Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
161/16.7T8PTL-A.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES
DESNECESSIDADE DA SERVIDÃO
OBJECTO DA PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da relatora):

I. Estando em causa a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, a mesma pressupõe que a respectiva existência seja revelada no local de implantação por meio de sinais visíveis e permanentes, perceptíveis a qualquer indiferenciada pessoa, e não por indícios apenas perceptíveis a um qualquer perito (arts. 1547º, 1548º e 1550º, todos do C.C).

II. Estando em causa a desnecessidade da dita servidão, por o prédio dela beneficiário confortar com caminho público - com 3,5 metros de largura, compactado e plano, consentindo a circulação de pessoas, animais e quaisquer veículos e máquinas agrícolas, com ou sem cargas, de forma directa, imediata, livre, muito mais rápida, ao mesmo nível do terreno, e em segurança -, esta descrição do dito caminho público contende com realidades físicas directamente percepcionáveis por qualquer indiferenciado observador; e permite uma ilação/conclusão final que apela a regras de experiência comum/geral, presumida no juiz, como na generalidade das pessoas (art. 1569º, nº 2 do C.C.).

III. Sendo o objecto legal da prova pericial a percepção ou apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui, deverá a mesma ser indeferida - por impertinente ou desnecessária - quando essa percepção ou apreciação esteja plenamente ao alcance do julgador, actuando este, para aquele efeito, o seu dever de gestão processual (art. 388º do C.C., e art. 6º, nº 1 do C.P.C.).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Joaquim e mulher, Maria, (aqui Recorridos), residentes na Rua …, freguesia de …, concelho de Ponte de Lima, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Alberto (aqui Recorrente), residente no Lugar …, freguesia de …, concelho de Ponte de Lima, pedindo que:

· fosse declarado que eles próprios são donos e exclusivos donos e possuidores de um prédio misto, composto por casa de habitação e de leiras de terreno de cultivo (que melhor identificaram):

· fosse declarado que o Réu é legítimo e exclusivo dono e possuidor de um prédio urbano, composto por casa de habitação, anexos e logradouro, a confrontar de sul com o seu próprio prédio misto (que melhor identificaram);

· fosse declarado que sobre o prédio urbano do Réu, e a favor do seu próprio prédio misto, está constituída uma servidão de passagem, permanente, durante todo o ano, de pessoas a pé, animais, carro de gado, tractores, máquinas agrícolas e quaisquer veículos (que melhor caracterizaram);

· fosse declarado que lhes assiste o direito de verem reconstituída a situação que existia no leito da servidão de passagem referida, antes dos actos praticados sobre ele pelo Réu (nomeadamente, trancando com chave o portão de acesso àquela, e construindo uma parede alta, em betão armado, tapando por completo a entrada e passagem para o prédio misto deles próprios);

· fosse declarado que lhes assiste o direito de serem indemnizados por todos os danos - passados, actuais e futuros - que sejam consequência directa, necessária e adequada da referida conduta do Réu (que discriminaram);

· fosse o Réu condenado a reconhecer e a acatar esses seus direitos, bem como a abster-se, no futuro, da prática de quaisquer actos que os afectassem;

· fosse o Réu condenado na prática, no prazo de trinta dias, dos actos necessários à reposição da servidão de passagem cujo reconhecimento aqui reclamam (nomeadamente, a entregar-lhes a chave do portão de acesso ao caminho, a abrir uma entrada com o comprimento mínimo de três metros na parede que levantou, e a retirar as pedras e a terra amontadas no seu próprio prédio, provenientes da construção da dita parede);

· e fosse o Réu condenado a pagar-lhes a indemnização que se viesse a liquidar em execução de sentença, destinada a ressarci-los de todos os danos sofridos.

Alegaram para o efeito, em síntese e no que ao objecto deste recurso interessa, que, sendo eles próprios donos de um prédio misto, confinante em parte com um prédio urbano do Réu, não ter o mesmo ligação directa com a via pública, suficiente e capaz para satisfazer todas as suas necessidades e aproveitar todas as suas utilidades (designadamente, para acesso de veículos automóveis de serventia à casa de habitação, e de máquinas agrícolas exigidas pela exploração do terreno e da vinha); e que, há mais de trinta anos, de forma pública e pacífica, acedem a ele por meio de um caminho que atravessa o prédio do Réu, que ostentava sinais visíveis, inequívocos e permanentes, quer da sua existência, quer do destino e uso que lhe era dado.

Mais alegaram que o Réu, sem autorização e contra a sua vontade, colocou recentemente uma fechadura, com comando, no portão de acesso ao dito caminho, que antes era mantido só no trinco; e construiu a todo o comprimento da estrema sul do seu prédio uma parede alta, em betão armado, que tapou por completo a entrada e passagem deles próprios para o seu prédio misto, ficando desde então totalmente impedido o acesso de, e para, a via pública que antes existia.

1.1.2. Regularmente citado, o Réu (Alberto) contestou, pedindo que se julgasse procedente a excepção de ilegitimidade passiva, sendo ele próprio absolvido do pedido e, subsidiariamente, se julgasse a acção totalmente improcedente, por não provada; e deduzindo reconvenção, pedindo

· que se declarasse judicialmente extinta, por desnecessidade, a servidão predial invocada pelos Autores.

Alegou para o efeito, em síntese, ter deixado de ser proprietário do prédio em causa em 5 de Dezembro de 2013, quando o mesmo foi adquirido pelo Banco A, C.R.L., numa acção executiva movida por ela contra si, pelo que não teria legitimidade para ser aqui demandado.

Mais alegou ter o prédio dos Autores acesso à via pública por um caminho público existente a nascente do mesmo, usado de forma contínua para esse efeito, a pé, com tractores, animais e veículos automóveis, conforme sinais visíveis de passagem sobre o mesmo, e cancela existente no muro que delimita o dito prédio.

Alegou ainda que os Autores nunca habitaram a casa existente no seu prédio misto, que se encontra ao abandono desde 2006; e ter sido ele próprio quem abriu o caminho invocado por eles, exclusivamente para aceder ao terreno onde construiu a sua casa, vivendo antes na casa daqueles, com a então sua mulher, filha deles, sendo por isso o dito caminho particular.

Por fim, o Réu alegou que, tendo-se mudado para a sua própria casa em 1992, só por mera cortesia e tolerância foi permitindo que duas filhas dos Autores utilizassem o seu prédio para aceder à casa de habitação daqueles; e ter construído o muro de separação dos dois prédios de comum acordo com os Autores, que inclusivamente acompanharam a construção que ia sendo feita.

Já em sede de reconvenção, o Réu - prevenindo a hipótese de reconhecimento da existência da servidão de passagem invocada pelos Autores - pediu que a mesma fosse declara extinta, por desnecessidade, face ao caminho público de que aqueles disporiam, de acesso à via pública, a nascente do seu prédio misto, cujas características permitiriam a circulação de pessoas, animais, quaisquer veículos e máquinas agrícolas.
O Réu requereu, no final da sua contestação, a realização de uma «perícia ao prédio dos autores e ao prédio» dele próprio, adiantando que em sede de «audiência prévia o réu indicará as questões de facto a esclarecer».

1.1.3. Os Autores replicaram, pedindo que a reconvenção fosse julgada improcedente; e deduzindo incidente de intervenção principal provocada do Banco A, C.R.L..
Alegaram para o efeito, em síntese, que sempre existiu e foi usado o caminho de servidão sobre o prédio agora do Réu para aceder ao deles próprios, sendo que quando aquele construiu a parede de betão que agora os separa deixou inicialmente na mesma uma abertura com três metros de largura, para aquele preciso efeito, só mais tarde, e à sua revelia, a tendo fechado.
Mais alegaram que o mesmo já sucedia com a antiga parede de pedra que dividia os dois prédios, isto é, também ela tinha uma abertura para o caminho de passagem em questão.
Relativamente ao incidente de intervenção principal provada deduzido pelo Réu, os Autores defenderam existir um litisconsórcio necessário passivo, por só a demanda conjunta do Réu e do Banco A, C.R.L. asseguraria o efeito útil normal da acção (face aos vários pedidos por si deduzidos).

1.1.4. Admitida a intervenção principal provada do Banco A, C.R.L. (não obstante a oposição deduzida pelo Réu), e citada a mesma, veio declara fazer sua a contestação e a reconvenção deduzidas pelo Réu.

1.1.5. Foi proferido despacho: admitindo a reconvenção; saneador (certificando a validade e a regularidade da instância, nomeadamente julgando improcedente a excepção de ilegitimidade passiva deduzida pelo Réu); identificando o objecto do litigio (com a reprodução da alegação feita pelas partes nos seus articulados) e enunciando os temas da prova («a) a largura, comprimento, percurso e demais características da parcela de terreno que atravessa o prédio identificado no artigo 3º, da petição inicial e aludida no artigo 12º, da petição inicial», «b) as características dos actos praticados pelos autores e antecessores na referida faixa de terreno, nomeadamente, para passagem para o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial», «c) o período temporal da prática desses actos», «d) as características desses actos materiais ao longo daquele período temporal, nomeadamente se revestiram natureza exclusiva, pública e pacífica», «e) a intenção subjacente a essa prática ao longo do referido período temporal», «f) as condutas do réu que impedem os autores de utilizar a aludida parcela de terreno e de aceder ao seu prédio», «g) os prejuízos patrimoniais sofridos pelos autores em consequência dessa privação», «h) o prazo necessário à reposição do acesso à parcela de terreno e ao prédio dos autores através desta», «i) a existência de outro acesso ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial», «j) as vantagens para o prédio da chamada e a inexistência de prejuízo para o prédio dos autores com a extinção da passagem através daquele»); e apreciando os requerimentos probatórios das partes, nomeadamente deferindo a realização de uma inspecção ao local, e indeferindo a perícia impetrada pelo Réu, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
B- Admito as requeridas declarações de parte do autor à matéria de facto aos temas de prova ora enunciados, nos termos previsto no art.º 466º, do NCPC.
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C- Por tempestivos e respeitarem o número legal de testemunhas, admito os róis de testemunhas apresentados pelas partes (cfr. art.ºs 498º, nº 1 e 511º, nº 1, do NCPC).
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D- Defere-se a inspecção ao local, a qual se realizará no início da audiência final (ar.º 490º e seguintes, do NCPC).
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E- O réu veio requerer a realização de uma perícia com vista a apurar da existência de sinais permanentes da servidão de passagem invocada pelos autores e se o caminho público existente a nascente permite a passagem do prédio dos autores para a via pública.
Ora, afigura-se-nos evidente que o objecto indicado não carece de conhecimentos técnicos especiais, podendo o tribunal verificar das questões de facto invocadas nos autos através da inspecção ao local (igualmente requerida e já deferida), pelo que se indefere a aludida prova pericial por desadequada e inútil (cfr. art.º 130º, do NCPC).
(…)»
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1.2. Recurso (do Réu)

1.2.1. Fundamentos

Inconformado com esta decisão, o Réu (Alberto) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse provido e se revogasse o despacho recorrido, determinando-se a realização da perícia indeferida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui reproduzidas ipsis verbis):

1.ª - Para se apurar a existência ou inexistência, necessidade ou desnecessidade, de um direito legal de servidão de passagem, é imprescindível a verificação, percepção e apreciação de factos por meio de profissionais que possuam conhecimentos técnicos e especializados, devendo o disposto aplicar-se ao caso em apreço
- vd. art.º 388.º do CC.

2.ª - Incumbe ao juiz realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer
- vd. art.º 411.º CPC.
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1.2.2. Contra-alegações (dos Autores)

Os Autores (Joaquim e mulher, Maria Am,elia Lima penha) não contra-alegaram.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 01 única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

· Questão Única - O objecto da prova pericial requerida pelo Réu não exige conhecimentos técnicos especiais que o julgador não possua (mostrando-se por isso desadequada e inútil) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Determinação e interpretação do Direito aplicável
4.1.1. Prova pericial

Lê-se art. 388º do C.C. que «a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando seja necessário conhecimentos especiais que os julgadores não possuam».

Mais se lê, no art. 410º do C.P.C., que «a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova» (lendo-se no art. 513º do revogado C.P.C. que «a instrução tem por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova»).

Deste modo, a prova pericial «traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos específicos ou técnicos especiais, (…); ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 262/263, com bold apócrifo).

Compreende-se, por isso, que se a prova pericial é exigida em contextos em que o julgador (pessoa já necessariamente diferenciada pela sua preparação académica e técnica, e pela respectiva experiência profissional) não se encontra habilitado a, por si só, percepcionar factos, ou a apreciá-los, por convocarem «conhecimentos especiais» que não possui, a credibilidade inerente à competência própria dos peritos não possa ser atribuída a outras indiferenciadas pessoas (partes ou testemunhas).

Contudo, lê-se no art. 389º do C.C. que a «força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal». «Parte-se do princípio de que aos juízes não é inacessível o controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu laudo e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou por afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, p. 583).

«Não tem, inclusivamente, de haver qualquer prevalência dos resultados da segunda perícia sobre os da primeira e, embora aquela se destine a corrigir a eventual inexactidão dos resultados obtidos desta (art. 487-3), os resultados de ambas são valorados segundo a livre convicção do julgador (art. 489» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 298).

Precisa-se, porém, que, se por força desse princípio da livre convicção, o juiz não está obrigado a acatar as conclusões retiradas da perícia, também não pode deixar de entender-se que terá de justificar tal entendimento, rebatendo os argumentos nela expostos.

Com efeito, uma coisa será uma perícia para constatação de factos, os quais podem eventualmente ser confirmados e/ou refutados por outros elementos de prova; outra, bem diferente, será o caso de uma perícia destinada a exprimir um juízo técnico, científico ou artístico, o qual, pela sua própria natureza, só poderá ser infirmado ou rebatido com argumentos de igual natureza, ou seja, de ordem técnica, científica ou artística; e com sujeição aos mesmos métodos (Manuel de Andrade, ibidem).

Logo, o «juiz, querendo responder, num certo sentido, a determinados pontos de facto controvertidos, relativamente aos quais o relatório pericial inculca uma resposta diferente, deverá naturalmente analisar criticamente as restantes provas (…) e mostrar, até certo ponto, que as razões invocadas pelos peritos para lograr determinadas respostas não são convincentes à luz do quadro mais geral de certas provas, que terão inculcado na mente do julgador uma diferente convicção» (J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª edição, Coimbra Editora, 2009, p. 560).

Deverá, assim, reconhecer-se à prova pericial um significado probatório diferente do de outros meios de prova (maxime, da prova testemunhal); mas, se em abstracto, se concede que nem sempre a razão estará do lado do maior número, há que igualmente admitir a possibilidade de um perito ser induzido em erro.
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4.1.2. Servidão de passagem - Prédio encravado

Lê-se no art. 1543º do C.C. que servidão predial «é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente», dizendo-se «serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia».
Mais se lê, no art. 1544º seguinte, que podem «ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor».
Logo, compreende-se que se afirme que são «quatro as notas destacadas neste conceito legal: a) a servidão é um encargo; b) o encargo recai sobre um prédio; c) e aproveita exclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios pertencer a donos diferentes».
Precisando, trata-se «de um encargo que recai sobre o prédio, de um encargo imposto num prédio, de uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão».
Incidindo «em princípio sobre o prédio, considerado como um todo», haverá «muitas vezes que distinguir entre o objecto da servidão, que é o prédio, e o local do exercício dela, que pode ser uma parte limitada do prédio. Sempre que se verifique esta última hipótese, para certos efeitos (vide, por ex., o art. 1546º e o nº 4 do art. 1567º) tudo se passa como se a servidão incidisse apenas sobe a parte do prédio sujeita ao seu exercício» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 613 a 615, com bold apócrifo).

Como exemplo de possível servidão predial conta-se a servidão de passagem sobre um prédio em benefício de outro, encravado, a qual, tendo igualmente (como todas as demais) a sua fonte na lei, pode ser constituída coactivamente, isto é, reconhecendo-se ao titular do prédio encravado o direito protestativo de a obter, prescindindo para o efeito da vontade da titular do prédio dominante (e por isso se dizendo servidão legal ou - com maior - felicidade, coactiva).
Lê-se, a propósito, no art. 1550º, nº 1 e nº 2 do C.C. que os «proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos», de «igual faculdade» goza «o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio».
Logo, o encrave (do prédio) será: absoluto, quando não haja materialmente comunicação com a via pública; e relativo, quando essa comunicação exista, mas seja economicamente inviável.
Em qualquer situação, a «passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados» (art. 1553º do CC).

Relativamente ao modo de constituição, lê-se no art. 1547º, nº 1 do C.C. que as «servidões prediais podem ser constituídas por (…) usucapião», precisando-se porém, no art. 1548º seguinte que as «servidões não aparentes não podem ser constituídas» por esse modo, tendo-se como tais aquelas «que não se revelam por sinais visíveis e permanentes».

Trata-se de um regime que se compreende, atenta a circunstância de as servidões não aparentes (isto é que não se revelem por sinais visíveis e permanentes), poderem estar a ser exercidas na ignorância do proprietário do prédio serviente, ou serem confundidas com actos de mera tolerância deste. «Visa-se, assim, distinguir as servidões dos actos de mera tolerância, de condescendência ou obsequiosidade passageira ou acidental, reconhecendo-se outrossim que a atitude passiva do proprietário pode ser devida apenas à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão, face à ausência de sinais que a revelem (neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 629).

Precisando o que seja: a «visibilidade» dos sinais, dir-se-á que «os mesmos devem manifestar a servidão erga omnes, podendo não apenas o dono do prédio serviente mas também qualquer outra pessoa» observá-los; e a «permanência» dos sinais, dir-se-á que «os mesmos existem sempre, mesmo que se possa verificar a sua substituição ou transformação» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, p. 401).

Logo, não «basta (…) que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores, sendo ainda necessário que os mesmos sejam permanentes, embora não exactamente os mesmos, isto é, os sinais iniciais possam ser substituídos por outros diferentes ou transformados». A «permanência da obra ou sinal torna seguro que não se trata de um acto praticado a título precário, mas de um encargo preciso, de caracter estável ou duradouro» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 629).

No caso particular da servidão de passagem, serão sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, a existência de uma abertura ou carreiro, de um caminho, pelo qual a passagem se exerce; ou de uma entrada, de uma porta ou portal de comunicação, entre o prédio dominante e o prédio serviente. Qualquer pessoa pode ver esses sinais (incluindo, o proprietário do prédio serviente), e daí a sua aparência; e os mesmos permanecem, ainda que a abertura, carreiro, caminho, porta ou portal possam, no decurso do tempo, ser modificados (conforme Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, p. 401, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 630).

Compreende-se que «a razão pela qual apenas as servidões aparentes podem constituir-se por usucapião» seja «a circunstância de um dos requisitos para a aquisição de um direito por usucapião ser o exercício da posse pública, à luz do art. 1297º do CC (…); nas servidões aparentes, a posse, nos termos do direito de servidão é exercida publicamente, isto é, de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262º)» (Rui Pinto e Cláudia Trindade, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, Vol. II, Almedina, p. 415 e 416).

Relativamente ao modo de extinção, e no caso particular das servidões constituídas por usucapião, lê-se no art. 1569º, nº 2 do C.C. que «serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante».

Considerou-se que, sendo as mesmas impostas por factos, «uma vez desaparecidos, ou ultrapassados a latere, os factos que lhes deram origem, nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 676).

Exige-se, porém, para o efeito, não só o requerimento do proprietário do prédio serviente, como uma decisão judicial.
Quanto à desnecessidade propriamente dita, a perda da utilidade para o prédio dominante «não se afere e função da conveniência ou vontade do titular da servidão, mas objectivamente em função das necessidades do prédio dominante. A desnecessidade liga-se, assim, directamente, ao tipo legal do direito de servidão.
Justamente por que o tipo legal do direito de servidão supõe a necessidade para a válida constituição do mesmo, sob pena de violação da tipicidade, a desnecessidade é sempre superveniente» (José Alberto Vieira, Direitos Reais, Almedina, Fevereiro de 2016, p. 739-740. No mesmo sentido, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, 4ª edição refundida, Coimbra Editora, Limitada, 1983, p. 440).
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4.2. Subsunção do caso concreto (ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que os Autores pretendem com os presentes autos que se reconheça a existência de uma servidão legal de passagem sobre o prédio do Réu, em benefício do seu próprio prédio, constituída por usucapião («c) Sobre esse prédio do réu e a favor do dito prédio dos autores, está constituída uma servidão de passagem, permanente, durante todo o ano, de pessoas a pé, animais, carros de gado, tractores, máquinas agrícolas e quaisquer veículos, através do caminho descrito supra no artigo 12.º, que aqui se dá por reproduzido»); e que o Réu, não só nega que o prédio dos Autores esteja encravado, por alegadamente dispor de um acesso próprio à via pública, idóneo a satisfazer todas as suas necessidades («julgar-se a final a presente acção totalmente improcedente por não provada, absolvendo-se o réu do pedido formulado»), como defende que, a ter existido a dita servidão de passagem, a mesma já se teria extinto por desnecessidade («caso assim não se entenda, declarar-se judicialmente extinta por desnecessidade, a servidão predial invocada pelos autores»).

Mais se verifica que, em conformidade com os pedidos formulados, as partes alegaram previamente que:

. Autores (na petição inicial) - «o acesso e passagem desse prédio, de e para a via pública, é constituído por um caminho, que atravessa o prédio do Réu (…) e que apresenta as seguintes características: a) Tem a largura de três metros e comprimento de cerca de 75 metros; b) Inicia-se na via pública e entra no prédio do Réu, na sua estrema norte, no ponto legendado na planta com a letra “A”; c) Segue depois em linha recta, de norte para sul, até à proximidade da casa do prédio do Réu; d) Aí curva à esquerda e contorna a equina norte/nascente dessa casa, prosseguindo depois em linha recta de norte para sul, paralelamente e ao longo da sua fachada nascente; e) Até atingir a estema sul do prédio do Réu e entrar no prédio dos Autores, no ponto assinalado na dita planta com a letra “B”» (artigo 12º); «O prédio do Réu, de início, era de mato, inculto e esse caminho era em terra, compactado, em duro, bem trilhado, com sinais visíveis, inequívocos e permanentes da sua existência, do seu destino e do uso que lhe era dado» (artigo 13º); «Nele o Réu foi efectuando obras ao longo do tempo, que alteraram essa situação» (artigo 14º); «Nomeadamente nele construiu uma casa de habitação e anexos, pavimentou o logradouro envolvente da casa, na zona do caminho, e fez um entrada e colocou um portão no seu início, legendado na referida plantal com a letra “A”» (artigo 15º); «Não obstante primeiramente pela caminho em terra batida e depois através do portão e do logradouro da casa do Réu, no trajecto acima referido no artigo 12º, há mais de trinta anos, ininterruptamente, que é feito o acesso e a passagem, de pessoas a pé, animais, carros de bois, tractores e outras máquinas agrícolas e veículos automóveis, durante todo o ano, de forma contínua e indiscriminada, para satisfazer todas as necessidades e aproveitar todas as utilidades, do prédio dos Autores, fazendo a sua ligação à via pública» (artigo 16º);

. Réu (na contestação) - «Posto isto, como se referiu já, o prédio dos autores confronta, pelo seu lado nascente, com o caminho público» (artigo 58º); «Esse caminho tem uma largura de 3.5 metros, mostra-se compactado e plano, denominando-se “Travessa do Carvalho”» (artigo 59º); «Esta Travessa permite a circulação de pessoas, animais e quaisquer veículos e máquinas agrícolas, com ou sem cargas, de e para o prédio misto dos autores» (artigo 60º); «O acesso dos autores ao seu prédio através dessa Travessa do Carvalho é, deste modo, directo, imediato, livre, muito mais rápido, ao mesmo nível do terreno, e em segurança» (artigo 61º); «Por isso, o acesso e a passagem desse prédio dos autores, de e para a via pública, é perfeitamente possível através desse caminho (Travessa do Carvalho), sem ter necessidade de passar pelo prédio identificado em b) do ponto 1.º» (artigo 62º); «Por outro lado, o trajecto pretendido pelos autores atravessa o logradouro do prédio identificado em b) do ponto 1.º, e por isso, em nada é comparável ao acesso directo e de boas dimensões a partir da Travessa do Carvalho» (artigo 63º); «Note-se que a entrada principal do prédio dos autores confronta directamente com essa via pública, podendo aceder ao mesmo através desse caminho em condições até mais favoráveis do que pelo caminho de servidão» (artigo 64º); «O trajecto pelo caminho que atravessa o logradouro do prédio identificado em b) do ponto 1.º, causa, inevitavelmente, incómodos e prejuízos a quem nele habita, não só porque o prédio fica devassado e o seu uso e fruição limitados, mas também porque o desvaloriza» (artigo 65º); «Ora, podendo os autores aceder ao seu prédio, e deste para a via pública, pela Travessa do Carvalho, com comodidade e regularidade, não se justifica que onerem, desnecessariamente, o prédio identificado em b) do ponto 1.º desta contestação» (artigo 66º).

Verifica-se ainda que, em conformidade com essa alegação, foram enunciados como temas de prova objecto da audiência final, e no que ora nos interessa: «a) a largura, comprimento, percurso e demais características da parcela de terreno que atravessa o prédio identificado no artigo 3º, da petição inicial e aludida no artigo 12º, da petição inicial»; «b) as características dos actos praticados pelos autores e antecessores na referida faixa de terreno, nomeadamente, para passagem para o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial»; «c) o período temporal da prática desses actos»; «d) as características desses actos materiais ao longo daquele período temporal, nomeadamente se revestiram natureza exclusiva, pública e pacífica»; «e) a intenção subjacente a essa prática ao longo do referido período temporal»; «i) a existência de outro acesso ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial»; «j) as vantagens para o prédio da chamada e a inexistência de prejuízo para o prédio dos autores com a extinção da passagem através daquele»).

Por fim, verifica-se que, no final da sua contestação, o Réu requereu a realização de uma «perícia aos prédios dos autores» e dele próprio; e sustentou, em sede de alegações de recurso, pretender com a mesma «fazer prova de que o direito de servidão de passagem invocado pelos autores, ora recorridos, não tem qualquer fundamento, na medida em que o prédio daqueles confronta, pelo seu lado nascente, com o caminho público, caminho este com uma largura de 3,5 metros, terreno compactado e plano, denominado de “Travessa do Carvalho”», permitindo o mesmo «a circulação de pessoas, animais e quaisquer veículos e máquinas agrícolas, com ou sem carga, de e para o prédio misto dos autores, ora recorridos», sendo este acesso «directo, imediato, livre, muito mais rápido, ao mesmo nível do terreno, e seguro», e não «se verificando, assim, a necessidade por parte dos recorridos de atravessar pelo prédio do recorrente para aceder ao seu prédio».

Contudo, e salvo o devido respeito pela sua opinião contrária, assiste efectivamente razão ao Tribunal a quo, quando o mesmo afirma que, visando-se com a perícia «apurar da existência de sinais permanentes da servidão de passagem invocada pelos autores e se o caminho público existente a nascente permite a passagem do prédio dos autores para a via pública», o objecto dessa prova «não carece de conhecimentos técnicos especiais, podendo o tribunal verificar das questões de facto invocadas nos autos através da inspecção ao local», igualmente requerida e previamente deferida, tendo ainda sido decidido «que a audiência final deverá ser realizada no tribunal da área do local do litígio».

Precisando, estando em causa a alegada constituição de uma servidão de passagem por usucapião, a mesma pressupõe que a respectiva existência seja revelada no local de implantação por meio de sinais visíveis e permanentes, perceptíveis a qualquer indiferenciada pessoa (incluindo, o proprietário do prédio serviente, quaisquer testemunhas, ou o próprio julgador), e não por meio de indícios apenas perceptíveis a um qualquer perito (sem que o Réu haja, inclusivamente, discriminado ou justificado a respectiva valência técnica para o efeito).
Relativamente à alegada desnecessidade da dita servidão (por o prédio dos Autores não se encontrar numa situação de encrave), dir-se-á que, tal como o Réu alegou os factos pertinentes à sua demonstração, são os mesmos passiveis de percepção directa quer por testemunhas, quer pelo próprio julgador.

Com efeito, contendem tais factos com a confrontação do prédio dos Autores a nascente com caminho público, dito «Travessa do Carvalho», e com as características materiais deste (alegadamente, com 3.5 metros, compactado e plano, consentindo a circulação de pessoas, animais e quaisquer veículos e máquinas agrícolas, com ou sem cargas, de e para o prédio misto dos Autores, de forma directa, imediata, livre, muito mais rápida, ao mesmo nível do terreno, e em segurança), tudo realidades físicas directamente percepcionáveis por qualquer indiferenciado observador, e que permitem uma ilação/conclusão final que apela a regras de experiência comum/geral, presumida no juiz, como na generalidade das pessoas.
Admite-se que de outro modo se poderia ajuizar se o Réu tivesse, face à prévia alegação de um encrave relativo do prédio dos Autores, aduzido factos tendentes a demonstrar a excessiva onerosidade da servidão a constituir sobre o seu prédio, face a outra alternativa viável (nomeadamente, pela maior desvalorização que assim lhe fosse imposta), a exigir um cálculo com complexas e técnicas avaliações, nomeadamente fundiárias. Não foi, porém, esse o caso.

Logo, bem andou o Tribunal a quo quando, no exercício do poder de gestão processual que lhe está cometido pelo art. 6º, nº 1 do C.P.C., recusou a perícia impetrada, por «impertinente ou meramente dilatória», não consubstanciando a mesma qualquer «diligência necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio», que o art. 411º do C.P.C. lhe impusesse realizar (uma vez os factos que com ela se pretendiam demonstrar extravasam o seu objecto legal, por serem susceptíveis de demonstração, ou infirmação, quer pela prova pessoal arrolada pelas partes, quer pela inspecção judicial requerida por ambas, e já deferida)
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pelo Réu (Alberto).
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu (Alberto), e, em consequência:

· em confirmar integralmente o despacho recorrido (que indeferiu a realização da perícia impetrada pelo mesmo, no final da sua contestação).
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Custas da apelação pelo Réu (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
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Guimarães, 14 de Junho de 2018.

Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha