Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
502/18.2T8VNF.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: DELIBERAÇÃO SOCIAL
DESTITUIÇÃO DE GERÊNCIA
DIREITO ESPECIAL À GERÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O tribunal recorrido não praticou a nulidade invocada e prevista no artigo 615 n.º 1 al. d) do CPC. porque identificou as questões decisivas e tomou posição sobre elas.

2. O requerimento e uma exposição que estiveram na base da inscrição no Registo Comercial de uma deliberação social de destituição da gerência da sociedade X - Lda. foram subscritas por um advogado, que tem legitimidade para o efeito nos termos do artigo 30 n.º 1 al. c) do CRComercial.

3. Considerou-se a deliberação social aprovada com maioria do capital social porque votada pela representante dos contitulares da quota indivisa que representa 60% do capital social.

4. Do pacto social não resulta de forma expressa ou implícita que a apelante gozasse do direito especial à gerência.
Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

Maria impugnou judicialmente a decisão proferida pela Conservatória do Registo Comercial e Automóveis de Braga que indeferiu o pedido de rectificação de registo da AP. ... 13:04:42 ... - CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DE MEMBRO(S) 00(5) ORGÃO(S) SOCIAL(AIS), da sociedade X - LDA, NIPC ..., registado pela Insc. 1, Av. 5, requerendo o cancelamento desse registo de destituição de gerente invocando a nulidade do mesmo, nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 22, aplicáveis por força do n.º 2 do artigo 82 CRComercial.

Alegou, em síntese, a falta de legitimidade do requerente do registo nos termos do citado alínea b) e d), n.º 1 do artigo 22 e 47 do CRComercial e o seu direito especial à gerência, designadamente por estar nomeada gerente desde a constituição da sociedade (constituída entre ela e seu marido) cuja destituição de gerente implicava a redução e supressão de um direito e o impedimento do seu exercício - o que por lei não é permitido, face ao disposto na parte final do n.º1 do artigo 224°, do Código das Sociedades Comerciais, sendo exigido o consentimento de todos os contitulares e, neste caso, a requerente obviamente não consentia na sua destituição.

Cumpriu-se o disposto no art.º 93 do diploma, nos seus n.ºs 1 e 2.

Pelos interessados nada foi dito, e pelo Digno Magistrado do M.ºP.º foi acompanhada a decisão posta em crise.

Foi proferida sentença que manteve o despacho do Conservador, que indeferiu a retificação do registo solicitada pela requerente.

Inconformada com o decidido interpôs recurso ao abrigo do disposto no artigo 93-A n.º 1 do CRComercial, formulando as seguintes conclusões:

- Salvo melhor opinião, o art° 5° do pacto social da sociedade comercial por quotas "X- Lda" é suficientemente esclarecedor do indiscutível direito especial à gerência que assiste à A., ora recorrente, desde o início da actividade desta sociedade, há mais de trinta anos, pelo que não havia necessidade de a Senhora Conservadora solicitar qualquer esclarecimento sobre este assunto;
- E muito menos aceitar a simples explicação que, sobre esta questão, lhe foi transmitida em 20/10/2017 em nome da sociedade, sem ter sido subscrita pelo seu legal representante ou sequer com a identificação da pessoa que a assinou, e desacompanhada de qualquer documento;
- Por isso que este "documento" de 20/10/2017 de modo algum deveria ter sido considerado pela Senhora Conservadora como decisivo para a concretização do registo "sub judice", até porque não foi dada à A. a possibilidade de se pronunciar sobre esta questão, sendo de todo evidente que iria ser gravemente lesada com a supressão do seu direito especial de gerente e o impedimento do exercício do respectivo cargo e tanto mais que é legítima detentora da maioria do capital social;
- Por conseguinte, e com os devidos respeitos, não pode colher o entendimento da Meretíssima " A Quo" sobre a não verificação do direito especial da gerência da A., ora recorrente, e da legitimidade de quem requereu o registo da sua destituição; por outro lado,
- As demais circunstâncias invocadas pela A., ora recorrente, para fundamentar o seu pedido de impugnação deste registo são especialmente relevantes para a justa decisão deste pedido, não tendo todavia merecido qualquer apreciação pela Meretíssima "A Quo";
- Desde logo, não foi considerada "a declaração de sentido de voto" da A., ora recorrente, exarada na Acta n° 3 da assembleia geral realizada em 21/09/2017, na qual declarou votar contra a deliberação tomada pela maioria dos contitulares da quota indivisa da sociedade, pela qual seria destituída do cargo de gerente de que foi nomeada há mais de trinta anos, numa sociedade de que é legítima titular de uma quota inicial correspondente a 40% do capital social;
- Acresce que a A., ora recorrente, foi investida no cargo de cabeça-de-casal da herança de seu falecido marido (titular da outra quota inicial correspondente a 60% do capital social) por procedimento simplificado de habilitação de herdeiros lavrado na Conservatória do Registo Civil de Braga em 15/04/2015;
- No exercício deste (segundo) cargo, compete-lhe também administrar a herança do "de cujus" até à concretização da partilha ("ex vi" do imperativo do art° 2079° do CCivil), que ainda não se concretizou;
- E como ainda não foi legalmente afastada deste cabeçalato, a A. continua a ser a legal representante comum da quota indivisa de seu marido na referida sociedade, e não qualquer dos restantes co-herdeiros;
10ª - Ora, além de legítima titular inicial da quota correspondente a 40% do capital social da mencionada sociedade, a A., ora recorrente, é também legal contitular da herança de seu falecido marido pelo direito hereditário a 1/4 parte desta herança;
11ª- Deste modo, a A., ora recorrente, é que é a legítima detentora da maioria do capital social, pelo que nenhuma deliberação tomada por qualquer dos restantes contitulares da quota indivisa de seu falecido marido, ainda que subscrita pela totalidade desses contitulares, pode ser considerada como "aprovada pela maioria societária',
12ª - Aliás, já o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães se pronunciou contra a destituição da A. da gerência da aludida sociedade tentada anteriormente pelos mesmos contitulares - duas doutas decisões judiciais devidamente registadas na Conservatória (e, portanto, também conhecidas da Senhora Conservadora), e pelas quais a A., ora recorrente, havia reassumido a gerência em 28/08/2017 (também devidamente registada);
13ª - Acresce que na referida Acta n° 3 da referida assembleia geral não se encontra expressa e inequivocamente exarado que a destituição da gerência exercida pela A. foi aprovada pela maioria dos sócios;
14ª - Com efeito, da sua leitura resulta unicamente que a maioria dos contitulares - que, na totalidade das alíquotas que vierem a ser-lhes atribuídas jamais atingirão o valor correspondente a 50% do capital social - é que aprovou a destituição de gerência da A., ora recorrente;
15ª - Posto o que tal "deliberação" de forma alguma preenche os requisitos previstos nos art°s 250, n° 3 e 251°, nº1, do CSC, e não só configura uma verdadeira situação de conflitos de interesses prevista no n° 1 e na alínea f) deste art° 251°,
16ª - Como também contraria frontalmente o disposto na parte final do n° 1 e o disposto no n° 2 do art° 224° do CSC, porquanto as meras deliberações da maioria dos contitulares de quota indivisa não podem produzir efeitos relativamente à sociedade "X- Lda", uma vez que a A. é que é a única e legítima representante dessa quota, e além disso, é também a legítima detentora da maioria do capital social;
17ª - Finalmente, também não podia ser ignorado pela Senhora Conservadora o facto, igualmente registado, de que a A., ora recorrente, havia reassumido as funções da gerência em 28/08/2017, em cumprimento da decisão tomada pelo douto Acórdão do Venerando Tribunal de Relação de Guimarães de 04/05/2017 (proferido na acção n° 2983/16.0T8VNF);
18ª - Por conseguinte, o registo objecto da presente acção de impugnação (AP. ... - cessação de funções de membro do órgão social, Av. 5) deve ser declarado nulo e de nenhum efeito, por violação do disposto nas alíneas b) e d) do n° 1 do artº 22° do CRC (aplicáveis por força do n° 2 do art° 82° do CRC), e ainda por ofender o princípio da legalidade previsto no artº 47° do mesmo Código, no respeitante à legitimidade da apresentante interessada, à regularidade formal dos títulos e à validade dos actos nele contidos;
19ª - Decidindo pela improcedência da acção, a Meretíssima "A Quo" - ressalvando uma vez mais os devidos respeitos - infringiu não só os supra citados normativos, mas também, por ter deixado de pronunciar-se sobre questões que devia ter apreciado, os imperativos contidos na alínea d) do n° 1 do art° 615° do CPC, e que determinam a nulidade da sentença;
20a - Neste termos e nos demais que vierem a ser doutamente supridos, deverá a douta sentença recorrida ser revogada e declarar-se a procedência do pedido de nulidade do registo em questão, como é de sã Justiça.”

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões:

1. Se a decisão recorrida está ferida de nulidade nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) do CPC. porque o tribunal deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado.
2. Se quem requereu o registo da deliberação social que destituiu a apelante da gerência da sociedade X - Lda tinha legitimidade para o fazer.
3. Se a deliberação social de destituição da apelante da gerência da sociedade X - Lda foi realizada e aprovada pela maioria do capital social.
4. Se a apelante, como sócia fundadora da sociedade X - Lda e nomeada gerente na escritura de constituição, adquiriu um direito especial à gerência.

Com interesse para a decisão do recurso vamos consignar os seguintes factos:

1. A 14/11/2017 foi apresentada, por Maria, Processo Especial de Retificação do registo da Sociedade X - Lda (doc. fls. 11).
2.A 5/03/2018 foi proferido despacho pela Conservatória do Registo Comercial de Braga a indeferir a retificação do registo da deliberação da assembleia geral que destituíra a apelante da gerência da sociedade por considerar que quem requereu a inscrição no registo tinha legitimidade para o efeito, a ata da deliberação obedecia aos requisitos legais e da análise dos estatutos da sociedade não resulta que a apelante tenha um direito especial à gerência.
3. A apelante deduziu impugnação judicial da decisão que indeferiu a retificação da inscrição no registo da assembleia geral que destituiu a apelante da gerência da sociedade.
4. Foi cumprido o disposto no artigo 93 n.º 2 do CRComercial.
5. O MP. aderiu aos fundamentos e decisão da Conservatória do Registo Comercial.
6. A 6/4/2018 foi proferida decisão a indeferir a impugnação judicial, nos seguintes termos:

“Maria deu entrada dos presentes autos de Impugnação Judicial contra a Conservatória do Registo Comercial e Automóveis de Braga, visando a decisão que indeferiu o pedido de rectificação de registo da AP. ... 13:04:42 ... - CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DE MEMBRO(S) 00(5) ORGÃO(S) SOCIAL(AIS), da sociedade X - LDA, NIPC ..., registado pela Insc. 1, Av. 5, requerendo o cancelamento desse registo de destituição de gerente invocando a nulidade do mesmo, nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 22, aplicáveis por força do n.º 2 do artigo 82 CRCal.

Para o efeito invoca a falta de legitimidade do requerente do registo nos termos do citado alínea b) e d), n.º 1 do artigo 22 e 47 do CRCal; e o seu direito especial à gerência, designadamente por estar "nomeada gerente desde a constituição da sociedade (constituída entre ela e seu marido e, portanto, com apenas dois sócios), pelo que a sua destituição de gerente implicava a redução e supressão de um direito e o impedimento do seu exercício - o que por lei não é permitido, face ao disposto na parte final do n.º1 do artigo 224°, do Código das Sociedades Comerciais, sendo exigido o consentimento de todos os contitulares e, neste caso, a requerente obviamente não consentia na sua destituição."

Cumpriu-se o disposto no art.º 93 do diploma, nos seus n.ºs 1 e 2.

Pelos interessados nada foi dito, e pelo Digno Magistrado do M.ºP.º., foi acompanhada a decisão posta em crise.
O documento que serviu de base ao registo de cessação de funções por destituição foi a Acta n.º 3 da Assembleia Geral, de 21 de Setembro de 2017, tendo o mesmo sido requerido por quem tem legitimidade, nos termos do n.º 1, do artigo 29, - "têm legitimidade os próprios ou seus representantes e todas as demais pessoas que neles tenham interesse.", tudo conforme art.ºs 3,1, m); 15,1 e 32,1 do Código do Registo Comercial, e art.º 63,1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais.

Falece, portanto, o argumento da ilegitimidade.

Quanto ao direito especial à gerência, compulsado o contrato da sociedade "X - Lda", outorgado em 5 de Abril de 1979, constante de fls 49v a fls 51v, do livro de notas para escrituras diversas n.º 18-E, da Secretaria Notarial de Braga, 2.º Cartório, designadamente o seu artigo 5° que menciona "A administração da sociedade e a sua representação em juízo e fora dele, activa e passivamente, compete a ambos os sócios que desde já são nomeados gerentes, sendo suficiente a assinatura de um só gerente para obrigar a sociedade em todos os seus actos e contratos. ". Uma vez que não existiu qualquer alteração a este mesmo artigo, verifica-se que é por interpretação desta cláusula que se pode apurar se a gerência foi atribuída com carácter de direito especial, o que não ocorre, como se constata do texto da mesma.

Segundo a opinião do Professor Jorge Henrique Pinto Furtado na sua obra " Curso de Direito das Sociedades, 4a edição, edição Almedina, a pág. 233, " Os direitos especiais constituem uma daquelas vantagens concedidas em conexão com a constituição da sociedade, que, nos termos do artigo 16 do Código das Sociedades Comerciais devem exarar-se no contrato de sociedade com a indicação do respectivo beneficiário - mas nem toda a vantagem terá a natureza de um direito especial. O mais corrente direito especial costuma ser o direito à gerência. É, naturalmente, por interpretação da cláusula respectiva que se apurará se o direito foi atribuído com caracter de direito especial."

De igual modo podemos invocar a jurisprudência referida na decisão constante de fls. 88: "A nomeação na escritura de constituição de todos os sócios como gerentes, sem qualquer identificação nem indicação de qualquer motivo relativamente a qualquer deles, não é argumento válido para estabelecer a existência de um direito especial à gerência em relação a qualquer um dos sócios." (Ac. RE, de 12.11.1992: BMJ, 421-530); e, de igual modo os Ac. RL, de 14.10.1993: JTRL00012393/ITIJ/Net e Ac. RP, de 9.7.2002: JTRP00034389/ITIJ/ Net).

Concluindo, apreciada a viabilidade do pedido de registo em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se a legitimidade dos interessados, e a regularidade formal dos títulos e a validade dos actas nele contidos, nos termos do artigo 47° do Código do Registo Comercial conclui-se que

- No presente ato de registo não está em causa a al. d), do n.º 1, do artigo 22, do referido Código do Registo Comercial invocada pela impugnante, por o registo ter sido confirmado por pessoa com competência funcional.
- Não há direito especial à gerência por parte da requerente.
Assim, não se dá provimento ao pedido de impugnação formulado pela Autora Maria.
Custas pela A.
R. e notifique.”

7. A 21/09/2017 foi realizada a Assembleia Geral Universal na sede da sociedade X - Lda onde interveio a sócia Maria como titular da quota de 2.000€ e como representante comum da quota indivisa por óbito de outro sócio, seu marido, de 3.000€, que deixou como herdeiros sua mulher e três filhos, sendo um pré-falecido e representado por dois filhos, tendo sido deliberado a destituição da Maria da gerência com os votos favoráveis da quota indivisa e o voto contra da Maria I., enquanto sócia, plasmado na ata e na declaração do seu sentido de voto, que foi junta à ata da Assembleia Geral Universal, fazendo parte integrante da mesma (doc. fls. 40 a 51).
8. Dos estatutos constitutivos da sociedade consta o seguinte:
“Artigo 5º - A administração da sociedade e a sua representação em juízo e fora dele, ativa e passivamente, compete a ambos os sócios que desde já são nomeados gerentes, sendo suficiente a assinatura de um só gerente para obrigar a sociedade em todos os seus atos e contratos.
Artigo 6º - Por falecimento de qualquer dos sócios a sociedade continuará com o sobrevivo e os herdeiros do sócio falecido, devendo estes nomear um entre si que a todos represente na sociedade enquanto a quota se mantiver indivisa.”
9. A Conservatória do Registo Comercial, antes de inscrever no registo a destituição da gerência da sociedade X - Lda, Maria, a requerimento de Manuel, advogado, comunicou à sociedade X - Lda que corrigisse algumas deficiências do requerimento para a inscrição, o que levou à junção de um requerimento subscrito pelo mesmo a 20/10/2017 (doc. fls. 52 a 55).
10. Responderam ao requerimento de retificação especial do registo os sócios contitulares da quota indivisa, filhos e netos do falecido sócio, em que impugnaram pelo indeferimento porque foi votada a destituição da gerência por maioria não representando esta um direito especial à gerência emergente dos estatutos constitutivos da sociedade (fls. 99 a 143).

Vamos conhecer das questões enunciadas.

1. Se a decisão recorrida está ferida de nulidade nos termos do artigo 615 n.º 1 al. d) do CPC. porque o tribunal deixou de pronunciar-se sobre questões que deveria ter apreciado.

A apelante suscita a nulidade prevista no artigo 615 n.º 1 al. d) do CPC. na conclusão 19. A decisão recorrida conhece de duas questões que foram afloradas na petição inicial da impugnação judicial que se traduzem na ilegitimidade da inscrição no registo da destituição da gerência da apelante e do direito especial à gerência invocando a violação do disposto no artigo 22 n.º 1 al. b) e d), requerendo o seu cancelamento.

A apelante, na petição, alega um conjunto de factos para justificar o pedido de cancelamento do registo. Factos estes ligados à constituição da sociedade, aos seus estatutos, à constituição da gerência, à morte do seu marido, à habilitação de herdeiros, à instituição de cabeça-de-casal, à representação da quota indivisa, ao teor da assembleia geral que a destituiu da gerência, e às várias ações que correram termos no tribunal recorrido que vieram a conferir-lhe o direito à gerência que lhe tinha sido retirado por deliberações sociais. E, como estes factos não foram aflorados pela decisão recorrida, considera que o tribunal não conheceu de questões que lhe foram formuladas e a que estava obrigado a decidir.

Analisando toda esta matéria de facto sintetizada poderemos concluir que visava fundamentar o pedido de cancelamento do registo, em que o tribunal recorrido, no seguimento da Conservatória do Registo Comercial, elencou como questões decisivas a decidir a legitimidade do requerente da inscrição do registo e o direito especial à gerência. Todos os outros factos se traduziam em argumentos no sentido de influenciar a decisão, mas não refletiam questões decisivas para fundamentar o pedido.

Pois, o cerne estava no teor da Ata da Assembleia Universal. E, da sua análise, constata-se quem nela interveio, e em que circunstâncias, o que estava em discussão, e o que foi decidido. Todo o afloramento fáctico externo à Ata torna-se irrelevante para efeitos do cancelamento do registo, enquanto não houver uma decisão judicial que anule o seu teor. E isto porque o registo teve como fundamento o teor da própria Ata. Daí que o que estava em discussão era a formalidade da Ata e se a deliberação tomada pela apelante, enquanto representante comum dos contitulares, a vinculava e produzia efeitos jurídicos, o que o tribunal recorrido considerou.

Como o tribunal só está obrigado a conhecer das questões e não de todos os argumentos aflorados, julgamos que não praticou a nulidade apontada pela apelante.

2. Se quem requereu o registo da deliberação social que destituiu a apelante da gerência da sociedade X - Lda tinha legitimidade para o fazer.

A apelante considerou que o registo foi efetuado com base numa exposição/requerimento de 20/10/2017 que não foi assinada pelo legal representante da sociedade nem por procurador ou mandatário com poderes para o efeito, pelo que não constitui título idóneo para o efeito.

A Conservatória do Registo Comercial, sobre este ponto, decidiu que o requerimento foi assinado por tem tinha legitimidade, e o documento que o acompanhou foi a Ata n.º 3, invocando o disposto no artigo 30 n.º 1 al. c) do CRComercial, em que os advogados, notários e solicitadores são os representantes das pessoas que tenham interesse no registo.

O tribunal recorrido seguiu a posição do despacho impugnado considerando que não havia ilegitimidade do requerente invocando o disposto no artigo 29 n.º 1, 3.º n.º 1 al. m), 15 n.º 1 e 32 n.º 1 do CRComercial conjugado com o artigo 63 n.º 1 e 2 do CSC.

No caso em apreço o documento a requerer a inscrição no registo da cessação de funções da anterior gerente foi assinado por advogado como se pode constatar pela sua análise junto a fls.52, assim como um requerimento/exposição de fls. 55, cuja assinatura também é do seu punho. Daí que o advogado subscritor dos requerimentos tenha legitimidade para o fazer nos termos do artigo 30 n.º 1 al. c) do CRComercial, não necessitando de poderes forenses gerais como se pode concluir da conjugação do disposto no artigo 30 n.º 1 (o registo pode ser requerido por:) al. c) (advogados, notários e solicitadores) com o n.º 3 do mesmo normativo, em que só exige poderes forenses gerais quando esteja em causa a impugnação judicial do registo.

O artigo 30 do CRComercial foi alterado pelo Decreto-lei 116/2008 de 4/07 que lhe deu a atual redação. Anteriormente, os advogados ou solicitadores também podiam requerer o registo em nome dos seus representados, sem necessidade de juntarem procuração, porque o artigo 30 n.º 1 presumia a sua representação. Agora, com a nova redação, foram atribuídos poderes aos advogados, notários e solicitadores, sem mencionar sequer a presunção de representação. O que quer dizer que o legislador conferiu-lhes poderes de representação pelo simples facto de serem advogados, solicitadores ou notários. A questão da legitimidade está sanada com a prova da sua profissão. O legislador acreditou que quando estes profissionais intervêm no requerimento do registo o fazem em nome dos seus representados. A conservatória não terá que se preocupar com os poderes que lhe foram conferidos. Apenas tem que se cingir à prova da sua profissão.

3. Se a deliberação social de destituição da apelante da gerência da sociedade X - Lda foi realizada e aprovada pela maioria do capital social.

A apelante defende, nas suas alegações, que a sua destituição da gerência não se encontra exarada de forma expressa e inequívoca na Ata n.º 3, no sentido de que foi pela maioria dos sócios. E nunca poderia ser porque é detentora da maioria do capital social, uma vez que tem uma quota que representa 40% e é contitular da quota indivisa, no valor de 60%, por óbito de seu marido, em ¼.

Daí que a deliberação viole frontalmente o disposto no artigo 250 n.º 3 e 251 n.º 1 do CSC, porque não se verifica uma situação de conflito de interesses, na medida em que não está em causa uma destituição por justa causa (al.f) do mesmo normativo, assim como contraria o disposto no artigo 224 n.º 1 e 2 do CSC, uma vez que a deliberação dos contitulares não vincula a sociedade, mas apenas produz efeitos entre si, concluindo pela nulidade do registo nos termos do artigo 22 n.º 1 als. b) e d) do CRComercial em conjugação com o artigo 82 n.º 2 do mesmo diploma.

O que está em discussão é o valor probatório da Ata n.º 3 que é fundamento do registo que a apelante considera nulo e pretende o seu cancelamento.

No plano formal (doc. fls. 40 a 47) reflete o que se passou no dia 21 de setembro de 2017. Foi realizada uma Assembleia Geral Universal, na sede social da sociedade “X - Lda” em que estiveram presentes a sócia Maria, titular de uma quota no valor nominal de 2.000€, correspondente a 40% do capital social e ainda na qualidade de Representante Comum, designada diretamente por lei, da quota indivisa no valor nominal de 3.000€, correspondente a 60% do capital social, de que era titular seu falecido marido sócio H. S., que assumiu a Presidência.

Ainda estiveram presentes os advogados Manuel Ferreira Ramos e Manuel, que acompanharam, respetivamente, a Maria e L. M., contitular da quota indivisa, como co-herdeiro da herança aberta por óbito de H. S..
Nela foi exarado que “ A sócia Maria, nas qualidades em que intervém, referiu a necessidade e a vontade de se constituir a presente Assembleia Geral Universal para deliberar, conforme os demais contitulares L. M., António, Diana e Pedro da quota indivisa do falecido sócio H. S. também lhe manifestaram, sobre assuntos seguintes:

1º….
2º…
3º Destituir da gerência Maria, independentemente de justa causa.
4º….até 13º.

Em relação ao 3º ponto sobre destituir da gerência Maria independentemente de justa causa:

Na qualidade de Representante Comum da referida quota indivisa e perante o sentido de voto manifestado pelos contitulares L. M., António, Diana e Pedro tem de votar a favor da destituição de Maria do cargo de gerente, porém, na qualidade de sócia vota frontalmente contra esta deliberação e atendendo que por força do pacto social foi-lhe conferido o direito especial à gerência e que segundo a lei tal direito não pode ser suprimido, reduzido ou impedido o seu exercício sem o seu próprio consentimento, pelo que não havendo o consentimento de todos, esta deliberação é considerada não aprovada. (…….)
(….).
Seguidamente Maria deu a conhecer a declaração do seu sentido de voto para ser anexado à presente Acta e dela passar a fazer parte integrante.
--- E não havendo outros assuntos a tratar, a sócia Maria deu por encerrada a presente Assembleia Geral pelas dezanove horas e vinte minutos, da qual lavrou a presente Acta que por si vai ser assinada na dupla qualidade de sócia e de Representante Comum em que interveio.”

No plano material estamos perante uma deliberação social de uma sociedade por quotas com capital social de 5.000€, dividido em duas quotas, uma de 2.000€ pertencente a Maria I. e a outra de 3.000€, indivisa, titulada pela Maria I. enquanto cônjuge do falecido sócio e pelos seus dois filhos e dois netos em representação de seu seu pai J. M. já falecido, em que a Maria I. votou na dupla qualidade, como sócia e Representante Comum, por via legal, da quota indivisa. Nesta segunda qualidade intervém como contitular da quota indivisa.

Nestas circunstâncias coloca-se a questão de saber se a votação, nestas circunstâncias, representa ou não a maioria do capital social.

Da respetiva Ata resulta que houve dois votos diametralmente opostos, por parte da Maria I., aqui apelante. Como sócia, e titular de uma quota representativa de 40% do capital social votou contra o ponto 3º da ordem de trabalhos traduzido na destituição da gerência independentemente de justa causa. E como Representante Comum dos contitulares da quota indivisa, que representa 60% do capital social, votou a favor da destituição por força do acordo maioritário dos outros co-herdeiros.

Como a quota é indivisa, e faz parte do acervo da herança, o voto em causa vale como um único voto, com o valor respetivo de 60% do capital. Não se afere o valor de cada contitular perante a quota, enquanto património da herança, porque é algo a determinar no momento da partilha. Aí é que se irá calcular o valor de cada quinhão hereditário. Neste momento está em causa a gerência da sociedade de que a Maria I. é sócia e contitular de uma quota indivisa.

Assim teremos de concluir que a deliberação no sentido da destituição da gerência foi aprovada com 60% do capital social, traduzido no voto da Maria I. enquanto Representante Comum dos contitulares da quota indivisa, o que representa a maioria do capital social.

E esta deliberação vincula a sociedade na medida em que está em causa a gerência da sociedade. O que não vincula a sociedade é o acordo entre os contitulares no sentido da votação da deliberação, que a Maria I. cumpriu com o voto positivo enquanto Representante Comum dos contitulares da quota indivisa. Daí que não se aplica ao caso em apreço o disposto no artigo 224 n.º 2 do CSC.

4. Se a apelante, como sócia fundadora da sociedade X - Lda e nomeada gerente na escritura de constituição, adquiriu um direito especial à gerência.

Coloca-se a questão do direito especial à gerência. A decisão da conservatória e a recorrida consideraram que se não está em presença de um direito especial à gerência porque não se verificam os pressupostos da especialidade que implica um privilégio em relação a outros sócios, o que não resulta da interpretação do pacto social constitutivo da sociedade, onde foram nomeados gerentes os dois sócios, a apelante e o seu falecido marido, pois não basta a nomeação no título constitutivo para que esse direito nasça.

A apelante insurge-se contra o decidido, defendendo a especialidade do direito à gerência porque foi nomeada gerente com o outro sócio no ato constitutivo da sociedade, o que só, por si, seria suficiente para ganhar foros de especialidade. Por outro lado, enquanto cabeça-de-casal da herança de seu marido administra os bens desta herança ao abrigo do disposto no artigo 2079 do C.Civil, até que se sejam partilhados.

O artigo 24 n.º 1 do CSC prevê a constituição de direitos especiais de alguns sócios no contrato de sociedade. Estes direitos terão de estar expressamente estipulados no contrato ou emergirem dele através da sua interpretação, ao abrigo das regras gerais interpretativas dos negócios jurídicos, de acordo com a natureza das sociedades, de capitais, pessoais, ou mistas (de capitais com cariz personalista), em que predominam mais os interesses dos credores ou dos sócios, no que tange à organização e funcionamento da sociedade, que se reflete numa interpretação mais objetiva ou subjetiva ( Ac. RP. 25/10/2007, relatado por Pinto de Almeida, que expõe várias correntes interpretativas sobre o assunto).

A especialidade destes direitos advém-lhe do privilégio relativamente a outros direitos entre sócios. Têm uma prerrogativa diferenciadora que se evidencia no seu exercício perante os outros.

No caso da gerência, o titular deste direito não pode ser destituído desta função sem seu consentimento, a não ser por justa causa através de uma ação judicial intentada para o efeito (artigo 257 n.º 3, 4 e 5 do CSC).

É pacífico na doutrina e jurisprudência que a especialidade do direito à gerência não se constitui pela simples nomeação de gerente no ato constitutivo da sociedade. Há-de encontrar-se estipulado expressamente no pacto social ou dele emergir por via interpretativa como o já acima afloramos.

No caso em apreço o direito questionado não se encontra expressa ou explicitamente estipulado no pacto social constituinte. E da análise dos artigos 5º e 6º apenas decorre que ambos os sócios, que formaram a sociedade, foram nomeados gerentes, e a assinatura individual vinculava a sociedade. Estamos perante uma situação de igualdade perante a sociedade em termos funcionais. E, em caso de falecimento de um dos sócios, a sociedade funcionaria com o sócio sobrevivo e com os herdeiros que seriam representados por um deles, escolhido pelos outros, enquanto se mantivesse a indivisibilidade da quota.

Do texto destes artigos ou cláusulas contratuais não se vislumbra, de forma inequívoca, que tivesse sido estipulado um direito especial à gerência. Mas de acordo com as regras interpretativas, julgamos que a vontade dos sócios foi no sentido de que a sociedade continuasse com o sócio sobrevivo, e com os herdeiros do falecido, representados por um deles à sua escolha.

Isto não representa um direito especial à gerência, na medida em que, no momento em que foi constituída, não foi previsto que seria vitalícia, pelo menos para a apelante, que apenas tinha uma quota de 40% do capital social. A sua nomeação como gerente, a qualquer momento, poderia ser alterada pelo outro sócio que tinha uma quota de 60% do capital social. O facto de ser gerente no momento da morte do marido não significa que tenha de manter-se esta situação permanentemente.

O facto de ser cabeça-de-casal da herança de seu marido, de que faz parte a quota indivisa, e, enquanto tal, representar os interesses dos co-herdeiros, agiu em nome deles, como mandatária, como resulta da votação expressa na Ata 3 no sentido da sua destituição como gerente.

Não sendo apurado que a apelante detém um direito especial à gerência e havendo uma votação expressa no sentido da destituição da gerente por maioria do capital social é de concluir que o registo impugnado não está ferido da nulidade apontada, porque assenta num documento formal e materialmente válido, pelo que é de manter a decisão recorrida.

Concluindo: 1. O tribunal recorrido não praticou a nulidade invocada e prevista no artigo 615 n.º 1 al. d) do CPC. porque identificou as questões decisivas e tomou posição sobre elas.
2. O requerimento e uma exposição que estiveram na base da inscrição no Registo Comercial de uma deliberação social de destituição da gerência da sociedade X - Lda. foram subscritas por um advogado, que tem legitimidade para o efeito nos termos do artigo 30 n.º 1 al. c) do CRComercial.
3. Considerou-se a deliberação social aprovada com maioria do capital social porque votada pela representante dos contitulares da quota indivisa que representa 60% do capital social.
4. Do pacto social não resulta de forma expressa ou implícita que a apelante gozasse do direito especial à gerência.

Decisão

Pelo exposto acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante.

Guimarães,

Espinheira Baltar
Eva Almeida
Maria Santos