Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
385/14.1T8GMR.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI
CONTRATO DE EMPREITADA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) No âmbito da União Europeia, é aplicável a lei portuguesa para apreciação de questões relacionadas com o contrato de compra e venda de mercadorias e com o contrato de prestação de serviços, em que um dos contraentes tenha a sua residência habitual em Portugal;

2) A distinção entre os contratos de empreitada e de compra e venda resulta, quanto ao primeiro, da prevalência da obrigação de facere, do facto de a prestação dos materiais constituir um simples meio para a produção da obra, e o trabalho, o escopo essencial do negócio, representando o bem produzido um “quid novi” relativamente à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais respeitantes à forma, à medida ou à qualidade do objeto fornecido e, quanto ao segundo, ao facto de prevalecer a obrigação de dare e de a prestação dos materiais ser o essencial.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) F, veio intentar ação com processo comum, contra B, onde conclui pedindo a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência, ser a ré condenada a pagar à autora a quantia de €81.969,20, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa comercial, desde o vencimento das supra aludidas faturas até efetivo e integral pagamento, calculando-se os já vencidos, até 30/09/2014, em €7.084,99, perfazendo nesta data o total de €89.054,19, devendo ainda a ré ser condenada nas despesas a que se alude no artigo 102º supra, a liquidar em execução de sentença.

Para tanto alega, em síntese que a autora se dedica à confeção de artigos de vestuário em malha, nomeadamente Sweatshirts, T-shirts, poloshirts, calças, casacos, etc, na sua unidade fabril situada em Gandra, Manhente, Barcelos, sendo a ré, B, uma sociedade de direito italiano, que possui a licença exclusiva no território italiano, para a produção, comercialização e distribuição de vestuário e acessórios da marca “Fred Perry”.

A F, a pedido da B, por intermédia da G, que interveio neste negócio como mera comissionista , atuando em nome, no interesse e por conta da F, produziu, por sua conta e risco exclusivos, diversas peças de vestuário da marca “Fred Perry”, de acordo com as medidas fornecidas pela Beta e com uma alteração pedida, tendo esta comunicado à autora que as peças apresentavam vários defeitos, razão pela qual interrompeu o pagamento das faturas, pelo que pretende a autora o pagamento das mesmas faturas.

Entende a autora que, em termos de competência internacional se aplica aqui o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 16/01, com as alterações do Regulamento (EU) nº 156/2012, onde se determina um critério geral – o domicílio do réu – e vários critérios especiais, podendo o autor escolher, para instaurar a ação, indistintamente, qualquer um dos tribunais, cuja competência lhe seja atribuída pelo aplicação de um desses critérios, desde que o litígio não envolva uma situação de competência exclusiva prevista no artigo 22º, optando a autora pela aplicação de um critério de competência especial, em concreto, pelo disposto no artigo 5º nº 1, mais concretamente, tratando-se de uma prestação de serviços, pelo lugar onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou deviam ser prestados, assim afastando o critério geral do domicílio dos demandados, sendo certo que o contrato em causa é um contrato de prestação de serviços, mais concretamente um contrato de empreitada.

No que se refere à lei materialmente aplicável, tratando-se de uma relação contratual, é aplicável o Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17/06, que versa sobre a lei aplicável à obrigações contratuais, correntemente designado por Roma I, estabelecendo no artigo 4º nº 1 alínea b) que, uma vez que as partes não escolheram qual a lei substancialmente aplicável, “o contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do pais em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual”, sendo, assim, aplicável a alei portuguesa (cfr. artigo 4º nº 1 b), a), nº 2 e 3).

Pela ré, B foi apresentada contestação onde conclui entendendo que:

a) deve ser julgada procedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses, nos termos do art.º 5º nº 1 alínea a) 1º parágrafo, do Regulamento (CE) 44/2001, de 16 de janeiro, e a ré absolvida da instância;

b) deve ser julgada procedente a invocada exceção de litispendência com a ação que corre termos sob o nº NRG 1504/2014 no Tribunal de Biella, Itália, nos termos do art.º 27.º do Regulamento (CE) 44/2001, de 16 de janeiro, e a ré absolvida da instância;

c) deve ser julgada procedente a existência de conexão com a ação referida na alínea anterior, nos termos do art.º 28º do Regulamento (CE) 44/2001, de 16 de janeiro, e suspensa a instância até decisão daquela ação;

d) deve ser declarada a questão prejudicial ou a existência de motivo justificativo – a ação a correr termos no Tribunal Italiano de Biella – e a suspensão da presente instância até decisão daquela ação, nos termos do art. 272º do CPC;

e) deve ser julgada procedente a invocada exceção de ilegitimidade da autora, absolvendo-se a ré da instância;

f) deve ser declarada totalmente improcedente, por não provada a presente ação e, em qualquer caso, decretada a compensação total de créditos;

g) subsidiariamente, e caso não proceda nenhum dos pedidos constantes supra formulados nas alíneas a) a f), deve ser admitido e julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional e, em consequência, ser a autora condenada a pagar à ré o montante de €117.708,30 (cento e dezassete mil setecentos e oito euros e trinta cêntimos), acrescidos de juros desde a notificação da autora e até integral pagamento, bem como a entregar na sede da ré, em Itália, e expensas suas, as peças que ainda estejam em seu poder com o logo “Fred Perry”;

h) deve ainda a autora ser condenada em custas e demais legal.

Para tanto veio invocar a incompetência internacional dos tribunais portugueses, alegando, em síntese, que a matéria em discussão não é um caso de competência exclusiva dos tribunais portugueses, nos termos do disposto no artigo 63º Código de Processo Civil., entendendo ser aplicável o regime do Regulamento (CE) 44/2001, de 16 de janeiro (na versão dada pelo Regulamento (EU) nº 56/2012, de 22/02), onde consta (artigo 2º nº 1 e 3º nº 1) o princípio geral segundo o qual, as pessoas domiciliadas num Estado Membro são demandadas nesse Estado, só assim não sendo nos casos expressamente excecionados no artigo 3º nº 1.

Refere ainda a ré que de entre os casos definidos como de competência especial, está prevista no artigo 5º nº 1 a matéria contratual, entendendo que o contrato em causa é um contrato de compra e venda, pelo que a situação é subsumível à previsão do artigo 5º nº 1 alínea b), segundo Parágrafo do Regulamento e não no primeiro parágrafo, pelo que o tribunal competente é o tribunal italiano, atento o local da entrega dos bens objeto do fornecimento, coincidente com o local da sede da ré, o Tribunal de Biella (Verrone), sendo que a violação das regras da competência internacional gera a incompetência absoluta do tribunal, constituindo uma exceção dilatória, implica a absolvição da ré da instância.

Por outro lado, refere a ré ter interposto, em fevereiro de 2014, no Tribunal de Biella, Itália, uma ação (com o nº NRG.1504/2014, contra a aqui autora e a G, que consigo contratou diretamente, tendo a autora, em conjunto com a G, apresentado a sua contestação, ação essa onde se discutem exatamente os mesmos factos, bem como a competência internacional dos tribunais portugueses ou italianos.

Estabelece o artigo 27º do Regulamento (CE) 44/2001, de 16/01, que quando ações com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e entre as mesmas partes forem submetidas à apreciação de tribunais de diferentes Estados-Membros, o tribunal a que a ação foi submetida em segundo lugar suspende oficiosamente a instância, até que seja estabelecida a competência do tribunal a que a ação foi submetida em primeiro lugar.

Assim sendo, deve ser suspensa a presente instância, até que a competência do Tribunal de Biella esteja definitivamente decidida e, mesmo que se entenda não haver litispendência, sempre haveria conexão de ações, nos termos do disposto no artigo 28º, pelo que requer a suspensão da presente instância.

Subsidiariamente, quando não se entenda ser o tribunal italiano o competente, requer que se declare o Tribunal de Braga incompetente, logo que o Tribunal de Biella se declare competente, apensando-se as ações, requerendo a suspensão da presente instância.

Entende ainda a ré que a pendência de uma ação a decorrer no Tribunal de Biella é manifestamente uma causa prejudicial justificativa da suspensão da presente instância.

Invoca ainda a ré a ilegitimidade da autora, tendo em conta que a ré contratou o fornecimento dos produtos em causa com a G, sendo esta que decidiu que que os produtos seriam produzidos pela F, não tendo a ré qualquer interferência na escolha, sendo a autora parte ilegítima.

A autora apresentou réplica onde entende que:

1. Devem as exceções dilatórias deduzidas pela ré serem julgadas improcedentes, por não provadas;

2. Conclui como na p.i.;

3. Deve a reconvenção ser liminarmente indeferida, com fundamento na ineptidão e na manifesta inviabilidade dos pedidos indemnizatórios nela formulados;

4. Se assim não se entender, deve em qualquer caso a reconvenção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, com as legais consequências.


*

Foi proferido despacho saneador que entendeu que:

“Na contestação oportunamente oferecida, a ré arguiu a incompetência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação do pedido formulado pela autora, consubstanciado no cumprimento de um pretenso contrato de compra e venda comercial, sustentando que a ação deveria ter sido proposta perante a Justiça Italiana, nos termos do artigo 5º, n.º 1, alíneas a) e b), primeiro parágrafo, do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 16 de janeiro.

Notificada, a autora pugnou pela improcedência de tal exceção.

Cumpre decidir:

É hoje praticamente consensual que a competência do tribunal se afere pela natureza da relação material controvertida, tal como o autor a configura na petição inicial.

Ora, nesse articulado, a autora, ao descrever o relacionamento que manteve com a ré e em que alicerça o pedido formulado, reporta-o, inequivocamente, ao contrato de compra e venda comercial, na modalidade da compra e venda sobre amostra ou por designação de padrão, invocando até os preceitos que regulam esse tipo contratual (artigos 463º e 469º do Código Comercial).

É certo que, prevendo a possibilidade de a ré arguir a incompetência internacional dos tribunais portugueses, antecipou a sua defesa relativamente a essa exceção, procurando, aliás em manifesta contradição com a sua alegação anterior, elencar uma série de argumentos que, na sua ótica, impõem a qualificação do contrato celebrado como sendo um contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de empreitada.

Todavia, creio que esses argumentos, eminentemente jurídicos, não podem sobrepor-se ao quadro factual inicialmente delineado e à qualificação jurídica que dele emerge, incluindo os seus reflexos substantivos (mormente ao nível da caducidade do direito de denúncia dos defeitos).

Ora, sendo incontroverso que não se está perante uma questão que, nos termos do artigo 63º do Código de Processo Civil, seja da competência exclusiva dos tribunais portugueses, a definição da competência internacional rege-se pelo artigo 5º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 16 de Janeiro, na versão que lhe foi dada pelo Regulamento (UE) n.º 156/2012, de 22 de Fevereiro, aplicável porquanto quer Portugal, quer a Itália são Estados-Membros da União Europeia (anotando-se, a este propósito, que, como expressamente prescreve o artigo 38º nº 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, a competência fixa-se no momento em que a ação é proposta, pelo que não é aplicável à presente ação, cuja petição inicial foi apresentada em juízo, por transmissão eletrónica de dados, em 2 de outubro de 2014, o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, atento o disposto no artigo 81º, segundo parágrafo, desse Regulamento), segundo o qual “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:

1.

a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

- no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues”.

Em vista dessa disciplina e tendo presente que os artigos cujo preço a autora reclama foram entregues à ré na sede desta, em Itália (artigos 67º e 68º da petição inicial), é forçoso concluir que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente ação (o que prejudica a apreciação da admissibilidade da reconvenção, tanto mais que esta foi deduzida a título subsidiário).

A infração das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal e implica a absolvição da ré da instância, de harmonia com o disposto nos artigos 96º, alínea a), 97º, n.º 1, 99º, 278º, n.º 1, alínea a), 576º e 577º, alínea a), todos do NCPC.

Pelo exposto, declaro este tribunal internacionalmente incompetente para conhecer da presente ação e, em consequência, absolvo a ré da instância.”


*

B) Inconformada com a sentença proferida, veio a autora F, interpor recurso (fls. 967), o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 1027).

*

Nas alegações de recurso da apelante F, são formuladas as seguintes conclusões:

1. Face à matéria de facto, aos elementos constantes do processo e às normas jurídicas convocadas para o caso sub judice, a decisão proferida pelo Tribunal a quo acolheu uma clara e gritante errada solução e interpretação do concreto problema em litígio, na medida em que qualificou como compra e venda uma relação que, na realidade, se afigura como sendo um contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de empreitada.

2. Basta observar a p.i. (e a própria réplica) para facilmente se constatar que em nenhum momento a autora qualificou a relação entre as partes como um contrato de compra e venda, como vem agora o Tribunal a quo defender. Antes pelo contrário diga-se! É que precisamente para não subsistirem dúvidas, a autora nos artigos 1º a 13º, 25º a 30º e, em especial, nos arts. 77º a 94º do articulado inicial (e 28º a 95º da réplica) tratou de descrever minuciosamente a relação entre as partes e reportou-a inequivocamente (quer a nível factual, quer a nível jurídico) a um contrato de prestação de serviços.

3. Há, pois, que atender à relação jurídica controvertida e ao pedido formulado, segundo a versão apresentada em juízo pela demandante (e não segundo a versão apresentada pela ré, como o parece fazer o Tribunal a quo). E na situação em apreço, tal como está configurada a ação apresentada no articulado inicial, são os Tribunais portugueses os internacionalmente competentes.

4. A autora, no caso, fazendo uso do seu direito de escolha, optou pela aplicação de um dos critérios de competência especiais, em concreto pelo disposto no art. 5º, nº 1 do Regulamento (CE) nº 44/2001, afastando deste modo o critério geral do domicílio do demandado.

5. Em matéria contratual – in casu - estabelece-se como critério especial de competência o lugar onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida (art. 5º/1/a).

6. Sublinhe-se aqui que relevante, para o efeito, é sempre a obrigação primariamente gerada pelo contrato e não a secundária que nasça do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.

7. Deste modo, atendendo ao caso em concreto, principal será precisamente a obrigação de prestação de serviços, a obrigação de produzir as peças de roupa de acordo com as instruções da outra parte e o “know-how” ou saber-fazer da produtora, uma vez que este foi o serviço encomendado. Será em função dessa obrigação que a competência internacional será determinada, e não em relação a outras que secundariamente tenham surgido no desenvolvimento do contrato.

8. Por esta via, reconduzindo-se assim a obrigação principal a uma prestação de serviços, há que ter em linha de conta o especialmente disposto a este respeito, em concreto o segundo travessão da alínea b), do nº 1 do art. 5º do Regulamento.

9. Importante será o lugar de prestação dos serviços que no caso se assume, e de forma bastante notória diga-se, como sendo Portugal, uma vez que, e nos termos do contratado entre as partes, os serviços – fabrico de peças de pronto-a-vestir – foram efetuados nas instalações da autora.

10. Por outro lado, de acordo com o critério da obrigação preponderante foi precisamente a prestação de serviços que assumiu o maior peso económico no contrato.

11. Este critério da questão económica preponderante encontra-se previsto, a título de exemplo, no art. 3º, nº2, da CVIM e no art.6º da Convenção das Nações Unidas de 14 de junho de 1974 sobre a prescrição em matéria de compra e venda internacional de mercadorias.

12. Ora, dos factos alegados e que constituem a causa de pedir, resulta que o valor global da produção ascendeu a €225.569,50. Destes €225.569,50, €205.000,00 respeitaram aos custos com a produção dos bens (know how, custos com as instalações, máquinas e equipamentos, salários dos trabalhadores, encargos para a Segurança Social, impostos (IRC) e demais custos fixos afetos à produção…), e os restantes €20.569,50 aos custos com a matéria-prima (malha e ribes). E dentro dos custos da produção os salários e os respetivos encargos sociais atingiram um valor da ordem dos €60.000,00 a €80.000,00.

13. Ou seja, enquanto a mão-de-obra e os outros serviços inerentes à produção dos bens assumiu cerca de 90% do respetivo valor global devido pela ré à autora, o custo propriamente dito da matéria-prima teve um peso diminuto de cerca de 10%.

14. Ora, se a produção dos bens representou economicamente e materialmente a parte maioritária ou substancial do valor dos produtos faturados, então é certo e seguro afirmar que a empreitada foi precisamente a obrigação essencial/característica do contrato celebrado entre as partes.

15. Ou seja, a peça dominante na relação entre as partes foi sempre a empreitada, e não o fornecimento dos bens. De notar que quer na p.i., quer na réplica, foram alegados factos que permitem esta conclusão.

16. Por conseguinte, dúvidas não devem subsistir quanto à qualificação do presente contrato como de empreitada, uma das modalidades do contrato de prestação de serviços, sujeito ao regime jurídico previsto nos arts.1207º e ss. do C.Civil, direito material este que, aliás, é inequivocamente aplicável ao caso concreto.

17. Ao ter sido encomendado o fabrico de peças de roupa sujeitas a um processo específico e especializado, com técnicas distintas das usuais (representando, assim, o bem produzido um quid novi relativamente à produção originária do empreiteiro); ao terem sido cumpridas todas as diretivas e instruções precisas da ré, tendo as peças sido produzidas de acordo com os ditames impostos (e modificações exigidas), e sendo aliás todo o processo produtivo alvo de intensa fiscalização (com, por exemplo, visitas às instalações), a solução correta e mais justa será a clara inserção da presente relação contratual no âmbito da 2ª parte, alínea b), art. 5º do Regulamento.

18. A entrega dos bens produzidos a final – peças de pronto a vestir – foi claramente uma obrigação assumida a título acessório, e não principal.

19. Pelo que, quando muito estaremos perante um contrato misto: de empreitada, a título principal, de compra e venda, a título acessório.

20. Ora, sendo a compra e venda o elemento acessório da relação contratual in casu, as suas regras só serão aplicáveis desde que compatíveis com a empreitada, tudo dependendo assim do caso em concreto.

21. Deste modo, as considerações vertidas nos arts. 58º a 66º da petição inicial apresentada, devem ser apreciadas tendo em consideração a compatibilidade do art. 471º do Código Comercial com as disposições do contrato de empreitada.

22. A autora na p.i. alegou todos os factos essenciais para a qualificação do contrato como de empreitada (ou quando muito, um contrato misto), razão pela qual a decisão recorrida afigura-se de todo em todo incompreensível. Além da p.i., há ainda que ter em consideração tudo o quanto foi vertido na réplica, que permite sem sombra de dúvida retirar a mesma conclusão.

23. Não obstante, ainda que se entendesse que na p.i. não foram bem evidenciados os factos demonstrativos da existência de um contrato de prestação de serviços, sempre o Juiz estava constituído no poder-dever de suscitar o convite ao aperfeiçoamento (art. 590º, nº2 b) e nº4 do CPC), face ao esforço desenvolvido sobre esta matéria na réplica e como amiúde o fazem em sede de petições de acidentes de viação.

24. Por outro lado, cumpre deixar bem patente que o foro português é o que, sem dúvida, apresenta mais elementos de conexão com o caso.

25. i) É em Portugal que a autora tem a sua sede; ii) Foi em Portugal, nas instalações da autora, que as peças em causa foram fabricadas; iii) Foi a partir de Portugal que se deu cumprimento ao contrato, enquanto ele durou; iv) O preço dos produtos fabricados pela autora devia ser pago em Portugal, na sede desta; v) Os trabalhadores afetos à prestação de serviços são portugueses; vi) Trabalhadores estes que constituem uma mão-de-obra especializada e qualificada, sendo um importante fator de atração para as empresas estrangeiras; vii) A acrescer ao know how ou saber-fazer e técnicas especializadas que a indústria portuguesa oferece, motivador de forte procura;

viii) Os impostos sobre os produtos fabricados foram efetuados em Portugal; ix) O contrato foi desenvolvido, material e economicamente, em Portugal; x) Cerca de 90% do valor pecuniário do contrato a que se vem fazendo referência respeita à produção, máquinas, equipamentos, mão-de-obra e respetivos encargos sociais; xi) Ou seja, a ordem jurídica portuguesa é justamente aquela que oferece plena conexão com o caso, e não a italiana!

26. Porém, ainda que dúvidas subsistissem quanto à supra mencionada competência da ordem jurídica portuguesa, estas claramente se dissipam aquando da análise do Regulamento (CE) nº 593/2008 (“Roma I”). Por força deste Regulamento, na falta de escolha será aplicável a lei material do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual (art. 4º, nº 1 alínea b) o que significa, e sem grandes complexidades associadas, que é precisamente a lei portuguesa a aplicável no presente caso.

27. Ora, é entendimento da doutrina e jurisprudência, que deve, sempre que possível, existir uma correspondência entre a lei materialmente aplicável e o tribunal internacionalmente competente.

28. Facto que seguramente terá pesado na circunstância de o Tribunal italiano ainda não ter decidido sobre a sua competência internacional, uma vez que só depois de apreciados os factos é que decidirá, o que nos parece sensato e razoável.

29. A melhor jurisdição, aquela que deve ser considerada competente, é exatamente aquela que pode dar cobertura ao princípio da proximidade.

30. Contrariamente à ideia que aparenta perpassar pela douta Instância, em juízo não estão duas partes iguais, como se de dois comerciantes nas mesmas condições se tratassem. A ré é uma grande empresa, um colosso económico, ao passo que a autora se reconduz a uma pequena empresa familiar, que opera num mercado difícil e que tem sido muito fustigado pelos efeitos devastadores da mais grave crise económica e financeira que o mundo já conheceu, com sucessivas insolvências, despedimentos e originando dramas sociais sem paralelo.

31. Destarte, a realidade do caso concreto e a respetiva subsunção à lei podem e devem ser interpretadas de acordo com este espírito, impondo a concretização do princípio da igualdade ao Julgador a consideração da desigualdade manifesta e evidente existente entre as partes em juízo. Esta é, aliás, uma realidade reconhecida e tratada na doutrina, tanto nacional como europeia.

32. O douto tribunal a quo, ao atribuir a competência aos tribunais italianos, está a restringir gravemente a possibilidade de defesa dos direitos da autora, que terá naturalmente muita dificuldade em suportar um litígio desta envergadura num tribunal estrangeiro e em realizar deslocações a Itália, assim como terá dificuldade em fazer comparecer as suas testemunhas.

33. Na prática, a decisão recorrida constitui a perda irremediável dos direitos reclamados na presente ação, com a qual a autora conta receber a quantia ainda em dívida, que poderá equilibrar o seu balanço e, desse modo, continuar a manter os postos de trabalho pelos quais é responsável.

34. Deste modo, por via de tudo o quanto acima foi desenvolvido, a solução que afigura-se-nos como mais correta para o caso em questão, atendendo às normas de competência internacional (segundo parágrafo, alínea b), nº1 do art. 5º do Regulamento nº 44/2001), aos elementos de conexão descritos e aos padrões de justiça e eficácia que nunca se podem olvidar, é a de considerar o Tribunal português como o efetivamente competente a nível internacional.

35. Como facilmente se depreende das circunstâncias do caso concreto, enquanto a declaração da competência internacional do tribunal português não prejudica nenhuma das partes, a decisão recorrida prejudica gravemente os interesses da autora.

Termina entendendo dever ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue internacionalmente competente para conhecer a presente lide o Tribunal da Comarca de Braga.


*

Pela apelada B foi apresentada resposta onde conclui entendendo dever ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta decisão da 1ª Instância.

*

C) Foram colhidos os vistos legais.

D) As questões a decidir no recurso são as de saber:

1) Qual a lei aplicável à questão suscitada;

2) Qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da causa.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.


*

B) O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

*

C) As questões a apreciar no presente recurso consistem em saber qual a lei aplicável à questão suscitada e qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da causa.

Para a resolução da primeira questão terá de se recorrer ao Regulamento (CE) nº 593/2008, de 17/06/2008, relativo à lei aplicável às obrigações contratuais, comummente designado como ROMA I.

E conforme resulta do disposto no artigo 4º nº 1 alíneas a) e b), a lei aplicável é a portuguesa, quer se entenda que estamos perante um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços.

Com efeito, estabelece o referido normativo que (1) na falta de escolha nos termos do artigo 3º - e tendo em conta que as partes não escolheram uma lei aplicável – e sem prejuízo dos artigos 5º a 8º - que tratam de matérias relativas a contratos de transporte, contratos celebrados por consumidores (pessoas singulares), contratos de seguro ou contratos individuais de trabalho) – a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo:

a) O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual;

b) O contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual…

Do exposto resulta que quer se considere que estamos perante um contrato de compra e venda de mercadorias, quer se entenda que se está perante um contrato de prestação de serviços – teses essas que são defendidas pelas partes – a lei aplicável será sempre a lei portuguesa.

Importa, então, apurar qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da causa.

A sentença recorrida refere que a autora, ao descrever o relacionamento que manteve com a ré e em que alicerça o pedido formulado, reporta-o, inequivocamente, ao contrato de compra e venda comercial, na modalidade da compra e venda sobre amostra ou por designação de padrão, invocando até os preceitos que regulam esse tipo contratual (artigos 463º e 469º do Código Comercial).

E, prevendo a possibilidade de a ré arguir a incompetência internacional dos tribunais portugueses, antecipou a sua defesa relativamente a essa exceção, procurando, aliás em manifesta contradição com a sua alegação anterior, elencar uma série de argumentos que, na sua ótica, impõem a qualificação do contrato celebrado como sendo um contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de empreitada

Vejamos.

Conforme se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 15/12/2009, na apelação nº 538/08.3TCGMR, “estabelece-se no artigo 1207º do Código Civil que “empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”.

Por outro lado, de acordo com o conceito legal que nos é dado pelo artigo 874º do Código Civil, “...compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”

Os efeitos essenciais deste contrato são, nos termos do disposto no artigo 879.º do Código Civil,

“a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;

b) A obrigação de entregar a coisa; e

c) A obrigação de pagar o preço.”

A propósito da distinção entre os contratos de empreitada e de compra e venda pode ler-se no Acórdão do STJ de 12/09/2006, disponível na Base de Dados do Ministério da Justiça em www.dgsi.pt que, “embora o elemento nuclear típico da empreitada consista na realização de uma obra (artigo 1207º do Código Civil), ao passo que o objeto essencial da compra e venda reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza (artigo 874º do mesmo Código), o acento tónico da distinção entre as duas espécies de contratos, como se refere entre outros em Acórdão do S.T.J. de 22/9/05, localizável em www.dgsi.pt, vem sintetizado pela doutrina e jurisprudência comparada nos tópicos seguintes:

- prevalência da obrigação de dare ou da de facere (naquele caso, tratar-se-á de compra e venda, e neste, de empreitada);

- na empreitada, ao contrário da compra e venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio;

- na empreitada, o bem produzido representa um “quid novi” relativamente à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais respeitantes à forma, à medida ou à qualidade do objeto fornecido.

Acresce que, acima de qualquer fator objetivo, o elemento preponderante de distinção é sempre constituído, face ao princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º do Código Civil, pela vontade dos contraentes, tendo a categorização jurídica do negócio de resultar, em larga medida, do que tiver sido pretendido pelas partes, que não terão deixado em qualquer caso de configurar na sua mente um dos contratos em causa e o seu regime.”

Ora, perante os elementos disponíveis dos factos provados entende-se que o fim essencialmente tido em vista pelas partes ao contratarem foi o facere”, motivo pelo qual não pode deixar de se considerar que estamos perante um contrato de empreitada que, como é sabido, é uma das modalidades do contrato de empreitada (artigo 1155º do Código Civil), pouco importando a qualificação jurídica que as partes atribuem à relação jurídica em causa, uma vez que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (artigo 5º nº 1 NCPC), não estando o juiz sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (nº 3).

Conforme se refere na sentença recorrida, “a definição da competência internacional rege-se pelo artigo 5º nº 1, do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 16 de Janeiro, na versão que lhe foi dada pelo Regulamento (UE) nº 156/2012, de 22 de Fevereiro, aplicável porquanto quer Portugal, quer a Itália são Estados-Membros da União Europeia (anotando-se, a este propósito, que, como expressamente prescreve o artigo 38º nº 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, a competência fixa-se no momento em que a ação é proposta, pelo que não é aplicável à presente ação, cuja petição inicial foi apresentada em juízo, por transmissão eletrónica de dados, em 2 de outubro de 2014, o Regulamento (UE) nº 1215/2012, atento o disposto no artigo 81º, segundo parágrafo, desse Regulamento)…”

Conforme se estabelece no referido artigo 5º nº 1, “uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:

1.

a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;

b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

— no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados…”

Tendo em conta que os serviços foram prestados nas instalações fabris da autora, sitas em Gandra, Manhente, Barcelos, daí resulta que o tribunal português é o internacionalmente competente.

Por todo o exposto resulta que a apelação terá de proceder e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida e determinar que o tribunal português é o internacionalmente competente para conhecer da causa.


*

D) Em conclusão:

1) No âmbito da União Europeia, é aplicável a lei portuguesa para apreciação de questões relacionadas com o contrato de compra e venda de mercadorias e com o contrato de prestação de serviços, em que um dos contraentes tenha a sua residência habitual em Portugal;

2) A distinção entre os contratos de empreitada e de compra e venda resulta, quanto ao primeiro, da prevalência da obrigação de facere, do facto de a prestação dos materiais constituir um simples meio para a produção da obra, e o trabalho, o escopo essencial do negócio, representando o bem produzido um “quid novi” relativamente à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais respeitantes à forma, à medida ou à qualidade do objeto fornecido e, quanto ao segundo, ao facto de prevalecer a obrigação de dare e de a prestação dos materiais ser o essencial.


*

III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida e determinar que o tribunal português é o internacionalmente competente para conhecer da causa, prosseguindo os autos os seus termos.

Custas pela apelada.

Notifique.


*

Guimarães, 27/04/2017



_____________________________

_____________________________


1 - Relator: António Figueiredo de Almeida (61969041617)
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2º Adjunto: Desembargador Joaquim Espinheira Baltar