Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3598/18.3T9VCT.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ORDEM DOS ADVOGADOS
ISENÇÃO DE CUSTAS
DEFESA INTERESSES ASSOCIADOS
ARTº 4º
Nº 1
AL. G) DO RCP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A Ordem dos Advogados ... constituiu uma entidade pública, especificamente uma associação pública, para efeitos do disposto na al. g) do nº 1 do artigo 4º do RCP.

II) Porém, o preceito legal em referência não atribui às entidades públicas isenção de custas em sentido genérico, tendo em atenção apenas à sua qualidade de entidades públicas e por causa dela. O próprio Estado não está isento do pagamento de custas.

III) O sentido da referida norma legal insere-se na linha traçada pelo legislador de reduzir os casos de isenção do pagamento de custas, isentando as entidades públicas apenas quando exerçam, em concreto e especificamente, as suas atribuições de acordo com os respetivos estatutos na defesa, direta e imediata, de direitos fundamentais ou na defesa de interesses difusos.

IV) A Ordem dos Advogados, quando apresenta queixa pelo crime (semi - público) de procuradoria ilícita, porque alguém praticou atos próprios dos advogados e formula pedido de constituição como assistente, assumindo, assim, a posição de colaborador do M.P. no exercício da ação penal, não está a defender direitos fundamentais dos cidadãos, nem a defender qualquer interesse difuso. Neste caso, ela está defender, direta e imediatamente, os interesses dos seus associados, ainda que isso seja, ou possa ser, do interesse público, tendo em conta, nomeadamente, as atribuições que lhe são conferidas pelo seu estatuto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. Os autos de inquérito nº 3598/18.3T9VCT da Procuradoria da República da Comarca de Viana do Castelo, Departamento de Investigação e Ação Penal – Secção de Valença, tiveram origem em queixa apresentada pela Ordem dos Advogados ... – Conselho Regional ..., pelo crime de procuradoria ilícita p. e p. pelos artigo 7º, nº 1 al. a) da Lei nº 49/2004, de 24.08, na qual requereu, no que para aqui releva, a sua constituição como assistente, bem assim a sua isenção do pagamento de taxa de justiça em conformidade, nomeadamente, com o disposto no artigo 4º, nº 1 al. g) do RCP.
2. Por despacho de 02.04.2019, do Juízo de Competência Genérica de Valença – Juiz 1, não foi reconhecida a isenção do pagamento de taxa de justiça pedida pela Ordem dos Advogados ... – Conselho Regional ..., tendo esta sido notificada para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 4 do RCP.
3. Não se conformando com o mencionado despacho, dele interpôs recurso a Ordem dos Advogados ... – Conselho Regional ..., formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
I) O despacho recorrido, ao afastar a aplicabilidade da isenção de custas prevista no art. 4.º, n.º 1, al. g) do RCP, expressamente invocada no requerimento de constituição de assistente da recorrente, violou, para além dessa norma, 1.º, n.ºs 1 e 2; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.ºs 1 e 3, al. b); 54.º, n.º 1, al. u), todos do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro, bem como os arts. 1.º, 7.º e 11.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.
II) Com efeito, a Ordem dos Advogados é uma pessoa colectiva de direito público, mais propriamente uma associação pública (cf. art. 1º EOA) – pessoa colectiva de tipo corporacional constituída para a prossecução de interesses públicos e dotada dos necessários poderes jurídico-administrativos – submetida a um regime específico de direito administrativo, e que corresponde a uma longa manus do Estado ou a uma forma de administração e prossecução de interesses públicos, que o próprio Estado lhe transferiu mediante devolução de poderes (cf. art. 267.º CRP, que também saíu violado pela presente decisão recorrida).
III) Nos presentes autos a OA intervém exclusivamente na defesa dos interesses públicos directa ou indirectamente previstos no nos arts. 1.º, n.ºs 1 e 2; 3º, alíneas a) e l); 9.º, n.ºs 1 e 3, al. b); 54.º, n.º 1, al. u), todos do Estatuto da Ordem dos Advogados, e arts. 7.º e 11.º da Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto, assim como nos arts. 2º a 5º (esp. n.º 1, al. a) deste) da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, pois
- A primeira atribuição legal de uma associação pública profissional como a Ordem dos Advogados consiste na defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços; e
- A primeira atribuição legal da OA consiste precisamente em “Defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e colaborar na administração da justiça”.
IV) Este tipo de intervenção da OA acautela, simultaneamente, a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (art. 3.º, al. a) EOA); a colaboração na noa administração da justiça (art. 3.º, al. a) EOA); o dever de zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de advogado (art. 3.º, al. d) EOA), entre outros.
V) Por outro lado, a intervenção da OA acautela ainda os interesses públicos que estiveram na génese da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto, concretamente identificados no respectivo procedimento legislativo como sendo os da melhor salvaguarda dos interesses e direitos dos cidadãos; salvaguardando e garantindo maior eficácia na administração da justiça; no combate à procuradoria ilícita, actividade ilegal que tem sido objecto de denúncia por todos os operadores de justiça; visando primordialmente a protecção dos direitos dos cidadãos e dos consumidores em geral; o interesse público e a realização da justiça; efectiva tutela dos direitos dos cidadãos, assegurando os princípios fundamentais do Estado de direito democrático; a administração da justiça.
V) Tal intervenção prende-se ainda com a protecção do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva enquanto direito fundamental de todos os cidadãos, com assento constitucional no art. 20.º da CRP.
VI) A legitimidade da recorrente para actuação nas presentes matérias encontra-se expressamente prevista na lei (de que são exemplos o art. 5º EOA e o art. 7º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto).
VII) Estão assim reunidas todas as condições objectivas e subjectivas para a aplicação da al. g) do nº 1 do art. 4.º do RCP e consequente reconhecimento de isenção de custas ao Requerente, pugnando-se pela revogação do despacho ora em crise e substituição por outro que isente a Ordem dos Advogados – Conselho Distrital do Porto do pagamento de custas, com as legais consequências.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por outro que reconheça à recorrente o benefício da isenção de custas, assim se fazendo inteira e sã Justiça;

Ou que no mínimo, anule a condenação em multa.

4. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso interposto, defendendo que a recorrente deverá beneficiar da isenção do artigo 4º, nº 1 al. g) do RCP, devendo, por isso, ser dado provimento ao recurso.
5. Nesta instância, a Exma. Senhor Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a recorrente não deverá beneficiar da pretendida isenção de custas, pelo que o recurso deverá ser julgado improcedente.
6. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não foi produzida qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º, e 412º, nº 1 do CPPenal.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, a questão essencial a decidir consiste em saber se a Ordem dos Advogados ... goza de isenção de custas e, em consequência, da isenção do pagamento de taxa de justiça devida pela sua constituição como assistente quanto ao crime de procuradoria ilícita, pelo qual manifestou desejo de procedimento criminal, apresentando a respetiva queixa. E, no caso de se entender não estar isenta do pagamento de custas, se está obrigada ao pagamento do adicional de taxa de justiça a que se alude no nº4 do artigo 8º do RCP.

2. A decisão recorrida

2.1- O despacho recorrido tem o seguinte teor [transcrição]:

Fls. 6, reverso (pedido de constituição como assistente da Ordem dos Advogados ...): entende a requerente que se encontra dispensada do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente (artigo 519.º, n.º 1, do CPP) ao abrigo da isenção prevista no artigo 4.º, n.º 1, alínea g), do RCP.
Tal norma dispõe o seguinte: “Estão isentos de custas:… As entidades públicas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias;…”.

Diz o artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de Setembro), que “Denomina-se Ordem dos Advogados a associação pública representativa dos profissionais que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia” (n.º 1), e que “A Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua atividade”.
As associações públicas são pessoas colectivas de direito público, de natureza associativa, criadas como tal por acto do poder público, para a prossecução de interesses públicos determinados integradas no âmbito da administração autónoma.
Salvador da Costa (in Código das Custas Judiciais Anotado e Comentado, 9.ª edição, 2007, pág. 72), referindo-se então à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, afirma peremptoriamente que as ordens profissionais (onde se inclui a Ordem dos Advogados), sendo uma associação pública, deixou de gozar da isenção subjectiva que conste do seu estatuto, tendo em conta o disposto no artigo 4.º, n.º 7, do referido diploma legal.
Com a entrada em vigor do RCP não se alterou o panorama em questão no que tange com custas e, especificamente no que ao caso interessa, com o pagamento de taxa de justiça pela constituição como assistente do órgão que para o efeito tem legitimidade para tal.

Por outro lado, não existe qualquer norma especial, mormente estatutária, que isente a Ordem dos Advogados do pagamento de custas ou de taxa de justiça pela constituição como assistente.

Como se pronunciou o Ac. do TRP de 10.02.2016 (processo 6578/12.9TDPRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt) – a propósito do pedido de constituição de assistente da Câmara dos Solicitadores em processo-crime, mas cujas conclusões são aplicáveis ao caso concreto atendendo ao paralelismo dos casos –, “Não obstante se tratar, efetivamente, de uma associação pública – considerada entidade pública no âmbito do Regulamento das Custas Processuais[4], entende-se, à luz dos elementos literal e teleológico de interpretação[5] que a norma citada (artigo 4º, nº 1, al. g), do Regulamento das Custas Processuais) apenas abrange as ações que tenham por objeto imediato a defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, ou de interesses difusos [6] sob pena dos casos de isenção se alargarem a outros processos, compreendidos no exercício das atribuições estatutárias de entidades públicas, mas que o legislador não pretendia isentar” – no mesmo sentido, veja-se ainda o Ac. do TRP de 16.12.2015, processo 1269/13.3T3AVR-A.P1, disponível no mesmo sítio da Internet supra identificado.
Em consequência, ao pretender intervir nos autos como assistente, a Ordem dos Advogados não actua com vista à defesa directa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos, limitando-se a exercer as suas atribuições estatutárias. Concedendo-se que a intervenção da Ordem dos Advogados nos autos na qualidade de assistente possa ter reflexos na defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, não deixa de ser verdade que tal associação, no caso em apreço, defende essencialmente os direitos e interesses dos seus membros.
Em face do exposto, notifique a requerente para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 4, do RCP.

3. Apreciação do recurso

3.1- No que concerne à isenção do pagamento de custas, como decorre do preâmbulo do DL nº 34/2008, de 26.02 - diploma que procedeu à aprovação do Regulamento das Custas Processuais – foi propósito do legislador proceder “… a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenções.”.

No sentido de concretizar o referido desígnio legislativo, no nº 1 do artigo 25º do mencionado diploma legal procedeu-se à revogação das “…isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei”.
Por outro lado, no artigo 1º do RCP estabeleceu-se a regra geral de que todos os processos estão sujeitos a custas e no artigo 4º do mesmo regulamento foram reunidas todas as isenções de custas a que o mesmo se aplica, ou seja, a todos os processos que correm termos nos tribunais judiciais, nos tribunais administrativos e no balcão nacional de injunções, cfr. artigo 2º do RCP.
Para que não subsistissem dúvidas sobre aquele propósito do legislador e no sentido de reafirmar o princípio geral de que o pagamento de custas é a regra e a isenção do pagamento é a exceção, mesmo quando esteja em causa o Estado e demais entidade públicas, o artigo 189º, nº 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos veio estatuir que o “O Estado e as demais entidades públicas estão sujeitos ao pagamento de custas.”
Por força do mencionado artigo 25º do DL nº 34/2008, de 26.02, como salienta Salvador da Costa, Custas Processuais, Almedina, 7ª edição, pág. 104, foram revogadas, entre outras, as isenções de custas nas ações inibitórias para defesa dos consumidores previstas no artigo 11º, nº 1 da Lei nº 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) e no artigo 29º, nº1 do DL 446/85, de 25.10 (Clausulas Contratuais Gerais). Neste sentido, quanto a estas últimas, vide, por exemplo, o Ac STJ de 30.11.2017, processo 8974/14.8T8LSB.L1.S1, relator Fernando Bento, publicado em www.dgsi.pt.
Relativamente às isenções de custas, “no nº 1 do artigo 4º do RCP encontram-se previstas as isenções subjetivas e no nº 2 do mesmo preceito legal as isenções objetivas. As primeiras têm que ver com qualidade dos sujeitos a que se aplicam, enquanto que as segundas atendem à natureza do processo.
Como bem refere Salvador da Costa, ob. e loc. cit. “A maioria das isenções subjetivas previstas no nº1 (do artigo 4º do RCP), não obstante o seu carácter pessoal, é motivada por um elemento objetivo consubstanciado no interesse público prosseguido pela pessoas ou entidades a quem são concedidos”.

No caso vertente, a recorrente Ordem dos Advogados ... invocou, como fundamento legal da sua pretendida isenção do pagamento de taxa de justiça, o artigo 4º, nº1 al. g) do RCP, segundo o qual estão isentos de custas as entidades públicas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias.

A Ordem dos Advogados ... constitui, sem dúvida, uma entidade pública para efeitos da norma legal supra citada, mais especificamente uma associação pública, não havendo sequer discussão sobre esta questão no caso vertente, como se reconhece no despacho recorrido, em face da clareza da lei, uma vez que, segundo o artigo 1º, nºs 1 e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo DL nº 145/2015, de 09.09, decorre que:

“1 - Denomina-se Ordem dos Advogados a associação pública representativa dos profissionais que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e demais disposições legais aplicáveis, exercem a advocacia.
2- A Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua atividade.”
As associações públicas são “pessoas coletivas públicas, de tipo associativo, criadas para assegurar a prossecução de interesses públicos determinados, pertencentes ao Estado ou a outra pessoa coletiva pública", cfr. Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, volume I, Coimbra, 1986, pág. 370.
As associações públicas são pessoas coletivas de direito público, de natureza associativa, criadas como tal por ato do poder público, para prossecução de interesses públicos determinados integradas no âmbito da administração autónoma, encontrando-se, como tal, previstas na Constituição da república Portuguesa no seu no artigo 267º.
Ademais, julgamos ser inquestionável - nem de resto, ao contrário do que seria de supor em face do sentido das alegações da recorrente, se mostra questionado - que faz parte das atribuições da Ordem dos Advogados a legitimidade processual para apresentar queixa, constituir-se assistente e formular pedido de indemnização civil nos processos em que esteja em causa o crime de procuradoria ilícita, cfr. artigos 7º, nº 2 e 4, e 11º da lei nº 49/2004, de 24.08.

De forma que, a questão essencial que importa dilucidar é a de saber se quando a Ordem dos Advogados ... apresenta queixa pelo crime de procuradoria ilícita e pretenda constitui-se assistente - que é a situação factual dos autos – está ou não a exercer as suas atribuições para, pelo menos, uma das seguintes finalidades:

- Defesa de direitos fundamentais dos cidadãos; ou
- Defesa de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, cfr. al. g) do nº1 do artigo 4º do RCP.

Na verdade, a al. g) do preceito legal em referência não atribui às entidades públicas isenção de custas em sentido genérico, tendo em atenção apenas à sua qualidade de entidades públicas e por causa dela. O próprio Estado, como vimos, não está isento do pagamento de custas.
O sentido da referida norma legal insere-se na linha traçada pelo legislador de reduzir os casos de isenção de custas, isentando de custas as entidades públicas apenas quando exerçam, em concreto e especificamente, as suas atribuições de acordo com os respetivos estatutos na defesa, direta e imediata, de direitos fundamentais ou na defesa de interesses difusos.
Com efeito, com se refere no Ac. RP de 10.02.2016, a al. g) do nº 1 do artigo 4º do RCP “apenas abrange as ações que tenham por objeto imediato a defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, ou de interesses difusos sob pena dos casos de isenção se alargarem a outros processos, compreendidos no exercício das atribuições estatutárias de entidades públicas, mas que o legislador não pretendia isentar” (2).
Os direitos fundamentais dos cidadãos são os direitos do ser humano positivados na constituição, os quais correspondem, no que para o caso releva em face do estatuto da Ordem dos Advogados, aos direitos, liberdades e garantias, cfr. Parte I, Título II da CRP.
No que concerne ao conceito de interesses difusos, como se alude no Ac STJ de 08.09.2016, processo 7617/15.7T8PRT.S1, publicado em dgsi.pt - no qual se segue os ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa “ A legitimidade Popular na Defesa dos Interesse Difusos - “Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insuscetíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra - individual uma característica essencial desses interesses.”
Assim, os interesses difusos caraterizam-se pelo seu objeto de proteção ou bem jurídico ser indivisível e os seus titulares serem indetermináveis. Constituem exemplos conhecidos de interesses difusos os relativos ao ambiente, ao património cultural, ao ordenamento do território, etc..

No caso em apreço está em causa a investigação do crime de procuradoria ilícita, em que o bem jurídico protegido consiste na tutela da integridade ou intangibilidade do sistema oficial instituído para a prática de atos próprios das profissões de Advogado e Solicitador, por se considerarem estas de especial interesse público.
O referido bem jurídico é naturalmente indivisível e os titulares do interesse estão determinados ou são determináveis na medida em que pertencem a um grupo ou a uma classe, ou seja, in casu, os advogados representados pela Ordem dos Advogados.
Assim, a Ordem dos Advogados quando apresenta queixa pelo crime (semi - público) de procuradoria ilícita porque alguém praticou atos próprios dos advogados e formula pedido de constituição como assistente, assumindo, assim, a posição de colaborador do M.P. no exercício da ação penal, não está a defender direitos fundamentais dos cidadãos, nem a defender qualquer interesse difuso.
Ao assim proceder, a Ordem dos Advogados está a defender, direta e imediatamente, os interesses dos seus associados, ainda que isso seja, ou possa ser, do interesse público, tendo em conta, nomeadamente, as atribuições que lhe são conferidas pelo seu estatuto.
Acresce dizer que inexiste norma especial que preveja a isenção do pagamento de custas por parte da Ordem dos Advogados .... De facto, tal norma não consta do respetivo estatuto, bem assim de qualquer outro diploma legal.
Por conseguinte, quanto à questão em apreço, não foram violadas quaisquer normas legais, designadamente as indicadas pela recorrente, pelo que o despacho recorrido não é merecedor de qualquer censura pelo facto de não ter isentado a Ordem dos Advogados ... do pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente.
3.2 - Para a hipótese de ser considerado não beneficiar da isenção do pagamento de custas, a recorrente questiona a obrigação, que lhe foi imposta pelo despacho recorrido, do pagamento do adicional de taxa de justiça de igual montante do nº 4 do artigo 8º do RCP.
De facto, a taxa de justiça devida pela constituição de assistente é autoliquidada no montante de uma Uc, devendo o documento comprovativo do pagamento ser junto ao processo com a apresentação do requerimento na secretaria ou no prazo de 10 dias a contar da sua formulação no processo, devendo o interessado ser notificado no ato para o efeito, cfr. nº 1 e nº 3 do artigo 8º do RCP.
Porém, é de salientar que o pedido de isenção do pagamento da taxa de justiça foi formulado pela Ordem dos Advogados em simultâneo com o pedido de constituição de assistente. Ora, a lei é omissa sobre qual o efeito que o pedido de isenção do pagamento de taxa de justiça tem na obrigação de pagamento da taxa de justiça. No entanto, pese embora a celeridade que o legislador pretendeu imprimir a este tipo de atos, no rigor dos princípios, a obrigação do pagamento de taxa de justiça pela constituição de assistente, em casos como o presente, apenas nasce com o indeferimento do pedido de isenção do pagamento.
Acresce dizer que o pedido de isenção do pagamento de taxa de justiça pela constituição como assistente formulado pela Ordem dos Advogados, atento o objeto dos autos, não é manifestamente improcedente, no sentido de que se apresente imediatamente insubsistente ou sem um mínimo de fundamento. Neste sentido, julgamos não o dever considerar meramente dilatório da obrigação de pagamento a taxa de justiça devida pela constituição de assistente.
Por isso, a Ordem dos Advogados, no momento da formulação do pedido de constituição de assistente, tinha uma expectativa legitimamente fundada de ver atendida a sua pretensão de isenção do pagamento de taxa de justiça pela constituição como assistente. Logo, não lhe era exigível, em termos de razoabilidade, que procedesse, desde logo, ao pagamento da taxa de justiça, prevenindo a hipótese de não ser atendida aquela sua pretensão.
Nesta conformidade, uma vez indeferido o pedido de isenção do pagamento de custas, deveria o tribunal recorrido ter ordenado a notificação da Ordem dos Advogados para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente, sem qualquer adicional.

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela recorrente e, em consequência, decide-se:

1) Revogar o despacho recorrido na parte em que ordenou a notificação da Ordem dos Advogados ... para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente, com acréscimo de taxa de justiça de igual montante, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 4, do RCP;
2) Manter, quanto ao mais, o despacho recorrido, o qual assim se confirma.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3Ucs.
Guimarães, 28.10.2019
Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)


1. Entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal, no que para o caso poderia relevar, estão, as irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Processo nº 6578/12.9TDPRT-A.P1, relator Jorge Langweg, citado no despacho recorrido, in www.dgsi. No mesmo sentido, vide o aí citado Ac. RP de 16.12.2015, processo 1269/13.3T3AVR-A.P1, relator Vítor Morgado, também disponível em www.dgsi.pt.