Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
846/20.3PBBRG.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Não obstante não ser obrigatória a tomada de declarações para memória futura no âmbito dos casos de violência doméstica, como decorre do disposto no Artº 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, tal deve ser o procedimento normalmente adoptado, tendo em consideração, obviamente, os factos concretos indiciados nos autos, de molde a, além do mais, se evitar uma vitimização secundária da ofendida, aliás considerada vítima especialmente vulnerável.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Inquérito nº 846/20.3PBBRG, que corre termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal, 2ª Secção de Braga, da Procuradoria da República da Comarca de Braga, no qual é ofendida C. F. e arguido J. G., estando este indiciado da prática de um crime de violência doméstica, promoveu o Ministério Público que à mesma fossem tomadas declarações para memória futura em consonância com o disposto nos Artºs. 271º do C.P.Penal (1), e 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro.
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2. Porém, tal requerimento foi indeferido pelo despacho de 02/07/2020 do Mmº Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Braga, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, cuja cópia consta de fls. 19/21 Vº, nos seguintes termos (transcrição (2)):
“Declaração para memória futura.
Pretende o MP a tomada de declarações para memória futura à vítima nos termos que faz a fls. 63, invocando ao caso o disposto no artigo 33.º/1 da Lei 112/2009, de 19/09.
Decidindo.
Dispõe o artigo 33º/1 da Lei 112/2009, de 16/09 (com a última redacção que lhe foi dada pela Lei 02/2020, de 31/03) que o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Como se afirma no acórdão do TRL de 09/11/2016, proc. 5687/15.7T9AMD-A.L1.-3 “não decorrendo obrigatoriamente da lei a tomada de declarações para memória futura no caso de violência doméstica ou maus tratos, (como acontece com as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor - artº 271º do CPP), o critério para decidir pela tomada de declarações para memória futura terá necessariamente que assentar no interesse da vítima”.
Tenha-se presente que a Assembleia da República discutiu recentemente (ver trabalhos parlamentares http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/14/01/017/2019-12-13/70?pgs=70&org=PLC) a questão de tornar obrigatória a tomada de declarações para memoria futura nos casos de violência domestica e não consagrou essa obrigatoriedade na lei.

E se virmos o Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, entregue no âmbito da referida actividade parlamentar, vemos que dele consta, entre o mais:

A relatora do presente parecer entende que existe uma contradição insanável entre o propósito que preside a estas iniciativas legislativas de proteger as vitimas de violência doméstica e a imposição que lhes é feita de prestarem declarações para memória futura. Se tal antecipação de prova visa proteger as vítimas, não deve ser admitida quando não corresponder à vontade das vítimas.
Por outro lado, caso se adoptasse tal solução, estar-se-ia, veladamente, a prejudicar o regime jurídico da recusa de depoimento contemplado no artigo 134º do Código de Processo Penal, segundo o qual “Podem recursar-se a depor como testemunhas: a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido”; b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação”.
Finalmente, não deve perder-se de vista o cuidado que é necessário quando se pondera o alargamento do regime jurídico das declarações para memória futura, não esquecendo que o principio da imediação é imposto pela própria estrutura do processo penal português e que lhe subjazem outros princípios tão relevantes como o do respeito pelo contraditório”.
Ora, sendo no caso concreto a intervenção do JIC a requerimento do MP, importa que o requerente aduza as razões subjacentes ao interesse da vítima que permitam, no quadro da tomada facultativa [“pode”], ao juiz aferir esse interesse protector e, perscrutando-o, realizar a diligência.
Pois resulta claro do texto de lei, face aos dizeres “pode”, tratar-se de diligência não obrigatória na fase de inquérito (ao contrário do que acontece nos termos do disposto no artigos 120º/2-d) e 271º/2 do CPP) pelo que as razões fundadoras da excepção ao princípio da imediação (consagrado no artigo 32º/5 da CRP e no artigo 355º do CPP) têm de ser apreensíveis, tanto que, nos termos do disposto nº 7, “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.
Como tal, no que importa ao presente caso, a faculdade [“pode”] de tomada de declarações antecipada tem se ser devidamente balizada, em face do seu caracter excepcional, e de forma a que a salvaguarda do princípio fundamental da imediação do julgador não saia fundamentalmente beliscado, sendo que, como se afirma no acórdão do TRL de 11/02/2012, proc. 689/11.5PBPDL-3, o critério de uma ponderação há-de encontrar-se entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo (cfr. artigo 16º/2 da lei 112/2009) e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.

Critérios que podem ser vistos à luz do entendimento do Exmo relator no acórdão supra citado que aqui se acolhem e a saber:

A) – A complexidade do processo, que em muito resulta da personalidade das pessoas envolvidas;
B) – A importância que a inquirição da queixosa tem para o apuramento da verdade em toda a sua extensão;
C) – A relevância que para a correcta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento;
D) – A circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência;
E) – O facto de essa inquirição, desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma significativa, a saúde psíquica da vítima;

No caso, não se vislumbra complexidade do processo e não se vislumbra que face ao tempo da pretendida inquirição – logo no início do processo – seja previsivelmente evitada a repetição da inquirição. Na verdade, a tomada de declarações para memória futura logo no início do processo, sem que dele resultem produzidos outros elementos de prova, potencia uma inquirição sem um conhecimento amplo do “tipo social” (Inês Ferreira Leite, Anatomia do Crime, nº 10).
E também não estamos perante uma situação em que a dilação temporal entre o relato dos factos em julgamento e o tempo da prática dos factos, por via do factor esquecimento, exija o relato antecipado.
Assim, no caso concreto, salvo o devido respeito pela posição da Digna magistrada do MP, não vemos qualquer especialidade no caso concreto que importe um juízo positivo à antecipação da produção de prova, no caso à tomada de declarações para memória futura, na medida em que nenhum dos referidos critérios se mostra evidente nos autos.
Pois se bastasse que o requerimento contivesse a invocação do conceito de vítima e a indicação das disposições legais habilitantes ao pedido, então em todas as situações, portanto sem nenhuma especificidade do caso concreto, teria de ocorrer a tomada de declarações para memória futura desde que estivesse em causa investigação crime de violência domestica.
E não é pelo facto de o arguido ter sido sujeito a prisão preventiva que os dados de facto se alteram. Aliás, face ao referido estatuto coactivo, o afirmado pelo MP “o arguido ameaçou a ofendida de que [não] ficava assim” deixa de ter potencial afetante do estado emocional futuro da vítima, antes tranquilizador.
Tanto assim bastante que o MP não o valorizou, porquanto não decidiu medidas de protecção à vítima, nos termos dos artigos 29º a 31º da Lei 112/2009, apesar da Ficha RVD-1L resultar a afirmação de “risco elevado
Assim, em face do requerimento do MP, a situação dos presentes autos não apresenta especificidade que importe derrogação do princípio da imediação do julgador.
Não se questiona que as vítimas de criminalidade violenta – e a violência doméstica é – sejam sempre vítimas especialmente vulneráveis (artigo 67º-A/1-b) e 3, do CPP) e como tal não se exija tratar-se de vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social (artigo 2.º/-b) da referida Lei 112/2009).
Mas o certo é que em face do que resulta do requerimento do MP não se vislumbra um quadro factual de gravidade tal que importe, sem mais, postergar o princípio da imediação.
E como recentemente decidiu o TRL, acórdão de 11/02/2020, proc. 689/19.7PCRGR-A.L1-5 ”Devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, havendo de procurar-se um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
– Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
– Se, no caso concreto, não obstante a gravidade dos factos e a circunstância de, das fichas de avaliação, resultar que esta é uma situação sinalizada com risco levado, a ofendida saiu de casa e está agora a residir noutra localidade estando o denunciado proibido de a contactar, não se vê razão para postergar o princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento.
Pelo que, em face do requerimento do MP, não se vislumbra razão para subtrair ao julgamento a imediação do depoimento da vítima, tanto mais que pode ser realizado sem a presença do arguido (artigo 352.º do CPP), pelo que indefiro o requerido.
Notifique MP
Devolva.”.
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3. Inconformado com essa decisão judicial, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso (que consta de fls. 29/35 Vº), cuja motivação a Digna Magistrada subscritora rematou com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1. O presente recurso por objecto o douto despacho proferido a fls. 72 a 74 que indeferiu a tomada de declarações para memória futura à vítima C. F..
2. O Ministério Público requereu a tomada de declarações para memória futura da ofendida vítima C. F., ao abrigo do disposto no art. 33º da Lei 122/2009, de 16/09.
3. No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrar o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº 1 al. a) do Código Penal.
4. A vítima deste ilícito é considerada vítima especialmente vulnerável por força do disposto nos arts. 67.º A, n. º1 alínea b) e 3, com referência a art. 1.º alínea j), todos do Código de Processo Penal, art. 26.º da Lei de Protecção de testemunhas, e art. 2.º alínea b) da Lei de Protecção às vítimas de Violência Doméstica.
5. Nos termos do art. 28º da Lei de Protecção de Testemunhas, as declarações de testemunha especialmente vulnerável devem ter lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e sempre que possível deve ser evitada a repetição da sua audição, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do disposto no art. 271.º do CPP.
6. O instituto da tomada de declarações para memória futura constitui exactamente um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da vítima e visa protegê-la do perigo de revitimização.
7. Com efeito, as boas práticas com vista a protecção da vítima de violência doméstica, sustentam a actuação do Magistrado do Ministério Público no sentido da tomada de declarações a vítimas, cuja avaliação de risco seja quantificada como elevada, nas 72 horas seguintes.
8. São estas as orientações hierárquicas de actuação dos Magistrados do MP, que têm ínsitas medidas de eficaz apoio à vítima no que respeita à problemática da violência doméstica, tendo em vista a protecção à vítima e a realização da justiça.
9. Não acompanhamos, pois, o entendimento do Tribunal a quo de que: “(…) e não se vislumbra que face ao tempo da pretendida inquirição – logo no início do processo – seja previsivelmente evitada a repetição da inquirição.
10. Na verdade, estando em causa crime de violência doméstica, tal como aconselham as melhores práticas sob a investigação desta criminalidade, os interesses de protecção da vítima sugerem e aconselham que se comece por recolher as suas declarações, se possível no prazo de 72 horas, sendo de salientar que muitas vezes, tal como sucede no caso em apreço, esta é a única testemunha dos factos o crime passa-se entre “quatro paredes”.
11. Considera o tribunal recorrido que (…) face ao referido estatuto coactivo, o afirmado pelo MP “o arguido ameaçou a ofendida de que [não] ficava assim” deixa de ter potencial afectante do estado emocional futuro da vítima, antes tranquilizador”.

Para além disso, considera o tribunal a quo que “Devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, havendo de procurar-se um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar”.
Com tais fundamentos indeferiu a tomada de declarações para memória futura.
12. Com o devido respeito, não podemos concordar com esta posição expressa pelo Mmo. Juiz de Instrução. Não desconhecendo a natureza excepcional da medida de tomada de declarações para memória futura referenciada no despacho recorrido e a regra de que, em princípio, toda a prova deve ser produzida em audiência de julgamento, porém, a verdade é que o legislador previu esta medida e expressamente para as vítimas de violência doméstica, como resulta do disposto no arT. 33º de tal Lei nº 112/2009, de 16/09.
13. Cremos que inevitavelmente terá de ser ponderado o interesse da vítima, que se encontra fragilizada, sendo este instituto da tomada de declarações para memória futura um dos mecanismos para evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil.
14. No caso destes autos resulta fortemente indiciado que a ofendida foi agredida com socos e murros na cabeça e com um candeeiro que provocou corte na mão, na sequência do que foi solicitada a presença das autoridades policiais no local. Na presença da polícia, ameaçou e injuriou e injuriou os agentes policiais. Os factos pelos quais o arguido se encontra fortemente indiciado terminaram a sua sujeição a prisão preventiva.
15. Pensamos que são precisamente os casos, como o dos autos, em que o arguido que, no decurso do mês de Junho recente, foi acusado da prática do crime de violência doméstica e, não obstante esse facto, agride ameaça a ofendida, inclusivamente na presença das autoridades policiais e que as exigências cautelares são tão elevadas que determinaram a sujeição do arguido à medida de coacção mais gravosa de prisão preventiva, que justificam a tomada de declarações para memória futura.
16. São precisamente para casos, como o dos autos, que se deve evitar, através das declarações para memória futura, o confronto entre a ofendida e o arguido em julgamento, até porque não sabemos qual a medida a que o arguido se encontrará sujeito em sede de julgamento.
17. No sentido que propugnamos, veja-se o recente acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo 1405/19.9PBBRG.G1, em que o arguido se encontrava também em prisão preventiva que refere o seguinte: “Dentro de todas estas condicionantes, afigura-se, pois, que a recolha de declarações à vítima para memória futura deve ser deferida, e realizando-se, conforme requerido, dada a condição pessoal da mesma, por forma a garantir que decorram com a desejável estabilidade emocional que àquela tem de ser propiciada.
18. Sobre a temática das declarações para memória futura, em vítima violência doméstica, ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (9ª secção), no processo 382/19.0PASXL.A.L1, de 04 de Junho de 2020 (...) que refere (...) atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do dever de protecção à mesma vítima consagrado no art.° 20.°, n.° 2 da Lei n.° 112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.
Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêem interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça”.
19. Pelo que se deixa exposto, o despacho ora em recurso violou o disposto nos arts. 24º do Estatuto de Vítima, 33º da Lei de Protecção às Vítimas de Violência Doméstica, 271º do CPP, 67º-A nº 1 al. b), e nº 3, com referência ao artº 1º, al. j), todos do CPP.
20. Nestes termos, deve ser conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogado o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita a inquirição para memória futura da ofendida C. F. conforme requerido foi pelo Ministério Público.
21. Mais se requerer que tal diligência seja determinada para realização com a maior brevidade possível, pois o prazo máximo da medida de coacção de prisão preventiva, na fase de inquérito, termina em 24 de Dezembro de 2020.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça!”.
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4. Na 1ª instância o arguido não respondeu ao recurso.
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5. Antes de determinar a subida dos autos a este TRG, o Mmº JIC, em 10/09/2020 sustentou a decisão recorrida, nos termos do disposto no Artº 414º, nº 4, sublinhando, em síntese, que a vítima quer visitar o arguido no EP, que desistiu da queixa apresentada, que aquela não pretende prestar novas declarações, e que, afinal “a vítima não tem qualquer receio do arguido” - cfr. fls. 39 / 39 Vº.
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6. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, nos termos que constam de fls. 51/53 Vº, secundando a posição do Ministério Público na 1ª instância, e adiantando pertinentes considerações sobre o assunto, as quais termina expressando o entendimento de que “o recurso do Ministério Público deverá ser julgado procedente, tomando-se depoimento para memória futura à vítima de violência doméstica, com observação do disposto no art.º 271 do CPenal e de acordo com o previsto no art.º 33, nº 1, da lei nº 112/2009, de 16/09, em face do seu estatuto de vítima de risco elevado e dos superiores interesses desta, evitando-se, assim, uma sua vitimização secundária e outros malefícios decorrentes de deslocações a juízo quando ela é pessoa com manifesta debilidade física e dependente de terceiros por lhe haver sido amputada uma perna e ser, por isso, cadeirante, sem que com isso se comprometa, obviamente, a realização da justiça e do princípio da imediação e da verdade material, revogando-se, consequentemente, o despacho contestado.”.
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7. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, veio o arguido responder, conforme consta de fls. 56/57.
Sustentando, em síntese, não poder subscrever o douto parecer do Ministério Público, estribar-se nas considerações expendidas pelo Mmº Juiz a quo no despacho de sustentação, que faz suas sem reserva, e acrescentando que a circunstância de a vítima já ter manifestado a vontade de não prestar declarações e a altíssima probabilidade de manter essa decisão tornaria a pretendida inquirição para memória futura um acto impraticável e, por isso, inútil, além de penoso para a vítima.
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8. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (3).
Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão que importa decidir é a de saber se se verificam, ou não, os requisitos legais para a tomada de declarações para memória futura à ofendida / vítima C. F..

Vejamos, pois.
Como se viu, o despacho recorrido indeferiu o requerimento do Ministério Público no sentido de serem tomadas declarações para memória futura à mencionada ofendida, alegadamente vítima de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nºs. 1, al. a), 4 e 5, do Código Penal, e bem assim de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos Artºs. 181º, nº 1, e 184º, com referência à al. l) do Artº 132º, nº 2, todos do Código Penal (e do qual é vítima F. C.).

Efectivamente, como claramente resulta do 1º interrogatório judicial de arguido detido a que foi sujeito o arguido J. G., levado a cabo no dia 25/06/2020 no tribunal a quo, cuja cópia do respectivo auto consta de fls. 4/15, e que culminou com a aplicação, ao mesmo arguido, da medida de colação de prisão preventiva, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 191º a 195º, 204º, al. c), 202º, nº 1, al. b) e 1º, al. j), do C.P.Penal, e 31º, nº 3, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, àquele são indiciariamente imputados os seguintes factos:

“1. O arguido J. G. e a ofendida C. F. contraíram casamento em - de Dezembro de 1992 e divorciaram-se em - de Janeiro de 2008.
2. O arguido e a ofendida tiveram um filho, J. D., nascido em - de Setembro de 1993.
3. Mesmo após o divórcio, o arguido e a ofendida continuaram a viver na mesma residência, sita na Rua …, na união de freguesias de … e de …, em Braga.
4. Desde há algum tempo a esta parte, mas pelo menos desde Janeiro do corrente ano, o arguido, a propósito de qualquer assunto ou motivo, e sem qualquer razão, tem vindo a gerar discussões com a ofendida assumindo para com esta uma postura agressiva.
5. No dia 24 de Junho de 2020, cerca das 01.30 horas, o arguido começou a bater violentamente na porta de entrada da residência da ofendida, sita na referida morada, exigindo, em tom exaltado, que a esta lhe desse medicação para as dores.
6. Assim que a ofendida lhe abriu a porta, o arguido desferiu-lhe vários socos, que a atingiram na zona da face e da cabeça, provocando-lhe hematomas e dores nas zonas do corpo atingidas.
7. Já no interior da residência, o arguido agarrou e quebrou um candeeiro, com o qual atingiu a ofendida na sua mão direita, provocando-lhe um corte.
8. Por tais lesões foi a ofendida assistida no local por elementos dos Bombeiros Voluntários de …, que, a seu pedido aí se deslocaram.
9. Chamados ao local, os elementos da PSP de Braga abordaram o arguido para se inteirar sobre o ocorrido, quando este ainda se encontrava no interior da residência.
10. No decurso dessa abordagem, o arguido, dirigindo-se aos agentes da PSP de Braga que o contactaram, designadamente ao agente F. C. disse, em tom arrogante e agressivo "Ainda vou ter de aturar estes filhos da puta".
11. Já depois de ter acedido a abandonar a residência, mas ainda no hall de entrada, o arguido, dirigindo-se novamente à ofendida, disse-lhe, em tom sério, "Isto não fica assim Puta".
12. Novamente instado a moderar o seu comportamento e ainda no mesmo local, o arguido dirigiu-se novamente aos referidos elementos policiais dizendo-lhes "Sois uma merda", tendo apenas cessado o seu descrito comportamento após lhe ter sido dada ordem de detenção.
13. Ao actuar da forma descrita agiu o arguido com o propósito concretizado de molestar o corpo e a integridade física da ofendida, sua ex-mulher, causando-lhe as lesões do tipo das verificadas, bem como causar-lhe medo e inquietação, fazendo-a recear que possa vir atentar novamente contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.
14. Com as palavras que dirigiu à ofendida, agiu ainda arguido com o propósito de concretizar de lhe causar vergonha e humilhação, atentando contra a sua honra e consideração bem como causar-lhe medo e inquietação, fazendo-a recear que possa vir atentar novamente contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.
15. Causando-lhe, com a sua descrita conduta, constante sofrimento físico e psíquico, humilhação, nervosismo e instabilidade emocional, indiferente ao respeito devido à ofendida, por ser sua ex-mulher e mãe do seu filho, ciente que dessa forma afectava de forma contínua e reiterada, a saúde física e psíquica da ofendida e que afectava a sua dignidade enquanto pessoa humana, o que quis.
16. Conduta em que persistiu, mesmo depois de ter sido acusado, no dia 2 de Junho do corrente ano, pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida, no âmbito do inquérito 163/20.9PBBRG.
17. Por sua vez, ao proferir as dirigir aos agentes da PSP as expressões de cariz insultuoso descritas em 9. e 11., agiu o arguido com o propósito concretizado de os ofender na sua honra, dignidade e consideração, pessoal e profissional.
18. O que quis, apesar de ter perfeito conhecimento de que os mesmos era agentes afectos àquela força policial, por se encontrarem devidamente uniformizados e identificados, sabendo ainda que, nas referidas circunstâncias, o ofendido F. C. aí se encontrava no exercício das suas funções e por causa delas.
19. Em todas as descritas condutas arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”.
Isto posto, com vista a dilucidar a questão que nos é colocada, há que convocar o quadro normativo aplicável à situação sub-judice.
Desde logo, e com relevância, as pertinentes normas legais constantes da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência das suas Vítimas.

Na verdade, como expressamente se prescreve em tal diploma legal:

- “As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.” - Artº 16º, nº 2;
- “Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública.” - Artº 20º, nº 3;
- “A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.” - Artº 22º, nº 1;
- “Os depoimentos e declarações das vítimas, quando impliquem a presença do arguido, são prestados através de videoconferência ou de teleconferência, se o tribunal, designadamente a requerimento da vítima ou do Ministério Público, o entender como necessário para garantir a prestação de declarações ou de depoimento sem constrangimentos, podendo, para o efeito, solicitar parecer aos profissionais de saúde, aos técnicos de apoio à vítima ou a outros profissionais que acompanhem a evolução da situação.” - Artº 32º, nº 1; e
- “O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.” - Artº 33º, nº 1.

Ora, como resulta das citadas normas legais, constantes da Lei nº 112/2009, nelas se consigna um regime formalmente autónomo (do previsto no Artº 171º do C.P.Penal) para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de crimes de violência doméstica.
E mau grado ali expressamente se mencionar que essa tomada de declarações para memória futura não é obrigatória, o certo é que o objectivo do legislador com a produção desse diploma legal foi o de procurar reforçar a tutela judicial da vítima, consagrando os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz, e bem assim uma protecção policial e jurisdicional célere e eficaz às vítimas de violência doméstica - cfr. Artº 3º, als. b) e h), daquele diploma legal.
Subjacente a tal diploma legal está, pois, claramente, o propósito de protecção da vítima de violência doméstica, quer em termos de vitimização primária, relacionada com as consequências directas do fenómeno que a atingiu, quer em termos da chamada vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias.
Com efeito, como bem sublinha Sandra Oliveira e Silva, in “A Protecção de Testemunhas em Processo Penal”, Coimbra Editora, 2007, págs. 110/111, “investigações empíricas neste domínio desde há muito têm evidenciado que o dever de testemunhar em audiência pública comporta um assinalável efeito de "vitimização secundária", em que a pessoa é levada a reviver os sentimentos negativos (medo, ansiedade, dor) experimentados aquando da infracção, efeito este especialmente intenso e pernicioso se em causa estiver um núcleo muito restrito de intimidade pessoal".
No mesmo sentido pronuncia-se Catarina Fernandes, in “Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno”, caderno especial do CEJ, de Arbil de 2016, disponível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Violencia-Domestica-CEJ_p02_rev2c-EBOOK_ver_final.pdf, quando, a propósito das declarações para memória futura no âmbito dos processos atinentes aos crimes de violência doméstica, afirma a págs. 165/166:
“Outra finalidade [das declarações para memória futura] consiste na protecção das testemunhas, pois, como é sabido, a intervenção no processo penal, sobretudo de vítimas especialmente vulneráveis, pode originar vitimização secundária, nomeadamente devido às conduções e ao número de vezes que aquela presta depoimento e é sujeita a outras diligências probatórias. (...) Embora a tomada de declarações para memória futura não seja obrigatória, importa notar que este regime especial consagra, entre outros, os direitos de audição e de protecção as vítimas de crimes de violência doméstica em processo penal, no intuito de evitar a sua vitimização secundária e repetida e quaisquer formas de intimidação e de retaliação. Assim, a pertinência desta medida deve ser apreciada em concreto, sendo que, na ponderação dos interesses em confronto, deve ser dada particular atenção à natureza e gravidade do crime e às circunstâncias em que foi cometido e às características da vítima, sobretudo se se tratar de vítima especialmente vulnerável”‘ (sublinhado nosso)
E como lapidarmente se refere no recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04/06/2020, proferido no âmbito do Proc. nº 69/20.1PARGR-A.L1-9, disponível in www.dgsi.pt, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Abrunhosa de Carvalho, “Esta vitimização secundária, no decurso do processo penal pode ocorrer nas relações que a vítima mantém com os operadores judiciários, aquando do seu contacto com as instâncias formais e informais de controlo (...), pela forma como é tratada nesses contactos e, para o que aqui nos interessa, pelas sucessivas reinquirições, que a obrigam a reviver a situação do crime, a pessoa do seu agressor e o sofrimento que experimentou aquando da vitimização primária.”.
Acresce que não podemos olvidar que nos casos do crime de violência doméstica a vítima é sempre considerada especialmente vulnerável, como inelutavelmente resulta das disposições conjugadas dos Artºs. 1º, al. j) e 67º-A, nºs. 1, al. b), e 3, do C.P.Penal, e 152º do Código Penal (4).
Razão pela qual devemos considerar, também, o que a propósito se preconiza na Lei de Protecção de Testemunhas (Lei nº 93/99, de 14 de Julho), diploma no qual se prevêem medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, mesmo que se não verifique o perigo referido no nº 1 do Artº 1º - cf. Artº 1º, nº 3, do mesmo diploma.
Estipulando-se no Artº 26º, nº 1, que "quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas."
Logo se acrescentando no nº 2 que a "a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.".

Prescrevendo-se, por seu turno, no Artº 27º:

“1- Logo que se aperceba da especial vulnerabilidade da testemunha, a autoridade judiciária deverá designar um técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o seu acompanhamento e, se for caso disso, proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado.
2- A autoridade judiciária que presida ao acto processual poderá autorizar a presença do técnico de serviço social ou da outra pessoa acompanhante junto da testemunha, no decurso daquele acto.”.

Acresce que, ainda nos termos do diploma legal citado, "durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime" - Artº 28º, nº 1.
E, "Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal." - Artº 28º, nº 2 (sublinhados nossos).
Normas de teor idêntico encontram-se plasmadas no designado “Estatuto da Vítima”, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro.
Desde logo, no Artº 17º, nº 1, segundo o qual “A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.”.
Depois, no Artº 21º, nºs. 1 e 2, al. d), que concede à vítima a medida especial de protecção de “Prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24º”.
E, em terceiro lugar, no Artº 24º, nº 1, que prescreve que “O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271º do Código de Processo Penal.”.

Finalmente não podemos deixar de trazer à colação a “Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica”, adoptada em Istambul, a 11/05/2011, aprovada entre nós pela Resolução da Assembleia da República nº 4/2013, de 14/12/2012, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 13/2013, de 11/01/2013, ambos publicados in Diário da República nº 14/2013, Série I, de 21/01/2013 - importante instrumento de direito internacional que tem como grande objectivo a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, sendo, quiçá, o tratado internacional com maior alcance para tentar minimizar esta grave violação de direitos humanos -, e que ajudou a conformar e a desenhar o ordenamento jurídico português nesta matéria, com especial destaque para o estatuído no Artº 56º, nº 1, segundo o qual “As Partes deverão adoptar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para proteger os direitos e interesses das vítimas, incluindo as suas necessidades especiais enquanto testemunhas, em todas as fases das investigações criminais e dos processos judiciais, o que implica designadamente:
a) Providenciar no sentido de as proteger a elas e às suas famílias e às testemunhas contra actos de intimidação e de represália, bem como contra a vitimização reiterada;
(...)
g) Sempre que possível, providenciar no sentido de impedir o contacto entre as vítimas e os perpetradores dentro dos tribunais e das instalações dos serviços responsáveis pela aplicação da lei;
(...)
i) Permitir que as vítimas testemunhem em tribunal, em conformidade com as regras previstas no direito interno, sem estarem presentes, ou pelo menos sem que o presumível autor da infracção esteja presente, nomeadamente através do recurso às tecnologias de comunicação adequadas, se as mesmas estiverem disponíveis.
(...)”.

Ora, não obstante este amplo quadro legal, o Mmº Juiz a quo indeferiu o requerimento do Ministério Público tendo em vista a prestação da declarações para memória futura da ofendida C. F., sustentando, em síntese, que:

a) O requerente da intervenção do JIC (in casu, o Ministério Público), deverá aduzir as razões subjacentes ao interesse da vítima que permitam, no quadro da tomada facultativa [“pode”], ao juiz aferir esse interesse protector e, perscrutando-o, realizar a diligência.”;
b) Considerando o carácter excepcional que assume a tomada de declarações para memória futura e neste contexto cuidando de salvaguardar o “princípio fundamental da imediação do julgador” e o equilíbrio que se deverá assumir defendendo, por um lado, o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo - cfr. artigo 16.º/2 da lei 112/2009 e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, e perseguindo os seguintes critérios orientadores “A) – A complexidade do processo, que em muito resulta da personalidade das pessoas envolvidas; B) – A importância que a inquirição da queixosa tem para o apuramento da verdade em toda a sua extensão; C) – A relevância que para a correcta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento; D) – A circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência; E) – O facto de essa inquirição, desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma significativa, a saúde psíquica da vítima;”,

Concluindo que, no caso vertente, não vêem preenchidos estes critérios – “não vemos qualquer especialidade no caso concreto que importe um juízo positivo à antecipação da produção de prova, no caso à tomada de declarações para memória futura, na medida em que nenhum dos referidos critérios se mostra evidente nos autos…” e “ … em face do que resulta do requerimento do MP não se vislumbra um quadro factual de gravidade tal que importe, sem mais, postergar o princípio da imediação”.
Salvo devido respeito, não podemos concordar com este entendimento demasiado formalista do Mmº Juiz a quo.
Na verdade, tendo em conta as normas e princípios jurídicos supra sumariamente expostos, e bem assim a situação concreta verificada nos autos, designadamente a factualidade indiciariamente imputada ao arguido, cremos que se impõe decisão diversa àquela.
Com efeito, como se viu, está o arguido indiciado pela prática, além do mais, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nºs. 1, al. a), 4 e 5, do Código Penal, no qual é ofendida a sua ex-mulher, C. F..
Ora, assumindo a ofendida a qualidade de testemunha especialmente vulnerável, por força dos citados preceitos legais, designadamente do disposto no Artº 28º da Lei de Protecção de Testemunhas, as respectivas declarações devem ter lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e, sempre que possível, deve ser evitada a repetição da sua audição, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do disposto no Artº 271º do Código de Processo Penal.
Acresce que, mau grado a natureza excepcional da medida de tomada de declarações para memória futura e a regra de que, em princípio, toda a prova deve ser produzida em audiência de julgamento, o certo é que, como se viu, o legislador previu expressamente esta medida para as vítimas de violência doméstica, como resulta do disposto no Artº 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, supra mencionada.
E, com franqueza, cremos que, no caso vertente, a tomada de declarações à ofendida, nos moldes requeridos pelo Ministério Público, justifica-se plenamente.
Pois, como resulta dos factos indiciariamente imputados ao arguido, este, no dia 24/06/2020, cerca das 01H30, dirigiu-se à residência da ofendida, começou a bater violentamente na porta de entrada e, após aquela lhe ter aberto a mesma porta, (o arguido) desferiu-lhe vários socos que a atingiram na zona da face e da cabeça, provocando-lhe hematomas e dores naquelas zonas do corpo, atingindo-a depois também com um candeeiro na sua mão direita, provocando-lhe um corte.
Mais se constatando que, tendo sido solicitada a presença das autoridades policiais, e não obstante a presença da polícia no local, o arguido não se coibiu de ameaçar e injuriar a vítima, dizendo-lhe em tom sério “isto não fica assim puta”.
Sucede que tais factos (5) determinaram mesmo a sujeição do arguido à medida de coacção mais gravosa, da prisão preventiva, a qual se considerou necessária a acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa, sendo certo que, ao que tudo indica, o arguido “reincidiu” naquela sua conduta delituosa mesmo depois de ter sido acusado, no dia 02/06/2020, pela prática de um crime de violência doméstica, na pessoa da ofendida, no âmbito do Inquérito nº 163/20.9PBBRG (cfr. ponto 16 da factualidade indiciariamente imputada ao arguido).
Ora, como justamente refere a Digna Magistrada recorrente, é precisamente para estes casos, como o dos autos, que se justifica (diremos, mesmo, que se impõe) a tomada de declarações para memória futura à ofendida, dessa forma se evitando, para além da vitimização secundária, o confronto entre a vítima (que obviamente se encontra fragilizada por virtude dos factos em causa) e o arguido em julgamento, tanto mais que se desconhece se, caso venha a ser submetido a julgamento, o mesmo continuará sujeito àquela medida de coacção, cuja alteração o próprio, aliás, já manifestou intenção de requerer, como se alcança do requerimento que apresentou nos autos no dia 16/07/2020 (cfr. fls. 47/48).
Não sendo despiciendo relembrar que, como decorre das regras da experiência comum, com o aproximar da(s) data(s) da audiência de discussão e julgamento, em situações como as ora em causa, os arguidos exercem ou tentam exercer o seu ascendente sobre as vítimas e demais testemunhas, impedindo ou tentando impedir ou constranger os respectivos depoimentos.
Acresce que, como resulta do ponto 20 dos factos indiciariamente imputados ao arguido no despacho de 25/06/2020 que lhe decretou a medida de coacção de prisão preventiva, a ofendida C. F. tem a locomoção debilitada, fazendo-se transportar em cadeira de rodas em virtude de ter uma perna amputada, pelo que a sujeição da mesma a uma única deslocação a tribunal, tendo em vista a prestação de declarações para memória futura, não deixaria de minimizar sobremaneira o seu sofrimento.
Assim sendo, ponderando todos os aludidos elementos, dando especial relevo aos direitos e interesses da ofendida amplamente tutelados pelos diplomas legais supra citados, afigura-se-nos que existem razões suficientemente fortes no sentido de se proceder à tomada de declarações para memória futura à ofendida C. F., nos moldes requeridos pelo Ministério Público, e com a brevidade que a situação impõe.
Subscrevendo-se inteiramente, com a devida vénia, o que a propósito se expendeu no recente Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/09/2020, proferido no âmbito do Proc. nº 91/20.8PBRGR-A.L1-9, relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Almeida Cabral, disponível in www.dgsi.pt:
“Assim, sendo certo que o artº 33º da citada Lei nº 112/2009 deixa nas mãos do juiz o “poder” de proceder à recolha das declarações da vítima para memória futura ainda na fase de inquérito, não é o mesmo um poder arbitrário ou que possa ser levianamente exercido, pois que a crescente gravidade dos factos neste, também, cada vez mais repetido tipo de crime exige de todos os operadores judiciários cuidados e preocupações acrescidas, ajustado sentido de oportunidade nas respectivas decisões, as quais deverão ser marcadas por um inequívoco fim preventivo, ainda que aferido em “excesso”, acautelando-se, sempre, as piores e imprevisíveis consequências.”.
Uma observação final para dizer ser totalmente inócuo, para efeitos do presente recurso, o requerimento da ofendida, apresentado nos autos no passado dia 16/07/2020, cuja cópia consta de fls. 26, na parte em que a mesma manifesta a intenção de desistir da queixa e menciona recusar prestar depoimento, conforme prevê o Artº 134º, nº 1, al. b), do C.P.Penal.
Na verdade, como já foi referido no despacho de 16/07/2020, cuja cópia consta de fls. 27, está em investigação nos autos um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nº 1, al. a), 4 e 5, do Código Penal, o qual reveste natureza pública, pelo que a declaração de desistência não releva minimamente, devendo os autos prosseguir o seu curso normal.
E quanto à invocada “intenção” de recusa de depoimento, nos termos previstos no Artº 134º, nº 1, al. b), do C.P.Penal, há que esclarecer, em primeiro lugar, que o momento próprio para se aferir da possibilidade de tal recusa é aquele em que há-de prestar-se o depoimento, e não ex ante, designadamente através de requerimento avulso, como sucedeu na situação em apreço.
Além do mais, a possibilidade de recusa de depoimento a que alude o citado preceito legal pressupõe que os factos em apreciação tenham ocorrido durante o casamento ou a coabitação, o que, salvo o devido respeito, face aos factos indiciariamente imputados ao arguido, manifestamente não sucede na situação em apreço.
Deve, pois, proceder o recurso, com a inerente revogação do despacho recorrido.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto e, consequentemente, revogam o despacho recorrido, determinando que o mesmo seja substituído por outro que admita a inquirição para memória futura da ofendida C. F., conforme requerido pelo Ministério Público, diligência essa a efectuar com a maior brevidade.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 12 de Outubro de 2020

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)



1. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
2. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo) ”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
4. Na definição que consta do citado Artº 67º-A, nº 1, al. b), do C.P.Penal, considera-se “Vítima especialmente vulnerável” a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;”
5. Note-se que no despacho em causa, que decretou a aludida medida de coacção, o tribunal referiu mesmo que “a actuação do arguido assumiu proporções de enorme gravidade”.