Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
461/08.0 GBGMR. G1
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica cometido na pessoa do cônjuge é a integridade física e psíquica do cônjuge enquanto tal e face à degradação da sua dignidade por maus tratos.
II- Os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem. Contudo, nem toda aquela ofensa representa maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. A ocorrência deste crime pressupõe uma agressão capaz de afectar a dignidade pessoal do cônjuge enquanto tal.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: ---
I.
RELATÓRIO. ---
Em autos de processo comum, com julgamento em Tribunal Singular, o 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, por sentença datada de 09.12.2010, depositada no mesmo dia, condenou o arguido Joaquim S..., além do mais, ---
«pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo disposto no artigo 152°, n°s. 1, a) e 2, do Código Penal, na pena de 20 (vinte) meses de prisão» cuja execução suspendeu «pelo período de 20 (vinte) meses, subordinada à condição e, em cinco dias, proceder à entrega da quantia de € 1.000,00 (mil euros) à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV)»; ---
«pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo disposto no artigo 86, n.° 1, c), da Lei n.° 5/2006, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros)» Cf. volume II, fls. 344 a 363. ---
Do recurso para a Relação. ---
Inconformado com a referida decisão, em 11.01.2011 o arguido dela interpôs recurso para este Tribunal, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos: (transcrição) ---
«1) O recorrente não pode conformar-se com a sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo, motivo pelo qual interpôs o presente recurso.
2) A sua discordância tem a ver com a qualificação jurídica que o Tribunal a quo fez da interpretação dos factos dados como provados e aceites pelo ora recorrente.
3) O Tribunal a quo, ao condenar o arguido pelo crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 do CP, entendeu que a conduta do arguido revestiu suficiente gravidade para integrar o crime de violência doméstica, o qual era imputado ao arguido na acusação.
4) Assim, ao interpretar os factos dessa forma, qualificou-os a sentença recorrida erradamente, pois estamos perante um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do CP.
Senão Vejamos:
5) Segundo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2010: “Integra, tão só a prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do CP, e não um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152., n.° 1, a agressão com duas bofetadas na cara...não sendo comportamento reiterado, e não revelando uma intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido - mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.”
6) Assim sendo, e da análise dos factos dados como provados, o arguido, agrediu a ofendida, em dois momentos - dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2008,
7) No entanto, o crime de violência doméstica visa a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, sustentando Taipa de Carvalho (in Comentário Conimbricence do Código Penal, Parte Especial, Tomo 1, pág. 332), que o bem jurídico aqui protegido é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge.
8) Assim, na descrição típica da violência doméstica, recorre-se, em alternativa , às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.
9) De salientar ainda que, no que respeita à intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, as situações de violência têm de ser aptas para lesar o bem jurídico protegido - mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
10) Assim, e na linha orientadora do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, não sendo o comportamento do arguido reiterado - o que não foi - efectivaram-se em dois episódios, a agressão em causa não revela uma intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja suficiente para lesar o bem jurídico protegido - mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
11) Por conseguinte, e na ausência da reiteração e intensidade nas acções levadas a cabo pelo arguido, deveria o mesmo ter sido condenado pelo crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do CP.
12) Desta forma, o Tribunal a quo, ao condenar o arguido pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 e 2 do CP, e não condenar o arguido pelo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do CP, violou esta norma jurídica.
13) Entende o arguido que a sentença aplicada pelo Tribunal a quo, não teve em consideração, circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, beneficiam o arguido, nomeadamente:
a) A ausência de antecedentes criminais;
b) A confissão livre dos factos de que vinha acusado, no que concerne às ofensas perpetradas nos dias 31 de Maio e 1 de Junho de 2008;
c) O facto de o arguido e a ofendida se encontrarem divorciados;
d) O facto de o arguido se encontrar a trabalhar em Espanha desde 2006.
e) O facto de não ter surgido notícias de quaisquer queixas, designadamente por comportamentos violentos;
f) O facto da ofendida, ter, inclusivamente expressado a vontade de não prosseguir com o procedimento criminal.
14) Posto isto, tais circunstâncias não foram tidas em consideração pelo Tribunal a quo.
15) A sentença proferida pelo Tribunal a quo é manifestamente prejudicial, e no caso concreto não conseguirá prosseguir os fins a que se propõe, por não fazer corresponder o tipo legal de crime aos factos dados como provados.
16) Sem desconsiderar e a admitir que o arguido tenha praticado os factos dados como provados, mesmo assim, sempre se dirá ser excessiva a pena aplicada ao arguido.
17) Assim sendo, sempre se dirá que, face a tudo quanto resultou provado em audiência de discussão e julgamento, bem como de tudo quanto consta da douta sentença, a decisão e consequente condenação na pena que em concreto foi fixada ao arguido se mostra erradamente aplicada,
18) decisão essa que deveria ser substituída por uma diferente qualificação jurídica, isto é, ao invés do arguido ter sido condenado pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 e 2 do CP, deveria o mesmo ter sido condenado pelo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do CP,
19) E, uma vez mais, deverá a sentença ora recorrida ser alterada, condenando-se o arguido pelo crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143., n.° 1 do CP, e em pena que reflicta este novo enquadramento penal e esta diferente perspectiva dos factos.
20) E, se assim não se entender, diminuir a pena aplicada ao arguido para o mínimo previsto na lei para o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 e 2 do CP, e sem subordinação a nenhuma condição.
Nestes termos e nos mais de direito (…) se requer a alteração da qualificação jurídica do crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 e n.° 2 do CP, pelo crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.°, n.° 1 do CP, e se assim não se entender, deverá ser diminuída ao mínimo a pena aplicada ao arguido, pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.°, n.° 1 al. a) e n.° 2, sem subordinação a nenhuma condição, com o que V. Exas. Farão, como sempre, um acto de Justiça» Cf. fls. volume II, fls. 364 a 395. ---. ---
Notificado do indicado recurso, o Ministério Público respondeu ao mesmo, tendo concluído no sentido de que deve ser mantida a decisão recorrida Cf. fls. volume II, fls. 412 a 414. ---. ---
Neste Tribunal, na intervenção aludida no artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ministério Público foi de parecer que o recurso não merece provimento Cf. fls. 145 e 146. ---. ---
Devidamente notificado daquele parecer, o arguido nada disse. ---
Proferido despacho liminar, colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre ora apreciar e decidir. ---
II.
OBJECTO DO RECURSO. ---
Atentas as indicadas conclusões apresentadas, sendo que são tais conclusões que este Tribunal deve atender no presente recurso, definindo aquelas o objecto deste, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, cumpre no presente acórdão apreciar e decidir: ---
· Da pretendida alteração de qualificação jurídica dos factos; ---
· Da justeza da pena aplicada ao arguido. ---
III.
A DECISÃO RECORRIDA – FACTOS E SUA MOTIVAÇÃO. ---
A decisão recorrida configura a factualidade provada e não provada, assim como a respectiva motivação da seguinte forma: (transcrição) ---
«Fundamentação de facto---
Factos provados: ---
Da audiência de discussão e julgamento resultou provado que:
1 - Ana M... e o arguido casaram entre si no dia 20 de Julho de 1986, tendo fixado a sua residência na Rua Comandante B..., s/n, 4515, Polvoreira, Guimarães.
2 - Da relação referida em 1), nasceram Hélder S... e André S....
3 - No dia 31 de Maio de 2008, durante a tarde, o arguido, no interior da residência supra referida, desferiu, de forma sucessiva e sistemática, um número não concretamente apurado de sapatadas na cara da ofendida.
4 - Cerca das 01.00h do dia 01 de Junho de 2008, no interior da residência do casal, o arguido desferiu, de novo, um número não concretamente apurado de chapadas na cara da ofendida, pedindo-lhe que admitisse que tinha um amante.
5 - A ofendida, para que o arguido parasse com tais agressões, acabou por dizer ao arguido - conforme era desejo deste - que “tinha amantes”.
6 - Então, o arguido ainda mais violento desferiu pontapés na cabeça e murros dispersos pelo corpo da ofendida, agressões estas que só cessaram após o filho André ter conseguido que o arguido parasse com as mesmas.
7 - A ofendida, na sequência dos factos referidos abandonou a residência sita Rua Comandante B..., s/n, 4515, Polvoreira, Guimarães e refugiou-se em casa de Margarida T..., sua cunhada.
8 - Em consequência da agressão descrita supra, a ofendida sofreu dores nas zonas atingidas, nomeadamente na hemiface esquerda, no parietal direito e no tórax à direita, mais apresentando equimose infra palpebral esquerda e na porção superior da face anterior do hemitorax esquerdo, lesões que determinaram um período de dez dias para a cura, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
9 - No dia 18 de Novembro de 2008, cerca das 10.00h, a ofendida encontrava-se junto da entrada de uma das sala de audiência da Vara Mista de Competência Mista de Guimarães, sita na Rua dos Cutileiros, Creixomil, Guimarães, a aguardar a chamada para a Conferência do Processo n.° 328/08.ITCGMR (Divórcio Litigioso), que ali iria ocorrer.
10 - Nas circunstancias de tempo e lugar referidas, surgiu o arguido que de imediato se dirigiu à ofendida e apelidou-a de “sua puta” e “vaca”, ao mesmo tempo que a tentou agredir com as mãos e lhe dizia “eu mato-te”, “eu mato-te” - sendo que o arguido só não logrou concretizar na sua plenitude os seus intentos porque foi impedido de o fazer pelos familiares da ofendida e agentes da PSP que ali se encontravam presentes - apenas logrando atingir, ao de leve, a face do lado esquerdo da cara da ofendida.
11 - Na sequência das agressões ocorridas em 31 de Maio e 01 de Junho, Amélia M..., irmã da ofendida, dirigiu-se, nesse mesmo dia 01 de Junho de 2008, a hora não concretamente apurada, à residência da mesma, local onde deparou com o arguido que ameaçava suicidar-se, tendo junto a si duas armas de fogo.
12 - Amélia M..., com receio de que o arguido concretizasse os intentos referidos, logrou retirar-lhe as aludidas armas de fogo, as quais entregou no seguinte dia 2 de Junho de 2008, no posto territorial da G.N.R. de Guimarães, a saber:
- Uma pistola concebida para disparar munições de gás, adaptada para munições reais de calibre 6,35 mm, de cor branca prateada e platinas pretas, com a inscrição “BROWNING CAL. 6,25”, sendo que a mesma tinha um carregador introduzido com quatro munições de calibre 6,35 mm.
- Uma pistola de calibre 7,65, de cor branca prateada e platinas pretas, com o n.º 351783, com um carregador introduzido municiado com três munições de calibre .32.
13 - Sujeitas tais armas e munições ao competente exame directo, veio o mesmo revelar tratarem-se as mesmas de:
- Uma pistola de defesa com o n.° 351783, de marca desconhecida, calibre 7,65, de um cano, com 13 cm de comprimento sendo 6,5cm de cano, munida de carregador, próprio para munições do mesmo calibre, de funcionamento semi-automático e em razoável estado de conservação;
- Uma pistola de alarme, arma de fogo transformada, adaptada para calibre 6,35, ostentando no lado esquerdo da armação a inscrição “BROWNING CAL. 6.35”, de funcionamento semi-automático e em estado razoável de conservação;
- Quatro munições de arma de fogo de calibre 6.35, em razoável estado de conservação;
- Três munições de arma de fogo de calibre 7.65, em razoável estado de conservação.
14 - O arguido, ao agredir a ofendida Ana M... nos moldes atrás referidos, quis - o que conseguiu - atingir a queixosa, sua companheira no seu corpo e saúde.
15 - O arguido agiu sempre com o propósito, conseguido, de maltratar o corpo e a saúde da ofendida, provocando-lhe dores e ofendendo-a na sua honra e consideração, deixando-a sempre em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física e paz de espírito, provocando-lhe permanente sentimento de instabilidade que se reflectia no seu estado psíquico, apesar de bem saber que tais condutas são ilícitas e punidas criminalmente por lei.
16 - Esta prática reiterada de agressões fez com que a ofendida terminasse a relação com o arguido, acabando esta por abandonar a casa onde residiam e, posteriormente, se divorciar do mesmo.
17 - O arguido possuía e guardava, pelo menos em 01.06.2008, as armas referidas e examinadas as quais se encontravam aptas a disparar munições reais, tendo perfeito conhecimento da sua natureza e características.
18 - Sem que as houvesse manifestado ou registado, nem tendo licença para uso e porte de arma de defesa ou de qualquer outra natureza, condições essas que sabia indispensáveis para que pudesse deter as armas supra identificadas.
19 - Igualmente desde data e em circunstâncias não apuradas, o arguido detinha as munições referidas, que sabia destinadas a serem disparadas em armas proibidas por lei penal.
20 - Agiu o arguido sempre livre, voluntária e deliberadamente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente por lei.
Mais se provou que:
21. Desde, pelo menos, o ano de 2006 que o arguido, emigrado em Espanha, tinha dúvidas quanto à fidelidade da ofendida.
22. Na sequência da agressão descrita em 4 a 6, a ofendida abandonou durante a noite a casa do casal e refugiou-se em casa de um familiar.
23. A ofendida esteve [durante] acolhida durante 9 meses numa Casa Abrigo.
24. André nasceu em 30.03.1992.
25. Por sentença de 10.03.2009 foi decretado o divórcio entre arguido e ofendida.
26. O arguido é divorciado, trabalha na construção civil em Espanha, aufere € 500,00 mensais, vive com os filhos e paga a título de renda de casa a quantia de € 150,00 mensais,
27. O arguido tem a 4ª classe de escolaridade.
28. Do certificado de registo criminal do arguido não consta averbada qualquer condenações.
Factos não Provados:
Não ficaram por provar quaisquer outros factos constantes da acusação, designadamente os que seguem:
A - Que, desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 1999, o arguido, de forma quase diária, começou a ter um comportamento agressivo, ciumento e desconfiado relativamente à ofendida, passando a desferir bofetadas, murros e pontapés no corpo da ofendida, bem como a puxar-lhe os cabelos, mais a apelidando, sempre que a agredia, de “puta”, “vaca”, “que deveria ir para recta de Brito” e “que tem amantes”, bem como a ameaça-a que a mata, empunhando facas.
B - Que as agressões, impropérios e ameaças referidas em A) ocorressem no interior da residência melhor identificada em 1) e, muitas das vezes, perante os filhos do casal.
C - Que nas circunstâncias aludidas em 3, o arguido tenha desferidos pontapés dispersos pelo corpo da ofendida mais a ameaçado de que a matava com uma das armas que possuía.
D - Que em 01 de Junho de 2008, o arguido tenha dito a Amélia M... que “se [a] apanhasse a esposa e o homem com quem foi traído, os matava.”
Exame crítico das provas e convicção do tribunal:
A convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados nos termos referidos adveio da análise ponderada de todos os depoimentos prestados em audiência, devidamente conjugados com os documentos juntos aos autos, designadamente relatórios de urgência de fls. 18 e 19, relatório pericial de fls. 43 a 45, informação de fls. 212, auto de exame de fls. 217 e assentos de fls. 62, 99 e 209.
O arguido, que entendeu falar, produziu um relato que não deixou de nos surpreender, admitindo os factos por que se mostra acusado, com excepção das armas.
Assim, de forma inequívoca, esclareceu que os factos ocorreram, não em 01 e 02 de Junho, mas em 31 de Maio e 01 de Junho, respectivamente sábado e domingo, razão porque tais lapsos foram em conformidade corrigidos.
Descreveu como, chegando a casa para mais um fim de semana, logo bateu na esposa, a propósito do caso amoroso que suspeitava que esta mantinha: foram apenas uns estalos na cara. Ultrapassada a situação, o casal à noite foi a um bar de karaoke; regressados a casa, já de madrugada, o arguido retomou o “tema” e com ele a atitude: desta vez, segundo refere, foram vários “chapadões” e talvez pontapés, antes e depois da pretendida confissão e feitos cessar pela intervenção do filho André, então com 16 anos de idade.
Disse o arguido que depois deste episódio, “foi dormir”, apenas se apercebendo de manhã que a esposa havia deixado a casa durante a noite, para paradeiro desconhecido.
Com a mesma postura, reconheceu o arguido ter contactado algumas vezes pelo telefone com a esposa, dizendo-lhe que a ia “quilhar outra vez”, como que para que se não esquecesse do seu propósito.
E é assim que o arguido mais admitiu o sucedido nas instalações das Varas Mistas de Guimarães: ali chegado, apesar dos polícias e familiares presentes, o arguido de imediato se dirige à ofendida chamando-a de “puta e vaca”, tentando agredi-la, o que só não conseguiu por ter sido agarrado pelos próprios filhos e agentes policiais.
Negou o arguido a detenção de qualquer arma e bem assim o episódio a respeito descrito na acusação.
Posto isto, o que dizer destas declarações?
Sem dúvida que o arguido produziu relevante confissão (relevância que melhor se perceberá depois de analisado o depoimento desculpante da ofendida), porém nada reveladora de qualquer tipo de arrependimento. Como o próprio admitiu, a pergunta directa, está “mais ou menos” arrependido do sucedido.
As declarações do arguido, sem o mínimo embaraço ou constrangimento, são reveladoras de mesquinho sentimento: o de orgulho. O arguido agiu nos termos admitidos por desconfiança da esposa, do comportamento que esta terá tido na sua ausência; o arguido agiu assim em termos que considerou, e parece considerar ainda, plenamente justificados, daí que os relate sem sinal de pesar ou autocensura. É nesta arrogância que se percebe a admissão de telefonemas ameaçadores e da reacção tida em espaço público, na presença de agentes de autoridade.
Embora sem expressar qualquer tipo de sentimento positivo, facto é que a confissão, ainda que parcial, do arguido permitiu-nos mais do que assentar os factos, perceber a sua gravidade.
Já a ofendida, Ana, que a fls. 170 declarara já não manter interesse no prosseguimento dos autos, desvalorizou todo o sucedido: “foi só uma vez que ele lhe bateu”, foram umas sapatadas à tarde do dia 31, sem nunca a ter ameaçado com facas ou armas; saíram nessa noite e quando voltaram “falaram do assunto”e ele bateu-lhe de novo, com sapatadas e um pontapé, sendo separados pelo filho André.
Confirma que, nessa noite, aguardou que todos estivessem a dormir e, então, saiu de casa, foi acolhida pela cunhada Margarida e depois foi à Polícia e ao hospital. Confirma que o arguido a insultava com nomes de “puta” e “vaca”, que sentia medo, porém nunca se apercebeu da existência de quaisquer armas ou munições.
Subjaz a todas estas declarações e postura uma atitude desculpante, que desvaloriza o sucedido, quase que assumindo uma co-responsabilidade pela violência.
Apesar de sempre nos surpreender esta atitude das vítimas, não é ela caso único, sendo mesmo a razão da alteração da tipificação do crime, que passou a dispensar ou depender do impulso da vítima.
O comportamento da ofendida foi explicado pela testemunha Célia B..., psicóloga da Casa Abrigo que durante 9 meses a acolheu. Esclareceu o estado em que a ofendida ali chegou e bem assim a insegurança que sempre pautou a sua conduta, desculpando o arguido pelo sucedido.
Porém, se dúvidas nos tivessem ficado quanto à gravidade do sucedido depois do relato do arguido, e não ficaram, dissipar-se-iam elas com a análise da fuga da ofendida: uma mulher insegura, casada há mais de 20 anos, quando decide a meio da noite, deixar a sua casa, os seus pertences e os seus próprios filhos e partir sem destino, só o faz em absoluto desespero, movida por genuíno medo de morrer. Não precisámos das palavras da ofendida para assentar tal cenário.
Pouco contribuiu o depoimento de Hélder, o filho mais velho do casal que à data dos factos se encontrava em Espanha, em trabalho: soube o que o pai lhe contou (que a mãe tinha um amante e que lhe dera dois estalos), sendo que nunca presenciou insultou ou viu quaisquer armas.
Já Margarida T..., cunhada do arguido e da ofendida, relatou o sucedido na noite dos factos em que, pelas 05 horas da madrugada, recebeu uma chamada desta, nervosa, chorosa, dizendo que tinha fugido de casa. Relatou como a foi encontrar na estação de comboios e daí trazido para casa de um vizinho, onde ficou “escondida”. Confirmou que durante essa manhã, o arguido rondou a casa de familiares à procura da ofendida sempre dizendo “se eu a encontrar, mato-a”.
Confirma que na segunda-feira seguinte, dia 02, foi com as cunhadas apresentar queixa na Policia, tendo uns agentes à paisana assegurado o transporte da ofendida para a Casa Abrigo. Mais reafirmou o já confessado quanto ao episódio ocorrido nas Varas.
Quanto às armas, sem nunca as ver, confirma que a cunhada Amélia lhe relatou tê-las retirado ao arguido e entregue na Polícia, quando ali apresentaram queixa.
Determinante, por isso, o depoimento de Amélia M..., a já mencionada cunhada: relatou que, no domingo, o André telefonou à sua filha, Joana, desesperado a contar que o pai se ia matar. A filha ligou-lhe a pedir ajuda e então a testemunha foi a casa do arguido onde o encontrou com duas armas nas mãos. Disse que o convenceu a não fazer uma loucura e a entregar as armas, o que acabou por fazer. Garante que levou as armas para sua casa e logo no dia seguinte entregou-as na PSP.
Finalmente, André, renovou o relato dos pais: confirmou as agressões, a fuga da mãe, a confusão nas Varas, o desconhecimento de armas.
Ora, do que vem dito resulta clara a formação da nossa convicção no que aos episódios de violência concerne: o arguido confessa-os, todos os mais o confirmam, directa ou indirectamente.
Duvidoso poderia permanecer apenas a questão das armas.
Poderia, mas não permanece.
Com efeito, o facto do arguido, da ofendida e dos filhos negarem a existência e detenção das armas não nos surpreende: consideram estes a situação ultrapassada (como expressamente consignou a ofendida a fls. 170), não pretendendo ver o ex-marido ou pai perseguido por tal facto.
Porém, a existência e detenção das armas nos termos da acusação e dados por provados não assenta apenas no depoimento da testemunha Amélia M... (contra quem não foi levantada qualquer razão de suspeita quanto à autenticidade do depoimento ou sequer interesse em produzir falso relato) mas no facto, objectivo, de no dia 02 de Junho, pelas 10.45 horas, as armas (e munições) terem sido entregues na GNR, conforme autos de fls. 3 a 5.
Tal facto corrobora totalmente a versão apresentada pela testemunha, que não é infirmada pelas regras da experiência (o estado de desespero do marido que, enraivecido, não sabe do paradeiro da esposa que ousou sair de casa).
Da conjugação de tais elementos, resultou a formação da nossa convicção, nada abalada pela negação de arguido, ofendida e filhos do casal.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal atentou no respectivo certificado junto aos autos a fls. 278 e quanto à sua situação sócio económica, à míngua de outra prova, relevámos as declarações do próprio arguido a respeito» Cf. volume II, fls. 344 a 352. ---.---
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Não tendo sido impugnada a indicada matéria de facto, nem padecendo a mesma de qualquer vício que este Tribunal deva oficiosamente conhecer, tem-se ela por definitivamente fixada tal como consta da decisão recorrida. ---
IV.
FUNDAMENTAÇÃO. ---
1. Da pretendida alteração de qualificação jurídica dos factos. ---
O arguido foi condenada pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo disposto no artigo 152.°, n.°s 1, alínea a), e 2, do Código Penal. ---
Sem impugnar a factualidade apurada, entende aquele sujeito processual que os factos dados como provados preenchem, não aquele tipo legal de crime, mas antes, o crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. ---
Em causa está, pois, a qualificação jurídico-penal dos factos apurados. ---
Vejamos. ---
A factualidade sub judice refere-se a 2008. ---
Então, o apontado artigo 152.°, n.°s 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, na parte que aqui releva, dispunha, tal como ainda hoje dispõe, que comete o crime de violência doméstica qualificado por aquele n.º 2 «quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge» «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal» e «se o agente praticar o facto (…) na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima». ---
Nestes termos, os elementos constitutivos do tipo de ilícito e de culpa do indicado crime de violência doméstica qualificado são: ---
1. O emprego de maus tratos físicos ou psíquicos a cônjuge, ---
2. Na presença de menor ou no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ---
3. A vontade consciente do agente em assim proceder, ---
4. A ilicitude da respectiva conduta, o que implica que o agente actue sem uma causa de justificação do facto, ---
5. A culpa do agente fundada na sua liberdade de decisão, no conhecimento do carácter proibido da sua conduta e na inexistência de uma causa de exclusão de culpa. ---
Do ponto de vista que aqui releva, o bem jurídico protegido pela referida incriminação é a integridade física e psíquica do cônjuge enquanto tal e face à degradação da sua dignidade por maus tratos. ---
Os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem. ---
Contudo, nem toda aquela ofensa representa maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02.07.2008, Processo n.º 07P3861, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, referindo que «a conduta maltratante» deve ser «especialmente grave», do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.09.2010, Processo n.º 179/09.6TAMLD.C1, que faz referência ao «acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana», e 17.11.2010, Processo n.º 638/09.0PBFIG.C1, apelando «à intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado» para qualificar a violência doméstica, do Tribunal da Relação de Évora de 25.03.2010, Processo n.º 345/07.9PAENT.E1, que integra nos maus tratos tão-só as condutas que «revistam uma certa gravidade, traduzindo, nomeadamente, actos de crueldade, insensibilidade ou vingança da parte do agente e que, relativamente à vítima, se traduzam em sofrimento e humilhação», do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.05.2010, Processo n.º 1379/07.9PBGMR.G1, que faz uso das expressões “especial desvalor da acção” ou “particular danosidade social do facto” para fundamenta a especificidade do crime de violência doméstica, do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.03.2011, Processo n.º 938/08.7PCCSS.L1-3, que defende que o crime de violência doméstica pressupõe, além do mais, «a prática de qualquer acto de violência que afecte a saúde, física, psíquica ou emocional, do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal», e do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2010, Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1, no qual se consigna que no crime em causa estão actos «reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima». ---. ---
Com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, os maus tratos não dependem do carácter reiterado da conduta do agente, pondo, assim, o legislador fim à querela até então existente na matéria. ---
Pode, pois, uma única conduta delituosa preencher tal ilícito criminal. ---
A ocorrência daquele crime pressupõe, contudo, uma agressão capaz de afectar a dignidade pessoal do cônjuge enquanto tal. ---
A não se entender assim, o crime de violência doméstica não passaria de um crime de ofensas à integridade física qualificada e confundir-se-ia a ofensa ao corpo ou saúde de outrem com o conceito de maus tratos. ---
Ora, tal não foi de todo em todo querido pelo legislador, conforme decorre da autonomia sistemática do crime de violência doméstica e do emprego nesta do conceito de maus tratos, respectivamente. ---
«Entre o crime de maus tratos físicos ou psíquicos (…) e o crime de ofensas corporais simples existe uma relação de especialidade, só se aplicando, portanto, a pena estabelecida para aquele» Américo taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, página 336. ---. ---
No que ora interessa, a agravação do crime de violência doméstica decorrente do n.º 2 do referido artigo 152.º do Código Penal depende do cometimento do mesmo diante de quem tem menos de 18 anos de idade ou na lugar da coabitação da agente e da vítima ou tão-só desta. ---
«O propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica (…) ocorridos diante de menores, por se considerar que os menores são vítimas “indirectas” dos maus tratos contra terceiros quando eles têm lugar diante de menores. Por outro lado, o legislador quis também censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas» Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, edição de 2008, página 406. ---. ---
In casu. ---
Releva a factualidade apurada indicada sob os n.ºs 1 a 6, 8, 9, 10, 14, 15 e 20.
Considerando-a, conclui-se que se mostram preenchidos na situação em apreço os indicados elementos constitutivos do tipo de ilícito e de culpa do crime de violência doméstica qualificado imputado ao arguido. ---
O carácter sucessivo e sistemático como que foram perpetradas as sapatadas na cara da ofendida, assim como as chapadas, os pontapés na cabeça e os murros no corpo da ofendida na tarde de 31 de Maio de 2008 e na madrugada de 1 de Junho de 2008, respectivamente, com imputação de amante àquela, bem como a conduta do arguido perpetrada sob a vítima em 18 de Novembro de 2008, em edifício público, perante familiares e agentes policiais, com diversos impropérios à mistura, numa atitude de acentuada baixeza moral e ofensa à dignidade humana da vítima, cônjuge do agressor, e, enquanto tal, são de molde a concluir que in casu está-se perante ofensa grave à dignidade pessoal da vítima enquanto cônjuge do agressor, ora recorrente, e, pois, especialmente censurável a este. ---
Improcede, pois, nesta parte o recurso em apreço. ---
2. Da justeza da pena aplicada ao arguido. ---
Entende o recorrente que peca por excesso a pena que lhe foi aplicada de 20 (meses) de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de entregar a quantia de € 1.000,00 (mil euros) à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). ---
Contudo, o ilícito criminal cometido pelo arguido é punido com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão e no caso não incidiu, não foi requerida, nem se justifica a respectiva atenuação especial – cf. artigo 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. ---
Nestes termos, carece de qualquer fundamento a pretendida diminuição da pena de prisão suspensa aplicada ao recorrente, sendo que a proibição de reformatio in pejus obsta a que se fixe ora pena conforme aos parâmetros legais – cf. artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal Segundo o qual «interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes». ---. ---
No que respeita ao dever de o recorrente entregar € 1.000,00 (mil euros) à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). ---
Segundo o disposto artigo 51.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente». ---
No caso em apreço a conduta delituosa do arguido não foi inócua: para além da ofensa física e psíquica causada, produziu alterações na vida da ofendida, sendo que esta saiu da casa de morada de família e esteve acolhida durante 9 meses numa Casa Abrigo. ---
A reparação do mal in casu configura-se necessária. ---
Tal reparação justifica que na situação presente se afecte a esfera patrimonial do arguido, afigurando-se ajustada no contexto apurado a condição de que o Tribunal recorrido fez depender a suspensão de execução da pena de prisão.
Improcede, pois, também nesta parte o presente recurso. ---
V.
DECISÃO. ---
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida. ---
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC. -
Notifique. ---
Guimarães, 3 de Maio de 2011