Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1484/21.9T8GMR.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA
INDEMNIZAÇÃO
DOAÇÃO
BOA-FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O princípio da intangibilidade da obra pública foi criado como forma de garantir a manutenção da posse por parte da administração pública quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público .
II – Todavia, a aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos em que a apropriação de prédios por uma entidade pública, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado.
III – Concluído o processo negocial, em que o particular cede gratuitamente ao município uma parcela do seu prédio para a construção de obra pública, aceitando o município em contrapartida propor a reclassificação da parte restante como solo apto para construção, o que veio a acontecer, a atuação do Município consistente na construção da obra pública assente numa doação formalmente inválida, tem de qualificar-se de boa-fé.
IV – Mostrando-se satisfeito o encargo imposto pelos autores para a cedência da parcela, nos termos do quadro negocial firmado, não têm eles direito a indemnização.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB, intentaram a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra o Município ... pedindo a condenação do réu a:

a) Reconhecer que o autor é dono e possuidor do prédio que identifica e que tinha antes das intervenções ali efetuadas pelo réu, a área total útil e disponível de 11267m2, destinada a construção;
b) Reconhecer que propôs ao autor a aquisição e integração no domínio público do terreno parte desse prédio necessário à construção do nó de ..., garantindo que as áreas sobrantes seriam reconhecidas legalmente como aptas para construção;
c) Reconhecer que ocupou ilegalmente e sem qualquer título legítimo 3398m2 do prédio do autor onde promoveu a construção do nó viário de ..., terreno esse que afetou definitivamente ao domínio público, não obstante essa falta de título;
d) Reconhecer que ocupou ilegalmente e sem qualquer título uma zona do mesmo prédio destinada a talude à margem da via ocupando a área de 829m2 e com uma rede ocupando mais 145m2 do mesmo prédio, áreas estas que também definitivamente integrou no domínio público;
e) Reconhecer que mercê das opções que consequentes à construção do nó rodoviário de ... as partes restantes do prédio do autor (representadas na planta junta sob o nº 6 sob as letras ..., ... e ... e com as áreas respetivamente de 2275m2, 500m2 e 4120m2) ficaram sem qualquer acesso direto à via pública, estando completamente isoladas, pelo que o autor ficou privado de a elas aceder ou as utilizar seja para que fim for, designadamente para fins construtivos;
f) Reconhecer que propôs ao autor por escrito a construção a expensas suas de um caminho no interior do nó, à custa da cedência pelo autor consentida de 861m2 do seu prédio, nos termos constantes nos documentados juntos, caminho esse indispensável a assegurar a manutenção da aptidão construtiva das zonas sobrantes do prédio do autor, e que se comprometeu a construi-lo;
g) Reconhecer que quando o autor contrapropôs, por escrito, algumas correções a essa proposta de compromisso, decidiu, por comunicações escritas de 22/4/2019 e 17/7/2019, emotivadamente e sem razão válida, pôr fim às negociações, declarando que perdera o interesse na construção do caminho e dando por encerrado processo de negociação, que assim rompeu unilateralmente e sem justificação capaz;
h) Pagar ao autor - contra a integração no domínio público da área global de 4572m2 - uma indemnização, a liquidar, correspondente ao valor real e corrente do mercado, no local, dessa área de terreno,
i) Construir o caminho público no interior do nó ocupando a área de 861m2 de terreno do autor, nos termos por este propostos e assegurando - por si ou em consequência de autorização por si requeridas - capacidade construtiva das áreas sobrantes do prédio designadas pelas letras ... e ... na planta junta;
j) Quanto à área sobrante do prédio do autor designada pela letra ... constituir a expensas suas uma servidão garantindo comunicação e o seu acesso direto à via pública, através de caminho com largura mínima de 4 metros, ou, em alternativa, e se isso não lhe for possível, pagar ao autor o valor desse terreno contra a entrega do mesmo ao domínio público, por preço a liquidar igualmente;
k) Pagar aos autores uma indemnização pelos danos não patrimoniais por eles sofridos no montante de 5.000,00 € a cada um deles;
l) Pagar as custas do processo, por lhe ter dado causa exclusiva.
*
Regularmente citado, o réu contestou defendendo-se por exceção, com a integração no domínio público da parcela com a área de 3.398 m2, por dicatio ad patriam, invocando ainda o principio da intangibilidade de obra púbilca, e, subsidiariamente, por aplicação do instituto do abuso de direito, impugnando a demais factualidade invocada pelos autores.
*
A final foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e em consequência, julgou procedente o pedido formulado sob a alínea a) no segmento em que pugna pela condenação do réu a reconhecer que o autor é dono e possuidor do prédio referido no art. 1º da petição inicial e que tinha antes das intervenções levadas a cabo pelo Réu, a área total e disponível de 11 267 m2.
No mais, julgou totalmente improcedentes os pedidos formulados pelos autores sob as alíneas b) a k).
As custas ficaram a cargo de autores e réu na proporção do decaimento, fixando-se 10/11 a cargo dos AA., e 1/11 a cargo do Réu, sem prejuízo da isenção de que beneficia.
*
Inconformados com a sentença, vieram os autores recorrer, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

1ª - Os autores pediram a condenação do réu Município ...:
a) A pagar-lhes uma indemnização correspondente ao valor de uma parcela de terreno de sua propriedade irregularmente integrada no domínio público, para construção de um nó viário na freguesia ... concelho ..., uma vez que o Município manteve com os autores contactos com vista à aquisição dessa parcela de terreno, desde meados de 2009, mas iniciou as obras em dezembro de 2018 e concluiu-as posteriormente sem pagar qualquer compensação aos autores por essa expropriação de facto;
b) A condenação do réu a construir um caminho no interior do nó, por ele projetado e nos termos por ele propostos, por escrito, proposta essa que o autor aceitou, bem como a reconhecer que, na parte não aceite da proposta, rompeu inesperada e imotivadamente as negociações, declarando que perdera o interesse na construção do caminho;
c) A condenação do mesmo Município a pagar-lhes uma indemnização por danos não patrimoniais (pedidos alíneas a) a k)).
2ª – A ação foi contestada pelo Município, alegando este:
a) Quanto ao pedido de indemnização por integração da parcela de terreno no domínio público, que esta não era devida por ter sido integrada nesse domínio por “dicatio ad patriam” e por “expropriação de facto por culpa do autor”, alegando ainda que tinha adquirido a parcela por “usucapião”, bem como por força da aplicação do princípio da “intangibilidade da obra pública”, porque o Município recebera essa parcela na sequência de doação do autor, em contrapartida de a área restante ser classificada no PDM do Município como solo urbano – espaço residencial de nível 1, contrapartida essa que a Câmara cumpriu;
b) Quanto à proposta de cedência gratuita de uma parcela de terreno do autor, destinada à construção de um caminho público, na zona sobrante do prédio, e aceite pelo autor, foram as exigências complementares por este feitas (pagamento de uma indemnização alternativa de valor dito exorbitante, para o caso de a obra projetada não vir a ser licenciada, e execução de obras no caminho ditas bastante onerosas), não podia prosseguir nas negociações porque o processo negocial estava esgotado e inconsequente, devido às posições ditas extremadas do autor;
c) Quanto a danos não patrimoniais alegou que os autores nenhuns danos dessa natureza sofreram, porque o Município se limitou a agir com bom senso, conforme as suas competências e no respeito pelo interesse público.
3ª – Produzida a prova documental e em audiência de julgamento, a sentença recorrida julgou a ação improcedente, salvo quanto ao pedido de reconhecimento da propriedade dos autores, com os seguintes fundamentos:
a) O terreno ocupado pelo Município foi doado verbalmente pelos autores, embora a doação fosse com encargos, visto que o Município assumiu, e cumpriu, o compromisso, em contrapartida, de classificar a área sobrante do terreno dos autores como área de construção, na sequência de proposta escrita dos autores nesse sentido, embora não tenha dado qualquer resposta escrita à proposta, sendo a transmissão do terreno para o domínio público válida, embora intitulada por força do princípio da “dicatio ad patriam” e do da “intangibilidade da obra pública”;
b) O abandono das negociações pelo Município foi justificado porque, embora tendo o Município feito uma proposta, e o autor declarado aceitá-la, o certo é que fez exigências complementares descabidas e o Município esforçou-se ao máximo para obter a cedência do terreno, para construção do caminho público, mas não o conseguiu porque os autores tentaram obter contrapartidas “impossíveis/incomportáveis” o que levou o Município a decidir que “nada mais tinha a negociar”;
c) Quanto ao pedido de pagamento de danos não patrimoniais a sentença é completamente omissa, talvez por ter entendido que esse pedido ficava prejudicado, atenta a improcedência dos demais.
4ª – O assim decidido é completamente inaceitável, porque injustificado em termos de direito, visto que a ação devia proceder, considerando os factos que se provaram e ainda que só estes fossem considerados, mas nem sequer é sustentável em termos de facto, uma vez que quanto a um grande número dos factos tidos por não se fez qualquer prova, e quanto a outros que se provaram inequivocamente, a sentença não os considerou, razão pela qual os autores interpuseram o presente recurso de apelação, que respeita quer à matéria de facto quer à matéria de direito.
5ª – Sem prescindir, a sentença teria já, na verdade ante a matéria de facto que fixou, de julgar a ação procedente, pois deu por provada a generalidade dos factos que conduzem necessariamente à procedência, a saber: a propriedade do autor sobre os terrenos identificados, a pretensão transmitida pela Câmara ao autor, de integrar no domínio público uma parcela desse prédio, assegurando que a parte restante e não destinada ao nó viário seria qualificada como terreno de construção, a ocupação pela Câmara Municipal ... do terreno que entendeu necessário para a construção do nó viário, sem qualquer formalismo e sem pagamento de qualquer indemnização; que o Município propôs ao autor a construção de um caminho, que seria público, no interior do seu prédio, em terreno nessa parte cedido gratuitamente, proposta que o autor aceitou, mas que se não concretizou porque o réu argumentou que resolvera romper as negociações, por entender incomportáveis as condições que o autor complementarmente exigia (factos 1 a 9, 11 e 12, quanto ao pedido de pagamento de uma indemnização e factos 13 a 24, quanto à aceitação da proposta do Município e ao abandono das negociações), e a simples prova dessa matéria era quanto bastava para a ação ter de proceder, sem mais, salvo no que respeita aos pedidos das alíneas e), i), j) e k).
6ª – Ainda sem prescindir e no que respeita à matéria de facto indispensável à procedência dos pedidos das alíneas e), i), j) e k), da prova efetuada resulta o suficiente para a mesma dever ser integralmente provada, não apenas porque a matéria de facto dada por provada e correspondente à contestação, ainda que se mantivesse não afastava a procedência da ação, como porque essa matéria foi dada por provada, sem produção de qualquer prova, uma vez que nuns casos não se provou de todo, noutros casos constitui apenas a reprodução do que estava alegado pelo réu, mas a que ninguém fez qualquer referência em julgamento (cfr. os factos 25 a 73).
7ª – Assim, os autores impugnaram no recurso a decisão sobre a matéria de facto relativamente a alguns dos factos que foram considerados provados e relativamente a alguns factos que não foram considerados provados, referindo os concretos pontos de facto que consideraram incorretamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo e do registo e gravação nele realizados, que impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto, e a decisão que a seu ver devia ser proferida sobre as questões impugnadas, cumprindo, em consequência, os ónus, e todos eles, impostos pelo artigo 640º do CPC.
8ª – Com efeito, em suma, e no que respeita à matéria de facto, os autores:
a) Aceitaram a que se mostra provada sob os números 1 a 24, 25, 26, 27, 29, 34, 38, 42, 43, 44, 45, 47, 52, 53, 54, 68, 69, 70, 72 e 73 confirmada quase totalmente pelos documentos juntos e pelos depoimentos das testemunhas que adiante serão referidos;
b) Mas não aceitaram, porque não se provou, umas de todo outras vezes em parte, devendo ser eliminada do probatório, a matéria dos factos 28 (acerca de qualquer esforço negocial), 30, 31, (acerca do conhecimento e consentimento da autora mulher, da pretensa intenção de doar e da contrapartida imaginada pela sentença), 32 (acerca da pretensa consumação da posição negocial anterior), 33 e 35 (quer porque se não provou quer porque a referência ao autor é manifestamente errada, devia ser feita ao Município), 36, 37, 39 a 41, 46, 48 a 51, 55 a 59, 60 a 67 e 71 (porque nenhuma prova se fez nem ao de leve sobre essa matéria, e porque nem legalmente seria admissível que a parcela se considerasse já integrada no domínio público);
c) Por outro lado, nenhum desses factos, corrigidos ou não que venham a ser, contrariam a inevitabilidade da procedência da ação, sucedendo ainda que a prova produzida através do depoimento, muito relevante, que está gravado, da testemunha Engª CC, que o tribunal desconsiderou de todo com o argumento verdadeiramente inadmissível de que sendo ela testemunha, não podia depor sobre questões que foram objeto do arbitramento realizado, assim violando os artigos 413º, 495 e 496º do CPC e de um outro depoimento, este da testemunha DD que justificou ter-se provado a matéria alegada relativa a danos não patrimoniais (cfr. os depoimentos transcritos na alegação).
9ª – Desse modo, para além da eliminação desse conjunto de factos (cfr. a conclusão 8ª alínea b)), os autores requereram que fossem aditados os factos 54-A (“Previamente à ocupação do terreno pelo réu o prédio dos autores estava assim classificado: al. a) No interior do nó 1405,00 m2 como solo urbano, com um inidice de construção de 1,5, 2533 m2 como solo rural (floresta de produção); b) Na parcela sobrante norte 7329 m2 como solo urbano (espaços residenciais de nível 1”) , 54-B (“A parcela sobrante norte, devido à zona de servidão non aedificandi do nó construído, que corresponde a um circulo de 150 metros de raio centrado na interceção dos eixos das vias, de acordo com a alínea r) do n.º 8 do artigo 32º da lei 34/2015 de 27 de abril, apesar de classificada pelo PDM como solo urbano, ficou sem capacidade construtiva”) e 74 (“Os autores, em consequência do comportamento do réu e ao tomarem consciência progressivamente e ao longo do tempo dos sucessivos atropelos aos seus direitos, sofreram incómodos e arrelias de que deram conta a pessoas conhecidas”).
10ª – Do conjunto dos depoimentos prestados, na medida em que dos mesmos resulta total ausência de prova sobre a matéria cuja eliminação se pediu, os autores julgaram-se dispensados de fazer a transcrição de todos os elementos da gravação, indicando, porém, o lugar e o modo da mesma, quer com referência ao que consta da ata da audiência e discussão de julgamento de 28 de novembro de 2022 (depoimento da Engª CC) quer da ata de audiência e discussão de julgamento de 15 de dezembro de 2022 (depoimentos das testemunhas EE, DD, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL e do depoimento de parte do autor AA).
11ª – Sem prescindir, os recorrentes, procurando concretizar sumariamente, as fontes que justificam essa alteração da matéria de facto, transcreveram:
a) Parcelas do depoimento de parte do autor AA (com saliência para a matéria que indicaram a negrito, em 00:02:33, 00:02:55, comprovando que entre as partes não houve negociações nenhumas, 00:06:50, comprovando que o Município acabou por nem sequer garantir a capacidade construtiva na parte restante, 00:07:01, 00:15:36, comprovando que nunca foi intenção dos autores doarem qualquer parcela de terreno;
b) Parcelas do depoimento da testemunha Engª CC (com saliência para a matéria que indicaram a negrito, em 00:02:06, 00:02:17, 00:02:40, 00:05:42, 00:09:35, 00:10:10, 00:10:25, 00:10:27, 00:11:35, 00:12:14, 00:13:02, 00:14:16, 00:19:01, 00:37:04, 00:37:28, 00:38:50, 00:39:04) de onde resulta claramente que a testemunha tem elevada competência técnica sobre a matéria e conhece bem o local, que avaliou o terreno, orientando-se pelo atual PDM, em vigor desde 7 de setembro de 2015, e que acolheu o pedido de reclassificação do prédio do autor apresentado em abril do mesmo ano, que antes do atual PDM o terreno estava classificado como espaço florestal de produção e que, conforme o atual PDM o terreno sobrante do autor, apesar de classificado como terreno de construção, não permite qualquer aproveitamento construtivo por estar onerado com uma servidão “non aedificandi”, acrescentando-se que por determinação da julgadora a testemunha juntou aos autos o depoimento escrito e uma planta;
c) Parcelas do depoimento da testemunha DD, factos  identificados no depoimento, designadamente a 00:06:47, 00:07:40, 00:07:55 e 00:08:51, de onde se concluiu inequivocamente que o comportamento do Município ... causou aos autores danos não patrimoniais;
d) Parcelas do depoimento da testemunha Engº HH (00:00:28, 00:00:49, 00:09:43, 00:11:09, 00:11:29, 00:12:09, 00:12:27, 00:12:53, 00:13:19, 00:13:52, 00:14:13, 00:15:16, 00:15:37, 00:16:24, 00:16:35, 00:18:18, 00:46:56, 00:47:32 e 00:51:01 de onde necessariamente decorre a prova de que esta testemunha técnico do Município, foi a única pessoa que em nome deste procurou junto do autor obter a aquisição do bem expropriado e a única pessoa que interpretou o único documento escrito subscrito pelo autor com o sentido de que este se propunha ceder o terreno gratuitamente, bem como a prova inequívoca do incumprimento das regras do processo de expropriação, a aceitação pelo autor da proposta do Município que pretendia receber por doação o terreno necessário para a construção do caminho público, e a confirmação plena do depoimento da testemunha Engª CC, no sentido de que o autor não pode construir no local o que quer que seja por força da servidão “non aedificandi”);
12ª – Do depoimento desta última testemunha resulta também, o que contraria frontalmente o que veio a ser decidido na sentença, que a magistrada que procedeu ao julgamento por várias vezes pediu à testemunha que explicasse porque não tinha sido formalizado por escrito qualquer acordo chamando-lhe a atenção para o facto da Câmara e o dever de responder por escrito, (extratos da gravação a 00:07:47, 00:08:01, 00:08:11, 00:08:29, 00:09:16, 00:11:09, 00:11:29, 00:11:44, 00:12:16, 00:12:27, 00:12:53, 00:13:19, 00:13:33, 00:14:13, 00:16:24 e 00:17:08) chegando a mesma magistrada a chamar a lembrar à testemunha que não era admissível aquilo a que chamou “uma alteração do PDM a pedido”, porque “essa atuação da Câmara no sentido da emissão de pareceres é uma questão que está sujeita a regras de legalidade imperativas, do domínio público (…) e não é para satisfação dos seus interesses egoísticos negociar num processo de expropriação” porque “eu também não posso propor a ninguém a procedência de uma ação no âmbito das minhas funções em contrapartida de uma coisa qualquer que me dê jeito”.
13ª – Sempre no sentido de que nem as testemunhas justificaram o apuramento dos factos cuja eliminação se requereu (factos 32, 33, 36, 40, 41, 46, 48, 49, 50, 51, 55, 56, 59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67 e 71) ou cuja alteração se pediu (factos 28, 30, 35, 37, 39, 57, 58 e 62) e de que nem as testemunhas depuseram por forma a justificar qualquer ideia de doação do terreno ao domínio público convoca-se o que a própria sentença a tal respeito referiu, resumindo os depoimentos prestados pela Engª CC, autora de um documento relevante junto aos autos de folhas 179 a 184, do depoimento de parte do autor AA, do depoimento da testemunha     GG, do depoimento da testemunha Engº HH (que, conforme resulta da sentença depôs no sentido de que, “a alínea e) do n.8 do artigo 32º da lei 34/2015 de 27 de abril veio impor uma zona de servidão “non aedificandi” do nó construído – que antes não existia – que corresponde a um circulo de 150 metros de raio centrado na inserção dos eixos das vias” (confirmando, assim, o depoimento da testemunha CC) .
14ª – No entanto, independentemente do modo como vier a ser julgada a impugnação da matéria de facto traduzida nas anteriores conclusões, isto é mesmo que essa impugnação viesse a ser julgada improcedente, nunca a solução de direito que a sentença adotou seria defensável, porque:
a) Não se provou de modo algum que o autor tivesse tido qualquer propósito de doar o seu terreno ao Município, nem essa conclusão se pode extrair do documento onde a sentença a “viu” (o autor numa exposição feita em 24 de abril de 2015 pediu à Câmara Municipal ... que o seu terreno fosse reclassificado como terreno de construção, concluindo esse pedido, com a seguinte declaração: “Aproveito (…) para propor ao Município a celebração de um acordo, visando a cedência de uma parcela do meu terreno para a construção do nó, em contrapartida da reclassificação da restante propriedade como área de construção”) com a agravante de que o réu nunca deu qualquer resposta a semelhante proposta, mesmo quando o autor embargou as obras invocando precisamente o facto de não as autorizar enquanto não tivesse um compromisso formal do Município;
b) Não faria, de resto, qualquer sentido que se pudesse qualificar como pagamento o ato do Município de considerar o terreno sobrante do nó como apto para construção, porque isso não passava de uma mão cheia de nada: ou a classificação era feita conforme a lei, e o Município nada pagava e nenhum favor fazia, ou não era admissível em face da lei, e ainda que alterado o PDM, isso nada valia, como, aliás, sucedeu, porque, apesar de alterado o PDM e de formalmente o terreno ser de construção, certo é que não é possível nele construir por força da servidão “non aedificandi”;
c) Provou-se que a expropriação levada a cabo pelo Município ... violou manifestamente a lei, por desrespeitar frontalmente os artigos 11º e 12º do Código das Expropriações;
d) O acordo invocado pelo réu e que a sentença subscreveu teria necessariamente para ser válido de revestir a forma de um contrato (artigo 1317º alínea a) do CC), que para ser válido teria de ser celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado (artigo 875º do CC) ou resultar de expropriação formal e regular, sem o que a apropriação pelo Município terá de ser necessariamente seguida do pagamento de uma indemnização, precisamente em homenagem ao princípio da “intangibilidade da obra pública”, e nunca do que foi chamado “dicatio ad patriam”;
e) Demonstrado ficou também que o Município rompeu imotivadamente as negociações que vinha mantendo com o autor para adquirir a este, gratuitamente, uma parcela de terreno destinada à construção de um caminho público (o argumento de que estavam esgotados os limites negociais face à demora na negociação é inconsequente e ridículo, porque a negociação foi iniciada, por iniciativa do Município, em janeiro de 2019 e fechada pelo mesmo Município logo a seguir, 22 de abril de 2019, ou seja três meses depois), do mesmo modo que ficou provado que o autor aceitou a proposta feita pelo Município no sentido de receber o terreno gratuitamente e infraestruturá-lo, para um caminho público, pelo que, nessa parte o Município teria de ser condenado a cumprir, porque o contrato se tornou perfeito.
15ª – A decisão da ação assentou fundamentalmente na interpretação feita pela sentença da afirmação do autor inserida na declaração dirigida à Câmara Municipal em 24 de abril de 2015 e atrás citada, mais do que como uma proposta, um verdadeiro contrato, logo definitivo, mas bastaria aplicar à situação os normativos legais devidos para excluir semelhante entendimento, que, de resto, ninguém confirmou, nem pode resultar de uma leitura do texto norteada pela boa fé.
16ª – Com efeito, nos termos do artigo 224º n.º 1 do CC a proposta feita pelo autor, porque tinha um destinatário, tornou-se eficaz quando chegou ao seu poder, sendo o efeito dessa eficácia ter-se o contrato por celebrado, desde que o mesmo tenha revestido a forma exigida (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, pág. 450) o que significa que não tendo sido concluído o contrato na forma devida, nunca podia ter-se por verificada a aceitação da proposta, e muito menos a formalização de um contrato, como a sentença pretende.
17ª – Por outro lado, e agora raciocinando em relação à proposta feita pelo réu ao autor, pretendendo que este cedesse gratuitamente ao domínio público uma parcela de terreno destinada à construção de um caminho público,        devidamente   infraestruturado,         essas   circunstâncias têm      como consequência que, após a aceitação, por escrito, da proposta do réu pelo autor, daí decorre a produção total de efeitos jurídicos do contrato, porque esse comportamento revela a vontade inequívoca de assumir o correspondente compromisso.
18ª – Como a sentença considerou provado, o Município ... (matéria de facto n.º 6) iniciou um processo de expropriação, começando por chamar todos os interessados pedindo-lhes que apresentassem propostas pelo valor pretendido para uma expropriação amigável do terreno necessário para a construção do nó de ..., e, muitos anos mais tarde, celebrou no âmbito desse processo de expropriação várias escrituras de transmissão da propriedade do solo para o Município, com todos os proprietários envolvidos com exceção do autor (matéria de facto artigo 29), o que significa quer que o Município discriminou injustificadamente o autor, não celebrando com ele, como fez com os outros proprietários uma escritura formal de cedência quer que conduziu um processo de expropriação de facto, de modo absolutamente irregular.
19ª – Com efeito, nos termos do artigo 11º do Código das Expropriações o Município ... deveria, mesmo antes de requerer a declaração de utilidade pública da expropriação, diligenciar adquirir o terreno do autor pela via do direito privado, mas era-lhe imposto que fizesse uma proposta de aquisição, tendo como referência o valor constante de um relatório pericial, que previamente deveria ter mandado elaborar, seguindo-se, mas sempre de modo impostergável, a resposta do autor, no prazo de 20 dias, que podia ser acompanhada de uma contraproposta, e só se essa resposta não fosse recebida pela entidade expropriante, é que esta poderia requerer a declaração de utilidade pública e posse administrativa da parcela, o que nada sucedeu, em violação clara da citada norma, bem como do artigo 12º n.º 1 alínea b) do mesmo Código e em clara violação do artigo 266º n.º 2 da CRP.
20ª – Sem prejuízo do exposto, nunca o Município podia pretender ter adquirido a parcela por usucapião, uma vez que não a possuiu, nem contando o prazo até hoje, pelo tempo suficiente para o efeito (15 ou 20 anos), nem obteve qualquer posse jurídica relevante, nem obteve a tradição formal, nem pode justificar a aquisição com qualquer ideia de abandono por parte do proprietário, pelo que jamais podiam ser considerados os factos provados, que traduzem esses conceitos, apenas deles resultando que o autor autorizou o Município a fazer obras no terreno, do que não relevam quaisquer atos de posse, mesmo que meramente precária, pois de posse nunca se pode falar sem alegação e prova de “animus possidendi”, que não existiu porque o Município nunca podia supor nem agir como verdadeiro proprietário, porque era o primeiro a saber que o não era.
21ª – Sempre sem prejuízo, a transmissão da propriedade de um bem imóvel, ou de qualquer outro direito real por usucapião só poderia ter como pressuposto uma forma de aquisição originária, que é absolutamente incompatível com a verificação, como no caso, de uma entrega voluntária pelo proprietário ao possuidor – o que excluiu qualquer invocabilidade da usucapião porque a detenção do imóvel foi consequência de um ato positivo e voluntário de consentimento do proprietário anterior e não de qualquer ato do possuidor à revelia desse proprietário (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Vol. II, pág. 124).
22ª – De facto, a consequência jurídica de os autores terem autorizado, nas condições descritas, o réu a ocupar aquela parcela de terreno com o fim de nela fazer obras para uma nova estrada, mais não é do que a prova evidente de que        a posse do réu é em nome alheio, porque a posse efetiva continuou radicada em quem deu autorização para aquela ocupação (cfr. neste sentido, Oliveira Ascensão,      Direitos Reais, 254 e Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, Vol. II, pág. 57).
23ª – De resto, a tradição, quando apenas de natureza verbal, não tem relevância jurídica para efeitos de aquisição por usucapião, nem esta pode resultar sequer da realização de quaisquer obras (acórdãos do STJ de 06.07.1976 e de 23.09.1993, BMJ 259,227 e 429,796) sendo certo que a entrega consequente ao consentimento do proprietário tem de qualificar-se como um ato de mera tolerância do titular do direito, de onde nenhum direito resulta para o beneficiário (Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1976, 70 e Vaz Serra, RLJ 114, 17), pelo que ela dá “lugar a que a posse não o seja no sentido rigoroso e próprio e não passe de uma simples detenção ou posse precária” (acórdãos do STJ de 29.06.1995, BMJ 448,313, e da Relação do Porto de 11.01.1999, Col. Jurisp. 1979, I, pág. 255).
24ª – Só assim não seria se tivesse ocorrido inversão do título de posse, mas esta só poderia ter-se por verificada se o detentor precário passasse a comportar-se pública e abertamente com “animus dominii” ou exercer atos formais e ostensivos de oposição contra aquele em cujo nome possuir (acórdão do TRC de 16.07.1985, Col. Jurisp. 1985, IV, pág. 55), sendo ainda de considerar que, só após a inversão do titulo de posse poderia começar a contar-se o prazo da usucapião (acórdão do STJ de 21.02.1991, A.J., 15/16, pág. 32).
25ª – Indespensável ainda a qualquer construção que defendesse a aquisição por usucapião daqueles bens pelo domínio público, seria alegar-se para se poder provar o abandono dos mesmos por parte dos autores, o que é também impossível, porque o abandono só pode resultar de um ato intencional do ante possuidor dirigido a pôr fim à posse (que não foi alegado sequer) seguido de um ato pelo qual a coisa possuída sai das mãos do possuidor, mas comprovadamente contra a sua vontade (Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1977, págs. 108 e 109, e acórdãos do TRC de 27.09.1988, BMJ 379,654, da TRL de 09.03.2010, em e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, Vol. II, pág. 233) para além da posição frontal da doutrina que sustenta que em consequência do abandono só podem adquirir-se coisas móveis (neste sentido, acórdão TRL 08.02.1978, Col. Jurisp. III, 1, pág. 93, já citado).
26ª – A posse pelo Município tão pouco se poderia justificar a partir de qualquer ideia de abandono, ou de desapossamento do autor, enquanto anterior proprietário, porque para (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 660), pois para uma ou outro sempre se exigem “atos de intenção suficiente para se afirmar que o novo possuidor colocou a coisa de baixo do seu poder” (Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, 4ª ed., 89/87), o que é impossível de configurar quando a constituição de posse ou apossamento resulta de um simples ato de autorização para fazer obras, como é o caso.
27ª – Ainda em relação ao incumprimento do Município, a sentença não se pronunciou, devendo fazê-lo, sobre a matéria da alínea e) do pedido (reconhecimento de que a parte sobrante do prédio do autor, depois de amputada das áreas destinadas à construção do nó, ficaram sem qualquer acesso assegurado à via pública) mas é devida pronúncia sobre essa matéria porquanto os acesso pré-existentes, embora fisicamente mantidos estão atualmente separados da via pública por um traço contínuo, que aparentemente significa a impossibilidade de o cruzar e atualmente (desde a publicação da lei 2110 de 19.08.1961, designadamente por causa do disposto no seu artigo 62º), as serventias das propriedades confinantes com as vias municipais são sempre precárias, não tendo os particulares direito a qualquer indemnização se e quando as autarquias entenderem eliminá-las (neste sentido o acórdão do STA de 16 de maio de 1991, relator conselheiro Neto Parra, proc. n.º 029227, 1ª Secção, do mesmo STA de 13 de janeiro de 2004, relator conselheiro Políbio Henriques, proc. n.º 040581, disponível em www.dgsi.pt , entre outros), o que implica e exige garantia expressa de estabelecimento desses acessos, aliás também como consequência do regime estabelecido para a própria expropriação, e, por isso a condenação do réu a assegurá-los.
28ª – Relativamente à pretensa justificação da aquisição da propriedade através da aplicação do instituto, estudado sobretudo na doutrina italiana, do que a sentença chama “dicatio ad patriam” importa referir que o instituto nem tem a virtualidade que a sentença lhe pretende atribuir (uma vez que não justifica qualquer transmissão de propriedade, mas apenas e muito diferentemente justificaria a constituição de uma servidão de uso público, e nunca mais do que isso) mas, ainda que assim não fosse, não apenas o instituto exigiria sempre uma situação de facto constituída ao serviço da coletividade, por inércia do proprietário, como o decurso de um prazo necessário para a aquisição por usucapião, de 20 anos, pelo menos, ou até, conforme alguma jurisprudência tem exigido, por tempos imemoriais, sendo manifestamente errada a doutrina que em contrário foi afirmada quer pela sentença recorrida, quer por alguns acórdãos com que pretende justificar-se (https://www.diritto.it/servitu-di-uso-pubblico-per-dicatio-ad-patriam-elementi-ostitutivi-e-prova/).
29ª – Com efeito, ao contrário do que se escreveu no acórdão do TRP de 20.05.2014, que a sentença cita, não é verdade que a doutrina e a jurisprudência italianas definam a “dicatio ad patriam” como “um meio específico e autónomo de ingresso no domínio público, fundado na renúncia do particular à sua propriedade”, como não é verdade tão pouco que, como nesse infeliz acórdão se escreveu que a palavra “dicatio” se traduza em português por “cedência” (a palavra “dicatio” significa em português literalmente, “dicação, “dedicação”; “dicação” vem do verbo “dicar”, que significa “tributar”, “dedicar”, “homenagear”, “sacrificar” (cfr. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, vol. IV, coordenapor por José Pedro Machado, 1981 e Grande Enciclopédico Portuguesa e Brasileira, vol. VIII).
30ª – A forma de ingresso no domínio público das parcelas do terreno propriedade do autor foi justificada pelos autores, na petição inicial, através do inequívoco reconhecimento da aplicação ao caso do princípio da ”intangibilidade da obra pública” que a sentença cita sem verdadeira consciência do seu sentido e alcance, pois os autores aceitam que a boa doutrina é aquela que sustenta que “os direitos dos administrados em relação aos entes públicos estão constrangidos pela necessidade de ser respeitado o princípio geral da chamada “intangibilidade da obra pública” cuja aplicabilidade tem como consequência a necessidade de não ser inutilizado o resultado da intervenção do ente público, coberta pelo pressuposto de que agiu por forma a satisfazer interesses públicos, imediatos e prementes que, enquanto tais, pela sua premência ou urgência devem sobrepor-se aos direitos dos particulares” e por isso aceitam que “a condenação do réu na restituição do prédio deve ser substituída por uma condenação correspondente à reparação dos prejuízos causados,   calculada pelas regras gerais            da responsabilidade civil extracontratual, conforme a teoria da diferença e as regras da equidade” (como decidiu, por exemplo, o acórdão do STJ de 05.02.2015 de que foi relator Abrantes Geraldes e o acórdão do mesmo STJ de 14.04.2015, do mesmo relator, nos processos, respetivamente 100/10, proc. 0TBVCD.P1.S1, 2239/10.1TVOAZ.P1.S2 da 2ª Secção, o primeiro disponível em www.dgsi.pt e o segundo em gve.mj.pt).
31ª - Simplesmente,   como   a jurisprudência tem inequivocamente defendido e a sentença exclui sem sentido algum, a aplicação desse princípio visa salvar o que devia decorrer de uma expropriação de facto irregular (a condenação na entrega do bem ao particular lesado), substituindo essa consequência normal pelo “pagamento de uma indemnização ao proprietário” porque “o reconhecimento aos autores do direito de propriedade da parcela acompanhado na condenação do réu na sua devolução e no pagamento de uma indemnização representaria   um resultado que o ordenamento jurídico não conseguiria absorver” (citados acórdãos), na linha, aliás, do que doutrinou Alves Correia: “a atribuição de uma indemnização (...) chancelará, na prática uma apropriação irregular ou uma expropriação indireta” (cfr. o que foi decidido precisamente contra o Município ..., no proc. n.º 342/12.4TBFAF.G2.S2, acórdão do STJ de 11.10.2018, relator Fonseca Ramos).
32ª – Por último, e no que respeita às consequências da aceitação pelo autor da proposta feita pelo Município ..., por contrato escrito, visando a cedência pelo autor a título gratuito de um acesso destinado à construção de um caminho público, dúvidas não restarão de que, tendo o autor aceite essa cedência, formalmente e igualmente por escrito, o contrato nessa parte ficou concluído, e, tendo o autor contraproposto que o caminho público deveria ser dotado de determinadas características indispensáveis ao uso, o Município ... não podia como fez encerrar as negociações e nada mais discutir, pelo que, nessa parte, deve reconhecer-se que o Município ... tem o dever de retomar as negociações que ilegitimamente abandonou.
Pugnam os Recorrentes pela procedência da apelação e revogação da sentença recorrida.
*
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando o Recorrido pela manutenção do decidido.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

i) da modificabilidade da decisão da matéria de facto;
ii) do mérito da sentença.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos

Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:

a) Factos provados oriundos da P.I. e da Réplica
1 - O Autor marido, casado com a Autora mulher no regime da comunhão de adquiridos, é dono e possuidor como bem próprio seu do seguinte imóvel, sito no lugar ..., da freguesia ..., do concelho ...: Prédio rústico denominado ... a confrontar de Norte com Loteamento ..., de Sul com MM, de Nascente com a Rua ..., e do ... com a NN, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...69 - ... e inscrito na matriz rústica sob o artº ...77.
2 - Tal prédio foi-lhe adjudicado e ficou pertencendo por escritura de partilhas celebrada em 27 de Agosto de 2004 e retificada por escritura de 9 de Abril de 2013, ambas perante a Notária daquela cidade ..., Dra. OO, partilhas essas através das quais o Autor, sua mãe, PP e suas irmãs, MM e QQ puseram termo à comunhão hereditária consequente ao óbito de, RR, falecido no dia .../.../2004, marido e pai dos outorgantes.
3 - O prédio em causa é o que está identificado sob a verba nº 20 da Relação de Bens que foi elaborada para integrar as referidas escrituras e está registado na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz respetiva em nome do Autor.
4 - O autor por si e antepossuidores, está na posse do prédio acima descrito desde há mais de 20 e 30 anos, posse essa adquirida sem violência alguma, e assim sempre mantida, à vista de toda a gente, na convicção de exercer direito próprio e de não lesar direitos de outrem, de modo contínuo e ininterrupto, sem oposição de ninguém e com ânimo de quem usa e frui coisas próprias e no próprio nome do exercitante.
5 - De facto, o Autor e antepassados, desde sempre, desde há mais de 20 e 30 anos, com exclusão de outrem, usaram e fruíram esse prédio, roçando mato e limpando-o com regularidade, cortando árvores e aproveitando lenha e os pastos para produção de ervas para o gado e amanho de frutos silvestres.
6- Ora, em meados de Julho de 2009, o Autor foi convocado, conjuntamente com outros proprietários vizinhos, pela Câmara Municipal ..., esta então representada pelo respetivo presidente Dr SS, para uma reunião que teve lugar nos Paços do Concelho, e em que lhe foi pedido que apresentasse uma proposta do valor pretendido para uma indemnização pela cedência de parte do seu referido prédio, necessária para a construção do nó rodoviário projetado e a executar pela Câmara na freguesia ....
7- Para o efeito, foi-lhe mostrada uma planta do local, onde estavam representadas a zona do seu prédio pretendida e, eventualmente, a expropriar e duas “zonas de proteção” da obra a empreender, zonas essas situadas na parte sobrante.
8- Dias após essa reunião, em 17 de Agosto de 2009, o Autor, requereu à Câmara Municipal ..., que lhe fosse certificada qual era a extensão concreta das referidas “zonas de proteção”, a fim de lhe permitir avaliar a compensação a propor.
9- Em 24 de Abril de 2015, o Autor, assinou a seguinte declaração dirigida ao Exmo. presidente da camara Municipal ...: “Na sequencia do pedido de discussão publica da proposta de revisão do PDM deste Município, venho por este meio requerer a reapreciação da classificação do meu terreno. Este terreno é confinante com via publica e com zona de construção. No entanto, a atual proposta de revisão do PDM classifica-o como solo rural -Espaço de Uso Multiplo Agrícola e Florestal. No meu entender esta classificação vem contrariar a atual característica desta propriedade e da sua envolvente. Esta situação fica ainda mais evidente com a proposta (patente na planta de ordenamento desta revisão) de construção de um nó de saída da via rápida ... - Guimarães, já que o território ficará drasticamente alterado quanto à sua topografia e ao nível de impermeabilização do solo. Assim sendo, pretendo que este Município reveja a classificação do meu terreno. Aproveito ainda esta exposição para propor ao Município a celebração de um acordo, visando a cedência de uma parcela do meu terreno para a construção do nó, em contrapartida da reclassificação da restante propriedade como área de construção”.
10 - Em Setembro de 2017, o Autor marido foi, de novo, convocado para comparecer na Câmara Municipal ..., o que fez, sendo-lhe então transmitido pelo Engº HH, Chefe da Divisão de Gestão Urbanística, e pelo Vereador Dr. TT que, a fim de honrar um compromisso assumido com a irmã do autor, a Câmara precisava de construir em parte das zonas sobrantes um caminho de acesso à rua, confinante a Norte com o nó de ..., pelo que se tornava necessário que o A. cedesse gratuitamente ao domínio público uma parcela de terreno da área sobrante com a área de 861 m2, nos termos de uma planta que a Câmara elaborou e lhe foi entregue então.
11 - Em Dezembro de 2018, as obras de construção do nó foram iniciadas e, compareceu no local o autor e, na presença de duas testemunhas, proibiu quaisquer trabalhos, “embargo” que foi respeitado e os trabalhos foram suspensos, embora não haja sido judicialmente ratificado.
12 - No entanto, chamado de novo à Câmara, para desbloquear a situação, o Autor acabou por não se opor a que as obras prosseguissem, como de facto, prosseguiram.
13 - Em 21 de Janeiro de 2019, o Autor foi convocado para a Câmara onde pelo Eng HH lhe foi entregue uma “minuta do contrato de cedência”, que submete à apreciação do autor, nos termos da qual o autor e esposa cederiam a título gratuito e para a execução de um acesso confinante a norte com o Nó de ..., a parcela de terreno com a área de 861 m2 e, como contrapartida daquela cedência, o Município ... se compromete a propor às infraestruturas de Portugal e ao Instituto de Mobilidade e Transportes, a aprovação e um plano de alinhamento de forma a viabilizar na parcela sobrante a realização de uma operação urbanística conforme o estudo anexo ao presente contrato, bem como à execução de um acesso e respetiva pavimentação com 4,00 metros de largura, confinante com o limite sul da parcela e compreendido entre este limite e o limite da plataforma do nó de .... Ficou ainda a constar da clausula quarta da minuta que o Município ... entrará de imediato na posse das parcelas supra referidas na clausula segunda, podendo destiná-las ao fim pretendido.
14. Com data de 11 de Fevereiro de 2019, o autor remeteu ao Município ... uma contra-proposta na qual declara que “aceita as condições inscritas na planta anexa por si rubricada, desde que incluídos na minuta do contrato todos os requisitos (e serviços por vós providenciados, que passa a enumerar:
- iluminação do futuro caminho publico; - saneamento e águas pluviais;
- canalização de águas;
- decapagem (30 cm) e desmatação na parte sobrante do artigo 377;
- Atividades económicas (AE) contemplando a possibilidade de 2 pisos de altura (10 -12 m) em futura construção no confronto com a Rua ..., possibilidade de R/C (comércio/serviços) e 2 pisos para habitação com respetivas garagens.
- Relativamente à parcela sobrante no interior do nó declara não ter interesse na mesma, pelo que propõe valor de atribuição de 30 000,00 euros.
- Deixa ainda clara a ideia de que, ainda que a camara Municipal ... subscreva todos os requisitos enumerados, só poderá assinar contrato após autorização superior das entidades competentes “infraestruturas de Portugal e Instituto de Mobilidade Terrestre”.
15- Nessa proposta de contrato, o autor afirmou a “disponibilidade e vontade de dialogar com V, Exa.” (o Senhor Presidente da Câmara) - diálogo esse que foi retomado, uma vez que o Autor foi convocado para uma reunião com o Sr. Presidente da Câmara, a ter lugar, como teve, no dia 14 de Fevereiro de 2019, nos Paços do Concelho.
16- Na reunião, o Sr. Presidente da Câmara Municipal ... sugeriu para ultrapassar a dificuldade posta pelo autor que a proposta de contrato se mantivesse nas suas linhas gerais, mas estabelecendo-se que no caso de não ser aprovada a solução urbanística, proposta e sancionada pela Câmara, esta indemnizaria o A. em termos que iriam ser objeto de avaliação, tudo como condição de que a obra prosseguisse livremente e sem quaisquer suspensões ou demoras.
17- E o Município ..., em princípios de Março de 2019 enviou ao autor a minuta correspondente à proposta do contrato onde no fundo e de novo, constava apenas que:
- se a solução urbanística prevista não fosse autorizada, a Câmara pagava ao Autor 35.000,00 €;
- a Câmara se obrigava a proceder à terraplanagem da parcela sobrante.
18 - Considerando inaceitável o assim proposto, o autor transmitiu essa não aceitação e contrapropôs, por sua vez e por escrito que o contrato de cedência tivesse o seguinte clausulado, representando os compromissos recíprocos (o segundo outorgante é o Município ...):
“CLÁUSULA PRIMEIRA
- Os primeiros outorgantes, na qualidade de únicos proprietários do prédio supra identificado cedem para a execução de um futuro caminho público confinante a Norte com o Nó de ..., uma parcela de terreno com a área de 755,50 m2 denominada parcela “E” e que se encontra delimitada a vermelho na planta topográfica anexa, a qual, depois de assinada pelos outorgantes, fica a fazer parte do presente contrato.
- A zona sobrante de terreno pertencente aos primeiros outorgantes ficará com acesso direto ao referido caminho público, obrigando-se o segundo outorgante a assegurar esse acesso.
CLÁUSULA SEGUNDA
- O segundo outorgante em contrapartida da cedência referenciada na cláusula primeira, compromete-se a construir e pavimentar o caminho público dotando-o de iluminação, saneamento, águas pluviais e águas canalizadas.
- O segundo outorgante obriga-se, ainda, a requerer às Infraestruturas de Portugal e ao Instituto da Mobilidade e Transportes, I.P. a aprovação de um Plano de Alinhamento de forma a viabilizar a realização de uma operação urbanística na parcela sobrante, conforme o estudo anexo ao presente contrato, nos termos legais e regulamentares aplicáveis.
CLÁUSULA TERCEIRA
- Caso não se mostre viável a aprovação da solução urbanística referida na cláusula anterior, o segundo outorgante compromete-se a indemnizar os primeiros outorgantes no valor de 120.000€ (cento e vinte mil euros) correspondente à perda de rentabilidade por não concretização das atividades económicas que seriam realizadas na parcela sobrante.
- Constitui, ainda, obrigação do segundo outorgante proceder à terraplanagem com a retirada das “raizeiras” da parcela sobrante do prédio objeto da cedência, mesmo que o projeto relativo às atividades económicas que os primeiros outorgantes pretendem não seja aprovado.
- O segundo outorgante, que já iniciou a obra no local, reconhecendo que o talude na confinância entre o novo caminho e o terreno sobrante se encontra construído por forma a exceder o limite resultante do citado documento n.º ..., obriga-se a proceder à retificação desse limite, por forma que este fique no ponto constante do citado documento n.º ..., quando proceder à terraplanagem.
CLÁUSULA QUARTA
O segundo outorgante desde já assegura aos primeiros outorgantes a concessão do necessário licenciamento para execução de edifícios de habitação e comércio na zona sobrante, concretamente com utilização de Rés-do-Chão para comércio e serviços e de dois pisos para habitação com respetivas garagens, bem com acesso direto ao novo caminho.
CLÁUSULA QUINTA
O presente contrato apenas produzirá efeitos após a aprovação do Plano de Alinhamento por parte das entidades competentes, nomeadamente das “Infraestruturas de Portugal e Instituto de Mobilidade Terrestre, I.P.”, e desde que seja aprovado o licenciamento da construção para atividades económicas.
CLÁUSULA SEXTA
- Caso não seja emitido documento bastante que assegure o licenciamento de construção de 4 frações para atividades económicas no prazo de 90 dias, contados de hoje, o presente contrato de cedência fica sem efeito.
- O prazo de conclusão no terreno de todas as condições referidas neste contrato, com a legalização integral da obra e seu acabamento é de 150 dias contados de hoje, embora possa ser prorrogado por prazo não superior a outros 150 dias, desde que ocorra qualquer imprevisto”.
19- Recebida essa contra-proposta, a Câmara Municipal ... decidiu, porém, recusar sequer discuti-la, rompeu toda a negociação e informou o autor, por escrito de 22/4/2019 que “esta autarquia não pode aceitar o contrato de cedência nos termos da minuta remetida, tendo em conta que os valores são exagerados e as obrigações daí resultantes para o Município não dependem só de si, isto para além das isenções que são da competência do órgão Assembleia Municipal”.
20- O Autor ainda procurou que a Câmara mantivesse de pé o negócio para o que sugeriu que fizesse uma contra-proposta correspondente ao valor que lhe parecia adequado e assumisse desde já os compromissos que por si podia assumir sem interferência de terceiros.
21- A Câmara Municipal ..., por comunicação escrita de 17/07/2019, informou que “face à demora na negociação/decisão (do autor) e tendo em conta o estado adiantado da empreitada em causa, este Município deixou de ter qualquer interesse na construção do pretenso caminho público e, em consequência, dá por encerrado o processo de negociação / contrato de cedência que envolvia (…) AA”.
22- Em 25 de Setembro de 2019, o Autor, através do seu advogado dirigiu à Câmara Municipal ..., uma carta na qual qualificava de grave a situação criada por esse fecho das negociações, e emprazava-a a que prosseguissem, atendendo a que:
- O Município ... já utilizara e integrara informalmente, no domínio público, sem pagar um centavo e sem título idóneo de transmissão, 3.398 m2 de terreno propriedade do Autor, e essa aquisição não podia subsistir, sem mais;
- o rompimento unilateral e imotivado das negociações em curso implicaria responsabilidade do Município, à luz do disposto nos artigos 164, 165 e 501º do Código Civil, por não ser comportável por regras de boa fé negocial.
23- Não foi, porém, possível fazer reverter a situação porque o Município ... se manteve irredutível na posição de que o assunto estava encerrado.
24- A obra está atualmente completamente acabada e afetada ao uso público.

FACTOS PROVADOS ORIUNDOS DA CONTESTAÇÃO:

25 - A construção do designado “Nó de ...” envolveu a negociação de quatro parcelas de terreno, melhor identificadas sob as letras ..., ..., ... e ... na planta topográfica;
26 - A parcela A, com a área de 11 267,00 m2, era propriedade da herança de RR, que foi partilhada por escritura celebrada, no dia nove de Abril de dois mil e treze, tendo sido aí adjudicado ao Autor marido, filho do autor da herança, o prédio rústico da verba 20 correspondente ao prédio rústico melhor identificado no artigo 1º da petição inicial;
27- Antes de requerer a declaração de utilidade pública, o Município ... diligenciou no sentido de adquirir as quatro referidas parcelas, necessárias à execução do designado “Nó de ...”, encetando as necessárias negociações para o efeito;
28- Em resultado desse esforço negocial, todas as parcelas foram adquiridas para o domínio público municipal, que as afetou à construção do referido “Nó de ...”, já aberto ao trânsito público;
29- Os respetivos proprietários receberam contrapartidas em dinheiro, celebrando as competentes escrituras públicas de compra e venda, à exceção dos Autores;
30- Assim, o Autor marido, enquanto proprietário, com o conhecimento e consentimento da esposa, sempre se dispôs a ceder ao Município ... a parcela a desanexar do seu prédio rústico, com a área de 3.398 m2, melhor identificada sob o doc. ..., mediante a contrapartida de a parte restante do seu identificado prédio rústico transitar, na próxima Revisão do PDM do Município ..., de “Solo Rural”, na categoria de “Espaço Florestal” para “Área de Construção”;
31- Em 24 de Abril de 2015, no âmbito da “Discussão Pública da Revisão do Plano Diretor Municipal de ...”, o Autor marido reclamou a classificação como Área de Construção da parcela sobrante do seu prédio rústico – cfr. doc. ..., que se junta e cujo teor, por brevidade, aqui se dá como integrado e reproduzido;
32- Nos exatos termos da parte final da referida reclamação, o Autor marido, afirma, expressamente, o seguinte, assim consumando a sua posição negocial anterior: “Aproveito ainda esta exposição para propor ao Município a celebração de um acordo, visando a cedência de uma parcela do meu terreno (para a construção do nó) em contra-partida da reclassificação da restante propriedade como área de construção” (itálico nosso) – cfr. doc. ...;
33- Até então, designadamente até à partilha celebrada, em 9 de Abril de 2013, pela escritura pública que é o doc. ... junto com a petição inicial, o Autor limitou-se a intervir, como herdeiro, em relação a toda a parcela A, que integrava a herança indivisa do seu falecido pai, a desanexar de artigos diversos;
34- Intervindo, nessa qualidade, na reunião a que alude nos artigos 7º e 8º da petição inicial e nos requerimentos que apresentou antes da partilha, tendo por objeto toda a área da parcela A integrante da referida herança;
35 - As demais parcelas que o réu (lapso da sentença que fez constar autor) negociou com os respetivos proprietários, que estavam integradas no Regulamento do PDM ... como “Solo Rural”, na categoria de “Espaço Florestal”, foram negociadas à razão de valores compreendidos entre €2.83/m2 e 10,72/m2, enquanto os Autores, com a contrapartida por si proposta, com a cedência de menos de um terço da área do seu prédio rústico (3.398 m2), conseguiam, no mínimo, decuplicar o valor de mais de dois terços da área sobrante (7.878,17 m2) – cfr. folhas 3/10 e 4/10 do doc. ...;
36- O que, na prática, significava uma contrapartida de valor substancialmente superior à que foi negociada com os demais proprietários de terrenos ocupados com a construção do referido nó-viário;
37- Com estes pressupostos negociais, propostos pelo Autor marido e aceites pelo Município Réu, no pressuposto de que a contrapartida podia ser dada, este propôs à Comissão de Revisão do PDM ... a classificação da parte sobrante do prédio rústico propriedade do Autor marido como “Solo Urbano”, na categoria de “Espaço Residencial de Nível 1”, proposta essa que foi aceite, como resulta do Regulamento do PDM ... revisto, tornado público pelo Aviso nº ...15, publicado no DR, 2ª Série, nº 174, de 7 de Setembro, tendo-se assim o contrato por concluído – cfr. doc. ..., que se junta e cujo teor, por brevidade, aqui se dá como integrado e reproduzido;
38 - A construção do designado “Nó de ...” e a respetiva localização e implantação no terreno foi do conhecimento dos Autores e do público em geral, mediante a colocação de um painel de grandes dimensões na confluência da Estrada Nacional ...06 com a Rua ..., que se desenvolve na sequência da Rua ..., que margina o prédio rústico dos Autores, do lado nascente;
39- O Réu, paga a contrapartida proposta pelo proprietário do terreno a ceder, deu como assente a cedência da parcela em causa, com a área de 3.398 m2, necessária à implantação da parte norte do referido nó-viário;
40- Daí que, com o conhecimento dos Autores, que passam na referida Rua ... quase diariamente, foram colocadas estacas, a demarcar a parcela a desanexar do prédio do Autor marido, com os limites que resultam das plantas que conheciam e se mostravam afixadas no referido painel, antes de a obra se iniciar;
41 - Adjudicada a empreitada para execução da referida obra pública, as máquinas da sociedade adjudicatária iniciaram e praticamente concluíram a mobilização do terreno da parcela cedida, a contento dos Autores, que continuaram a passar por lá, sem qualquer reclamação, desde que as mesmas começaram, o na 2ª quinzena de Novembro de 2018;
42 - A parcela de terreno envolvida na construção do “Nó de ...”, com a implantação, a verde, na planta junta como doc. ..., com a área de 3.398 m2, seria a necessária para a implantação do nó e das faixas de rodagem propriamente ditas e ainda para a construção de um talude, a norte, que resultou da implantação da via, que corre a cota inferior à do solo da parte sobrante do prédio dos Autores;
43- Porém, estava previsto que o referido talude, para que pudesse conter-se na área cedida, e também por razões de segurança, deveria ter um socalco a meia encosta;
44- Quando os Autores se aperceberam que o talude, após o desaterro das áreas destinadas às faixas de rodagem, estava a ser regularizado, com a implantação do referido socalco, opuseram-se a que assim fosse;
45- O que obrigou a empreiteira a fazer um plano de adaptação do talude, sem o referido socalco intermédio, e, consequentemente, a extravasar a área de cedência prevista, sem oposição dos Autores, que permitiram que as obras do talude prosseguissem;
46- Os Autores cederam a parcela em causa ao domínio público, com a área de 3.398 m2, e com a implantação melhor assinalada, a verde, na planta que é o doc. ... supra, para a construção do designado “Nó de ...”, mediante a contrapartida, já obtida, de a parte sobrante do prédio rústico de onde foi desanexada passar a ser classificado como “Solo Urbano” no Regulamento do Plano Director Municipal de ... revisto – cfr. doc.s 3 e 4;
47 - A parcela cedida foi devidamente demarcada, tendo sido executadas, no âmbito da referida empreitada de obras públicas, todos os trabalhos constantes do caderno de encargos, para a abertura dos troços do nó que se desenvolvem na parcela em causa, sua pavimentação, construção de taludes e guardas metálicas, que permitiram a sua afetação ao trânsito viário público, no designado “Nó de ...”, há muito inaugurado;
48 - A referida afetação ao uso público, mediante o trânsito permanente de veículos automóveis na parcela cedida, foi assim consentida pelos Autores, que por lá passam quase diariamente para visitar as propriedades do Autor marido;
49 - Beneficiando o proprietário, entretanto, da classificação, em zona de construção, da parcela sobrante, o que se traduz em uma vantagem significativa e substancialmente superior ao do valor da parcela cedida com a aptidão anterior à revisão do PDM do concelho ...;
50- No tocante à parcela, com a área de 3.398 m2, a ocupação da parcela cedida foi autorizada, sem quaisquer outras contrapartidas, tendo a posse da parcela sido transferida para o Município ..., de forma titulada, ainda que não formalizada, mediante a celebração de um acordo de cedência, consensualizado, de forma reiterada;
51- Ao ceder a identificada parcela de terreno, com a área de 3.398 m2, da sua propriedade, entretanto utilizada para a implantação da infraestrutura viária do designado “Nó de ...”, perdeu o Autor marido a posse sobre tal parcela de terreno;
52 - Da sua área inicial global de 11.267m2 (representada entre as letras ..., ..., ... e ...), o Município ocupou e inutilizou com a construção do “Nó de ...” a área de 2.957 m2 que inclui:
- zona AA representada no documento nº ...;
- zona destinada a talude à margem da via, com rede, ocupando uma área de 829 m2 o talude e 145 m2 a rede (zona representada no documento sob a letra ...);
- área sobrante a sul (interior do nó) com a área de 430 m2 ( zona representada no documento sob a letra ...),
53 - Tudo, no total de 3 387 m2, que corresponde sensivelmente à área cedida pelos autores.
54 - Restou, pois, a zona sobrante norte com a área de 7 880 m2 - zonas representadas no documento sob as letras ... e ....
55- Os Autores pretendem agora tirar proveito de uma situação por si criada, em prejuízo do Réu, depois de colhida a contrapartida por si exigida para a cedência gratuita da parcela;
56- O Autor marido, não só transmitiu a posse sobre a parcela de terreno necessária para a implantação do designado “Nó de ...”, como consentiu na atuação do Réu sobre aquela parcela de terreno, transformando-a profundamente com as obras e trabalhos na mesma realizados e que consistiram na construção do referido nó-viário, uma obra bilateral, de entrada e de saída na e da via-circular a ..., com grande envergadura económica e financeira;
57- Quanto à parcela com a área de 861 m2, foi o Réu quem propôs ao Autor marido a cedência de uma parcela, contígua e localizada a norte da parcela anteriormente cedida para a construção do “Nó de ...”, integrada já no domínio público, parcela essa com a área de 574 m2, melhor implantada, a vermelho, na planta junta como doc. ..., para aí implantar um caminho de acesso à “Quinta ...”, com a largura de 4 metros, como havia sido acordado aquando da negociação com a irmã e cunhado do Autor marido – cfr. doc. nº ..., cujo teor, por brevidade, aqui se dá como integrado e reproduzido;
58- O Município Réu pretendia construir o referido caminho de acesso, para reposição do caminho pré-existente, que havia sido suprimido com a construção do nó-viário, melhor implantado na planta junta como doc. ... e na planta de folha 3/10 do doc. ...;
59- Porém, o Autor marido, mais uma vez, intentou tirar mais vantagens negociais da situação, dispondo-se a ceder, também gratuitamente, não os 574 m2 para a construção de um acesso privado à “Quinta ...”, mas 861 m2, depois reduzidos a 755,50 m2, para implantar um caminho público, que servisse de infraestrutura urbanística da parcela sobrante do seu prédio, agora destinado a construção urbana;
60 - Mediante a contrapartida da viabilidade construtiva potenciada, que o Réu não poderia garantir, porque não dependia só de si, mas de outras entidades, prevendo uma indemnização alternativa de valor exorbitante, bem como a execução de obras bastante onerosas, como se pode ver da proposta e do proposto contrato de cedência que são os doc.s 8 e 11 juntos com a petição inicial;
61- Com a vantagem de transformar um caminho de acesso particular a favor da citada propriedade da irmã, por onde não teria serventia, em caminho público, infraestruturante da operação urbanística que pretende fazer na parcela sobrante do seu prédio rústico;
62- O Município ... Réu esforçou-se ao máximo para obter a cedência do terreno necessário à implantação do acesso particular à “Quinta ...”, cumprindo a obrigação assumida em escritura pública com os respetivos proprietários, propondo dois contratos de cedência, que os doc.s 7 e 10 juntos com a petição inicial consubstanciam;
63- Os Autores, sabendo da premência do Município Réu, tentaram obter contrapartidas impossíveis e/ou incomportáveis, propondo-se, inclusive, vender à Câmara a área de terreno no circulo interior da rotunda ..., inicialmente cedida, integrando já o domínio público, por €35.000,00;
64- Motivo por que o Município Réu, esgotados os seus limites negociais, com as sobreditas propostas, que foram recusadas pelo declaratário das mesmas, nada mais tinha a negociar, passada, entretanto, a janela de oportunidade, com a próxima finalização dos trabalhos da empreitada de “Construção de Acesso à Zona Industrial ... – .../...”;
65 - O Município Réu terá agora que encontrar um acesso particular alternativo à “Quinta ...”, depois de, face à demora na negociação/decisão por parte do Autor marido, ter deixado de ter qualquer interesse na construção do pretenso caminho público, que deixou de poder fazer no prazo da empreitada de construção do designado “Nó de ...”;
66- O Município Réu não tinha assim que continuar um processo negocial, que se mostrava esgotado, inconsequente, devido às posições estremadas adotadas pelos Autores;
67- Sendo certo que a parte sobrante do prédio rústico propriedade do Autor marido, apta para construção urbana, confronta com a Rua ..., sendo possível, sem prejuízo das valetas, manter o acesso que sempre teve à via pública;
68 - O prédio do Autor marido, melhor identificado sob o artigo 1º da petição inicial, é constituído agora apenas pela área da parcela sobrante, localizada a norte da parcela inicialmente cedida para a construção do “Nó de ...”;
69- Parcela sobrante essa que confronta, como confrontava toda a área do prédio, antes da construção do referido nó, com a designada Rua ..., uma via pública municipal que liga a freguesia ... à de ..., ambas do concelho ...;
70 - A referida parcela sobrante do referido prédio corresponde à soma das alegadas parcelas BB e FF da planta que é o doc. ... junto com a petição inicial;
71- Parcelas essas que são contínuas e que não se mostram discriminadas por qualquer operação urbanística, tendo assim acesso direto à Rua ...;
72- No que respeita à alegada parcela DD, no circulo interior da rotunda ... do nó, a mesma integra a área cedida, como se vê na planta junta como doc. ... e na planta 4/10 do doc. ...;
73- Parcela essa cuja área integra a área de 3.398 m2 inicialmente cedida, apesar de apenas ter sido integrada no domínio público a área de 3 387 m2 (menos 11 m2 do que a área cedida);
*
Ao invés foram dados como não provados os seguintes factos:
74- O autor aceitou iniciar negociações e, como ato prévio, pediu à Câmara que o informasse sobre se era possível alterar o PDM (onde o prédio se situava em zona exclusivamente agrícola) por forma a que a zona passasse a ser de construção, após a ablação da área a utilizar para o domínio público, uma vez que o preço que tencionava propor variaria conforme a zona sobrante mantivesse apenas aptidão agrícola ou passasse a ter aptidão construtiva, e, neste caso, pretendia também saber que tipo de construção (área de construção, número de pisos, destino da construção, acessos) seria permitido.
75- A Câmara comprometeu-se a prestar essas informações posteriormente por escrito, mas nunca até hoje transmitiu ao autor o que quer que fosse.
76- Assim ficaram as coisas até Setembro de 2017, mais de 2 anos depois do último contacto, sem resposta alguma da Câmara e sem quaisquer outros contactos ou iniciativas de um ou de outro lado.
77- O autor informou que concordaria em fazer a cedência, desde que a Câmara assumisse a obrigação de proceder à pavimentação do novo caminho e à sua iluminação, lembrando ainda que continuava a aguardar que lhe fossem prestados os esclarecimentos complementares quanto à área concreta a integrar no domínio público e a das zonas sobrantes atrás referidas, o que aqueles responsáveis se comprometeram a comunicar, embora nunca o tivessem feito.
78 - Essas áreas de terreno não ocupadas pela estrada ficaram sem qualquer acesso direto à via pública, completamente encravadas, e, por isso, de nada serve pertencerem ainda ao Autor, porque ele não pode usá-las, servir-se e ocupá-las, nem lhes tem acesso sequer, pois:
79 - A área sobrante (letra ...) a Norte-Poente (4120m2) e a área sobrante a Norte-Nascente junto à Rua ... (2275m2) (letra ...) teriam como único acesso possível o caminho público que acabou por não ser construído;
80- A área sobrante a Sul (cerca de 500 m2 - letra ...) ficou sem qualquer acesso e isolada, pois a Norte, Poente e Nascente ficou a via pública sem entradas nem saídas e a Sul o prédio de uma vizinha, MM (letra ...) para onde essa área não tem, porque nunca teve, qualquer acesso.
81- O prédio do Autor dispunha antes das obras em toda a sua extensão de acesso franco, direto e cómodo à via pública, ao longo de várias dezenas de metros e ficou dele privado, na totalidade,
82 - E essas zonas não foram dotadas pela autarquia de qualquer acesso direto à via pública.
83 - Quer a zona BB, quer a zona FF só podiam ter acesso pelo caminho que a Câmara propôs construir mas não construiu (representado a vermelho nessa planta).
84 - Do projeto camarário que deu lugar ao nó de ..., já concluído e entregue ao uso pelo público em geral, não constam quaisquer acessos da via pública às zonas sobrantes.
85 - Ao tomarem consciência progressivamente e ao longo de vários anos dos atropelos aos seus direitos, passaram inúmeras noites sem dormir, sofreram inúmeros incómodos e arrelias sem conta.
*
3.2. O Direito
3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artigo 662º, do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Os Recorrentes consideram que houve erro na apreciação da prova quanto aos factos provados 28, 30, 32, 33, 35, 36, 37, 39, 40, 41, 46, 48, 49, 50, 51, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67 e 71, considerando ainda que deveria ser aditada à factualidade provada três factos.
Justificam que do conjunto dos depoimentos prestados resulta a ausência de prova sobre a matéria cuja eliminação pedem ao passo que há factos relevantes que resultaram provados e que devem ser aditados ao elenco dos factos provados.
Apreciando.
Quanto ao facto 28, consideram os impugnantes que ninguém referiu nem está documentado qualquer esforço negocial feito pelo réu, pelo que essa expressão deve ser eliminada.
Não lhes assiste razão.
De todo o encadeamento dos acontecimentos, expresso na troca epistolar e assim relatado pelas testemunhas GG e HH surge evidente o esforço desenvolvido pelo município com vista ao acordo negocial com o autor.
Quanto ao facto 30, entendem os impugnantes que ninguém referiu que o autor marido alguma vez tenha agido “com conhecimento ou consentimento da esposa” ou que “sempre se dispôs a ceder ao Município ... qualquer parcela de terreno” ou que negociou ou apontou qualquer “contrapartida”, pelo que essas referências devem ser eliminadas do texto correspondente.
Também aqui não têm razão.
O conhecimento e consentimento da esposa é facto que se pode presumir com meridiana segurança da atuação proactiva do autor seu marido, assomado da circunstância de a mesma não ter manifestado mesmo tacitamente a sua discordância ou demonstrado ignorar tais factos, o demais relativo à cedência e respetiva contrapartida resulta do depoimento das testemunhas GG e HH.
No facto 32, a descrição contida no documento conjugada com as diligências que haviam sido encetadas, autoriza a ilação de se estar perante o consumar de uma posição negocial anterior, resultando do próprio texto do documento que o fazia “em contrapartida da reclassificação da restante propriedade como área de construção”.
O facto 33º, mantém-se, desde logo, porque admitido pelo próprio autor.
O facto 35º, além do manifesto lapsus linguae, onde consta autor quis-se dizer réu, o mais consta do documento que se cita.
O facto 36º, é a conclusão lógica resultante de simples cálculo aritmético.
Facto 37, a alteração da classificação do PDM como decorre, aliás, de toda a documentação, foi resultante do proposto pelo autor e aceite pelo réu, resultando indubitavelmente do documento nº... a proposta do autor, em termos de contrapartida, e do documento nº... a sua aceitação por parte do município que nessa conformidade propôs à Comissão de Revisão do PDM ... a classificação da parte sobrante do prédio rústico na categoria de “Espaço Residencial de Nível 1”, proposta essa que foi aceite, como resulta do Regulamento do PDM ... revisto, tornado público pelo Aviso nº ...15, publicado no DR, 2ª Série, nº 174, de 7 de Setembro,
Não têm razão os recorrentes na impugnação do facto 39º, na medida em que a contrapartida foi atendida pelo município.
Factos 40º e 41º a desatender a impugnação por irrelevante para a solução jurídica do caso.
Facto 46º, resulta demonstrado quer em razão dos documentos nºs ... e ... quer do depoimento das testemunhas GG e HH.
Quanto aos factos 49º, 50º, 51º, 55º a 67º, 71º, a sua demonstração resultou do conjunto dos depoimentos das testemunhas do réu, que com clareza relataram que estão em causa três situações distintas, em cada uma das três parcelas do prédio rústico, e o desenrolar dos acontecimentos quanto a cada uma delas.
Assim, quanto a esta parte da impugnação, não lhes assiste razão.

Consideram ainda os impugnantes que devem ser aditados os seguintes factos:

54 A – Previamente à ocupação do terreno pelo réu, o prédio dos autores estava assim classificado:
a) No interior do nó: 1405,00 m2 como solo urbano, com um índice de construção de 1,5; 2533 m2 como solo rural (floresta de produção);
b) Na parcela sobrante norte: 7329 m2 como solo urbano (espaços residenciais de nível 1).
54 B – A parcela sobrante norte devido à zona de servidão “non aedificandi” do nó construído, que corresponde a um círculo de 150 metros de raio centrado na interceção dos eixos das vias, de acordo com a alínea r) n.º 8 do artigo 32 da Lei 34/2015 de 27 de abril, apesar de classificada pelo PDM como solo urbano, ficou sem capacidade construtiva.
74 – Os autores, em consequência do comportamento do réu, e ao tomarem consciência progressivamente e ao longo do tempo dos sucessivos atropelos aos seus direitos sofreram incómodos e arrelias, de que deram conta a pessoas conhecidas.
Os pontos enumerados em 54º A e B, assentam no testemunho da Engª CC, que a pedido dos autores fez uma avaliação das parcelas, o ponto enumerado em 74, com essencialidade no depoimento de DD.
Sobre a classificação e o valor real e corrente do mercado do prédio do autor, considerando as várias parcelas em que o mesmo se decompõe, o tribunal a quo baseou-se no Relatório Pericial de fls. 106 a 119, do qual resulta que o Sr. Perito procedeu à avaliação de 3 áreas de terreno, a saber:
- a zona “sobrante norte”, com a área de 7880 m2, à qual o Exmo. Perito atribuiu o valor parcial de 259 252,00 euros, correspondente a 32,90 euros/m2 (avaliando esta parcela como terreno apto ou destinado a construção, de acordo com o PDM em vigor));
- a zona ocupada pela via, com a área de 2957 m2, à qual o Exmo Perito atribuiu o valor parcial de 6 653,25 Euros, correspondente a 2,25 Euros/m2 (avaliando esta parcela como Solo Rural - Espaços Florestais -Espaços Florestais de Produção);
- a zona “sobrante sul”, com a área de 430 m2, à qual o Exmo. Perito atribuiu o valor parcial de 967,50 Euros, correspondente a 2,25 Euros/m2.
Nos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito, a fls. 127 a 131, 140 a 143, este esclarece que:
- a área sobrante norte, tem acesso direto à via publica, confrontando do lado nascente com a Rua ...;
- a área de 2957 m2, ocupada pela via inclui a zona destinada a talude e à rede, demarcando-a da parte sobrante a norte com a área de 7880 m2;
- a área ocupada pela via, incluindo talude e rede é de 2 957,00 m2 e, portanto inferior à área cedida de 3 398,00 m2. Admite que a área referida ( 3 398,00 m2) inclua a área ocupada pela via ( 2 957,00 m2) e a parcela no interior do nó (430 m2), que dá uma área de 3 387,00 m2, sensivelmente igual à área cedida;
- se a parcela sobrante a norte fosse avaliada de acordo com a anterior classificação - Solo Rural, na categoria de Espaço Florestal - o valor avaliativo seria 2, 25 Euros/m2.

Apresentado e escrutinado o relatório pericial, não há fundamentos para o desatender.
Ouvido na íntegra o depoimento da testemunha CC, é inegável o caracter “pericial” do mesmo, no sentido em que a testemunha não relatou factos do seu conhecimento direto, antes o resultado da avaliação que fez ao prédio enquanto perita avaliadora.
Na verdade, o depoimento não incidiu sobre factos de que a testemunha tivesse conhecimento direto, mas redundaram na apreciação técnica dos factos em causa, pretendendo contrariar os cálculos avaliativos efetuados no relatório pericial, pois que do parecer técnico por si elaborado resultam cálculos avaliativos completamente diversos dos constantes do relatório pericial.
Ora, a prova pericial caracteriza-se fundamentalmente pela singularidade do seu objeto: a perceção e indagação de factos que, atenta a sua especificidade técnica, o julgador não domina. Por essa razão, à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente do de outros meios de prova. A especial relevância do juízo científico está necessariamente relacionada com a especial credibilidade da perícia que o legislador entendeu estar ligada à sua natureza oficial. Ou seja, se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz já o juízo científico que encerra o parecer pericial só deve ser suscetível de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva. Dever que deve ser cumprido com particular escrúpulo no tocante a juízos científicos dotados de especial densidade técnica ou obtidos por procedimentos cuja fiabilidade científica seja universalmente reconhecida.[1]
Pressupondo a ordenação da prova pericial a insuficiência de conhecimentos do juiz, é difícil que este se substitua inteiramente ao perito para refazer, por si, o trabalho analítico e objetivo para o qual não dispõe de meios subjetivos. Por isso, a não ser que sobrevenham novos e seguros elementos de prova, maxime uma nova perícia, a liberdade do juiz não o autoriza a estabelecer, sem o concurso dos peritos, as razões da sua convicção.
Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 08/11/2012 “o que justifica a intervenção técnica no processo é a existência de matéria de facto que envolve questões ou dificuldades de natureza técnica cuja solução depende de conhecimentos especiais que não estão ao alcance do tribunal: se esses conhecimentos não estão ao alcance do tribunal, convenhamos que não será fácil ao tribunal afastar as conclusões de quem os tem, a não ser que elas estejam ostensivamente erradas, careçam de justificação, forem incongruentes com meios de prova inequívocos”[2].
Daí que a máxima de que «o juiz é o perito dos peritos» deva ser interpretada cum grano salis. Quanto ao direito, o juiz é por definição tão apto como o autor do parecer, ou seja, em princípio conhece tão bem o direito, as normas, os critérios de interpretação ou os princípios jurídicos como o autor do parecer e por isso não se lhe levanta dificuldade em discordar fundadamente; mas em relação aos conhecimentos técnicos as coisas não se passam da mesma maneira, o juiz, em condições normais, não dispõe de conhecimentos bastantes para poder inverter ou recusar as conclusões do parecer quando estas se baseiam e fazem aplicação de conhecimentos técnicos ou científicos.
Acresce que, no caso, o parecer técnico elaborado pela testemunha foi subtraído à intervenção das partes na definição do seu objeto e na fiscalização da sua fundamentação.
Em suma, porque este depoimento visou, em exclusivo, por em causa o resultado do relatório pericial, nenhum relevo probatório lhe pode ser atribuído.
Quanto aos incómodos e arrelias e suas causas, ressalvado o devido respeito, nem do trecho do depoimento da testemunha DD extraído pelos impugnantes os mesmos resultam demonstrados.
Daí que os factos que se pretendem ver aditados, não devam ser tendidos.
Resulta, pois, do exposto, que não houve uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, improcedendo a impugnação da decisão da matéria de facto.
*
3.2.2. Do mérito da sentença

Os recorrentes impugnam, ainda, a solução de direito adotada na sentença recorrida.

A sua discordância divide-se em duas partes, assim fundamentadas:

a) Ocupação ilegal e sem título de uma parcela de terreno do prédio do autor e consequente obrigação de indemnizar o proprietário;
b) O rompimento imotivado por parte do Município das negociações para a construção de um caminho no interior da zona sobrante do prédio do autor e para a atribuição de potencialidade construtiva nessa zona sobrante com o reconhecimento do dever do Município a prosseguir as negociações interrompidas.

Extrai-se do acervo fáctico apurado que o autor, no quadro das negociações estabelecidas com o réu, se dispôs a ceder ao Município a parcela a desanexar do seu prédio rústico, com a área de 3.398 m2, mediante a contrapartida de a parte restante do prédio rústico transitar na revisão do PDM, de solo rural para área de construção.
A proposta foi aceite, tendo o Município apresentado à Comissão de Revisão do PDM a classificação da parte sobrante do prédio como “solo urbano”, na categoria de “Espaço Residencial de Nível 1”, o que foi viabilizado, como resulta do Regulamento do PDM ... revisto, tornado público pelo Aviso nº ...15, publicado no DR, 2ª Série, nº 174, de 7 de Setembro.
A partir daí, o Município tomou posse da parcela, tendo começado por colocar estacas a demarcar a parcela do restante terreno do autor, dando inicio à obra, que se mostra já concluída.
As partes não reduziram a escrito o acordo de cedência da parcela nem celebraram escritura publica.
Não obstante a inobservância da forma legal, aceitam os autores o ingresso no domínio público da parcela de terreno através do reconhecimento da aplicação ao caso do princípio da “intangibilidade da obra pública”.
O que reclamam é o pagamento de uma indemnização.
Saber se a ela têm direito é o que apreciaremos de seguida.
A atividade da administração publica deve nortear-se pelo principio constitucional do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos – artigo 266.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Um desses direitos, que tem aliás proteção constitucional, é o direito de propriedade privada (artigo 62.º da CRP). E, como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, um dos elementos essenciais do direito de propriedade consiste no direito de não se ser privado dela (…), de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação[3].
Por isso mesmo se consagra no nº2 do art.º 62, da CRP que a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
Em suma, o direito de propriedade apenas pode ser limitado nas situações excecionais tipificadas na Constituição.
Uma dessas situações é a expropriação que, nas palavras de Marcello Caetano, consiste na “relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados imóveis em um fim específico de utilidade pública, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa a cujo cargo esteja a prossecução desse fim, cabendo a este pagar ao titular dos direitos extintos uma indemnização compensatória.”[4]
Não cumpre aqui desenvolver o instituto da expropriação e o seu regime constitucional e legal.
Mas cumprirá dizer que se a expropriação, através da declaração de utilidade pública, é o único ato dotado de autoridade para lesar os direitos ou interesses legítimos do particular, pressupondo, em todo o caso, a atribuição de uma justa indemnização, nada obsta a que o titular do direito de propriedade, no pleno exercício desse mesmo direito, proceda à sua transmissão (no todo ou em parte), a título gratuito, a favor de um ente público, para efeitos da sua afetação ao interesse público e consequente integração no domínio público.
A cedência de terrenos ou parte de terrenos para afetação ao interesse público a pedido de juntas de freguesia e municípios não é prática infrequente, com especial incidência nas zonas rurais.
Raras vezes esta transmissão gratuita vem acompanhada de escritura pública.
O problema da inobservância da forma legal ou ilegalidade do procedimento de apropriação tem, muitas vezes, encontrado resposta no princípio da intangibilidade da obra pública.
O princípio da intangibilidade da obra pública constitui, conceitualmente, a ponderação das consequências da violação do princípio da legalidade da Administração Pública quando, apesar da sua atuação à margem da lei, redunda na prossecução do interesse público[5]. É precisamente da consideração deste interesse público, que se criou como princípio geral do direito das expropriações a intangibilidade da obra pública, como forma de garantir a manutenção da posse por parte da administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público[6].
É unanimemente aceite que a aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos em que a apropriação de prédios por uma entidade pública, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado. Nessa eventualidade, em lugar da condenação na restituição do bem, admite-se que a entidade ocupante possa ser condenada no pagamento de uma indemnização ao proprietário[7].
A propósito do alcance e termos de aplicação deste principio, pode ler-se no Acórdão do STJ de 5/2/2015 (Rel. Abrantes Geraldes)[8], o seguinte:
“A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objectiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou é traduzida em situações que se manifestam através da violação dos limites objectivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do acto expropriativo. Enfim, casos existem em que a violação objectiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respectivos contornos legais.
Em determinadas circunstâncias que se pautam pela verificação de culpa leve ou mesmo pela ausência de culpa, a aplicação dos efeitos típicos da acção de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos.
Em tais situações, o reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.
Para situações como esta tem sido desenvolvida uma tese intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC. Princípio que conquanto não esteja expressamente consagrado pode encontrar sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, normas que permitem afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público.
Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.
Ainda que não esteja expressamente consagrado tal princípio, e embora também não seja pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico (negada, por exemplo, no Ac. do STA, de 6-2-01, in www.dgsi.pt), o certo é que a sua intervenção é limitada a casos que verdadeiramente o justifiquem e que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve.
É neste sentido que a aplicabilidade de tal princípio tem sido admitida neste Supremo pelos Acs. de 9-1-2003 (Rel. Alves Correia), de 29-4-2010 (Rel. Alves Velho) e de 18-2-2014 (Rel. Pinto de Almeida) e, no campo do direito administrativo, pelo Ac. do STA, de 16-1-2008 (recusando a sua aplicação num caso em que a apropriação resultou de uma conduta pautada pela má fé).
Naturalmente que tal solução de raiz jurisprudencial e doutrinal apenas é defensável na medida em que corresponda aos interesses da entidade pública, não se compreendendo a sua invocação por parte do proprietário afectado pela actuação daquela.
Admitindo-se que os interesses públicos e da comunidade sejam susceptíveis de se sobreporem aos meros interesses particulares, especialmente nos casos em que no prédio já tenha sido edificada ou implantada alguma obra pública, tais interesses apenas serão atendíveis se e na medida em que deles resulte um benefício para a entidade pública, em comparação com os efeitos que decorreriam da aplicação das regras gerais”.
Na situação dos autos necessitando o município de adquirir uma parte do terreno pertença do autor para construção de um nó rodoviário, iniciou o respetivo processo negocial, que culminou com a cedência pelo autor de uma parcela de terreno mediante a contrapartida da reclassificação da área sobrante como solo para construção.
 A ocupação efetuada pelo município, a fim de proceder à construção de um nó rodoviário, teve origem na cedência da parcela de terreno efetuada pelo autor precisamente para esse fim, o que em termos de conformação jurídica, consubstancia uma doação, ainda que formalmente inválida.
Dado por concluído o processo negocial, o Município tomou posse da parcela, tendo começado por colocar estacas a demarcar a parcela do restante terreno do autor, dando inicio à obra, que se mostra já concluída.
A atuação do Município tem de qualificar-se de boa-fé, já que procedeu, sem culpa, confiado na cedência da parcela efetuada pelo autor, assim a destinando ao fim público consistente na construção de um nó rodoviário, aplicando-se inteiramente ao caso o principio da intangibilidade da obra pública.
Resta agora apreciar se aos autores cabe atribuir uma indemnização, em termos de lhes ser fixada uma quantia monetária.
A resposta é negativa.
Atendendo aos contornos do negócio celebrado entre autores e réu, como bem se refere na decisão recorrida, impõe-se como elemento a considerar a declaração de que se tratava de uma cedência a título gratuito, ou seja, o beneficiário Município ... nada tinha que pagar a título de contrapartida pela cedência do terreno.
É certo que se obrigou a proceder à reclassificação da parte sobrante do prédio do autor como “solo apto para construção”, mas a obrigação “de facere” assim assumida não reveste a natureza de preço devido pela parcela de terreno cedida.
Em causa está uma doação com cláusula modal.
Com efeito, as doações podem ser oneradas com encargos, como resulta do art.º 963.º do C.C. Quando tal sucede, o doador (ou disponente) impõe ao donatário (ou beneficiário da liberalidade) a obrigação de adotar um certo comportamento no interesse do doador, de terceiro ou do próprio donatário.
A doação modal ou com cláusula modal caracteriza-se por ser aquela em que o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações.
Todavia, como afirma Antunes Varela[9] a obrigação ou o dever contraído pelo donatário não representa uma contraprestação e muito menos o correspetivo ou equivalente da atribuição patrimonial que lhe é feita – mas um simples ónus, restrição ou limitação dela.
No caso, o réu cumpriu com o encargo a que se obrigou perante o autor, pois que resultou demonstrado que o Município ... propôs à Comissão de Revisão do PDM ... a classificação da parte sobrante do prédio rústico propriedade do Autor marido como “Solo Urbano”, na categoria de “Espaço Residencial de Nível 1”, proposta essa que foi aceite, como resulta do Regulamento do PDM ... revisto, tornado público pelo Aviso nº ...15, publicado no DR, 2ª Série, nº 174, de 7 de Setembro.
Destarte, a compensação (em sentido impróprio) pretendida pelos autores para a cedência da parcela mostra-se satisfeita, pelo que, nos termos do quadro negocial firmado pelas partes, a outra recompensa não têm direito.
Improcede, pois, a pretensão recursória assente no direito a uma indemnização.
Quanto ao fim das negociações e suas consequências, consideram os autores que o Município rompeu imotivadamente as negociações que vinha mantendo com o autor para adquirir, gratuitamente, uma parcela de terreno destinada à construção de um caminho público e para a atribuição de potencialidade construtiva nessa zona sobrante entendendo que na parte do caminho o acordo estava concluído, devendo o réu ser condenado a cumpri-lo e na restante deve o Município prosseguir as negociações interrompidas.
A pretensão dos recorrentes, ressalvado o devido respeito, carece de substrato fático e fundamentação jurídica.
Para a perfeição do negócio jurídico, decorrente do acordo de vontades, é necessária a aceitação da proposta pela parte contrária, que, para além de ser declarada de forma expressa, pode obter-se tacitamente, nas situações em que a própria natureza ou circunstâncias do negócio, ou os usos tornem dispensável a declaração de aceitação, e a conduta da parte contrária mostre a intenção de aceitar a proposta – art. 234.º do Código Civil[10].
Com efeito, a aceitação, como declaração negocial, é expressa, quando se concretiza mediante palavras, escritos ou qualquer outro meio direto de manifestação de vontade, é tácita, quando baseada num comportamento, donde resulta, segundo os usos sociais, num grau muito elevado de probabilidade, a existência daquela vontade - quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, revelam a aceitação art. 217.º, n.º 1, do Código Civil.
Na apreciação da declaração indireta ou tácita, o comportamento tem de ser concludente ou inequívoco, isto é, revelar em termos altamente prováveis, que o seu autor quis, efetivamente, a realização do negócio jurídico[11].
No caso, o réu declarou expressamente não aceitar a proposta feita pelo autor.
Bem analisados os argumentos dos recorrentes, não se vislumbra em termos substantivos contraposição ao que se fundamentou na sentença.
Aí considerou-se e bem, face ao acervo factual, que “mediante a contrapartida da viabilidade construtiva potenciada, que o Réu não poderia garantir, porque não dependia só de si, mas de outras entidades, prevendo uma indemnização alternativa de valor exorbitante, bem como a execução de obras bastante onerosas, como se pode ver da proposta e do proposto contrato de cedência que são os doc.s 8 e 11 juntos com a petição inicial, o autor propunha-se ceder a referida parcela necessária à construção do dito caminho, negociação que acabaria por se frustrar, pois que, com propostas e contra-propostas, o nó já estava construído, e o custo da construção do caminho, com as exigências do Autor, era muito elevado e não valia a pena”.
O factualismo que se apurou é de molde a permitir a conclusão do esforço sério desenvolvido pelo município com vista a chegar a acordo com o autor quanto à aquisição de outra parcela de terreno necessário para à implantação do acesso à “Quinta ...” cumprindo a obrigação assumida em escritura pública com os respetivos proprietários,
O que sucede é que os autores tentaram obter contrapartidas impossíveis e/ou incomportáveis, levando o município a considerar esgotados os seus limites negociais, e a comunicar ter deixado de ter interesse na dita parcela.
Donde, também, nesta parte o recurso terá de improceder.
Por último, embora não imputem à decisão a sua nulidade por omissão de pronuncia, referem que a sentença não se pronunciou, sobre a matéria da alínea e) do pedido (reconhecimento de que a parte sobrante do prédio do autor, depois de amputada das áreas destinadas à construção do nó, ficaram sem qualquer acesso assegurado à via pública) e sobre o pedido de pagamento de danos não patrimoniais (alínea k).
Não é verdade.
Quanto ao pedido da alínea e), diz expressamente a decisão e passa a transcrever-se: “Igual destino - improcedência - deve merecer a pretensão formulada pelos AA., sob a alínea e), pois que se provou que parcela sobrante, localizada a norte da parcela inicialmente cedida para a construção do “Nó de ...” - que corresponde à soma das alegadas parcelas BB e FF da planta que é o doc. ... junto com a petição inicial - confronta, como confrontava toda a área do prédio, antes da construção do referido nó, com a designada Rua ..., uma via pública municipal que liga a freguesia ... à de ..., ambas do concelho ..., parcelas essas que são contínuas e que não se mostram discriminadas por qualquer operação urbanística, tendo assim acesso direto à Rua ..., pelo que carece de fundamento a pretensão formulada”.
Do mesmo modo, a sentença pronunciou-se sobre o pedido de pagamento de danos não patrimoniais (formulado sob a alínea k), considerando que o mesmo teria de naufragar, porquanto não se provou que o réu tivesse praticado qualquer ilícito gerador de danos, nem que os autores os tivessem sofrido, por causa desse pretenso ilícito que não foi cometido.
De tudo o que se deixa exposto, o recurso terá de improceder na íntegra.
*
SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

 I - O princípio da intangibilidade da obra pública foi criado como forma de garantir a manutenção da posse por parte da administração pública quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público .
II – Todavia, a aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos em que a apropriação de prédios por uma entidade pública, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado.
III – Concluído o processo negocial, em que o particular cede gratuitamente ao município uma parcela do seu prédio para a construção de obra pública, aceitando o município em contrapartida propor a reclassificação da parte restante como solo apto para construção, o que veio a acontecer, a atuação do Município consistente na construção da obra pública assente numa doação formalmente inválida, tem de qualificar-se de boa-fé.
IV – Mostrando-se satisfeito o encargo imposto pelos autores para a cedência da parcela, nos termos do quadro negocial firmado, não têm eles direito a indemnização.
*
IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 27 de Abril de 2023

Assinado por:                                                
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Anizabel de Sousa Pereira


[1] A propósito Lopes do Rego, O Ónus da Prova nas Acções de Investigação da Paternidade: Prova Directa e Indirecta do Vínculo da Filiação, in, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, p. 789.
[2] Disponível em www.dgsi.pt.
[3] In Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pag. 333-334.
[4] In Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª edição, pag. 996.
[5] Neste sentido, o Acórdão do STJ de 11/09/2018, relator Fonseca Ramos, processo n.º 342/12.4TBFAF.G2.S2, disponível em www.dgsi.pt
[6]  Acórdão do STJ de 5/2/2015, relator Granja da Fonseca, processo n.º 742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[7] A titulo de exemplo os Acórdãos do STJ de 29/04/10, relator Alves Velho, processo n.º 1857/05.4TBMAI.S1 e de 15.04.2015, relator Abrantes Geraldes, processo nº 100/10.0TBVCD.P1.S1.
[8] Proferido no âmbito da revista nº 2125/10 e disponível em de www.dgsi.pt.
[9] Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.2.1968 publicada In Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 102º, pags. 38 e 39.
[10] Neste sentido Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 4.ª Edição, pag. 250.
[11] Cfr. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição, pag. 423.