Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
164/11.8TBBCL-D.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: INVENTÁRIO
ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
BENFEITORIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I) - A acessão industrial imobiliária ocorre quando com um prédio, que é propriedade de alguém, se une e incorpora outra coisa que não lhe pertence, daí advindo uma ligação material, definitiva e permanente entre a coisa acrescida e o prédio e a impossibilidade de separação das duas coisas sem alteração substancial do todo obtido através dessa união (artºs 1325º e 1326º do Código Civil).
II) - Segundo a corrente largamente maioritária na doutrina e na jurisprudência (“doutrina da aquisição potestativa”), a aquisição por acessão imobiliária é uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, que depende, para se concretizar, de manifestação de vontade nesse sentido por parte do respectivo titular e em que o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação.
III) - Enquanto a acessão industrial imobiliária não for exercida, recaem sobre o prédio duas propriedades distintas – uma sobre o solo e outra sobre a obra nele incorporada, e os respectivos sujeitos conservam os seus direitos e podem exercê-los de harmonia com as circunstâncias. Ou seja, o dono da obra incorporada exerce totalmente os poderes de facto que são conteúdo da propriedade, e da mesma forma exerce os poderes jurídicos que lhe correspondem.
IV) - Num processo de inventário para partilha de bens comuns em consequência de divórcio, devem ser relacionados pelo cabeça-de-casal, como activo do património comum, as construções que o extinto casal, na constância do matrimónio, implantou em dois prédios pertencentes à mãe do cabeça-de-casal (mais concretamente uma moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte), enquanto não for pago à proprietária desses prédios o valor da compensação fixada em sentença transitada em julgado, como condição suspensiva da aquisição dos mesmos pelo ex-casal, por acessão industrial imobiliária, dado terem existência jurídica autónoma, integrando o direito de propriedade sobre essas realidades físicas o património conjugal objecto de partilha.
V) - A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa, atribuindo a lei ao seu autor um direito de levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada.
VI) - A acessão, diversamente, é um fenómeno que vem do exterior, de uma pessoa que não tem contacto ou qualquer ligação jurídica com a coisa, podendo, neste caso, conceder-se um direito de propriedade.
VII) - Na espécie industrial imobiliária, teremos como pedra de toque, para a demarcação entre benfeitorias e acessão, a natureza inovadora e transformadora das obras, que podem ter lugar em qualquer prédio alheio, seja unicamente no solo, seja em construção nele existente, desde que, no entanto, se não trate de simples obras de melhoramento, conservação ou reparação.
VIII) - Não tendo sido ainda pago à proprietária dos prédios onde foram incorporadas as construções efectuadas pelos ex-cônjuges, o valor da compensação fixada em sentença transitada em julgado, como condição suspensiva da aquisição, por acessão industrial imobiliária, dos aludidos prédios pelo extinto casal, permanecendo, por isso, o direito de propriedade sobre os mesmos na esfera jurídica daquela, deve tal valor ser relacionado como passivo do património comum.
IX) - Não tendo sido fixado, na sentença, qualquer prazo para que fosse consignada em depósito ou paga à proprietária dos prédios onde foram incorporadas as construções efectuadas pelo extinto casal, a quantia fixada como condição suspensiva da aquisição das propriedades que ainda lhe pertencem, e não tendo aplicação, por analogia, no âmbito da acessão industrial imobiliária e do exercício do direito a adquirir a propriedade por essa via, o disposto no artº. 830º, nº. 3 do Código Civil ou no artº. 31º, nº. 6 do DL 294/2009 de 13/10, não pode extrair-se como consequência automática, ope legis, a caducidade deste direito caso não seja exercido nos prazos ali fixados.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA veio instaurar processo de inventário para partilha de bens comuns em consequência de divórcio, contra o seu ex-cônjuge BB, alegando, em síntese, que por sentença proferida em .../.../2011, transitada em julgado em .../.../2011, foi decretado o divórcio entre a requerente e o requerido, havendo bens comuns do ex-casal a partilhar, não existindo, no entanto, acordo quanto à sua partilha.

Nomeado o requerido para o cargo de cabeça-de-casal, veio o mesmo em 28/02/2022 apresentar a relação de bens que consta de fls. 15 e verso destes autos, na qual relaciona apenas dois créditos do extinto casal:

a) um, no montante de € 49.000,00, detido sobre o próprio cabeça-de-casal, referente às construções realizadas (muros e um pavilhão) num prédio que era sua propriedade;
b) outro, no montante de € 2.500,00, detido sobre CC, a título de benfeitorias realizadas num jazigo/capela pertencente à família da indicada devedora.

Em 3/03/2022 a requerente do inventário veio apresentar reclamação da relação de bens, nos termos da qual pretende que:

i) sejam relacionados os bens imóveis identificados nos pontos 3. e 6. e 4. e 7. dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº. 1151/12...., que correu termos no Juízo Local Cível ... – J..., assim como a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte que neles edificou o extinto casal, conforme os factos provados sob os nºs 8 a 21 da dita sentença, pelo valor de € 287.670,00 (€ 40.670,00 + € 247.000,00) resultante dos factos provados sob os nºs 31 e 32 da mesma sentença;
ii) seja excluído da relação de bens o crédito de € 2.500,00 detido sobre CC, por se achar extinto por compensação, ao ser deduzido à quantia do débito de € 40.670,00 fixado como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade sobre os prédios supra referidos na alínea i) como não relacionados, cujo pagamento a CC teria de ser feito por parte do extinto casal, como decidido também na referida sentença;
iii) seja relacionado, como passivo, o montante de € 38.170,00 a actualizar segundo o índice de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016, correspondente à dívida do extinto casal a CC (mãe do cabeça-de-casal), como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade, pela via da acessão industrial imobiliária, dos prédios identificados nos pontos 3. e 6., e 4. e 7. dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº 1151/12.... do Juízo Local Cível ... - J... (cfr. fls. 41 a 43vº destes autos).

Em 4/04/2022 veio o requerido/cabeça-de-casal apresentar resposta, na qual sustenta que:
a) os referidos bens imóveis, identificados nos pontos 3. e 6., e 4. e 7. dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº 1151/12.... não devem ser relacionados como bens imóveis da propriedade do extinto casal, porque não foi efectuado o pagamento a CC da quantia de € 38.170,00, devidamente actualizada, fixada na aludida sentença como condição suspensiva da aquisição desses imóveis;
b) deverá ser avaliado o terreno no qual foi incorporado/melhorado o imóvel em causa para aferir o valor actual de cada m2 do mesmo, e avaliado também esse imóvel melhorado/incorporado; após tal avaliação, deverá ser calculado o valor da dívida de CC ao extinto casal, por forma a que a mesma seja relacionada como activo no presente inventário; considerando-se nesse exercício as despesas que esta vem custeando com o processo de licenciamento e legalização da obra, e com os trabalhos de manutenção e conservação dos prédios em causa, tais como a execução de um muro de suporte do terreno e a mudança de telhado, despesas essas que ascendem a mais de € 40.000,00;
c) aceita a extinção do crédito de € 2.500,00, por via da compensação, detido sobre CC e que o mesmo seja, assim, excluído da relação de bens (cfr. fls. 44 a 46vº destes autos).

Após a requerente do inventário ter exercido o seu direito ao contraditório sobre os documentos que o cabeça-de-casal juntou com a resposta à reclamação e, do mesmo passo, ter pugnado pela falta de fundamento legal das avaliações aí requeridas por aquele, pois teriam por objecto factos que colidiriam frontalmente com o princípio do caso julgado, nos termos plasmados no requerimento de 13/04/2022 (refª. ...63), veio o cabeça-de-casal apresentar novo articulado em 28/04/2022, com a refª ...76, invocando que se extinguiu, por caducidade, o direito de o extinto casal adquirir, por acessão industrial imobiliária, os prédios que, segundo defende, são ainda da propriedade de CC (ou seja, os identificados nos pontos 3. e 6. e 4. e 7. dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº 1151/12....), por não ter sido paga à mencionada CC a quantia de € 38.170,00 fixada na sentença de 29/06/2016, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da mesma – pois considera que, embora a sentença não tenha fixado prazo para o pagamento daquela quantia, é aplicável subsidiariamente a solução consagrada no artº. 28º, nº. 5 do DL 385/88 de 25/10 (Lei do Arrendamento Rural) – insistindo, ainda, na realização das três avaliações que requereu na resposta à reclamação (cfr. fls. 64 a 66 destes autos).

Não tendo sido requerida a produção de quaisquer outras provas para além dos documentos oferecidos pelas partes, nem se afigurando necessário ao Tribunal de 1ª instância ordená-las oficiosamente, em 13/10/2022 foi proferida decisão sobre o incidente de reclamação contra a relação de bens nos seguintes termos:

«Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pela parcial procedência da reclamação, decido que sejam aditados pelo cabeça-de-casal à relação de bens:
a) Como activo do património comum, a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte implantados pelo extinto casal nos prédios da mãe do cabeça-de-casal, tal como descritos nos factos dados como provados nos pontos 8., 10., 12., 13., 14., 15. e 21. na sentença proferida no processo que correu termos sob o nº. 1151/12.... pelo Juízo Local Cível ... – J...;
b) Como passivo do património comum, a dívida a CC no valor de € 38.170,00, a actualizar segundo o índice de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016, fixada como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade dos prédios identificados nos pontos 3. e 6., e 4. e 7. dos factos dados como provados na mencionada sentença.
*
Custas do incidente pela reclamante e pelo cabeça-de-casal na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 1/5 e 4/5, respectivamente (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).»

Inconformado com tal sentença, o requerido/cabeça-de-casal BB dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:

A. O Apelante, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda da douta decisão no incidente de reclamação ora recorrida, no que concerne à parcial procedência dos pedidos;
B. Designadamente a integrar como património ativo comum, a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte nos prédios da mãe do cabeça de casal;
C. Bem como integrar como passivo do património comum a dívida a CC no valor de 38.170,00€, fixada como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade dos prédios da mãe do cabeça de casal.
D. Fundamenta o tribunal “a quo” a sua decisão na tese de aquisição imobiliária de aquisição do direito de propriedade.
E. Na decisão da ação que correu termos pelo Juízo Local Cível ... – J... sob o nº 1151/12...., ficou decidido que:
“a) declarar adquirido pelo extinto casal formado por AA e BB, o direito de propriedade que a ré CC detinha sobre a casa referida em 3) e 6) e sobre o prédio rústico indicado em 4) e 7) dos factos provados, por via da acessão industrial imobiliária, condenando-se a ré no reconhecimento desse facto;
b) declarar que assiste ao extinto casal formado por AA e BB um crédito sobre a ré CC, no valor de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), a título de benfeitorias realizadas no bem descrito em 34) dos factos provados, condenando se esta a reconhecer este mesmo facto;
c) fixar, como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade mencionado em a), o pagamento à ré CC, por parte de AA e BB, da quantia de 40.670,00€ (quarenta mil seiscentos e setenta euros), deduzida do crédito referido em b), por efeito da invocada compensação, o que totaliza o valor líquido de 38.170,00€ (trinta e oito mil cento e setenta euros), a atualizar segundo os índices de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016 (data da presente decisão).”
F. Acessão - causa de aquisição originária da propriedade (1316º do Código Civil) – dá-se quando à coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia (artigo 1325º do CC);
G. Quando por facto do homem ocorre a confusão entre objetos de natureza imobiliária pertencentes a diversos donos, designa-se à faculdade de resolver o conflito entre estes através da aquisição da propriedade nos termos e com os requisitos previstos nos artigos 1339º e segs. do CC “acessão industrial imobiliária” (artigo 1326º do CC);
H. Perante a ocorrência de uma sobreposição de duas propriedades distintas, não suportada por um direito de superfície validamente, a lei vem arbitrar o possível conflito daí emergente, mediante a fixação abstrata de um critério de prevalência;
I. O legislador faz depender, nesta situação em concreto, o direito à aquisição do direito de propriedade do prédio no qual foi construída obra por terceiro não proprietário do mesmo como requisitos substantivos e de forma cumulativa: a boa-fé, o valor da obra realizada e a incorporação da obra no terreno alheio;
J. É ainda pressuposto da acessão imobiliária industrial o pagamento do valor que o prédio tinha antes da obra;
K. A necessidade de ser pago o valor do prédio, evidenciando ser este pagamento uma condição daquela aquisição que assim pressupõe a respetiva manifestação de uma vontade;
L. Caso contrário o proprietário ver-se-ia na contingência de perder o domínio do seu prédio sem a contrapartida simultânea do pagamento devido por tal situação e correndo o risco de o autor da obra não ter sequer condições para satisfazer tal pagamento de forma imediata;
M. Sendo, todavia, potestativo o direito de aquisição “e constituindo o pagamento da correspondente indemnização a          contrapartida sinalagmática do reconhecimento daquele direito, deve concluir-se que o juiz tem de condicionar a procedência do pedido ao referido pagamento”;
N. O reconhecimento da propriedade do acedente pressupõe o pagamento do valor devido, ou seja, é condição “sine qua non”;
O. O artigo 31º, nº 6 do DL 294/2009 de 13/10 consagra “No caso do exercício judicial do direito consagrado no n.º 2, o preço é pago ou depositado dentro de 30 dias após o trânsito em julgado da respectiva sentença, sob pena de caducidade do direito e do arrendamento”;
P. O autor da incorporação que manifesta a intenção aquisitiva sabe que a sua procedência está dependente do cumprimento da contrapartida – o pagamento da indemnização. E só através deste se garante o equilíbrio das contraprestações;
Q. Contrapartida que uma vez fixada na sentença tem de pagar como condição do reconhecimento do seu direito;
R. Nesta medida, se no prazo de 30 dias concedido, após o trânsito em julgado da sentença, não for pago o do valor indemnizatório/compensatório, caduca o direito de o ex-casal adquirir, por acessão industrial imobiliária, os prédios que são propriedade de CC;
S. Assim, revogando a douta decisão recorrida e substituindo-a por outra que absolva os Réus dos pedidos formulados, farão V/ Exa. inteira e merecida justiça!

Termina entendendo que deve ser dado inteiro provimento ao presente recurso, substituindo a decisão proferida por outra que se coadune com a pretensão formulada pelo recorrente.

A requerente apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de 23/02/2023 (refª. ...64).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2 (aplicável “ex vi” do artº. 663º, n.º 2 in fine), 635º, nº. 4, 637º, nº. 2 e 639º, nºs 1 e 2 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelo requerido e cabeça-de-casal, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:

I) - Saber se todas as construções efectuadas pelo extinto casal nos prédios identificados nos pontos 3 e 6, e 4 e 7 dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº. 1151/12...., tal como se mostram descritas nos pontos 8, 10, 12 a 15 e 21 dos factos provados nessa mesma sentença, devem ser aditadas à relação de bens como activo do património comum a partilhar, e se a deve integrar, como passivo do património comum, a dívida a CC, no valor de € 38.170,00, a actualizar segundo o índice de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016, fixada como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade dos prédios supra referidos, propriedade da mãe do cabeça-de-casal;
II) - Da caducidade do direito dos ex-cônjuges adquirirem por acessão industrial imobiliária os prédios acima referidos pertencentes à mãe do cabeça-de-casal.

Com interesse para apreciação das questões suscitadas no presente recurso, há que ter em conta a dinâmica processual supra referida, em sede de relatório, e ainda a seguinte factualidade que resulta dos elementos documentais constantes dos autos:

1. Na relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal no processo de inventário para partilha do património comum do casal em consequência de divórcio, constante de fls. 15 e verso dos presentes autos, apenas foram relacionados no ACTIVO os seguintes “Créditos do extinto casal”:

a) € 49.000,00, detido sobre o cabeça-de-casal e referente às obras realizadas (muros e um pavilhão) num prédio que era propriedade do aqui cabeça-de-casal (cfr. doc. nº. ...);
b) € 2.500,00, detido sobre CC, residente na Rua ..., ..., ... ..., a título de benfeitorias realizadas num jazigo/capela pertencente à família da indicada devedora (cfr. doc. nº. ...).
2. Na sentença proferida em 29/06/2016, transitada em julgado em 11/07/2019, no processo nº 1151/12.... que correu termos na Instância Local Cível ... – J..., em que figuram como Autora AA (requerente do presente inventário e ora recorrida), como interveniente principal pelo lado activo BB (requerido e cabeça-de-casal no presente inventário e ora recorrente) e como Ré CC (mãe do aqui recorrente e cabeça-de-casal), foram dados como provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:
3. Acha-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23-..., um prédio urbano, sito no Lugar ..., freguesia ..., composto de casa de dois pavimentos, com a área coberta de 110 m2 e a descoberta de 200 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...3°, achando-se uma quota de 1/2 da propriedade desse prédio inscrita a favor da ré CC, através da Apresentação n.º 07, de 23 de Janeiro de 2008;
4. Acha-se inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...30°-..., um prédio rústico, sito no Lugar ..., freguesia ..., com a área de 1500 m2, afecto a cultura e ramada, o qual faz parte do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.° ...25-..., achando-se a propriedade desse prédio inscrita a favor da ré CC, através da Apresentação n.º 07, de 25 de Junho de 1998;
5. Os prédios indicados em 3) e 4) advieram ao domínio da ré CC, na sequência de habitação e partilha, titulada por escritura de 16 de Dezembro de 1993 (constante de fls. 90 verso a 93 verso, do livro de notas para escrituras diversas n.° 167-B, da Secretaria Notarial ...), celebrada para partilha dos bens deixados por DD, marido de CC e pai de BB;
6. Há mais de 10, 20 e 30 anos, a ré, por si e antecessores, frui de metade determinada do prédio referido em 3), com uma porção de área coberta de 55 m2 e de área descoberta de 100 m2, a confrontar do sul e nascente com EE e do norte e poente com a própria ré, uso e fruição essa que é exercida de forma autónoma e independente da restante metade, da qual está dividida por uma parede meeira, ocupando-o nos termos assim referidos, cultivando-o, plantando vinha, colhendo batata, fruta e hortaliça, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na consciência de que não prejudica terceiros e na convicção de que é dona do mesmo, na exacta medida da metade assim delimitada;
7. Há mais de 10, 20 e 30 anos, a ré, por si e antecessores, frui do prédio referido em 4), ocupando-o, habitando-o ou permitindo que nele outros habitem, cultivando-o, plantando vinha, colhendo batata, fruta e hortaliça, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na consciência de que não prejudica terceiros e na convicção de que do mesmo é sua exclusiva dona;
8. Em 1996, com a autorização da ré CC, AA e BB, então casados, iniciaram a construção de moradia de três andares, em toda a metade do prédio referido em 3), delimitado da forma referida em 7), bem como no terreno do prédio rústico dito em 4);
9. Para o efeito, com a autorização da ré CC, demoliram as divisões da casa, os pavimentos e o telhado da metade da casa referida em 3), apenas mantendo de pé as paredes exteriores;
10. A partir das quais iniciaram a construção da nova moradia, com uma área de 220 m2 de implantação, constituída por uma casa de rés-do-chão e dois andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, diversos arranjos exteriores, cinco casas-de-banho, uma sala comum, cozinha, sala de jantar, lavandaria, escritório, seis quartos, garagem e cave;
12. AA e BB construíram, ainda, no prédio referido em 4), um furo para captação de água com cerca de 80 metros de profundidade, equipado com electrobomba e provido de cabine;
13. E nele realizaram trabalhos de exterior, consistentes em revestimentos em tijoleira cerâmica, enquadradas com placas de granito, construção de escadas em granito, piscina com 50 m2 com lâmina de água, chafariz ornamental em granito, iluminação exterior, plantação de palmeiras junto ao muro e de relva junto da piscina;
14. Procederam à construção de muros de vedação e de suporte, delimitando o perímetro do terreno dos prédios referidos em 3) e 4) que foram ocupados com a construção da casa, em conformidade com a planta topográfica de fls. 17;
15. Num dos muros colocaram portão de metal, pintado e equipado com comando eléctrico;
21. A afectação dos espaços interiores é a seguinte: cave com 220 m2, destinada a garagem, lavandaria, três quartos e duas instalações sanitárias; rés-do-chão com 220 m2 afecto a cozinha, sala de jantar e hall e Wc de apoio; ... andar com 220 m2, destinado a sala de estar, quarto, duas instalações sanitárias e hall de distribuição; ... andar com 220 m2, composto por hall de distribuição, quatro quartos e dois quartos de banho, sendo um privativo de um dos quartos;
30. Com a execução de tais obras e arranjos, AA e BB despenderam em materiais e mão-de-obra a quantia de, pelo menos, 329.205,00€, a preços actuais;
31. A construção e arranjos atrás identificados valorizaram os prédios referidos em 3) e 4) em, pelo menos, 247.000,00€;
32. Antes das obras e arranjos atrás descritos, iniciados em 1996, os prédios referidos em 3) e 4) tinham o valor de 40.670,00€;
33. As obras de construção da moradia e os arranjos exteriores efectuados estão incorporados e ligados aos prédios referidos em 3) e 4), deles não podendo ser retirados nem separados, sem desagregação ou destruição do todo obtido através das uniões;
34. AA e BB realizaram obras, com a anuência da ré, no jazigo/capela perpétuo da família, com a área de 9 m2, sito no Cemitério ..., ..., propriedade da ré;
37. Os trabalhos referidos em 34) têm o valor de 2.500,00€, tendo os mesmos sido suportados por AA e BB (cfr. fls. 29vº a 39vº destes autos).

3. No final, decidiu aquela sentença nos seguintes termos [transcrição]:
a) Declarar adquirido pelo extinto casal formado por AA e BB, o direito de propriedade que a ré CC detinha sobre a casa referida em 3) e 6) e sobre o prédio rústico indicado em 4) e 7) dos factos provados, por via da acessão industrial imobiliária, condenando-se a ré no reconhecimento desse facto;
b) Declarar que assiste ao extinto casal formado por AA e BB um crédito sobre a ré CC, no valor de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), a título de benfeitorias realizadas no bem descrito em 34) dos factos provados, condenando-se esta a reconhecer este mesmo facto;
c) Fixar, como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade mencionado em a), o pagamento à ré CC, por parte de AA e BB, da quantia de 40.670,00€ (quarenta mil seiscentos e setenta euros), deduzida do crédito referido em b), por efeito da invocada compensação, o que totaliza o valor líquido de 38.170,00€ (trinta e oito mil cento e setenta euros), a atualizar segundo os índices de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016 (data da presente decisão) - cfr. fls. 29vº a 39vº destes autos.
*
Apreciando e decidindo.

I) - Saber se todas as construções efectuadas pelo extinto casal nos prédios identificados nos pontos 3 e 6, e 4 e 7 dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº. 1151/12...., tal como se mostram descritas nos pontos 8, 10, 12 a 15 e 21 dos factos provados nessa mesma sentença, devem ser aditadas à relação de bens como activo do património comum a partilhar, e se a deve integrar, como passivo do património comum, a dívida a CC, no valor de € 38.170,00, a actualizar segundo o índice de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016, fixada como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade dos prédios supra referidos, propriedade da mãe do cabeça-de-casal:
O recorrente discorda da sentença recorrida, na parte em que adita à relação de bens por si apresentada:
- como activo do património comum a partilhar, a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte implantados pelo extinto casal nos prédios identificados nos pontos 3 e 6, e 4 e 7 dos factos provados na sentença proferida no processo nº. 1151/12...., que correu termos na Instância Local Cível ... – J..., pertencentes à mãe do cabeça-de-casal;
- como passivo do património comum, a dívida a CC (mãe do cabeça-de-casal), no valor de € 38.170,00, a actualizar segundo o índice de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016, fixada como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade dos prédios supra referidos, propriedade da mãe do cabeça-de-casal.
Para tanto, alega o recorrente que o prédio que a requerente do inventário, aqui recorrida, pretende ver integrado no património activo do casal é uma moradia, propriedade da mãe do cabeça-de-casal, na qual foram feitas melhorias e benfeitorias pelo casal.
Argumenta, ainda, que a mãe do cabeça-de-casal não doou nem vendeu a casa ao casal ou ao seu filho (cônjuge marido), tendo apenas permitido que o casal realizasse obras para que os mesmos pudessem lá morar, pelo que a requerente do inventário tem apenas direito à meação do valor desembolsado a título de benfeitorias na referida moradia, e não à sua propriedade.
Vejamos se lhe assiste razão.
Conforme se alcança dos autos, a situação jurídica dos prédios identificados nos pontos 3 e 6, e 4 e 7 dos factos provados na sentença proferida no aludido processo nº. 1151/12.... e das construções, arranjos exteriores e outras beneficiações neles efectuadas pelos ex-cônjuges, aqui interessados, tal como se mostram descritas nos pontos 8, 10, 12 a 15 e 21 dos factos provados nessa mesma sentença - cuja relacionação a requerente AA, ora recorrida, oportunamente reclamou - assim como os direitos que cada uma das partes intervenientes nessa acção, que correu termos na Instância Local Cível ... – J..., tem sobre aquelas realidades físicas, tudo isso ficou definitivamente decidido por aquela sentença, cuja cópia certificada consta de fls. 29vº a 39vº destes autos.
Como se extrai dessa certidão, figuraram como partes principais naquela causa os aqui interessados AA e BB (na qualidade de autora e interveniente principal pelo lado activo, respectivamente), e ainda a mãe deste último, CC (na qualidade de ré). A sentença de mérito proferida naquela acção transitou em julgado e, como tal, impõe-se com a força de caso julgado material em tudo quanto, acerca do seu objecto, está agora em discussão no presente processo de inventário (cfr. artº. 619º, nº. 1 do NCPC).
Analisando a fundamentação jurídica que sustentou a mencionada sentença, o Mº Juiz “a quo” concluiu que o Tribunal que a proferiu «seguiu aquela que há muito vem sendo a corrente largamente maioritária, seja ao nível da jurisprudência, seja da doutrina, acerca do momento em que ocorre a aquisição da propriedade por acessão: a chamada “doutrina da aquisição potestativa”
E, prosseguindo a sua análise, o Tribunal recorrido escreveu: «Segundo esta tese, a aquisição por acessão imobiliária é uma forma potestativa de aquisição do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, que depende, para se concretizar, de manifestação de vontade nesse sentido por parte do respectivo titular e em que o pagamento do valor do prédio funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação.
Por contraposição à “doutrina da aquisição automática” – defendida, p. ex., por Pires de Lima e Antunes Varela no seu Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., a págs. 165, e segundo a qual a aquisição por acessão é automática e imperativa, não dependendo de qualquer manifestação de vontade -, de acordo com aquela outra tese maioritária, e com o decidido na sentença proferida na acção que correu termos sob o nº. 1151/12...., a aquisição do direito de propriedade por acessão industrial imobiliária não se dá automaticamente, com a verificação dos pressupostos enunciados no artigo 1340º, nºs 1 e 3 do Código Civil.
Apesar de, como se disse, retroagir ao momento em que se reuniram esses pressupostos, ou ao momento da incorporação, a aquisição dá-se apenas com o pagamento do valor que o prédio tinha, funcionando esse pagamento como condição suspensiva daquela aquisição.»
Esta análise objectiva e bem estruturada, com fundamento na lei e na doutrina citadas, não foi objecto de censura por parte do recorrente, tendo o Tribunal recorrido, com base na mesma, concluído que: «…resulta claro que carece de fundamento a reclamação apresentada pela interessada AA na parte em que defende que devem ser relacionados como activo do património comum a partilhar os prédios identificados nos pontos 3. e 6., e 4. e 7. dos factos dados como provados na aludida decisão judicial.
Com efeito, como a própria reclamante reconhece, não foi ainda paga à proprietária desses prédios, CC, mãe do cabeça-de-casal, o valor da compensação fixada na sentença como condição suspensiva da aquisição. Como tal, o direito de propriedade sobre esses prédios permanece na esfera jurídica daquela CC, não tendo ainda transitado – digamos assim - para o património comum do extinto casal que aqui importa partilhar; e, sendo assim, não terão que ser relacionados pelo cabeça-de-casal.»
Porém, do mesmo passo em que assim decidiu, o Tribunal “a quo” considerou assistir razão à reclamante, aqui recorrida, «…quando sustenta que devem ser trazidos à partilha, e relacionados pelo cabeça-de-casal, as construções, melhoramentos e outras beneficiações que o extinto casal, na constância do matrimónio, incorporou naqueles imóveis. Isto é, deverão ser relacionados a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte implantados pelo extinto casal nos prédios da mãe do cabeça-de-casal, tal como descritos nos factos provados que acima se transcreveram, referidos nos pontos 8., 10., 12., 13., 14., 15. e 21.»
E fundamentou esta decisão com a seguinte argumentação: «Apesar da incorporação, enquanto não se verificar a dita condição suspensiva da aquisição por acessão industrial, a aludida moradia e todas as demais construções e beneficiações implantadas pelo extinto casal nos prédios de CC têm existência jurídica autónoma, têm inequivocamente um valor patrimonial, e esse activo integra o património comum que está em partilha deste processo – devendo, pois, ser relacionados pelo cabeça-de-casal.
Quem defenda, quanto ao momento da aquisição da propriedade por acessão, a acima referida “doutrina da aquisição potestativa” - e esta foi a opção tomada na sentença a que vimos fazendo referência -, é necessariamente confrontado com um período de indefinição quanto à propriedade do solo e da incorporação entre o momento da sua construção e o momento da efectiva aquisição. Perante esta situação de indefinição – que é a que existe na situação aqui em apreço – a doutrina nacional tem equacionado três soluções: a) ou coexistem dois direitos distintos, um a incidir sobre o terreno e outro a incidir sobre a obra, sementeira ou plantação; b) ou se considera que após a conclusão da incorporação passamos a estar perante uma situação de compropriedade; c) ou acompanhando o princípio de que tudo o que se incorpora na coisa pertence a ela (princípio superficies solo cedit), se entende que até à efectiva aquisição existe uma situação de posse por parte do autor da incorporação em relação ao terreno e ao implante.
Defendendo a primeira solução, para Oliveira Ascensão existem dois direitos de propriedade distintos: um sobre o solo e outro sobre a incorporação. Durante o referido período de indefinição há que respeitar um regime jurídico que tutele ambos os intervenientes. Assim, o dono do terreno pode exercer o seu direito de propriedade, exceptuando o exercício de poderes de facto que colidam com a incorporação existente no terreno, “mas aí o óbice é fáctico e não jurídico, e em nada atinge a caracterização do direito como propriedade” (cfr. «Acessão», in Revista Scientia Ivridica, Tomo XXII, nºs 122-125, Maio/Agosto de 1975, pág. 354). Por sua vez, o dono da incorporação pode fazer uso quer dos poderes de facto, quer dos poderes jurídicos no âmbito do seu direito de propriedade, nomeadamente arrendar ou mesmo alienar.
Com uma posição distinta, José Alberto Gonzalez vê esta situação como uma comunhão segundo dois prismas: estamos perante uma comunhão pro diviso, ou seja, propriedades distintas sobre partes da mesma realidade, “se as coisas, apesar de unidas inseparavelmente, ainda forem funcionalmente distinguíveis”; ou estamos perante uma verdadeira situação de compropriedade (ou de comunhão pro indiviso), se as partes não forem distinguíveis (cfr. «Direitos Reais e Direito Registral Imobiliário», 4ª ed., Quid Juris, 2009, pág. 424).
Sustentando a terceira solução, Carvalho Fernandes entende que não se pode tratar de uma comunhão, uma vez que após a incorporação existem “direitos distintos sobre coisas distintas”, ou seja, o autor do implante e o dono do terreno mantêm-se “titulares do direito que sobre elas detinham antes de ela [incorporação] ocorrer”. A solução correcta, segundo aquele Professor, consiste em considerar que entre o momento da construção do implante e o momento da aquisição, o autor da incorporação encontra-se numa situação de posse, de boa ou má fé, em relação ao terreno e ao implante. Isto porque, a acessão pressupõe a detenção, por parte de quem constrói, do terreno e das coisas utilizadas para a incorporação mesmo que não lhe pertençam, “o que conduz a identificar na titularidade do seu autor poderes de facto sobre o terreno e o implante, logo uma situação equivalente à de posse” (cfr. «Aquisição do Direito de Propriedade na Aquisição Industrial Imobiliária», in Estudos em honra do Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. I, Almedina, 2008, pág. 661).
As decisões dos nossos tribunais superiores que se debruçaram sobre esta questão têm adoptado aquela primeira tese, defendida pelo Prof. Oliveira Ascensão.
É o caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2004, segundo o qual, enquanto a acessão não for exercida, existem duas propriedades distintas sobre o prédio – uma sobre o solo e outra sobre o implante. Na esteira daquele autor, o Supremo Tribunal de Justiça afirma nesse aresto que “o dono do implante «exerce totalmente os poderes de facto que são conteúdo da propriedade, e da mesma forma exerce os poderes jurídicos que lhe correspondem, podendo inclusivamente arrendar o edifício construído ou alienar o implante»” (proferido no proc. nº. 03B4163, disponível em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.05.2009, entendendo que até ao exercício da acessão as propriedades se mantêm distintas. Citando Oliveira Ascensão, e acolhendo a sua doutrina, pode ler-se naquele acórdão que “cada um dos sujeitos pode exercer, tanto quanto as circunstâncias autorizem, o seu direito, e inclusivamente cedê-lo a outrem. A situação não é anómala para a ordem jurídica portuguesa, nem para a acessão imobiliária, que de várias maneiras se afasta da regra rígida de que tudo o que está dentro dos limites verticais do prédio deve pertencer ao mesmo proprietário” (proferido no proc. nº. 133/1994, disponível em www.dgsi.pt).
Acolhendo também nós esta orientação, pela força dos argumentos que a sustentam, somos levados a concluir, como acima se afirmou já, que enquanto não se verificar a condição suspensiva a que está sujeita a aquisição pelo ex-casal dos prédios identificados nos pontos 3. e 6., e 4. e 7. dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº. 1151/12...., a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte que neles implantaram os aqui interessados – conforme descritos nos factos provados que acima se transcreveram, referidos nos pontos 8., 10., 12., 13., 14., 15. e 21. – têm existência jurídica autónoma, integrando o direito de propriedade sobre essas realidades físicas o património conjugal aqui em partilha.»
A acessão industrial imobiliária ocorre quando com um prédio, que é propriedade de alguém, se une e incorpora outra coisa que não lhe pertence, daí advindo uma ligação material, definitiva e permanente entre a coisa acrescida e o prédio e a impossibilidade de separação das duas coisas sem alteração substancial do todo obtido através dessa união (artºs 1325º e 1326º do Código Civil).
No que para os autos releva está em causa a situação prevista no artº. 1340º, n.º 1 do Código Civil, o qual dispõe que “Se alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.”

Fez assim o legislador depender, nesta situação em concreto, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio no qual foi construída obra por terceiro não proprietário, por via da acessão industrial imobiliária, da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

a) a incorporação consistente no acto voluntário de realização de uma obra em terreno alheio;
b) a pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação;
c) a formação de um todo único entre o terreno e a obra;
d) o maior valor da obra realizada relativamente ao anterior valor do prédio;  
e) a boa fé do autor da obra incorporada (considerando-se como tal o facto de o dono da obra desconhecer que o terreno era alheio ou se foi autorizado pelo dono do terreno, autorização essa que tanto pode ser atribuída através de uma declaração de vontade expressa, como pode revestir a forma tácita).

É ainda pressuposto da acessão industrial imobiliária o pagamento do valor que o prédio tinha antes da obra, pagamento que funciona aqui como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade do conjunto.
Verificados os respectivos pressupostos e efectuado o pagamento devido, a acessão opera retroactivamente à data da incorporação, sendo esta o momento jurídico da aquisição do direito de propriedade sobre a nova unidade económica formada pelo terreno e pela construção nele edificada, nos termos do al. d) do artº. 1317º do Código Civil. 
A aquisição originária do direito de propriedade por acessão industrial imobiliária tem natureza potestativa, dependendo da manifestação de vontade de adquirir a coisa, por parte do beneficiário da acessão, pelo que, enquanto o respectivo direito não for exercido, cada uma das coisas (obra e terreno) mantém certa individualidade, designadamente para efeitos jurídicos, e os respectivos sujeitos conservam os seus direitos e podem exercê-los de harmonia com as circunstâncias. Ou seja, como se refere na sentença recorrida, até ao exercício da acessão recaem sobre o prédio duas propriedades separadas: uma do solo, outra da obra nele incorporada. O dono da obra incorporada exerce totalmente os poderes de facto que são conteúdo da propriedade, e da mesma forma exerce os poderes jurídicos que lhe correspondem.

Neste sentido vejam-se os acórdãos do STJ de 10/01/2019 (proc. nº. 4982/15.0T8GMR), de 22/06/2005 (proc. nº. 05B1524) e de 29/01/2004 (proc. nº. 03B4163), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Atenta a fundamentação plasmada na sentença recorrida supra transcrita e o que atrás se deixou exposto, tanto do ponto de vista legal como doutrinal e jurisprudencial, entendemos que a decisão do Tribunal “a quo” não podia ser outra senão a que determinou que todas as construções efectuadas pelo extinto casal nos prédios identificados nos pontos 3 e 6., e 4. e 7. dos factos dados como provados na sentença proferida no processo nº 1151/12.... (ou seja, a moradia de três andares, com piscina, furo artesiano, chafariz, arranjos exteriores e muros de vedação e suporte) devem ser aditados à relação de bens como activo do património comum a partilhar.
Alega o recorrente que o prédio que a requerente do inventário, ora recorrida, pretende ver integrado no património activo do casal é uma moradia, propriedade da mãe do cabeça-de-casal, na qual foram feitas melhorias e benfeitorias pelo casal, pelo que aquela apenas tem direito à meação do valor desembolsado a título de benfeitorias na referida moradia, e não à sua propriedade.
Perante esta posição assumida pelo ora recorrente, coloca-se a questão de saber se a moradia construída pelos ex-cônjuges e as restantes obras por eles implantadas nos prédios acima referidos, pertencentes à mãe do cabeça-de-casal, devem ser qualificados como benfeitorias ou como acessão industrial imobiliária.
Os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Volume III, 2ª ed. revista e actualizada, 1984, Coimbra Editora, pág. 163), ensinam que: «A benfeitoria e a acessão, embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. (…). São benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário, pelo possuidor (artigos 1273º a 1275º), pelo comodatário (artº. 1138º) e pelo usufrutuário (artº. 1450º); são acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional.
Porque as benfeitorias estão sempre dependentes de uma relação jurídica (posse, locação, comodato, usufruto), elas têm o aspecto de excepcionais em relação à acessão, que seria a regra. Trata-se de uma mera aparência, que não corresponde ao fundamento jurídico ou lógico das duas espécies de melhoramentos. As benfeitorias e a acessão constituem fenómenos paralelos que se distinguem pela existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada.»
Por sua vez, o Prof. Vaz Serra refere (in RLJ - Ano 108, pág. 266) que «parece que o critério distintivo deve fundar-se na finalidade e no regime jurídico de ambas as figuras: no caso de simples benfeitorias, atribui a lei ao autor delas um direito de levantamento (…) ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada (Código Civil artº 1273º), não, porém, um direito de propriedade sobre a coisa, pois a benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa; no caso de acessão, diversamente, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra é feita, atribuindo, assim, a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa.»
Assim, a benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela.
A benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa, atribuindo a lei ao seu autor um direito de levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada.
No caso de acessão poderá conceder-se um direito de propriedade. Pressupõe um fenómeno que vem do exterior, sem qualquer ligação jurídica à coisa (cfr. acórdão do STJ de 30/04/2019, proc. nº. 5967/17.7T8CBR, disponível em www.dgsi.pt).
Na espécie industrial imobiliária, teremos como pedra de toque, para a demarcação entre benfeitorias e acessão, a natureza inovadora e transformadora das obras, que podem ter lugar em qualquer prédio alheio, seja unicamente no solo, seja em construção nele existente, desde que, no entanto, se não trate de simples obras de melhoramento ou de reparação (cfr. acórdãos do STJ de 8/11/2007, proc. nº. 07B3545 e da RL de 28/05/2009, proc. nº. 133/1994, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). 
É o que se verifica no caso dos autos, pois estamos perante uma acessão, e não meras benfeitorias realizadas pelo ex-casal numa casa pertencente à mãe do cabeça-de-casal, como defende o recorrente, dado as obras implantadas nos aludidos prédios, propriedade de CC, revestirem natureza inovadora e transformadora para os terrenos onde foram implementadas.
 Com efeito, pese embora tenha resultado provado no processo nº. 1151/12.... que os ex-cônjuges, com a autorização da mãe do cabeça-de-casal, demoliram as divisões da casa, os pavimentos e o telhado da metade da casa referida no ponto 3 dos factos provados, apenas mantendo de pé as paredes exteriores, a partir das quais iniciaram a construção de nova moradia de três andares com as características descritas nos pontos 10 e 21 dos factos provados, assim como procederam à construção de piscina, furo artesiano para captação de água, chafariz ornamental, muros de vedação e suporte e realizaram arranjos exteriores nos termos descritos nos pontos 12 a 15 dos factos provados, a verdade é que tais obras foram realizadas por alguém que não tinha qualquer vínculo ou relação jurídica com os prédios onde foram incorporadas e configuraram uma verdadeira inovação e transformação da realidade existente nesses prédios, não se tratando de simples obras de melhoramento, conservação ou reparação.
Assim, tendo essas construções efectuadas pelo ex-casal e descritas nos pontos 8, 10, 12, 13, 14, 15 e 21 dos factos provados supra transcritos, existência jurídica autónoma pelas razões atrás referidas, entendemos que bem andou o Tribunal “a quo” ao concluir que o direito de propriedade sobre essas realidades físicas integra o património comum do extinto casal a partilhar no presente inventário, devendo todas elas, por isso, serem aditadas à relação de bens.
Por outro lado, estando assente, por consenso das partes, a exclusão do crédito do património comum do extinto casal sobre FF, no montante € 2.500,00 e tendo resultado provado no processo nº. 1151/12.... que antes das obras e arranjos atrás descritos, os prédios referidos nos pontos 3 e 4 dos factos provados supra transcritos tinham o valor de € 40.670,00, atendendo, ainda, a tudo o que atrás se deixou exposto sobre o pagamento do valor que os prédios tinham antes das obras, como condição suspensiva da transmissão do direito de propriedade por acessão industrial imobiliária, entendemos que, por contraponto, deve ser relacionado como passivo do património comum, o montante de € 38.170,00 (€ 40.670,00 - € 2.500,00) correspondente à dívida do extinto casal a CC, a actualizar segundo o índice de preços no consumidor (com exclusão da habitação), entre o ano de 1996 e Junho de 2016, cujo pagamento foi decidido como condição suspensiva da aquisição do direito de propriedade dos prédios identificados nos pontos 3 e 6, e 4 e 7 dos factos dados como provados na decisão proferida no supra mencionado processo, acolhendo também nesta parte o que foi decidido na sentença recorrida.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso interposto pelo requerido/cabeça-de-casal.
*
II) - Da caducidade do direito dos ex-cônjuges adquirirem por acessão industrial imobiliária os prédios acima referidos pertencentes à mãe do cabeça-de-casal:

Defende o recorrente que o direito potestativo que assistia aos ex-cônjuges de adquirirem por acessão industrial imobiliária os prédios pertencentes à sua mãe se extinguiu por caducidade, por não ter sido paga a esta última, em determinado prazo, a compensação que ficou definida na sentença como condição suspensiva daquela aquisição por acessão.
Embora reconheça que não foi fixado prazo para o efeito pelo Tribunal, entende que deve aplicar-se por analogia a solução prevista no n.º 6 do artº. 31º do DL 294/2009 de 13/10, por ser a mais ajustada e ter subjacente as mesmas razões justificativas, considerando que, se no prazo de 30 dias concedido, após o trânsito em julgado da sentença, não for pago o valor indemnizatório/compensatório, caduca o direito do ex-casal adquirir, por acessão industrial imobiliária, os prédios que são propriedade de CC.
Adiantamos, desde já, que também aqui não lhe assiste razão.
Esta questão da caducidade está na livre disponibilidade das partes, pelo que o cabeça-de-casal, ora recorrente, podia (e devia) alegar a excepção da eventual caducidade do direito potestativo que, na sua óptica, assiste aos ex-cônjuges de adquirirem por acessão industrial imobiliária os prédios pertencentes à sua mãe no prazo previsto no artº. 1105º, nº. 1 do NCPC, aditado pela Lei nº. 117/2019 de 13/9 – ou seja, 30 dias - para responder à reclamação apresentada pela interessada ex-mulher.
No entanto, conforme se alcança dos autos, o cabeça-de-casal não arguiu tal excepção na resposta que apresentou em 4/04/2022 à reclamação da relação de bens deduzida pela requerente, vindo a invocá-la em momento ulterior, mais concretamente no requerimento que apresentou em 28/04/2022, já depois de largamente ultrapassado o prazo legalmente previsto para o efeito, tendo a arguição da caducidade de ser considerada intempestiva. Aliás, o Tribunal “a quo” considerou, na sentença recorrida, que tal questão foi suscitada a “destempo”.
Todavia, por considerá-la de relevo, o Tribunal “a quo” apreciou-a, ainda que sinteticamente, não concedendo razão ao cabeça-de-casal nos seguintes termos: «É certo que as decisões judiciais que versam sobre situações de acessão industrial imobiliária como aquela aqui em referência fixam normalmente um prazo dentro do qual deve ser efectuado o pagamento ou a consignação em depósito da compensação estipulada, sob pena de caducar ou não mais poder ser exercido o direito potestativo a adquirir por acessão que as mesmas decisões judiciais reconhecem.
Essa forma de proceder visa ultrapassar uma lacuna legal, recorrendo-se, por analogia, a dispositivos como o nº. 3 do artigo 830º do Código Civil – solução sugerida por Oliveira Ascensão - ou o artigo 31º, nº. 6 do Decreto-Lei nº. 294/2009, de 13 de Outubro (correspondente ao nº. 5 do artigo 28º do revogado Decreto-Lei nº. 385/88, de 25 de Outubro) – solução defendida por Quirino Soares, no seu estudo «Acessão e Benfeitorias», publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Tomo I, 1996.
Mas a realidade é que a sentença proferida no processo que correu termos pelo Juízo Local Cível ... – J... sob o nº. 1151/12.... não fixou qualquer prazo, de 30 dias ou outro, para que fosse consignada em depósito ou paga à ali ré CC a quantia fixada como condição suspensiva da aquisição das propriedades que pertenciam - ou, melhor, pertencem ainda - a esta última. E dos normativos legais atrás citados, que não têm aplicação no âmbito da acessão industrial imobiliária e do exercício do direito a adquirir a propriedade por essa via, não pode extrair-se como consequência automática, ope legis, a caducidade deste direito caso não seja exercido nos prazos ali fixados.
Conclui-se, pois, não ter fundamento a “excepção” de caducidade que foi invocada pelo cabeça-de-casal.»
De resto, como já se referiu, a sentença proferida no aludido processo nº. 1151/12.... transitou em julgado sem que a Ré CC da mesma tivesse recorrido, designadamente com fundamento na falta de fixação de prazo para pagamento ou consignação em depósito da compensação ali definida como condição suspensiva da decretada aquisição dos prédios em causa por acessão industrial imobiliária.
Nesta conformidade, não merecendo a sentença recorrida qualquer censura, terá de improceder, também quanto a esta parte, o recurso interposto pelo requerido/cabeça-de-casal.
v

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo requerido/cabeça-de-casal BB e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
Guimarães, 20 de Abril de 2023
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)