Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
823/13.0TTBCL.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: PER
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: No PER não há em sentido próprio uma verificação e graduação de créditos, e é, não há um procedimento tendente a fazer reconhecer judicialmente os direitos, com a produção da prova pertinente. Visa-se tão só o quórum deliberativo.

O procedimento de reconhecimento do crédito previsto no PER, quando exista controvérsia, não tem a virtualidade de garantir o cabal acesso à justiça, não constitui um “procedimento equitativo e justo” para efeitos de dirimir em termos definitivos o conflito.

No PER apenas os créditos não controvertidos se consideram definitivamente assentes.

A extinção das ações referida no artº 17-E, nº 1 parte final, refere-se às ações executivas, e às declarativas mas apenas se relativas a créditos que tenham sido admitidos definitivamente no PER, os que neste não foram contraditados.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

Autor: António...

Ré: … Materiais de Construção, Ldª

Nos autos o A. demandou a R. alegando uma transferência de empresa, que resolveu o contrato com justa causa, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de € 18.138,90, mais juros.

A ré contestou negando a existência de transferência de empresa e que resolveu o contrato por abandono por parte do autor. Pagou tudo o devido.

- A ação veio a ser declarada suspensa por despacho de 14/10/2015, nos termos do artigo 17º-E nº 1 do CIRE.

- O autor apresentou no PER reclamação relativamente aos créditos aqui em causa, os quais não foram reconhecidos pelo administrador, por litigiosos, conforme fls. 178.

- O autor apresentou no PER impugnação da lista provisória de créditos, conforme fls. 182, invocando que o facto de o crédito ser controvertido não deve constituir impedimento ao seu reconhecimento.

- O administrador respondeu referindo dever ser julgada improcedente a impugnação face à ausência de sentença transitada. A devedora nada disse.

- Por decisão de 11/11/2015 proferida no PER, foi ordenada a retificação da lista provisória de credores, nela fazendo incluir o crédito reclamado pelo autor.

Consta da referida decisão:

“… Ademais, e porquanto o reconhecimento do crédito no PER visa exclusivamente computar o quórum de maioria e deliberação da decisão de aprovação do plano, não tendo como finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude de créditos, a circunstância de os créditos serem controvertidos não pode obstar ao reconhecimento nestes autos de tais créditos. Se assim fosse, coartar-se-ía aos credores, em face de uma negação pura e simples do devedor da existência dos respetivos créditos, a possibilidade de participarem nas negociações e votar um plano, deixando-se de fora créditos que podem vir a ser passíveis de ser cobrados. …Com efeito, o credor deve ser admitido a negociar e a votar o plano de recuperação a fim de defender um crédito que já reclamou numa ação judicial. Se, futuramente, for declarada a insolvência da devedora e se vier a concluir pela inexistência do crédito reclamado nos seus precisos termos, nada obsta que, nessa sede de insolvência, de faça, no incidente próprio, a prova cabal tendente ao reconhecimento, verificação e graduação correspondentes à sua existência, natureza e limites.

É precisamente porque os créditos estão a ser apreciados numa ação judicial que se deve dar oportunidade aos que se arrogam credores de poder vê-los reconhecido na lista provisória e, assim, defendê-los por via da sua intervenção no processo de revitalização. Não fazê-lo seria coartar aos credores, em face de uma negação pura e simples do devedor da existência dos respetivos créditos, a possibilidade de participarem nas negociações e votar um plano, deixando-se de fora créditos que podem vir a ser passíveis de ser cobrados…”

- Consta do Plano de recuperação:

“ Trabalhadores

Os créditos relacionados com os contratos de trabalho são pagos a 100% do capital primitivo, em 5 anos através de prestações mensais e sucessivas, com perdão total de juros vencidos e vincendos, logo após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de revitalização.”

- A 7/4/2016 foi proferido despacho em que considerando-se que o crédito fora integralmente reconhecido no PER a ação perdeu utilidade, declarando-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

- Inconformada com o despacho a ré interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:

1.a - O crédito reclamado pelo autor, no valor de € 18 311,84 não está reconhecido no processo especial de revitalização da recorrente, tendo sido considerado nesse montante apenas para efeitos de participar na negociação e votação do plano de recuperação - cfr. decisão de 11.11.2015 proferida no processo especial de revitalização n.º 583/15.OT8PTL da Instância Local de Ponte de Lima, J1

2ª - Se assim não fosse, teria de ter sido realizado julgamento nesses autos, facultando-se à recorrente a produção de prova em vista da descoberta da verdade material, sob pena de serem coartados os seus legítimos interesses e direitos desprezando-se simplesmente a impugnação deduzida ao crédito do aqui autor - vd. n.° 3 e nº 4 do art° 17,° - D do CIRE

3ª - O plano de recuperação da recorrente foi elaborado tendo por base a continuação da presente ação, a fim de se obter sentença judicial que aprecie e julgue verificado ou não o crédito invocado pelo recorrido, a fim de este poder ser pago no âmbito do PER da recorrente, não podendo, por isso a presente instância ser extinta - vd. parte final, n.° 1, art.° 17-E do CIRE

Em contra-alegações sustenta-se o julgado.

O Emº PGA deu parecer no sentido da improcedência.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.

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A factualidade com interesse é a que resulta do precedente relatório.

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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Importa saber se ocorre impossibilidade superveniente da lide nos termos do artigo 17º-E, nº 1 do CIRE e 277º, alínea e) do CPC (ex vi artigo 1º, nº 2, alínea a) do CPT), como se decidiu.
Pretende a recorrente que o crédito do autor no PER foi reconhecido apenas para efeitos de participar na negociação e votação do plano de recuperação. E assim é na verdade como flui liminarmente da leitura da decisão que ordena a sua inclusão na lista provisória de créditos.
E não poderia ser de outro modo. No Per não há em sentido próprio uma verificação e graduação de créditos, e é, não há um procedimento tendente a fazer reconhecer judicialmente os direitos, com a produção da prova pertinente. Visa-se tão só o quórum deliberativo.
Assim e no Per apenas os créditos não controvertidos se consideram definitivamente assentes.
O autor não pode pretender em face dos termos do reconhecimento do seu crédito, que o mesmo está reconhecido para efeitos de a devedora dever pagá-lo nos termos do plano, como se estivesse já definitivamente assente que tem o direito reclamado.
É que o administrador aditou o crédito à lista em obediência ao despacho judicial, no qual se refere que o reconheciemtno tem apenas em vista permitir a intervenção nas negociações.
O que se faz constar do plano quanto ao pagamento não interfere com este limitado reconheciemtno. Não compete ao plano.
Desenvolvendo:
O Artigo 17-E do CIRE refere no nº 1:
- A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
A questão do prosseguimento ou não da ação declarativa deve ser respondida ponderando a situação factual em que as partes ficam colocadas.
Se o crédito estiver reconhecido no PER, a solução é clara, extinção da instância.
O reconhecimento de um crédito, tem que o ser “ a contento” de ambas as partes, e é, ou porque estão de acordo, não há litigio, o crédito em causa não é controverso, ou porque o mesmo é reconhecido pela autoridade que nos termos da lei tem como missão dirimir o conflito quanto à existência ou não do direito, no termo de um procedimento equitativo em que sejam garantidas as possibilidade de defesa, oferecendo e produzindo provas, com respeito pelo princípio da igualdade das partes – artigos 2º, 3º e 4º do CPC e CRP – artigo 20º.
A participação dos interessados no procedimento, garantindo-se-lhes o direito de oferecer e produzir provas de acordo com o quadro normativo de provas previsto na lei, aplicável a todos os cidadãos, constitui aliás um dos pilares da própria legitimidade da decisão.
Ora o procedimento de reconhecimento do crédito previsto no PER, quando exista controvérsia, não tem a virtualidade de garantir o cabal acesso à justiça, não constitui esse “procedimento equitativo e justo” para efeitos de dirimir em termos definitivos o conflito existente entre as partes, e consequentemente permitir uma decisão “legítima” sobre o direito litigioso. Não tem essa virtualidade, nem a visa como veremos.
A lei no aludido artigo 17-E, nº 1 parte final, refere, “extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação”.
Esta expressão, deste modo irrestrito apenas se pode compreender e aceitar com o sentido que aparenta, se se entender que as “ações para cobrança de dívidas” a que o normativo se reporta são as executivas, cujo prosseguimento não teria sentido dado que o pagamento do crédito exequendo fica abrangido pelo plano aprovado. Alguns propendem no sentido de que a expressão “ações para cobrança de dívidas” se reporta apenas às ações executivas.
Mas inclinando-se a jurisprudência maioritária para uma interpretação mais abrangente, abarcando ações declarativas, importa então fazer uma leitura diversa, sob pena de prejuízo dos credores não reconhecidos e dos não reclamantes e também da devedora no caso de reconhecimento nos termos do procedimento simplificado previsto, que não garante uma decisão definitiva justa.
No caso de não reconhecimento, o credor, se impedido de prosseguir na ação declarativa, não teria meio de cobrar o seu crédito, já que não foi reconhecido, e é litigioso.
Quando reconhecido, para os casos de reconheciemtno por decisão do juiz, este não elimina a natureza litigiosa do crédito. O reconhecimento no PER tem efeitos limitados, tendo em vista a participação nas negociações e votação.
Note-se que neste tipo de processo, o juiz pode considerar o voto do credor impugnado, não reconhecido. Refere o nº 3 do antigo 17-F; “Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o plano de recuperação que…”
É que o PER, dada a sua natureza urgente e a celeridade que o caracteriza, impondo-se prazos curtos, não tem vocação para resolver litígios sobre a existência e amplitude dos créditos, carecidos de uma mais profunda indagação e prova. A decisão sobre a reclamação de créditos é meramente incidental, não constituindo caso julgado fora do processo (art. 91º CPC), visando a formação e apreciação do quórum deliberativo (Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, 2013, pág. 159 e segs.). Assim é que já se entendeu que mesmo admitido o crédito, caso se prossiga para insolvência, podem vir nesta a ser impugnado mesmo os não impugnados no PER. Ac. RC de 24/6/2014, www.dgsi.pt, processo nº 288/13.7T2AVR-F.C1.
O critério do julgador, dado o curto prazo de apreciação – 5 dias – no caso dos créditos impugnados, pauta-se por uma apreciação sumária. Vd. Decisão de 20/6/2014, RC, processo nº 3106/13.2TBVIS-A.C1.
Pretendeu-se com este procedimento (PER), instituir um processo rápido e expedito, reorientando “ o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação”, como consta da proposta de Lei nº 39/XII. O mecanismo, como se refere na proposta, pretende-se célere e eficaz, e constitui uma das concretizações de uma das medidas previstas no memorando de entendimento, conforme resolução do C.M nº 43/2011.
Este processo especial tem algum pendor extrajudicial, embora limitado, sujeito aos princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011, de 25/10, conforme nº 10 do artigo 17-D.
Assim e além do mecanismo estritamente extrajudicial, cujos princípios orientadores constam da dita resolução do CM, criou-se este mecanismo, ainda fortemente extrajudicial, mas com algumas particularidades em relação àquele.
Com o mecanismo em causa, pretendeu-se possibilitar de forma célere a consecução de um acordo entre credores e devedor, tendo em vista a permanência deste no mercado, com as vantagens daí decorrentes (elencadas na resolução do CM nº 43/2011). Apenas é aplicável a empresas que não se encontrem em situação de insolvência, tal como a define o artigo 3, mas apenas se encontrem em situação de insolvência “meramente iminente”.
O processo em causa tem regulamentação própria, bastante simplificada, diversas e distantes da regulamentação do processo de insolvência, (situação em que a empresa não pode encontrar-se).
Assim é que não está prevista a citação de credores. O que resulta do artigo 17º-D, é que o devedor deve, logo que nomeado o administrador provisório (despacho da al. a) do nº 3 do 17-C), comunicar aos restantes credores, a todos os que não hajam subscrito a declaração mencionada no nº 1 do art. 17º-C, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, prestando as demais informações que refere o normativo.
Saliente-se que nos termos do nº 11 do artigo 17-D, o devedor, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquele ser uma pessoa coletiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a estes prestadas.
O mecanismo de reclamação previsto no nº 2 do artigo 17-D, que refere que qualquer credor dispõe de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo anterior para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, não tem outra função que não a de permitir a intervenção dos credores para efeitos de negociações e votação do plano.
Veja-se o que conta na proposta de Lei nº 39/XII:
“Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários. “

Prevê-se ainda uma tramitação bastante simplificada para a efetivação das reclamações de créditos, bem como da impugnação dos créditos reclamados, sem no entanto se fazer perigar a observância do princípio do contraditório, e definem-se prazos bastante curtos para a sedimentação dos créditos considerados definitivos, em ordem a permitir-se uma rápida tramitação deste processo especial e, assim, preservando-se a possibilidade de recuperação do devedor que se encontre envolvido no mesmo.”
Por outro, a não reclamação não faz precludir o direito do credor, pois se assim fosse careceria de sentido o disposto no nº 11 do artigo 17-D e o disposto no artigo 17-F, nº 6, que refere que a decisão do juiz vincula todos os credores mesmo que não hajam participado nas negociações.
Outras normas apontam no mesmo sentido, como o já referido nº 11 do artº 17-D, e sobremaneira o nº 7 do artigo 17-G. Refere este:
“Havendo lista definitiva de créditos reclamados, e sendo o processo especial de revitalização convertido em processo de insolvência por aplicação do disposto no n.º 4, o prazo de reclamação de créditos previsto na alínea j) do n.º 1 do artigo 36.º destina -se apenas à reclamação de créditos não reclamados nos termos do n.º 2 do artigo 17.º -D.”
Esta norma só pode significar que a não reclamação de crédito nos termos do artigo 17-D, nº 2 não tem os efeitos preclusivos (ou quase preclusivos) relativamente aos créditos contra o devedor como ocorre no processo de insolvência (onde resta após o decurso do prazo de reclamação de créditos, o recurso ao artigo 146 ss ).
Ora, não havendo efeito preclusivo, haverá que permitir o recurso a tribunal a fim de ver reconhecido o direito que a devedora não reconhece. E por uma questão de economia processual, deve aproveitar-se o processo que tenha sido suspenso nos seus termos ao abrigo da primeira parte do nº 1 do artigo 17-F.
Todo este raciocínio é aplicável aos créditos controversos, abrangendo pois os créditos reconhecidos por decisão do juiz para os apontados efeitos limitados de formação de quórum deliberativo.
Em conclusão, a não se admitir o curso da ação declarativa, ficaria uma das partes sem proteção, com violação do direito a um processo equitativo e justo, ou porque os créditos litigiosos não reconhecidos ficariam sem proteção, ou porque, sendo reconhecidos no âmbito do procedimento sumário referido, sem acordo, deixariam o devedor na impossibilidade de demonstrar num procedimento justo e equitativo, a não existência dos mesmos, o que de um ou outro modo viola as mais elementares regras e princípios do Estado de Direito.
Assim procede a apelação.
*
DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos.
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Custas pelo recorrido.
G. 19.01.2017
Antero Veiga
Alda Martins
Eduardo Azevedo