Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
683/16.0PBGMR.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: FASE DE INQUÉRITO
DESPACHO DO MP
IRREGULARIDADE
COMPETÊNCIA DO JIC
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
O JIC possui competência para verificar a existência de irregularidade em despacho proferido pelo Mº Pº em fase de inquérito, desde que tempestivamente arguida. Tal entendimento não viola a autonomia do Ministério Público, pois que a mesma não pode ser confundida com direcção do inquérito, sem qualquer controlo jurisdicional.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito do Processo com o nº 683/16.0PBGMR, que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Guimarães (J2) do Tribunal da Comarca de Braga, vem o arguido,

José, solteiro, nascido a 26.04.1969 em …, Guimarães, residente na Rua do …, Guimarães,
interpor recurso do despacho que decidiu ser o Juiz de Instrução incompetente para verificar a existência de irregularidade em despacho proferido pelo Magistrado do Ministério Público em Inquérito.

Pede que se revoguem os despachos recorridos e, em consequência, se determine que o conhecimento das questões suscitadas é da competência do Juiz de Instrução Criminal. Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:

Vem o presente recurso interposto do despacho proferida pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, no qual este se julgou incompetente para conhecer da arguição de irregularidade decorrente de violação de caso julgado por banda do Ministério Público e de aplicação pelo mesmo de norma inconstitucional e do despacho que fundamentou o anterior em face de arguição de irregularidade por falta de fundamentação.

Os despachos recorridos partem de dois pressupostos errados, quais sejam: o de que o despacho do Ministério Público, cuja irregularidade foi arguida, foi proferido após o encerramento do inquérito e ainda que as irregularidades durante ou após o encerramento do inquérito são sempre da competência da hierarquia do Ministério Público.

O recorrente / reclamante afirmou a violação de caso julgado formado pelo despacho de concordância proferido pelo Juiz de Instrução Criminal configurando-a como irregularidade e invocou a inconstitucionalidade da interpretação de diversas normas processuais penais e estradais.

O aqui recorrente subscreve, sem dúvidas, que o conhecimento de questões de constitucionalidade no âmbito de processos judiciais incumbe ao tribunal, independentemente do vício que se entenda que lhe está na base (irregularidade, nulidade ou inexistência).

Dispõe o artº 204º da Constituição sobre a epígrafe “apreciação da constitucionalidade” que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”

Deve entender-se que esta norma prevê a competência exclusiva dos Tribunais para o conhecimento de questões de constitucionalidade colocadas nos processos judiciais, sendo ainda tal competência de exercício obrigatório.

Tal raciocínio é devidamente respaldado quer pela doutrina expendida por Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, pag. 52, quer ainda pelas profícuas anotações constantes do acórdão do Tribunal Constitucional nº 200/98, publicado in www.dgsi.pt (amplamente transcritas supra).

E tal competência, como se afirma no supra referido acórdão, assume a veste de um poder dever cometido aos tribunais comuns, devendo os tribunais, que se encontram subordinados à Constituição, controlar ex-officio a constitucionalidade das normas aplicáveis ao caso – cfr. a obra e autores supra citados, pag. 53.

Por razões de clareza de exposição não pode deixar de se transcrever aqui que “o princípio básico é o de recusar à administração em geral e aos agentes administrativos em particular qualquer poder de controlo da constitucionalidade das leis, mesmo se dessa aplicação resultar a violação dos direitos fundamentais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria, 7ª edição, pag. 443 e seguintes).

10ª E ainda: (i) os órgãos e agentes administrativos não se encontram em plano homologo aos tribunais, (ii) o princípio da estrita legalidade administrativa é um dos esteios básicos do Estado de Direito, (iii) falta no Título IX da parte II da Constituição, preceito equivalente ao artº 204º; (iv) a presunção de constitucionalidade associada à promulgação só muito excepcionalmente poderá permitir suspeitas válidas de inconstitucionalidade por parte da Administração; (v) uma imperativa razão de certeza e segurança jurídica determina, atenta a estrutura simultaneamente hierarquizada e plurifacetada da Administração, que sejam os Tribunais, e não os órgãos e agentes administrativos, a decidir da constitucionalidade das leis”. – cfr. o mesmo autor e obra, pag. 64.

11ª A competência de questões de constitucionalidade nos processos judiciais não poderia ser nunca do Ministério Público.

12ª Das decisões do Ministério Público não só não cabe recurso (ordinário ou para o Tribunal Constitucional), como o Ministério Público está obrigado constitucionalmente a interpor recurso para o Tribunal Constitucional de decisões judiciais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade (artº 280º nº1 al. a) e nº3 da Constituição e o artº 72º nº3 da Lei do Tribunal Constitucional).

13ª Neste sentido, caminha o acórdão do Tribunal Constitucional nº 367/05, publicado in www.dgsi.pt, que supra e anteriormente às presentes conclusões, igualmente se transcreveu abundantemente.
14ª Assim, a interpretação do disposto nos artºs 48º, 53º nº2 al. b) e c), 262º nº1, 263º nº1, 267º, 268º a contrario sensu e 278º do Código de Processo Penal, no sentido de que o conhecimento de questão de constitucionalidade suscitada em processo judicial, após ou no despacho de arquivamento do inquérito criminal pelo Ministério Público, é da competência do Procurador titular do inquérito ou do seu superior hierárquico no Ministério Público, é inconstitucional por violação do disposto no artº 2º, 20º nº1, 32º nº1, 204º e 280º nº1 al. a) da Constituição.

15ª É que, não cabendo recurso das decisões do Ministério Público (seja ele ordinário ou para o Tribunal Constitucional), a concessão de competência ao Ministério Público para o conhecimento de questões de constitucionalidade de normas que, neste caso, aplicou em despacho, impediria o conhecimento de questão que coloca em processo judicial pelos tribunais e, do mesmo passo, o recurso de tal decisão por parte do arguido para o Tribunal Constitucional.

16ª A alternativa atiraria o arguido para fora dos tribunais, apenas podendo sindicar tal norma indirectamente por fiscalização abstracta sucessiva da norma inconstitucional.

17ª Deve, assim, concluir-se que o conhecimento de questão de constitucionalidade suscitada após a prolação de despacho de arquivamento relativamente à aplicação pelo Ministério Público de norma inconstitucional, incumbe aos Tribunais.

18ª E, incumbindo aos Tribunais, tal competência, apesar de não inscrita ipsis verbis no artº 268º do Código de Processo Penal, é ao juiz de instrução criminal a quem incumbe a fiscalização da legalidade de actos praticados pelo Ministério Público, sendo que tal sempre se poderia descortinar do preceituado na alínea f) do nº1 do mesmo normativo.

19ª A interpretação errónea do artº 149º do Código da Estrada e ainda a violação de caso julgado não constituiem nulidades, nos termos do disposto nos artºs 119º e 120º do Código de Processo Penal, pelo que as questões colocadas no requerimento em causa, constituem irregularidade, nos termos do disposto nos artºs 118º nº2 e 123º do Código de Processo Penal.

20ª Tendo o arguido suscitado a violação de caso julgado, a decisão que tenha que incidir sobre tal questão tem, também, forçosamente de caber ao Tribunal.

21ª Na verdade, vir o Ministério Público afirmar que um despacho seu viola caso julgado, constituiria venire contra factum proprio, por um lado, e, por outro, tal significaria sujeitar-se a interpretação de uma decisão judicial ao conhecimento do Ministério Público.

22ª E a lei foi extremamente cuidadosa quanto a impedir a ocorrência de violação de caso julgado.

23ª Repare-se que nos termos do disposto no artº 620º nº1 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por via do artº 4º do Código de Processo Penal, as sentenças e despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

24ª Atente-se também na norma do artº 629º nº2 al. a) do Código de Processo Civil que se aplica ao processo penal, independentemente do disposto no artº 400º do Código de Processo Penal.

25ª É certo que o legislador processual penal estabeleceu no Código de Processo Penal um relativamente denso número de normas a reger a matéria dos recursos e não foi prevista expressamente a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça quando ocorresse violação de caso julgado.

26ª Mas, tendo em conta o perigo e o desprestígio que acarreta para a Justiça a existência de decisões contraditórias, é plenamente justificável a abertura da possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

27ª Tal entendimento busca sólido apoio no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/2/81, publicado in BMJ 304/314 ou ainda no acórdão do STJ de 2 de Março de 2001, publicado in www.dgsi.pt e Col. STJ ano IX, tomo 1, pag. 241, relatado por Simas Santos, ou ainda os acórdãos, do STJ, do mesmo Relator de 8/2/01, publicado in www.dgsi.pt e Col. STJ Ano IX, 1, 229 e do STJ de 6/12/89, relatado por Maia Gonçalves, publicado in www.dgsi.pt, de 11/7/91 publicado in CJ, ano XVI, tomo 4, pag. 21.

28ª Entende-se meridianamente que correndo violação de caso julgado em 2ª instância, necessário se torna fazer funcionar um segundo grau de jurisdição quanto a tal matéria, impondo-se a admissibilidade do recurso para o STJ.

29ª Tal interpretação é a mais consentânea com o preceituado no artº 32º nº1 da Constituição da República.

30ª Ou seja, de decisões que ofendam caso julgado cabe sempre recurso para o STJ.

31ª Depois, ainda que não se atribua ao despacho de concordância do Juiz de Instrução Criminal características de despacho judicial e, portanto, se considere ser insusceptível de constituir caso julgado, sempre o despacho do Ministério Público que determinou as injunções a aplicar ao arguido, porque não atacado ou atacável por qualquer forma, constituiria “caso decidido”.

31ª Cabe aqui dizer ainda que com despacho de encerramento de inquérito foi esgotado o poder de direcção do inquérito do Ministério Público, sendo que qualquer despacho posterior terá sempre de ser sindicado por um juiz.

32ª A via que sugere o despacho recorrido não é aceitável, pois que a intervenção hierárquica do Ministério Público apenas se encontra prevista no artº 278º do Código de Processo Penal, sendo que apenas admite reclamação hierárquica do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, nos casos de arquivamento.

33ª Na interpretação da lei o intérprete não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (artº 9º nº1 do Código Civil).

34ª Mas o legislador, quando elaborou a lei estava consciente que existiam outros despacho decisórios do MP que podiam violar direitos e interesses legalmente protegidos do assistente ou mesmo do arguido.

35ª Ao omitir qualquer referência à impugnabilidade de outros despachos decisórios do Ministério Público, o legislador sabia que deixava sem amparo impugnatório pela via hierárquica tais despachos, sendo de concluir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, o que, aliás, se presume (artº 9º nº3 do Código Civil).

36ª Assim sendo, e violando um despacho do Ministério a lei e caso julgado ou caso decidido, constituindo tal violação irregularidade, nos termos do disposto no artº 123º nº1 do Código de Processo Penal, não constituindo tal despacho um arquivamento de inquérito, está sujeito à sindicância judicial.

37ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 123º, conjugada com os artºs 48º, 53º nº2 al. b) e c), 262º nº1, 263º nº1, 267º, 268º nº 1 al. f) e 278º do Código de Processo Penal no sentido de que o conhecimento de qualquer irregularidade cometida em despacho do Ministério Público, posterior ao do arquivamento do inquérito, designadamente por violação da lei substantiva ou por violação de caso julgado, incumbe ao próprio MP, resulta violadora dos artºs 2º, 20º nº1, 32º nº1, 202º nº1 e 2 da Constituição, sendo, como tal, inconstitucional.

38ª Neste sentido inclinam-se o justratadista, Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado, 16ª edição, pag. 304 e também o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2 de Julho de 1996, publicado in CJ ano XXI, tomo IV, pag. 296 e também Conde Correia in Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, pag. 95.

39ª Em auxílio do que supra se vem dizendo, refere-se também o entendimento, em matéria de controlo de legalidade de actos praticados em sede de inquérito, dos Acórdãos da Relação de Lisboa de 24.09.2015, proferido in processo 208/13.9TELSB-B.L1-9, publicado in www.dgsi.pt e de 07.12.2016, proferido in processo 333/14.9TELSB-3, publicado in www.dgsi.pt.

40ª A decisão recorrida violou ou fez errada aplicação das normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas, não podendo, pois, manter-se.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando que o recurso fosse julgado improcedente, ainda que sem apresentar conclusões. Mas realça que entendimento diverso poria em causa a autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer em que perfilha a posição defendida pelo Ministério Público junto da primeira instância.
O recorrente respondeu, reiterando argumentos.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

Através do requerimento ora em apreço veio o arguido invocar a irregularidade, por falta de fundamentação, do despacho judicial de fls. 79, datado de 02/05/2017.
No referido despacho judicial escreveu-se, na sequência do requerimento apresentado pelo arguido e junto aos autos a fls. 62 e seguintes, que «as questões suscitadas dizem respeito a despacho proferido pelo Ministério Público em sede de despacho de encerramento do inquérito, pelo que a competência para a sua apreciação compete ao Ministério Público».
Como se extrai do despacho judicial cuja irregularidade é agora suscitada, a circunstância que levou este Tribunal a entender não ter competência jurisdicional para conhecer da questão suscitada foi exactamente o facto de dizer respeito a despacho proferido pelo Ministério Público em sede de despacho de encerramento do inquérito. Entendeu, em consequência, este Tribunal que a competência pertencia e pertence ao Ministério Público, pelo que tal irregularidade deveria ter sido suscitada perante aquela autoridade judiciária.
A este propósito importa referir que o inquérito é a fase preliminar do processo e é da competência do Ministério Público (artigos 53º 2, alínea b), 263º, nº 1 e 267º todos do Código de Processo Penal), compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e respectiva responsabilidade, bem como descobrir e recolher provas, tudo em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º nº 1 do mesmo código).
No entanto, certos actos do inquérito só podem ser praticados ou autorizados pelo juiz de instrução criminal.
Compete ao juiz de instrução criminal além do mais, praticar todos os actos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas ao inquérito (artigo 17º do Código de Processo Penal). Tais actos encontram-se enumerados, de forma geral nos artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal). Mas, para além deles, outros encontramos dispersos no referido Código, como sucede, a título meramente exemplificativo, com a admissão de assistente (artigo 68º nº 4) ou com a concordância para suspensão provisória do processo (artigo 281º nº 1).
Tem sido controvertida a questão de saber se, na fase do inquérito, a competência para declarar a invalidade dos actos processuais violadores de normas jurídicas é exclusiva do juiz de instrução criminal ou se também o Ministério Público pode efectuar tal declaração com os consequentes efeitos.
Cremos, tal como referido no despacho colocado agora em crise, que tratando se de acto respeitante ao inquérito, cuja direcção cabe exclusivamente ao Ministério Público (artigo 219º da Constituição da República Portuguesa), terá de ser esta autoridade judiciária a decidir se nesta fase um acto processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular e desse despacho caberá então reclamação para o respectivo superior hierárquico.
A competência concorrente do Ministério Público e do juiz de instrução na fase de inquérito tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal.
Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito.
Assim, afigura-se-nos que durante o inquérito o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência ou que determinem nulidades insanáveis.
Concedemos, ainda, que tratando-se de nulidade sanável susceptível de afectar direitos, liberdades ou garantias de algum sujeito processual e de se integrar na previsão da alínea d) do nº 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal, possa ser suscitada no prazo peremptório previsto no nº 3 alínea c) do mesmo preceito, sob pena de se considerar sanada.
Sucede que, como resulta dos autos, o arguido pretende ver declarada a irregularidade do segmento descrito a fls. 62, ínsito no despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público a fls. 45.
Cremos, pois, pelo exposto que a competência para apreciar a suscitada questão pertence ao Ministério Público, devendo, por isso mesmo, manter-se na íntegra o despacho por nós proferido a fls. 79.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em questão está, tão só, saber se o Juiz de Instrução tem competência para apreciar eventuais irregularidades cometidas na fase de inquérito pelo Ministério Público.
*
Compulsados os autos, verificamos que se iniciaram com a notícia de que o arguido/recorrente se tinha recusado a efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue.
No decurso do inquérito, considerou o Ministério Público que os autos indiciavam a prática pelo arguido de um crime de desobediência p. e p. pelos arts. 348º, nº 1, alínea a) e 69º, nº 1, alínea c) do Cód. Penal, ex vi o art. 152º, nº 3 do Cód. da Estrada, mas entendeu também estarem verificados os pressupostos para aplicar a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º do Cód. Proc. Penal, mediante o cumprimento pelo arguido de determinadas injunções. O Juiz de Instrução deu a sua concordância.
Terminado o período da suspensão, a Digna Magistrada do Ministério Público titular do inquérito proferiu o seguinte despacho:

«Atento o cumprimento das injunções fixadas, bem como o decurso do prazo de duração da suspensão provisória aplicada, não sendo conhecidos quaisquer factos que determinem a sua revogação, determino o arquivamento dos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 282º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Notifique.
Com cópia, comunique o presente despacho à ANSR, nos termos do disposto no artigo 149º, nº 2 do Código da Estrada.»
Notificado deste despacho, veio o arguido apresentar requerimento, dirigido ao Juiz de Instrução, arguindo a irregularidade do mesmo e alegando que o despacho judicial de concordância com a suspensão provisória do processo faz caso julgado formal quanto às injunções aplicadas, não podendo ser aplicada qualquer outra injunção que não tenha sido concretamente pedida pelo Ministério Público e aceite pelo arguido, pelo que ao enviar a decisão dos presentes autos à ANSR, o Ministério Público estaria a fazer acrescer à sua proposta, já aceite pelo JIC através do despacho judicial de concordância, uma nova sanção acessória aí não prevista.
Conclui serem inconstitucionais as normas conjugadas dos arts. 148º nºs 1 e 2 e 149º nºs 1 e 2 do Cód. da Estrada e o art. 281º nº 3 do Cód. Proc. Penal na interpretação segundo a qual do cumprimento de uma injunção decorre necessária e automaticamente a subtracção de pontos da carta de condução, sem que seja aquilatada a sua necessidade no caso concreto ou previstos os seus pressupostos, por violação do disposto nos arts. 2º, 18º, nº 2, 29º nºs 1 e 4 e 30º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
E termina requerendo que o Tribunal desaplique as normas contidas nos artigos 148º nºs 1 e 2 (e por consequência o artigo 149º nº 2) do Cód. da Estrada, nos termos do art. 204º da Constituição, revogando o referido despacho e segmento.
Sobre este requerimento recaiu despacho proferido pelo Mmo. Juiz de Instrução nos seguintes termos: “A questão suscitada diz respeito a despacho proferido pelo Ministério Público em sede de despacho de encerramento do inquérito, pelo que a competência para a sua apreciação compete ao Ministério Público. Assim sendo entendo nada haver a decidir”, despacho em relação ao qual foi arguida falta de fundamentação que veio a ser reconhecida pelo despacho agora sob recurso.

Como já referimos, a questão em análise não se prende com a apreciação da bondade da comunicação ordenada pelo Ministério Público à ANSR, nos termos do disposto no artigo 149º, nº 2 do Cód. da Estrada, mas apenas com a eventual competência do Juiz de Instrução para apreciar o requerimento em que é arguida a irregularidade dessa comunicação.

Sempre que haja notícia de um crime inicia-se um inquérito com o objectivo de apurar se foi efectivamente praticado um crime, fase que termina com um despacho, ou de arquivamento, ou de acusação (art. 276º, nº 1, do Cód. Proc. Penal).
A competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público (cfr. arts. 219º da Constituição da República Portuguesa e 262º do Cód. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional.
Assim é por força da estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art. 32º, nº 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que a acusação – que define e fixa o objecto do processo, imputando um crime a determinada pessoa – tem que ser deduzida por um órgão distinto do julgador. De resto, a vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz do julgamento não interveio na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz, constituem corolários decisivos do princípio do acusatório.
Todavia, o princípio do acusatório e o facto da direcção do Inquérito competir ao Ministério Público, não significa que, ultrapassada a fase de inquérito, o juiz não possa sindicar a legalidade dos actos praticados nessa fase.
E durante a fase de inquérito?
A este respeito esclarecemos, desde já, que o despacho – ou melhor, o seu segmento – proferido pelo Ministério Público e cuja irregularidade foi arguida, não é um segmento de despacho subsequente à fase de inquérito.
O despacho em questão visa o arquivamento do inquérito e as notificações e comunicações ordenadas com vista a dar conhecimento desse arquivamento têm que ser entendidas ainda como integrantes desse despacho e não posteriores ao arquivamento.
Como dissemos, a competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público (cfr. arts. 219º da Constituição da República Portuguesa e 262º do Cód. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional.
Concretamente, nos termos do art. 17º do Cód. Proc. Penal, compete ao Juiz de Instrução Criminal, além de conduzir a instrução e decidir da pronúncia, praticar todos os actos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas ao inquérito - os arts. 268º e 269º do Cód. Proc. Penal concretizam alguns desses actos.
Consideramos, porém, que nenhuma dessas normas estabelece de forma taxativa a competência do Juiz de Instrução.
Nomeadamente, a questão de saber se a competência para apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito é do Ministério Público ou do juiz de instrução, em face da referência ao juiz no que respeita aos efeitos de declaração de nulidade, não é consensual.
De acordo com Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edª., anotação 5 ao artº 118º, pág. 299), a competência para apreciação das nulidades em sede de Inquérito é do Ministério Público, referindo que, “(…) Durante o inquérito o MP e o juiz de instrução têm ambos competência para declarar um acto processual inexistente, nulo ou irregular ou uma prova proibida. Esta solução é imposta pela conjugação de dois princípios estruturantes do processo penal: o princípio da legalidade e o princípio da estrutura acusatória do processo penal (…) Contudo, esta concorrência concorrente tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade dos actos da sua competência e o magistrado do MP só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência, nestes se incluindo actos investigatórios”.
No mesmo sentido Paulo Dá Mesquita (Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pág. 309), afirma que, “(…) a metodologia funcional da Constituição da República Portuguesa não acolheu tal conceito material de jurisdição. Portanto ao MP compete conhecer e apreciar as nulidades em fase de Inquérito, (…) contudo esta decisão do MP, sendo definitiva na sequência procedimental do Inquérito, não vincula o órgão judicial que tiver de intervir nas subsequentes fases processuais (…) o MP detém um poder de cognoscibilidade que, contudo, não forma caso decidido, (…) existindo ainda um poder judicial de controlo dessas invalidades, em sede de incidentes judiciais em que se revelem os actos inválidos ou no decurso de fases dirigidas judicialmente”. Perfilha a mesma posição Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado, 11ª Edição, 2007, pág. 313)
Ainda no mesmo sentido podem ver-se os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26.02.2014 (Proc. 9585/11.5TDPRT.P1), de 15.02.2012 (Proc. 36/09.6TAVNH.P1) e de 2.11.2015 (Proc. 0541293); o acórdão da Relação de Guimarães de 20.09.2010 (Proc. 89/09.7GCGMR.G1); e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.05.2011 (Proc. 1566/08.2TACSC.L1.5).
Em sentido oposto, João Conde Correia embora entenda que o Ministério Público pode reparar as invalidades cometidas por si próprio na fase de Inquérito, defende que “(…) o Ministério Público não tem competência para declarar a invalidade, atento o carácter materialmente judicial da declaração de invalidade. Desde logo porque as decisões do MP não estão protegidas pela força de caso julgado e delas não é possível recorrer”.
No sentido de que a competência para apreciar nulidades é do Juiz de Instrução veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 7.02.1996, CJ, XXI, I, 51; do Tribunal da Relação do Porto de 30.05.2001, CJ, XXVI, III, 241; do Tribunal da Relação de Évora de 02.07.1996, CJ, XXI, IV, 296; e do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.09.2008, (Proc. 1640/06.0TAAVR-C.C1).
Secundando os argumentos perfilhados no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2015 (Proc. 208/13.9TELSB.L1-9), diremos que:

«O Código ao longo de todo o seu articulado, estabelece especificamente um conjunto de competências do juiz de instrução, deixando nos artigos 268º, nº 1, al. f) e 269º, nº 1 al. f), tal como já tinha feito no artigo 17º, uma porta aberta para outras situações de competência não especificadas ao estatuir, “Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução” e “(…) quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução”, respectivamente. Como exemplos de outras intervenções do juiz de instrução, para além das referidas nos citados preceitos podemos, entre outras, encontrar a suspensão provisória do processo (artigo 281º), a admissão do assistente (artigo 64º) e as declarações para memória futura (artigo 271º).
Da leitura destes preceitos (…) parece concluir-se que o legislador não estabeleceu um numerus clausus no que respeita às competências do juiz de instrução, nomeadamente no que respeita à sua intervenção no inquérito. Se o legislador tivesse pretendido que a intervenção do juiz de instrução se cingisse apenas aos casos expressamente previstos na lei, não teria lançado mão de normas em branco em matéria de competência mesmo, ainda que de forma ambígua, nas normas em que especificadamente a consagra como são os artigos 268º e 269º do Código de Processo Penal.
É tendo na base esta opção legislativa, a qual se compreende dado o melindre das matérias em causa, que o legislador, em matéria de apreciação de nulidades cometidas em sede de inquérito, parece apontar para uma competência do juiz de instrução, em tudo que se prenda com direitos liberdades e garantias.
Esta mesma percepção pode ser retirada das disposições do Código de Processo Penal em matéria de nulidades. Na verdade, ainda que o legislador não diga expressamente a quem compete apreciar as nulidades cometidas em sede de inquérito, o mesmo, no inciso 122º nº 3 do Código de Processo Penal, relativo aos efeitos da declaração de nulidade, estatui que, “Ao declarar a nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”. Em todo o articulado referente às nulidades, com excepção deste preceito, nunca se faz qualquer referência à competência do juiz ou do Ministério Público, nem se distinguem as várias fases do processo criminal, para além do que resulta da tipificação das várias nulidades expressamente cominadas».
Conclui que estando em causa uma “lesão grave dos direitos de defesa do recorrente na sua dimensão constitucional e processual (…) enquanto núcleo essencial do processo criminal, só pode ser apreciada por um órgão jurisdicional independente e imparcial, no caso o juiz de instrução”.
E na mesma senda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7.12.2016 (Proc. 333/14.9TELSB.L1-3) afirma que «(…) é ao MP que cabe exclusivamente a direção do inquérito – artº 263º CPP - devendo dirigir a investigação, ordenar a recolha de meios de prova necessários à recolha de indícios, determinar os agentes de um crime e as respectivas responsabilidades tudo com vista à formulação do libelo acusatório ou ao arquivamento da investigação/ inquérito. No entanto, em toda esta actividade de investigação cabe ao JIC zelar e velar para que os Direitos Liberdades e Garantias dos envolvidos nos processos sejam protegidos/observados como podemos concluir da leitura rápida dos artigos 205º, 268º e 269º do CPP e sem esquecer o artº 17º do CPP e a nossa Lei Fundamental.
O MP não define ou delimita direitos, não se pronuncia pela sua eventual violação ou, pelo menos, não decide da invocada violação dos mesmos, assim como das garantias e das liberdades (…) nesta fase processual o JIC é chamado como o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias e em relação às quais tem necessariamente de se pronunciar (…) É sem dúvida ao JIC que compete pronunciar-se quanto a estas questões – artº 202º CRP, porque compete aos tribunais assegurar a “defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” - artigo 32º da CRP, nº 1 do artigo 20º CRP».
Como ainda se aduz em declaração de voto neste acórdão: «o juiz de instrução não pode declarar, durante o inquérito a invalidade de atos processuais presididos pelo Ministério Público", tendo em atenção o princípio da autonomia do Ministério Público. (…) O juiz é hierarquicamente incompetente para anular actos decisórios do Ministério Público – o juiz de instrução em 1ª instância não pode funcionar como uma espécie de instância de recurso das decisões do Ministério Público – mas é materialmente competente para se pronunciar sobre todas as questões respeitantes a direitos liberdades e garantias e é essa a sua primeira obrigação: deve decidir, não se demitindo da sua função de garante dos direitos liberdades e garantias, independentemente da posição assumida pelo Ministério Público no processo.
Quer isto dizer que embora o juiz não seja hierarquicamente competente para anular despachos do MP tem o poder/dever e a competência material para apreciar se a questão contende com os direitos liberdades e garantias fundamentais e, entendendo que sim, deve decidir oficiosamente ou a requerimento (independentemente da configuração dada ao pedido formulado), não estando limitado por posições anteriormente tomadas pelo Ministério Público. É esta a conjugação que importa efectuar entre o princípio da autonomia do Ministério Público e a garantia dos direitos liberdades e garantias fundamentais que cabe ao juiz de Instrução assegurar. Mal se compreenderia que uma decisão que pusesse em causa esses direitos fundamentais não pudesse ser passível de recurso e transitar em julgado
».
Não podemos deixar de concordar.
E se tal acontece para alegadas nulidades, entendemos que também para o caso de irregularidades tempestivamente arguidas e onde igualmente se suscite a questão de violação de direitos, liberdade e garantias, não há motivo para decidir de diferente forma.
Lembramos que das decisões do Ministério Público não cabe recurso, mas apenas reclamação hierárquica. Ora não havendo recurso, desde logo o eventual ofendido pela decisão também não pode suscitar qualquer questão que pense ter ofendido os seus direitos, liberdades e garantias para o Tribunal Constitucional, o que desde logo limita gravemente a sua tutela.
Nestes termos, e salvo o devido respeito por opinião contrária, tendo o recorrente alegado a violação do caso julgado (não cabendo agora verificar se com razão) e de vários preceitos constitucionais, não podia o Mmo. Juiz de instrução declarar-se desde logo incompetente, cabendo-lhe apreciar o requerido.
Apenas cumpre acrescentar que este entendimento não viola a autonomia do Ministério Público.
O nº 2 do art. 219º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio de autonomia do Ministério Público, depois densificado no respectivo Estatuto. Esta autonomia significa que o Ministério Público não recebe ordens ou instruções dos demais poderes do Estado, tal como os respectivos Magistrados em relação ao exercício dos poderes funcionais que lhes cabem, salvas as excepções consagradas na lei e nos Estatutos. Refere Souto de Moura (in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos/justicaeminpub_soutomoura.pdf) que a autonomia do Ministério Público “(…) não se traduz na transposição para o Estatuto do MP da independência individual dos juízes. Por isso também não confere aos cidadãos uma garantia igual à que integra o princípio do juiz natural. Autonomia do MP significa tão só que as opções tomadas no seu seio ocorrem sem interferências externas àquela magistratura”. Ou seja, a autonomia do Ministério Público não pode ser confundida com direcção do inquérito sem qualquer controlo jurisdicional.
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Decisão

Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso e revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que aprecie a irregularidade arguida.
Sem custas.
Guimarães, 5.02.2018
(processado e revisto pela relatora)


(Alda Tomé Casimiro)
(Fernando Pina)