fls. 513.
9o - Em face do que vimos de dizer entendemos que ao considerar a sociedade arguida invalidamente notificada, o Mm. O Juiz a quo violou o disposto no artigo 113°, n.° 1 e 283.°, n 0 6 do CPP.
10.° - Não obstante, mesmo que assim não se entendesse, sempre se estaria perante uma mera irregularidade, que só pelo interessado poderia ser arguida.
11.° - É que só se poderá ordenar oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade quando ela puder afetar o valor do ato praticado, o que efetivamente não sucede no caso vertente (vide artigo 123.°, n.° 2 do CPP) pelas razões supra aduzidas.
12.° - Pelo que ao determinar a sanação da alegada irregularidade, o Mm.° Juiz está a violar claramente o disposto no artigo 123.°, n 0 2 do CPP, por falta de legitimidade na arguição.
13.° - Acresce que o juiz não pode determinar, como o fez, a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada uma irregularidade.
14.° - Com efeito, ao proceder dessa forma, viola não só o princípio do acusatório consagrado no artigo 32.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa, como a autonomia do Ministério Público (relativamente ao juiz) estabelecida igualmente na Constituição da República Portuguesa no artigo 219 °, n 0 2 (ver neste sentido os recentes acórdãos da Relação de Lisboa e do Porto, respetivamente de 5/6/2014 in Coletânea de Jurisprudência, tomo 111-2014 e de 4/6/2014 in www.dgsi.pt).
15.° - Pelo que, a existir irregularidade de conhecimento oficioso -sendo que não entendemos que exista no caso vertente - essa irregularidade deve ser suprida pela secção judicial, sendo contrária à autonomia do Ministério Público a ordem judicial de suprimento da mesma por parte dos serviços deste.
16.° - Assim, inexistindo questão prévia nos autos que obste o conhecimento do mérito da causa (e que possa conhecer), só restava à Mm. A Juiz designar data para audiência de julgamento, pelo que omitindo tal despacho, devolvendo ao invés os autos ao Ministério Público, violou o disposto no artigo 312 0 do CPP.
17.° - Nesta conformidade, em consequência e perante todo o antes exposto, deverá ser revogada a decisão recorrida e ser substituída por outra que receba a acusação pública deduzida a fls. 498 a 511 e que designe data para audiência de discussão e julgamento, atenta a violação do disposto nos arts. 113.°, 118.°, 123°, n.° 1 e 2, 312° do Código de Processo Penal e 32.°, n.° 5 e 219 °, n ° 2 da Constituição da República Portuguesa.
Com o que V. Exas farão a costumada JUSTIÇA
(…)»

1. Nesta instância, o Exmo. procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso [fls.53].
2. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
(…)»

II – FUNDAMENTAÇÃO

3. Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª Ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª Ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.
4. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir a seguinte questão:
· Se após dedução de acusação, o juiz ao verificar a existência de irregularidade se lhe é permitido ordenar a remessa ao MP para que o mesmo a supra.
Analisemos a questão.

A este propósito importa ter presente:

O inquérito é uma fase processual da competência do Ministério Público (cfr. arts. 219º da Constituição da República Portuguesa e 262º do Cód. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excecional, e com ele se pretende investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes, a responsabilidade deles, descobrir e recolher as provas. Tudo isto com uma finalidade: submeter ou não o arguido, ou o suspeito (autor da infração), a julgamento.

Primeiro há que determinar se realmente houve crime, depois, tentar descobrir o agente. Depois de descoberto o agente, saber a responsabilidade que lhe cabe, saber se se trata de um indivíduo que agiu com dolo ou se porventura se trata de um inimputável, uma vez isto feito (art. 283º CPP) o Ministério Público deduz acusação. Com a acusação pretende-se submeter o arguido a julgamento (art. 262º CPP). Assim é por força da estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art. 32º, nº 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que a acusação – que define e fixa o objeto do processo, imputando um crime a determinada pessoa – tem que ser deduzida por um órgão distinto do julgador. De resto, a vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz do julgamento não interveio na definição do objeto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz, constituem corolários decisivos do princípio do acusatório.

Esta acusação é notificada ao arguido. E aqui, entre a decisão de submeter o arguido a julgamento – que é a acusação – e o julgamento propriamente dito, pode surgir uma fase intermédia, que é uma fase facultativa – a instrução.

No caso em apreço o que importa discutir não é saber se a notificação foi feita de forma irregular, mas antes se o Juiz do processo tem poderes para determinar ao Ministério Público a prática de qualquer ato na fase anterior de Inquérito.

O princípio do acusatório e o facto da direção do Inquérito competir ao Ministério Público, não significa que, ultrapassada a fase de inquérito, o juiz não possa sindicar a legalidade dos atos praticados nessa fase.

Tendo sido deduzida acusação e não sendo requerida instrução, o processo segue para a fase de julgamento, cabendo, então, ao juiz (de julgamento) pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, nos termos do art. 311º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.

E sendo pacífico que no despacho a que se refere aquele art. 311º “não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação” (cfr. acórdão do TRE, de 11.07.1995, in CJ XX, tomo IV, p. 287), já se divergem as opiniões quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido.

De facto, já se defendeu que o juiz pode devolver os autos ao Ministério Público se entender que não foram efetuadas todas as diligências necessárias para a notificação da acusação ao arguido (assim, e para além do acórdão citado no despacho recorrido, cfr. o acórdão do TRP, de 09.05.2001, in CJ XXVI, tomo III, p. 230) com o argumento de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa e uma deficiente notificação é “suscetível de afetar o direito de defesa do arguido – na medida em que deste faz parte o direito conferido ao arguido de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, com vista a evitar a sua submissão a julgamento”, pelo que se imporia a “possibilidade da sua reparação oficiosa, nos termos do disposto no nº 2 do art. 123º do C. Penal” – no mesmo sentido cfr. o acórdão do TRC, de 24.11.1999, in CJ XXIV, tomo V, p. 51.

Acontece que a falta de notificação da acusação ao arguido não afeta as suas garantias de defesa, já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação – podendo então requerer instrução, para o que disporá do prazo normal de 20 dias.

Estamos, assim, perante uma irregularidade com previsão no nº 1 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, e não no nº 2. Desta forma, a falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14.04.2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294).

Mas ainda que seja entendimento do Juiz que é de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação. Quando o nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinando que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal situação contem implícita uma ordem para que proceda à notificação da acusação ao arguido – decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.

De facto, sendo autónomas a intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, “não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” (cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006 (pesquisado in www.dgsi.pt) – assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2ª edição atualizada, ps. 790/791) que, em anotação ao artigo 311º defende que “pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação”.

Pelo que tem que proceder o recurso.

Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso,

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, os juízes acordam em:

Conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que será substituído por outro que ordene aos próprios serviços a reparação da irregularidade.

· Não é devida tributação

[Elaborado e revisto pela relatora]


Guimarães, 11 de Janeiro de 2016


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[Ana Maria Martins Teixeira]


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[João Lee Ferreira]