Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
708/19.7T8GMR.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO PARA O NRAU
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
COMUNICAÇÃO A AMBOS OS CÔNJUGES
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Incorre no vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC (omissão de pronúncia) a decisão que não apreciou a questão do abuso do direito expressamente suscitada pelos autores em resposta à matéria de exceção invocada na contestação.
II- No caso de o arrendamento ter por objeto a casa de morada de família, as comunicações referentes à transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 10.º, n.º 2, al. a), 12.º, n.º1, e 30.º, devem ser sempre dirigidas a cada um dos cônjuges, separadamente.
III- Não atua com abuso do direito, designadamente na modalidade de suppressio, a ré que pretende prevalecer-se da ineficácia da comunicação prevista no artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, com referência à carta que constitui iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, por ter sido enviada uma única carta dirigida a ambos os cônjuges, apesar de ter rececionado a carta dirigida a si e ao seu marido e de não ter respondido à mesma.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

M. L., instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra M. J. e F. F., todos devidamente identificados nos autos, pedindo seja declarada a resolução do contrato de arrendamento identificado na petição inicial, com consequente condenação dos réus a despejar de imediato o prédio arrendado, deixando-o livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a pagarem à autora a parte das rendas vencidas e não pagas, desde julho de 2018 até à data da petição inicial, bem como as rendas vincendas até ao momento da restituição do arrendado.

Alega para o efeito, e em síntese, que por contrato celebrado a 1 de janeiro de 1966, A. F., seu marido e entretanto falecido, cedeu o gozo do imóvel situado na Rua ..., em Guimarães, a L. M., para sua habitação, pelo período de 1 ano, contra o pagamento de uma renda mensal de 1.200$00, pagamento esse a ser realizado no 1.º dia do mês a que respeitasse no domicílio do senhorio; a autora detém o cargo de cabeça de casal da herança aberta e indivisa por óbito do seu referido marido, sendo a ré e seu marido, ora réu, os atuais arrendatários do imóvel; em abril de 2018, fruto de sucessivas atualizações, a renda mensal cifrava-se em €258,29; por carta registada rececionada pelos réus em 18-04-2018 comunicou-lhes a sua intenção de submeter o contrato de arrendamento ao NRAU, pelo que o valor da renda passaria a ser de €684,79/mês e a duração do contrato passaria a ser de 1 ano, sendo que, alega, os demandados não deram qualquer resposta à carta remetida, concluindo pela sua aceitação da mesma; sustenta que não obstante a verificada transição, os demandados nunca pagaram a renda pelo valor resultante da comunicada atualização, mantendo-se a pagá-la pelo valor de €258,29 o que configura fundamento de resolução do contrato de arrendamento.
Os réus foram regularmente citados, após o que a 1.ª ré apresentou contestação, reconhecendo a posição de arrendatária, em virtude do óbito do primitivo locatário, bem como a remessa da carta registada a que se alude na petição inicial relativa à transição do contrato de arrendamento para o NRAU mas excecionando que tal transição se tenha verificado, já que, correspondendo o locado à casa de morada de família do casal, a demandante deveria ter remetido duas comunicações, uma para cada um dos cônjuges, ora réus, e não somente uma única; não tendo cumprido tal ónus, a comunicação singular rececionada não observou a forma legal pelo que é ineficaz, do que resulta que a renda que tem vindo a ser paga pelos réus é a devida.
Foi cumprido o contraditório relativamente à exceção deduzida na contestação, mediante a apresentação de articulado autónomo.
Os autos prosseguiram com a realização da audiência prévia, após o que foi proferido saneador-sentença, por se considerar que o estado dos autos permitia o imediato conhecimento do mérito da causa, nomeadamente da exceção deduzida, a qual se transcreve na parte dispositiva:
«(…)
Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção improcedente por provada, e consequentemente absolve os RR. do pedido contra eles formulado.
Custas pela A.
Registe e notifique».

Inconformados, os autores apresentaram-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I. Por força do disposto no art. 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, o juiz tem um verdadeiro dever de conhecer de todas as questões que lhe são submetidas pelas partes, sendo que a violação deste dever constitui causa de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia – cfr. art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
II. No caso dos autos, atento o alegado pela Autora, ora Recorrente, em sede de resposta às exceções aduzidas na contestação pelos Réus, incumbia ao Tribunal a quo pronunciar-se cerca da eventual existência de uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
III. Sucede, todavia, que tal questão não foi apreciada na sentença sindicada, em total violação dos princípios do contraditório e da igualdade processual das partes, estipulados, respetivamente, nos artigos 3.º, número 3 e 4.º, ambos do Código de Processo Civil, sendo certo que esta se revelava determinante para o desfecho dos autos
IV. Assim, a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 608.º e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.
V. Sem prescindir, salvo o muito e devido respeito, considera a Recorrente que andou mal o Tribunal recorrido na interpretação que deu ao disposto nos artigos 10.º, números 1 e 2, alínea a), 12.º, número 1 e 30.º do NRAU, através da qual concluiu que a comunicação efetuada pela Autora é ineficaz, porquanto deveria ter remetido separadamente uma carta para cada um dos cônjuges, ora Recorridos.
VI. É que, no entendimento do ilustre Juiz a quo, para a comunicação produzir os seus efeitos, deveria o senhorio, no caso a Recorrente, remeter a cada um dos cônjuges individualmente uma comunicação, a informar da transição do contrato de arrendamento para o NRAU, sendo que o aviso de receção de cada uma das cartas teria obrigatoriamente de ser assinado pelo respetivo destinatário, sob pena de a comunicação se considerar ineficaz.
VII. Ora, vistas assim as coisas, se as cartas continuassem a ser sucessivamente subscritas por pessoa que não o efetivo destinatário, a comunicação de transição nunca se consideraria validamente efetuada, vinculando-se, assim, eternamente o senhorio a uma situação por si indesejada.
VIII. Sendo certo que não se depreende os objetivos inerentes àquele entendimento, alerte-se para o facto de essa solução poder criar situações conflituantes, pois que ao remeter duas comunicações individuais a cada um dos cônjuges, parece que aos dois será conferido direito de resposta, ainda que apenas um seja o efetivo arrendatário – como sucede nestes autos.
IX. Se a intenção do legislador foi a de que ambos os cônjuges tenham conhecimento efetivo da intenção do senhorio de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU, considerando que aqueles vivem na designada comunhão de mesa, habitação e leito, afigura-se que uma comunicação dirigida a ambos os cônjuges cumpre perfeitamente essa função.
X. Mas mais, não se pode sequer olvidar que é a própria Recorrida arrendatária que confirma a receção da carta remetida pela Recorrente a comunicar a referida transição do contrato para o NRAU, pelo que só em total abuso de direito e violação do dever de boa fé se poderá considerar que tal comunicação não foi regularmente efetuada.
XI. tudo isto com a agravante de que a Ré ao rececionar a carta dirigida a si e ao seu marido nem sequer se dignou responder à mesma, conformando-se com o meio e o teor da comunicação efetuada, apesar de ser a cônjuge arrendatária.
XII. Face ao exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 12.º, número 1 e 30.º, número 1, ambos do NRAU».
Foi apresentada resposta na qual se sustentou a improcedência do recurso interposto e a consequente manutenção do decidido.
O recurso foi então admitido pelo Tribunal recorrido como apelação, subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se às seguintes questões:

A) Da nulidade da decisão recorrida;
B) Validade e eficácia da comunicação relativa à transição do contrato de arrendamento para o NRAU e atualização da renda enviada pela apelante aos réus e a consequência daí decorrente para o mérito da ação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1.Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na decisão recorrida:

a) Por documento escrito A. F. declarou ceder a L. M., para sua habitação, o gozo do imóvel situado na Rua ..., em Guimarães, pelo prazo de 1 ano, a começar em 01.01.1966, e contra o pagamento de uma renda anual de 14.400$00, a liquidar em duodécimos de 1.200$00 no 1.º dia do mês a que respeitassem na casa do senhorio;
b) O imóvel identificado em a) integra actualmente a herança líquida e indivisa aberta por óbito de A. M., de que a A. é cabeça-de-casal;
c) Por óbito do L. M. o direito de gozo foi transmitido para a sua filha, aqui R.;
d) O imóvel referido em a) constitui a casa de morada de família dos RR.;
e) Em Abril de 2018, fruto de sucessivas actualizações, o valor dos duodécimos mencionados em a) era de €258,29;
f) Com data de 12.04.2018 e endereçada a ambos os RR., a A. remeteu-lhes uma (única) carta registada, com AR;
g) Lê-se na carta referida em f):
“Vem na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de seu marido A. M. (...) comunicar-lhes, nos termos e para os efeitos no art. 30.º do NRAU (...) que o contrato de arrendamento fica submetido ao NRAU bem como que - O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis é de €123.261,01, conforme caderneta predial que se junta,
- O valor da renda passa para o montante mensal de €684,79 (...) o que corresponde a 1/15 do valor patrimonial do locado.
- O contrato de arrendamento para fins habitacionais passa a ter a duração certa de um ano a contar da presente data.
Mais informo V. Exas. de que dispõem de trinta dias, a contar da recepção da presente carta, para se opor à presente comunicação, através dos meios previstos no art. 31.º do NRAU, sendo que a falta de resposta por parte de V. Exas. no referido prazo vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato constante da presente comunicação, ficando o mesmo submetido ao NRAU.”
h) A carta referida em f) foi recepcionada em 18.04.2018, encontrando-se o AR assinado pela R. mulher
i) Os RR. continuaram a pagar os duodécimos mencionados em a) pelo valor referido em e).

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

2.1. Da nulidade da sentença recorrida

A recorrente suscitou a nulidade da sentença recorrida, imputando-lhe o vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC (conclusões I., a IV., das alegações de recurso).

Para o efeito alegou, em síntese:

- «Reportando-nos, agora, ao caso dos autos, relativamente ao objeto do litígio, no seu articulado de 3 de junho de 2019, em resposta, entre outros, à exceção deduzida pelos Réus na contestação, a Autora invoca que o comportamento dos Réus, ao confessarem ter rececionado a comunicação relativa à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, não reagir a tal comunicação (o que equivale à aceitação da mesma) e, posteriormente, vir invocar a necessidade de tal comunicação ser feita através do envio de cartas separadas para cada um deles, constitui uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium»(…); - «Sucede, porém, que essa questão não foi apreciada pelo ilustre Juiz a quo na sentença em sindicância, em total violação dos princípios do contraditório e da igualdade processual das partes, estipulados, respetivamente, nos artigos 3.º, número 3 e 4.º, ambos do Código de Processo Civil»;- «Sendo certo que a apreciação dessa questão se afigura, pois, determinante para o justo desfecho dos presentes autos».

A propósito sustenta-se na resposta às alegações o seguinte:

- «O abuso do direito alegado pela A. não passa de um argumento pelo que, ao não se pronunciar sobre ele, a douta sentença recorrida não enferma da nulidade a que se reporta a al) d do nº 1 do artº 615º do Código de Processo Civil»; - «De qualquer modo, in casu, não se verifica o alegado abuso do direito, alicerçado pela A. no facto de os RR., depois de terem recepcionado a comunicação- ineficaz, como veremos- remetida por aquela em 12 de Abril de 2018, nada terem respondido, pelo que ao alegar em sede de contestação tal ineficácia, consubstanciaria abuso de direito»;- «Na tese da A., os RR. após a recepção da comunicação que lhes foi remetida deveriam tê-la alertado de que tal comunicação era ineficaz; deveriam elucidar a A. sobre o modo de operar a transição do arrendamento para o NRAU e para proceder ao aumento da renda; deveriam ter corrigido e ensinado a A. no modus faciendi para a realização da sua pretensão»;- «A tese da A. não tem, assim, qualquer fundamento, pelo que deve improceder a invocada nulidade da sentença».
Cumpre apreciar.

Neste domínio importa considerar o artigo 615.º, n.º 1, do CPC, que dispõe, na parte que aqui interessa:
«É nula a sentença quando; (…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), primeira parte, do CPC, deriva do incumprimento do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, onde se prevê: «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
A propósito do fundamento de nulidade enunciado na alínea d) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC referem Lebre de Freitas/Isabel Alexandre(1), «[d]evendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (…)». Nas palavras do Prof. Alberto dos Reis (2), «[s]ão, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão».
A par da doutrina, também a jurisprudência tem vindo a considerar que a referida nulidade só se verifica quando determinada questão colocada ao tribunal - e relevante para a decisão do litígio por se integrar na causa de pedir ou em alguma exceção invocada - não é objeto de apreciação, não já quando tão só ocorre mera ausência de discussão das “razões” ou dos “argumentos" invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas (3), sendo que o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar de ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou exclui (4).
Neste domínio, é entendimento pacificamente aceite que o abuso do direito consubstancia efetivamente uma “questão”, que é de conhecimento oficioso (5), não estando por isso sujeita ao princípio da preclusão consagrado no artigo 573.º, n.º 2, do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu n.º 2. Como salienta o Ac. do STJ de 3-02-2005 (6), «O abuso do direito, excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil)». Contudo, como também refere o citado aresto, «[a] conclusão jurídica sobre a verificação da excepção peremptória do abuso do direito em qualquer das suas modalidades deve resultar, naturalmente, da existência de factos provados que a revelem».
Daí que, relativamente à apreciação e decisão quanto à existência de abuso do direito, só deva falar-se de omissão de pronúncia, determinativa da nulidade agora em causa, quando tal questão tiver sido suscitada pela parte interessada ou, não o tendo sido, se o tribunal, em juízo prévio sobre o quadro factual disponível, entendesse necessário fazê-lo para obviar a uma solução do pleito clamorosamente injusta (7).
Retomando ao caso em apreciação, verifica-se que após a apresentação da contestação foi proferido despacho convidando os autores a tomar posição sobre a exceção deduzida na contestação (ineficácia da comunicação de transição para o NRAU), o que os autores fizeram através do articulado apresentado a 03-06-2019 (Ref.ª citius 8731235) no qual expressamente invocaram o exercício abusivo do direito alegado pela ré no contexto da exceção invocada na contestação, enquanto venire contra factum proprium – cfr. os artigos 14.º, 15.º e 16.º do referido articulado de resposta apresentado pelos autores.
Como se viu, sendo a questão do abuso do direito de conhecimento oficioso, não está a mesma sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no artigo 573.º do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu n.º 2 (8), o mesmo devendo entender-se quando expressamente suscitada pelos autores em resposta à matéria de exceção invocada na contestação, em articulado próprio apresentado para o efeito.
Deste modo, resulta indiscutível que tal matéria passou a integrar o âmbito das questões submetidas pelas partes à apreciação do Tribunal, impondo-se o seu conhecimento nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Analisando a decisão recorrida, verifica-se que da mesma não consta qualquer pronúncia expressa sobre a questão do abuso do direito tal como suscitada pelos autores no âmbito do articulado de resposta à exceção deduzida na contestação.
Assim sendo, e sem prejuízo da apreciação a empreender subsequentemente a propósito da relevância de tal questão no âmbito do mérito da ação, importa declarar nula, nesta parte, a decisão recorrida por omissão de pronúncia sobre tal questão, nos termos previstos na primeira parte da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Tal constatação não impede, porém, se conheça do objeto do recurso, atenta a regra da substituição prevista no artigo 665.º do CPC e considerando que o processo dispõe de todos os elementos necessários para o efeito.
Contudo, uma vez que a questão do abuso do direito tem como pressuposto lógico a verificação da existência do direito (9), a mesma será apreciada após conhecimento das restantes questões que constituem o objeto da apelação, tal como enunciadas em II – B) supra.

2.2. Validade e eficácia da comunicação relativa à transição do contrato de arrendamento para o NRAU e atualização da renda enviada pela apelante aos réus e a consequência daí decorrente para o mérito da ação.
Os recorrentes não impugnam a decisão sobre a matéria de facto incluída na decisão recorrida, porquanto não indicam quaisquer factos que entendam terem sido indevidamente julgados.
Deste modo, resulta evidente que os factos a considerar na reapreciação jurídica da causa são os que se mostram enunciados sob os n.ºs 1.1. supra.
No caso em apreciação, mostra-se pacificamente assente nos autos que o imóvel em causa nos autos integra atualmente a herança a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A. M., de que a autora é cabeça-de-casal, vigorando assim entre aquela, como locadora, e a ré, como locatária (para quem se transmitiu a posição de arrendatário atento o óbito do primitivo locatário), um contrato de arrendamento urbano, destinado a habitação, tendo por objeto o gozo do imóvel situado na Rua ..., em Guimarães, pelo prazo de 1 ano, a começar em 01.01.1966, e contra o pagamento de uma renda anual de 14.400$00, a liquidar em duodécimos de 1.200$00 no 1.º dia do mês a que respeitassem na casa do senhorio - cfr. as alíneas a), b) e c) dos “Factos provados”.
Como se explica detalhadamente na sentença apelada, a Lei n.º 6/2006, de 27-02 (NRAU), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012, aplica-se a este contrato de arrendamento com destino a habitação (celebrado no ano de 1966) no que concerne às regras de transição para o NRAU e atualização especial de rendas de contratos habitacionais celebrados justamente antes da vigência do NRAU, o que não vem questionado na presente apelação.
O procedimento de transição para o NRAU e a atualização de renda dependem sempre da iniciativa do senhorio, a qual deve obedecer aos requisitos de forma e de substância estabelecidos pelos artigos 30.º e seguintes do NRAU.

A este propósito, prevê o artigo 30.º, do NRAU, sob a epígrafe «Iniciativa do senhorio»:

«A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana;
d) Que o prazo de resposta é de 30 dias;
e) O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte;
f) As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32.º;
g) As consequências da falta de resposta, bem como da não invocação de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo seguinte».

O Tribunal a quo analisou a matéria de facto que resultou provada, tendo entendido - e bem - que da mesma resulta ter a autora comunicado ao arrendatário, ora ré, a sua intenção de fazer transitar o contrato de arrendamento entre ambos em vigor para o regime do NRAU, usando da faculdade que o artigo 30.º do NRAU lhe conferiu, ante as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012. Com efeito, não se mostra controvertido no presente recurso e resulta efetivamente dos factos dados como assentes que, com data de 12-04-2018 e endereçada a ambos os réus, a autora remeteu-lhes uma (única) carta registada, com AR, (a qual foi rececionada em 18-04-2018, encontrando-se o AR assinado pela ré mulher) comunicando-lhes a sua intenção de fazer transitar o contrato de arrendamento vigente entre as partes para o NRAU, bem como que o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis era de €123.261,01, conforme caderneta predial que juntou; que o valor da renda passaria para o montante mensal de €684,79, correspondente a 1/15 do valor patrimonial do locado; que o contrato de arrendamento para fins habitacionais passaria a ter a duração certa de um ano a contar da data em questão; comunicando ainda o seguinte: «Mais informo V. Exas. de que dispõem de trinta dias, a contar da recepção da presente carta, para se opor à presente comunicação, através dos meios previstos no art. 31.º do NRAU, sendo que a falta de resposta por parte de V. Exas. no referido prazo vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato constante da presente comunicação, ficando o mesmo submetido ao NRAU» - cfr. as alíneas f), g), e h) dos “Factos provados”.
A questão em discussão na ação, e que importa apreciar no presente recurso, incide unicamente sobre a observância dos requisitos formais da comunicação enviada pela autora aos réus com vista à transição do contrato de arrendamento para o NRAU e à atualização da renda respetiva, circunscrevendo-se mais especificamente em aferir se com a remessa de uma única carta, endereçada a ambos os cônjuges, e rececionada apenas por um deles, deve entender-se cumprido o formalismo legal exigido pelo artigo 12.º, n.º 1, do NRAU uma vez assente nos autos que o referido arrendamento tem por objeto a casa de morada de família dos reús - al. d) dos “Factos provados”.
Em caso de resposta negativa, importa ainda apreciar quais as consequências de tal inobservância.

Com efeito, o referido artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, com a epígrafe «Casa de morada de família», prescreve o seguinte:

«Se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia».
Por outro lado, entre as comunicações a que se refere o artigo 10.º, n.º 2, do NRAU estão as que constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º (artigo 10.º, n.º 2, al. a), do NRAU).
A questão que se suscita é, pois, a de saber se a remessa de uma única carta, endereçada a ambos os cônjuges, e rececionada por um deles, corresponde ao cumprimento do formalismo exigido pelo artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, posição que vem sustentada pela apelante. A questão em referência foi apreciada na sentença recorrida onde se decidiu que o cabal cumprimento de tal normativo exigia a remessa de duas cartas separadamente, uma para cada cônjuge, pelo que, não tendo sido esse o procedimento seguido pela autora, a comunicação por si remetida em abril de 2018 é ineficaz.
E parece-nos ser esta a solução mais adequada à luz dos factos apurados e dos critérios legais aplicáveis. Com efeito, da análise da referenciada disposição legal resulta para nós indiscutível que, no caso de o arrendamento ter por objeto a casa de morada de família, as comunicações referentes à transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 10.º, n.º 2, al. a), 12.º, n.º1, e 30.º, devem ser sempre dirigidas a cada um dos cônjuges, separadamente.
Assim, tal como salienta o Ac. TRP de 10-07-2019 (10): «a mera leitura do citado artigo 12º não permite discussões: “1 - Se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia.” (sublinhado nosso)». Em idêntico sentido pronunciou-se, aliás, esta Relação, no Ac. de 10-04-2017 (11).
Entendemos ainda que o objetivo da norma é claro e se explica «pela situação específica de se tratar da casa de morada de família, que justifica um regime especial no sentido de assegurar que a comunicação chega a ambos os cônjuges» (12).
Em consequência, bem andou o Tribunal a quo ao decidir que «quando o contrato cuja transição para o NRAU se pretende diga respeito à casa de morada de família do arrendatário, as cartas a remeter nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 30.º, 10.º/1 e 2/al.a) e 12.º/1 NRAU não poderão deixar de ser duas, uma para cada um dos cônjuges».
Contra este entendimento insurge-se a recorrente, sustentando, além do mais, que se a intenção do legislador foi a de que ambos os cônjuges tenham conhecimento efetivo da intenção do senhorio de transitar o contrato de arrendamento para o NRAU, considerando que aqueles vivem na designada comunhão de mesa, habitação e leito, afigura-se que uma comunicação dirigida a ambos os cônjuges cumpre perfeitamente essa função (cfr. conclusão IX das alegações).
Ora, ponderando o que decorre da matéria de facto assente à luz do regime jurídico aplicável ao caso, verificamos que a decisão recorrida ponderou - e bem - que «o art. 9.º/1 NRAU prescreve que “Salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, actualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de recepção”, acrescentando o n.º 2 que “As cartas dirigidas ao arrendatário, na falta de indicação por escrito deste em contrário, devem ser remetidas para o local arrendado”, considerando-se a comunicação realizada ainda que a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou ainda que o aviso de recepção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário (art. 10.º/1 NRAU).
Sendo esta a regra geral atinente às comunicações entre senhorio e arrendatários, o art. 10.º/2/al. a) NRAU excepciona as situações em que as comunicações se destinem à transição de contratos antigos para o NRAU por iniciativa do senhorio, nos termos do disposto nos arts. 30.º e 50.º NRAU. Nestes casos (em que a comunicação se destina à efectivação da transição dos contratos antigos para o NRAU por iniciativa do senhorio e a carta é devolvida ou o AR é assinado por pessoa distinta do destinatário) o senhorio deve enviar nova carta registada com aviso de receção, decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta. (art. 10.º/3 NRAU).
Ora, se nos termos e para os efeitos do disposto no art. 12.º/1 NRAU o senhorio que pretende fazer transitar o contrato para o NRAU remeter uma única carta, ainda que tendo ambos os cônjuges por destinatários, é inevitável que o AR venha a ser assinado apenas por um deles (podendo até suceder ser assinado por um terceiro)».
Efetivamente, ao determinar que se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º2 do art.º 10 devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, e estando em causa na presente ação a comunicação decorrente da iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, resulta manifesto não lhe ser aplicável o regime previsto para a generalidade das comunicações entre as partes no âmbito do arrendamento urbano, concretamente o que prevê que as comunicações por carta registada consideram-se realizadas, ainda que a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais ou o aviso de receção seja assinado por pessoa diferente do destinatário (artigo 10.º, n.º1, do NRAU). Tratando-se da situação específica das cartas que constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, a lei prevê algumas especialidades em relação ao regime da eficácia das comunicações entre as partes (artigo 10.º, n.ºs 2, 3 e 4 do NRAU).

Assim, sob a epígrafe “Vicissitudes”, prevê o artigo 10.º do NRAU, além do mais, o seguinte:

«1 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo anterior considera-se realizada ainda que:
a) A carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la;
b) O aviso de receção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário.
2 - O disposto no número anterior não se aplica às cartas que:
a) Constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º;
b) Integrem título para pagamento de rendas, encargos ou despesas ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo, nos termos dos artigos 14.º-A e 15.º, respetivamente, salvo nos casos de domicílio convencionado nos termos da alínea c) do n.º 7 do artigo anterior.
c) Sejam devolvidas por não terem sido levantadas no prazo previsto no regulamento dos serviços postais.
3 - Nas situações previstas no número anterior, o senhorio deve remeter nova carta registada com aviso de receção decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta.
4 - Se a nova carta voltar a ser devolvida, nos termos da alínea a) do n.º 1, considera-se a comunicação recebida no 10.º dia posterior ao do seu envio.
5 – (…)».

Deste modo, nas situações a que se reporta o n.º2 do artigo 10.º resulta indiscutível que o NRAU apenas confere eficácia imediata às comunicações entre as partes por carta registada quando o AR seja assinado pessoalmente pelo destinatário, certamente com o intuito de conferir garantias adicionais e de assegurar que a comunicação chega efetivamente ao conhecimento do destinatário, não considerando realizadas as comunicações entre as partes por esta via quando a carta seja devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais ou o aviso de receção seja assinado por pessoa diferente do destinatário. Já nas restantes situações, a que se reporta o artigo 10.º, n.º 1, a lei confere desde logo eficácia às comunicações, apesar das “vicissitudes” nele previstas terem ocorrido.
Daí que não mereça censura a decisão recorrida quando concluiu que «se nos termos e para os efeitos do disposto no art. 12.º/1 NRAU o senhorio que pretende fazer transitar o contrato para o NRAU remeter uma única carta, ainda que tendo ambos os cônjuges por destinatários, é inevitável que o AR venha a ser assinado apenas por um deles (podendo até suceder ser assinado por um terceiro).
Acontece que, e como resulta do disposto no art. 10.º/2/al. a) NRAU, neste concreto circunstancialismo o AR deverá ter de ser assinado pessoalmente pelo destinatário.
Sendo dois os destinatários talqualmente impõe o art. 12.º/1 NRAU, terão de ser duas as assinaturas recolhidas em AR – e sendo certo que tal nunca acontece quando é apenas um o talão que acompanha uma carta.
Daqui poderá concluir-se com alguma segurança que quando o contrato cuja transição para o NRAU se pretende diga respeito à casa de morada de família do arrendatário, as cartas a remeter nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 30.º, 10.º/1 e 2/al. a) e 12.º/1 NRAU não poderão deixar de ser duas, uma para cada um dos cônjuges».
A apelante sustenta, porém, que «no entendimento do ilustre Juiz a quo, para a comunicação produzir os seus efeitos, deveria o senhorio, no caso a Recorrente, remeter a cada um dos cônjuges individualmente uma comunicação, a informar da transição do contrato de arrendamento para o NRAU, sendo que o aviso de receção de cada uma das cartas teria obrigatoriamente de ser assinado pelo respetivo destinatário, sob pena de a comunicação se considerar ineficaz», para concluir que «se as cartas continuassem a ser sucessivamente subscritas por pessoa que não o efetivo destinatário, a comunicação de transição nunca se consideraria validamente efetuada, vinculando-se, assim, eternamente o senhorio a uma situação por si indesejada».
Liminarmente se dirá que, também neste ponto, não assiste razão à apelante.
Como referido supra, da análise do regime que emerge do citado artigo 10.º, n.º 1, do NRAU decorre a regra de que as comunicações previstas no n.º 1 do artigo 9.º do mesmo diploma consideram-se feitas e eficazes sempre que a carta for devolvida por o destinatário se ter recusado a recebê-la ou não a ter levantado no prazo previsto no regulamento dos serviços postais, ou ainda quando o aviso de receção tenha sido assinado por pessoa diferente do destinatário, ressalvadas as situações previstas no n.º 2 de tal preceito. Ora, nos casos expressamente previstos no n.º 2 do artigo 10.º (entre os quais se consideram os atinentes às cartas que constituam iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º e 50.º ou integrem título para pagamento de rendas, encargos ou despesas ou que possam servir de base ao procedimento especial de despejo, nos termos dos artigos 14.º-A e 15.º, respetivamente), perante a ocorrência das “vicissitudes” enunciadas no n.º1 deve o senhorio remeter uma nova carta registada com aviso de receção com comunicação idêntica à primeira, nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4 de tal preceito.
Sendo este o regime legal, forçoso é concluir que o próprio procedimento constante do NRAU acautela a situação em que o aviso de receção da carta que constitua iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos do artigo 30.º do NRAU, tiver sido assinado por pessoa diferente do arrendatário (ou dos cônjuges, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, do NRAU). Nessa hipótese, a lei prevê como consequência a necessidade do envio pelo senhorio de nova carta registada com AR decorridos que sejam 30 a 60 dias sobre a data do envio da primeira carta, caso em que, mesmo perante a devolução por motivo de recusa de receção, a comunicação se considera efetivada, não se vislumbrando fundamento para não considerar eficaz a nova carta que nem sequer seja devolvida mas cujo aviso de receção volte a ser assinado por pessoa diferente do destinatário, nos termos do disposto nos artigos 9.º, n.º1, e 10.º, n.º1, al. b), n.º2 al. a) e n.º 3 do NRAU.
Como se refere no Ac. TRP de 10-07-2019 citado supra, «estando em causa, como é o caso, a casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges. Sublinhe-se, as comunicações da iniciativa do senhorio para transição para o NRAU e, em particular, para actualização da renda, têm que ser dirigidas a cada um dos cônjuges que residam na habitação locada, sua casa de morada de família, sob pena de ineficácia».
Por conseguinte, tem que se considerar que a comunicação remetida pela autora/recorrente aos réus em abril de 2018 através do envio de uma única carta, embora dirigida a ambos e com o AR assinado pela ré mulher, é ineficaz para produzir o efeito pretendido, já que tal sanção é expressamente cominada pela lei para o não cumprimento das regras relativas às formalidades e aos destinatários das comunicações, nos termos previstos na parte final do n.º1 do artigo 12.º do NRAU.
Tendo-se concluído que o regime jurídico em questão assinala determinados efeitos aos atos que prevê, padronizando o comportamento do senhorio e do inquilino tendo em vista os fins aí estabelecidos, no caso a passagem de um regime legal de arrendamento para outro regime legal de arrendamento (13, revela-se inconsequente e irrelevante a alegação feita pela apelante no sentido de tal solução poder criar situações conflituantes, pois que ao remeter duas comunicações individuais a cada um dos cônjuges, parece que aos dois será conferido direito de resposta, ainda que apenas um seja o efetivo arrendatário - como sucede nestes autos.
Uma vez que a comunicação do senhorio é ineficaz para desencadear os efeitos pretendidos não se verificam os pressupostos legais para operar a transição para o NRAU e a atualização da renda relativamente ao contrato de arrendamento em causa nos presentes autos.
Em consequência, não se verifica o fundamento de resolução previsto no artigo 1083.º, n.ºs 3 e 4, do Código Civil. Daí a improcedência da ação.
Improcedem, assim, também nesta parte, as conclusões da apelação.
Por último, defende a apelante que é a própria recorrida arrendatária que confirma a receção da carta remetida pela recorrente a comunicar a referida transição do contrato para o NRAU, pelo que só em total abuso do direito e violação do dever de boa-fé se poderá considerar que tal comunicação não foi regularmente efetuada, com a agravante de que a ré ao rececionar a carta dirigida a si e ao seu marido nem sequer se dignou responder à mesma, conformando-se com o meio e o teor da comunicação efetuada, apesar de ser a cônjuge arrendatária. Alega que o comportamento dos réus, ao confessarem ter rececionado a comunicação relativa à transição do contrato de arrendamento para o NRAU, não reagir a tal comunicação (o que equivale à aceitação da mesma) e, posteriormente, invocar a necessidade de tal comunicação ser feita através do envio de cartas separadas para cada um deles, constitui uma situação de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
O artigo 334.º CC com a epígrafe «Abuso do direito» dispõe que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Tal como decorre do citado preceito legal, a verificação do abuso do direito pressupõe o exercício anormal, excessivo ou ilegítimo dos poderes inerentes a determinado direito.
Assim, para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. Em qualquer caso, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito (14).
Certo é, porém, conforme se sublinha no acórdão desta Relação de 10-01-2019 (15), que «o abuso de direito visa sancionar comportamentos clamorosamente ofensivos da boa fé, do fim económico e social do direito ou dos bons costumes: comportamentos clamorosos no sentido de intoleráveis, inadmissíveis, chocantes do sentido de justiça, que o direito e a ética negocial não podem tolerar».
Tal como esclarece Luís A. Carvalho Fernandes (16), «[o] preceito identifica como abusivo o exercício de um direito com manifesto excesso dos limites que assim lhe são impostos. Esta nota, que, num exame preliminar, parece conduzir o abuso a uma figura unitária, não tem, porém, esse significado, porquanto das diferentes fontes desses limites resultam múltiplas e diversas situações de exercício abusivo, que não é possível reduzir a uma única categoria dogmática, pelo que respeita às suas modalidades e às suas consequências». Daí que o citado autor proceda de forma autónoma à identificação dos modos de exercício que são sancionados como abusivos, por referência a cada um dos limites nele elencados (17), salientando a propósito, e no que ao caso releva: «[a] ideia geral que preside ao tipo venire contra factum proprium é a da proibição de comportamentos contraditórios que, no plano do exercício do direito, considera inadmissível uma actuação contrária a outra antes assumida pelo seu titular» (18). Por seu turno, «[à] suppressio, enquanto tipo de abuso do direito, por contrário à boa fé, corresponde, como ideia básica, um não exercício do direito durante um prolongado período de tempo» (19). Porém, refere ainda o referido autor «[p]ara esta omissão poder valer como causa autónoma de impedimento do exercício do direito, ao lado da prescrição e da caducidade, sem pôr em causa estes institutos, em particular o primeiro (…), o exercício tardio do direito tem de ser acompanhado de outro elemento.
Vista a situação do lado do titular do direito, o não-exercício prolongado tem de significar, em termos objectivos, a intenção de não o exercer, para poder criar, na outra parte, uma situação que justifica a tutela da confiança, segundo os seus elementos comuns, de o direito não ser exercido.
Verificados estes requisitos, de apuramento casuístico, segundo as circunstâncias do caso, o exercício serôdio é inadmissível ou abusivo».
Tal como refere o Ac. TRP de 15-11-2018 (20) «a “suppressio” é reconduzida pela doutrina a uma sub-hipótese do “venire contra factum proprium”, que traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
No fundo a “suppressio” só se distingue do “venire” por o factum proprium ser uma simples inactividade ou abstenção, ou seja, na “supressio” o tempo tem uma projecção de maior relevo: é pela sua continuidade que o não exercício suscita as expectativas, pessoais e sociais, de que o direito não será exercido.
Portanto, tal como no “venire” a “suppressio” pode ser reconduzida à tutela da confiança e da boa fé».
De forma idêntica, reporta-se o Ac. do TRG de 7-02-2009 (21) ao abuso de direito nas modalidades usualmente classificadas pela doutrina e jurisprudência como «suppressio (a qual exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua) ou de venire contra factum proprium, (consistente este no exercício duma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente ostensivamente violador da boa fé ou da tutela da confiança da contraparte)».

Retomando ao caso em apreciação, julgamos não ser possível vislumbrar na atuação dos réus quaisquer dos vícios em que se concretiza a figura do abuso do direito. Como se viu, o regime jurídico antes analisado estabelece determinados efeitos aos atos que prevê, padronizando o comportamento do senhorio e do inquilino tendo em vista os fins aí estabelecidos, no caso a passagem de um regime legal de arrendamento para outro regime legal de arrendamento.
A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem da iniciativa do senhorio, sendo que o não cumprimento das regras relativas à forma e ao destinatário da comunicação tem uma consequência específica, no caso, a sua ineficácia, tudo se passando como se a mesma não tivesse sido feita (22).
Ora, estando já demonstrado que a comunicação remetida pela autora/recorrente aos réus em abril de 2018 através do envio de uma única carta, embora dirigida a ambos e com o AR assinado pela ré mulher, é ineficaz para produzir o efeito pretendido - já que tal sanção resulta expressamente da parte final do n.º 1 do artigo 12.º do NRAU -, resulta manifesto que o simples decurso do tempo sem resposta a tal comunicação não é suficiente para se poder concluir pelo abuso do direito entretanto suscitado, tanto mais que a lei não prevê a invocação de tal vício como um dos fundamentos ou sentidos possíveis da resposta do arrendatário, ou do respetivo cônjuge, à proposta do senhorio. Acresce que se verifica não ser imputável à parte que quer prevalecer-se da ineficácia da comunicação a culpa pelo desrespeito pelas regras legais relativas às formalidades e aos destinatários da referida comunicação, não se revelando assim admissível que estes fiquem inibidos de invocar tal exceção em sede de contestação pela simples circunstância de não o terem feito anteriormente.
Deste modo, a invocação, no caso, da ineficácia da comunicação prevista no artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, com referência à carta que constitui iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 30.º do NRAU, configura o exercício normal do direito e não o seu exercício abusivo.
Por conseguinte, resulta indiscutível que os factos em apreciação não permitem configurar o exercício abusivo ou ilegítimo do direito pelos réus.
Termos em que também neste ponto improcede a apelação.
Em consequência, não se revela possível extrair solução diferente da declarada na decisão recorrida, a qual se confirma.

Improcede, assim, a apelação.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu decaimento.

Síntese conclusiva:

I - Incorre no vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC (omissão de pronúncia) a decisão que não apreciou a questão do abuso do direito expressamente suscitada pelos autores em resposta à matéria de exceção invocada na contestação.
II - No caso de o arrendamento ter por objeto a casa de morada de família, as comunicações referentes à transição para o NRAU e atualização da renda, nos termos dos artigos 10.º, n.º 2, al. a), 12.º, n.º1, e 30.º, devem ser sempre dirigidas a cada um dos cônjuges, separadamente.
III - Não atua com abuso do direito, designadamente na modalidade de suppressio, a ré que pretende prevalecer-se da ineficácia da comunicação prevista no artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, com referência à carta que constitui iniciativa do senhorio para a transição para o NRAU e atualização da renda, por ter sido enviada uma única carta dirigida a ambos os cônjuges, apesar de ter rececionado a carta dirigida a si e ao seu marido e de não ter respondido à mesma.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 9 de junho de 2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)




1. Cfr. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - 3.ª edição - Coimbra, Almedina, 2017, p. 737.
2. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, Coimbra, 1984 - Coimbra Editora, pg. 143.
3. Cfr. por todos, os Acs. do STJ de 8-11-2016 (relator: Nuno Cameira) - revista n.º 2192/13.0TVLSB.L1.S1– 6.ª Secção; de 21-12-2005 (relator: Pereira da Silva), revista n.º 05B2287; ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
4. Cfr. o Ac. do STJ de 6-06-2000 (relator: Ferreira Ramos), revista n.º 00A251, disponível em www.dgsi.pt.
5. Na doutrina, Cfr., por todos, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 762; na jurisprudência, Cfr., por todos, os Acs. do STJ de 12-07-2018 (relatora: Rosa Ribeiro Coelho) - revista n.º 2069/14.1T8PRT.P1.S1– 2.ª Secção; de 23-10-2014 (relator: Granja da Fonseca), revista n.º 5567/06.7TVLSB.L2.S1 – 7.ª Secção; de 18-10-2012 (relator: Orlando Afonso), revista n.º 660/04.3TBPTM.E1.S1 – 7.ª Secção; disponíveis em www.dgsi.pt.
6. Relator: Salvador da Costa, revista n.º 04B4671, disponível em www.dgsi.pt.
7. Cfr. o Ac. do STJ de 4-03-2009 (Relator: Vasques Dinis), p. 2470/08 - 4.ª Secção; com o sumário acessível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=29337&codarea=3.
8. Cfr. o Ac. do STJ de 12-07-2018 antes referenciado.
9. Tal como salienta o Ac. TRL de 1-10-2009 (relator: Francisco Bruto da Costa), p. 10.537/2008-809-A, disponível em www.dgsi.pt: «[a] nota típica do abuso de direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido».
10. Relator: José Igreja Matos, p. 568/18.5T8VLG.P1, disponível em www.dgsi.pt.
11. Relator: Carvalho Guerra, p. 471/16.3T8FAF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
12. Cfr. o Ac. TRG de 10-04-2017 supra citado.
13. Neste sentido, cfr. o Ac. TRP de 1-06-2015 (relator: Alberto Ruço), p. 271/14.5TJPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
14. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 1989, pgs. 515-516.
15. Relator: António José Saúde Barroca Penha, p. 2049/17.5T8GMR-G1, disponível em www.dgsi.pt.
16. Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5.ª edição – revista e actualizada, Lisboa, 2017, Universidade Católica Editora, p. 135.
17. Ob. Cit, pgs. 624 a 630.
18. Ob. Cit, pg. 628.
19. Ob. Cit, pg. 630.
20. Relator: Manuel Domingos Fernandes; p. 54/15.5T8AMT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
21. Relator: António Sobrinho; p. 1696/037TBFAF.G1 disponível em www.dgsi.pt.
22. Cfr., o Ac. do STJ de 13-09-2018 (relatora: Fernanda Isabel Pereira) - revista n.º 8346/15.7T8LSB.L1.S1 – 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.