Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO LEE FERREIRA | ||
Descritores: | REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVAÇÃO FUNÇÃO JUDICIAL FACTORES A TER EM CONTA | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 05/16/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
Sumário: | I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante. | ||
Decisão Texto Integral: | 24 Processo 732/11.8JABRG.G1 25 Tribunal da Relação de Guimarães Processo 732/11.8JABRG.G1 Página 25 de 25 Tribunal da Relação de Guimarães Processo 732/11.8JABRG.G1 Página 1 de 25 Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,
1. Nestes autos de processo comum, o tribunal singular na Secção Criminal da Instância Local de Guimarães da Comarca de Braga condenou o arguido Carlos A. pela prática de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256º nºs 1, al. a) e 3, com referência ao artigo 255º al. a), ambos do Código Penal na pena de quatrocentos e cinquenta dias de multa à razão diária de nove euros. Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença condenatória e da motivação extraiu as seguintes conclusões (transcrição): “1ª-) O arguido não cometeu o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nºs 1, al. a), e 3, do Código Penal, pela prática do qual foi ora condenado, pelo que se impõe a sua absolvição por este Venerando Tribunal da Relação; O Ministério Público, por intermédio da Exmª procuradora adjunta na Instancia Local de Guimarães apresentou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida (fls. 581 a 587). Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público, por intermédio da Exmª procuradora-geral-adjunta, renovou a posição expressa na resposta na instância recorrida, no sentido da improcedência do recurso (fls. 595 e 596) Proferido despacho liminar, recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. 2. Para apreciação das questões suscitadas no recurso, tem de se transcrever parcialmente a sentença recorrida. 2.1 O tribunal julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição): “1. Em data não concretamente apurada, entre 2009 e 2010, o arguido, então a trabalhar na Alemanha, regressou definitivamente daquele País para Portugal e trouxe consigo o veículo automóvel, marca …, modelo …, com a matrícula alemã nº …, com o chassis nº WFOGXXPSSG1M65600, o “visible VIN” ou placa de identificação situada na frente, lado esquerdo pelo lado de dentro do para-brisas, contendo o nº do chassis, o nº AUY118405 da série do motor do fabricante VW e o nº 1M65600 atribuído ao motor pela marca, o nº 126261445 de produção, e, gravados no bloco do motor os mencionados números de identificação deste, para além de um autocolante contendo os mesmos elementos de identificação do VIN. 2.2 O tribunal fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos (transcrição): “O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente: * Na verdade, conjugada toda a prova produzida, concluímos que o arguido foi efectivamente o agente dos factos dados como provados. Com efeito, a viatura de …, tinha o nº de chassis WFOGXXPSSG1M65600, foi registada na Alemanha em …, e o seu solicitado cancelamento em 31.05.2010, sendo o seu último proprietário o arguido – cfr. fls. 65. Já da análise do certificado de matrícula, verifica-se que a viatura (salvado) de matrícula nº …, teve antes a matricula …, tendo sido importada da Alemanha, e registada em nome de César L., em 19.06.2007, com o número de chassis WFOGXXPSSG3J26644 – cfr. fls. 29. Tal viatura foi encontrada a arder em 23.10.2009, no meio do monte, em … – cfr. fls. 42, 44 a 51 e depoimento das testemunhas. Por outro lado, a viatura de matrícula alemã, pertença do arguido, de acordo com a perícia de fls. 56 a 60, apresentava no seu chassis vestígios evidentes de viciação por corte e extracção da zona de gravação do respectivo número de série original, com posterior substituição por recorte com o número presente, por sua vez extraído de um outro veículo da mesma marca, passando a ter o nº WFOGXXPSSG3J26644, ou seja, o veículo que ardeu Refere, ainda, que o elevado grau de corrosão observado na mesa de gravação é claramente compatível com a exposição deste metal a elevadas temperaturas, eventualmente, provocadas por um incêndio, e consequente oxidação severa da superfície. E, também, refere a fls. 143 que a placa de construtor, afixada na aludida viatura é falsa, tratando-se de uma reprodução integralmente obtida por impressão policromática de jacto de tinta. Mais refere que o número do motor … e 1M65600 são originais e característicos do órgão examinado. Neste jaez, não há dúvidas que o veículo do arguido de matrícula nº …, foi viciado quer quanto ao número de chassis, quer quanto à placa de construtor, e, por fim, à matrícula, passando a ostentar elementos identificativos do veículo devidamente legalizado em Portugal com matrícula …propriedade, antes, de José A.. E, ainda, de acordo com a perícia, a chapa com o número de chassis foi retirada após o incêndio da viatura legalizada, porque como acima se referiu o elevado grau de corrosão observado na mesa de gravação é claramente compatível com a exposição deste metal a elevadas temperaturas, eventualmente, provocadas por um incêndio, e consequente oxidação severa da superfície. Acresce que de acordo com juízos de experiência comum conjugados com a prova produzida, conclui-se que já a placa de identificação não foi recuperada do veículo queimado e por isso, foi necessário recorrer à sua feitura e impressão em jacto de tinta, sendo por isso, falsa. Por outro lado, resulta de fls. 136 e 137, a legalização do veículo …, teria o custo em ISV de cerca de €7.541,44, ou seja, perto do seu valor comercial, referindo o arguido que seria de cerca de €9.000,00. Veja-se, ainda, que o arguido alegou que possuía o veículo de matrícula alemã, que estava muito estimado, como novo, tendo sido quem fez quase todos os quilómetros, e trouxe-o para Portugal quando regressou, porque custava-lhe deixá-lo lá. Veja-se que o certificado de matrícula do veículo já falsificado foi emitido em 05.02.2010 – cfr. fls. 29. Atente-se que mais alegou que não tinha que pagar imposto para o legalizar porque era emigrante, sendo certo que nada referiu sobre se já sabia disso antes de regressar e se preenchia os pressupostos legais. Mas mais alegou que decidiu adquirir o salvado, para poder transferir todas as peças necessárias da sua viatura de matrícula alemã para aquela. Ora, tal versão é totalmente descabida e desconforme com juízos de experiência comum e do normal acontecer, não passando duma tentativa vã de se desresponsabilizar. É que ninguém que tem uma viatura quase nova (com poucos quilómetros) compra um salvado (veículo acidentado) e manda transferir as peças daquele para este, por ser ilógico quer financeiramente, quer comercialmente. E, na verdade, o arguido também não o fez. Com efeito, tinha muito mais lógica fazer o que foi realizado, ou seja, retirar elementos identificativos em chapa do veículo queimado e colocá-los na viatura em bom estado, sendo isso uma simples operação de corte e soldadura, bem como a criação de placas em jacto de tinta, porque o fito foi apenas e só de evitar o pagamento de cerca de €7.541.44 de imposto, quando ela só valia cerca de €9.000,00. Como referiu o arguido, “custava-lhe muito deixar a viatura na Alemanha”, mas concluímos nós que também lhe devia custar pagar o valor de imposto quase no montante do seu valor comercial, ou pelo menos estava disso convencido na altura. Assim sendo, toda a factualidade dada como provada, merece resposta positiva por ter sido feita prova da sua verificação. Com efeito da conjugação de toda a prova e fazendo apelo a juízos de experiência comum, há que concluir que só o arguido tinha interesse em tal viciação. No decurso das suas declarações titubeantes e contraditórias por si e entre si, o arguido disse também que afinal não tinha que pagar imposto, sendo certo que não explicou se na altura preenchia os requisitos, ou se conhecia tal isenção, fazendo apenas uma alegação genérica e fortuita. Ora, então para que precisava de comprar um veículo que sofreu um incêndio (como ele reconheceu que sabia) para lá transferir as peças? É que este argumento não explica a sua versão, é que se tinha que pagar imposto, percebe-se a compra o salvado, se não tinha, não se percebe (e assim não merece credibilidade por ilógica), mas o certo é que ambas vão no sentido do fito da viciação da viatura. Mas mais, o arguido disse que comprou o salvado por €500,00, quando a sua viatura valia cerca de €9.000,00. Ora, mais uma vez tal factualidade demostra bem a falta de nexo e credibilidade da versão do arguido. É que por €500,00, quem esperaria comprar um salvado em bom estado para que pudesse transferir peças de uma viatura em bom estado? É que tal valor foi o que o seu dono disse que receberia da companhia de seguros, no estado em que estava, ou seja, de destruição total, o que qualquer automobilista sabe, face ao valor dos veículos, bem como sabe o que é um salvado. Por outro lado, também não deixa de fazer espécie porque vendeu o salvado ao arguido, quando sabia que nem para peças ele servia, quando a companhia de seguros lhe pagava o mesmo valor (!). Mas mais, como poderia o arguido pensar em recuperar o salvado, com peças do veículo de matricula alemã, e pago apenas €800,00 por tal operação, quando disse que era preciso trocar motor, capot, pára-choques, etc.? Este valor é mais de acordo com a normalidade das coisas se se tratar da mera operação de viciação. Mais ainda, o arguido referiu que entregou a viatura a um tal P... “brasileiro”, pessoa apenas conhecida das obras (e não amigo), para que ele a trouxesse da Alemanha para Portugal, e entregasse a um primo (pessoa desconhecida do arguido) que possuía uma oficina com vista à reparação, os quais vieram a ficar incontactáveis – como não podia deixar de ser (!). Ora, mais uma alegação em total desacordo com o normal acontecer. Quem entrega uma viatura a um simples conhecido (que rapidamente ficou incontactável) para que transporte a sua viatura da Alemanha a Portugal e mande realizar a troca de peças de um veículo para outro. Quem compra um salvado por €500,00 sem o ver, e manda tirar peças de um veículo em bom estado, sem o ver? Por fim, o salvado desapareceu, o que parece não importar ao arguido porque nunca se referiu a tal facto, nem à sua estranheza. Ou na sua versão se é o salvado a sua viatura agora, cumpre perguntar onde está o resto da viatura alemã? Toda esta versão, está bem de ver que é frágil, descabida e fala por si, não merecendo muitas mais considerações por absurda. Já a versão da acusação merece credibilidade, é que a prova vai toda no sentido do envolvimento do arguido nos factos. Veja-se que lhe custava deixar a viatura na Alemanha, como afirmou. Estava a passar por algumas dificuldades financeiras, regressando a Portugal sem trabalho. Não nega que foi ele quem comprou o salvado. Não nega que foi ele quem ordenou a transferência de peças dos veículos. Não sabe explicar com nexo e lógica porque queria tal transferência de peças. Contudo, e não obstante os depoimentos das quatro primeiras testemunhas se tenham mostrado titubeantes, incoerentes e afinados, partilhando parcialmente a tese do arguido, e por isso, pouco credíveis, o certo é que foram relevantes para se apurar com mais certeza que o arguido foi o mandante de toda a operação. Atente-se que a testemunha José A., desmentiu o arguido, dizendo que foi o irmão do arguido que lhe pediu para lhe vender o salvado (para peças), e que nem falou com o arguido, ao contrário do que este disse no sentido de que foi contactado pela testemunha que lhe propôs o negócio, mas ele disse-lhe que só o compraria se fosse recuperável. O arguido disse, também, que não sabia do estado do salvado (mas comprou-o), e a referida testemunha disse que nem para peças ele servia. Toda esta prova só serviu para descredibilizar a tese do arguido, quanto ao desconhecimento do estado do salvado, do que pretendeu fazer com ele e quem o fez. Veja-se, ainda, que a testemunha Manuel S., disse que emitiu o orçamento em branco e colocou o carimbo da sua oficina no mesmo a pedido da testemunha António R,, bem como a declaração de fls. 113 tem o carimbo da sua oficina, negando, contudo, que tenha feito qualquer alteração na viatura. Já a testemunha António R,, comerciante de automóveis e amigo do arguido, referiu que foi ele que preencheu o orçamento de fls. 111, mas de acordo com as instruções do arguido, nomeadamente quanto às peças. Ora, por aqui se conclui, também, que o arguido sabendo que tinha que levar a viatura à inspecção com vista a poder legalizá-la, tratou de arranjar a documentação junto de amigos cujas actividades se conexionam com a reparação e venda de automóveis, dando instruções das peças a apor no orçamento, ou seja, continuou a dominar o facto, com vista a conseguir a legalização fosse por meios fosse, nomeadamente pedindo documentos a quem (na sua versão) nada teve a ver com a alteração do veículo, com o fito de enganar o Estado, fazendo passar o veículo de matricula alemã pelo veículo salvado recuperado. Acresce, ainda, que a versão do arguido de que foi ele que adquiriu o salvado mas como estava na Alemanha, o seu irmão (o qual também estava emigrado) registou-o em seu nome, apenas por esse facto, também não mereceu credibilidade. É que ambos estavam emigrados, e bastaria o envio pelo correio dos documentos para ultrapassar as distâncias e o veículo ser registado em nome do verdadeiro dono. E se o arguido pretendia verdadeiramente passar as peças do veículo em bom estado para o salvado porque havia este de ser registado em nome do seu irmão, ficando o arguido sem a propriedade (legal) da viatura? Tratou-se antes de não chamar atenção, quer fazendo transmitir a propriedade da mesma da testemunha José A. para o seu irmão, quer registando o salvado em nome deste e não do arguido que sabia ser de estranhar tal comportamento, para que pudesse mas facilmente e sem levantar suspeitas ordenar a viciação da viatura de matrícula alemã. É isto que cumpre concluir da conjugação de toda a prova produzida com os juízos de experiência comum. No que respeita ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis (quer na fase interna quer externa) do arguido, ou seja, a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, designadamente a de falsificar os elementos identificativos do automóvel com vista a não pagar o imposto devido pela sua legalização, pois que ao ter agido como agiu necessariamente pretendia tal fim. Quanto ao facto dado como não provado, não foi demonstrada a sua verificação por qualquer meio probatório com verosimilhança. No que concerne à situação económica, social e profissional relevaram as declarações do arguido que nos pareceram verosímeis. Quanto à inexistência de antecedentes criminais, tomou-se em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos.” 3. O recorrente suscita nulidade do acórdão por considerar que o tribunal recorrido desrespeitou o segmento do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, onde se impõe que a sentença contenha a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, e inclua não só a indicação mas também o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. É hoje claro que a fundamentação da decisão em matéria de facto, se não se basta com meras declarações genéricas e tabelares de “convencimento” num determinado meio probatório, também não tem de incluir uma espécie de “assentada” dos depoimentos e declarações, sendo imprescindível que seja exteriorizada por forma a permitir uma perfeita compreensão da decisão pelos destinatários, aqui aferidos considerando um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas. Assim, haverá nulidade da sentença (artigo 379º nº 1, alínea a) Código de Processo Penal) sempre que, em consequência de uma omissão ou deficiência na análise crítica da prova, fique afectada a plena compreensão do processo lógico e racional que conduziu à decisão concreta em relação a cada facto provado e não provado. Na argumentação constante da motivação do recurso, existe omissão de fundamentação porque o tribunal não analisou de forma crítica o depoimento da testemunha Manuel L., nem concretizou o exame crítico quanto aos documentos. Não assiste razão ao recorrente. Na realidade, o tribunal indica de forma exaustiva e pormenorizada os elementos que considerou essenciais das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas, fazendo constar anda uma extensa explanação sobre o raciocínio lógico que conduziu à decisão. A obrigação de exame crítico da prova não exige a análise individualizada e em pormenor de cada depoimento. Dado o teor dos documentos em causa e a simplicidade da questão, afigura-se-nos suficiente o simples relacionamento, uma vez que esta indicação possibilita uma satisfatória compreensão da razão porque aquelas provas convenceram o tribunal, bem como o exercício cabal do direito de recurso pelo arguido. Naturalmente que pode o recorrente discordar da apreciação do tribunal de primeira instância, apresentar os seus argumentos e entender, como entende, que apenas deveria ter sido relevado o que ele próprio declarou em sua defesa, mas não procede a censura por falta de indicação do juízo lógico que conduziu à decisão da matéria de facto. Sem necessidade de mais considerandos, temos como improcedente a arguida nulidade por omissão de fundamentação. 4. Como persistentemente se sublinha, o recurso vem concebido pela lei como remédio jurídico, que se destina a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente. Para isso, o tribunal de recurso irá verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova especificados pelo recorrente e que este considera imporem uma decisão distinta. Deve ainda assinalar-se uma vez mais que os fundamentos pelos quais o juiz do tribunal de primeira instância confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem sempre de um juízo de valoração efectuado com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, confere ao julgador em primeira instância os meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. Com efeito, na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. Como temos realçado repetidamente, a função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum: exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende – como já exposto - de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante. Assim, a circunstância de alguém, por erro ou propositadamente, produzir uma ou outra declaração desconforme com a realidade não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa e o tribunal não se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento por uma contradição com outros elementos probatórios. Desde que nessa parte o raciocínio seja compreensível, o tribunal poderá e deverá aceitar como verdadeiros certos segmentos das declarações ou do depoimento e negar fiabilidade a outros, distinguindo o que merece credibilidade porque consentâneo com outros elementos de prova, do que lhe surge como mera efabulação emocional ou, mesmo, como mero erro de percepção. Em nossa apreciação, revela-se justificada a opção e não existe vício decisório por erro ostensivo ou contradição irresolúvel no texto da sentença quando o tribunal aceitou como bons alguns segmentos ou trechos de depoimentos testemunhais que também considerou, no geral, como titubeantes, incoerentes e afinados. 5. Nestes autos, não houve confissão, prova por perícia ou depoimento de uma testemunha que tenha presenciado algum dos eventos em que consistiu a concreta falsificação. Porém, ao invés do que parece ser o entendimento do recorrente, a prova segura dos factos relevantes tanto pode resultar da valoração de um meio de comprovação imediata e directa dos eventos materiais da vida real como a confissão do arguido, o depoimento de uma testemunha presencial, como também de um raciocínio lógico e indutivo com base em factos ou acontecimentos “instrumentais” ou “circunstanciais”, mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência (artigos 124º a 127º do Código de Processo Penal e quanto à utilização de presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil). A lei processual penal não regula os pressupostos específicos para o funcionamento ou procedimento da prova indiciária ou por “presunção probatória”, mas, a jurisprudência e a doutrina coincidem nos seguintes elementos As considerações seguidamente expostas são mera transcrição ou repetição de outras inseridas pelo mesmo relator em diversos acórdãos em que se suscitaram questões de idêntica natureza. Neste âmbito, seguimos de muito perto o entendimento exposto nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007, Relator Armindo Monteiro, proc. 07P4588, de 12-03-2009, Santos Cabral proc. 09P0395, de 06-10-2010, Henriques Gaspar, proc. 936/08.JAPRT, de 07-04-2011, Santos Cabral proc 936/08.0JAPRT.S1, de 09-02-2012, Armindo Monteiro, proc. 1/09.3FAHRT.L1.S1, de 09-02-2012, Santos Cabral, proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-01-2009, Carlos Almeida, proc. 10693/08, 3ª secção e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2005, Oliveira Mendes, proc. 1056/05, todos acessíveis in www.dgsi.pt , bem como no estudo “Prova Indiciária e Novas Formas de Criminalidade”do Juiz Conselheiro Santos Cabral, acessível in www.stj.pt; 1.º - Os indícios constituem os factos–base, alcançados a partir de provas directas (testemunhais, periciais, documentais, etc.) e sob plena observância dos requisitos de validade do procedimento probatório. 2.º - A partir desses factos-base e mediante um raciocínio lógico e dedutivo, deve poder estabelecer-se um juízo de inferência razoável com o facto ou factos a provar. Este juízo de inferência deve revelar-se conforme com as regras de vida e de experiência comum – ou seja de normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites. Apesar de se basear em critérios generalizantes, esse juízo de inferência deverá ter em consideração o concreto contexto histórico em que se inserem os factos individualizados, com a concorrência de todas as especificas circunstâncias aí relevantes. Como escreveu CASTANHEIRA NEVES “As regras de experiência, os critérios gerais não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar ?” In “Sumários de Processo Criminal” (1967-1968), Coimbra, 1968, pp 47-48, citado por Mendes, P... de Sousa, “A Prova Penal e as Regras da Experiência”, Estudos em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, III, Coimbra, 2010, pp 997-1011. 3.º- A eficácia probatória da prova indiciária depende da existência de uma ligação precisa e directa entre a afirmação base e a afirmação consequência, por forma a permitir uma conclusão segura e sólida da probabilidade de ocorrência do facto histórico probando; 4.º - Embora se admita a eventualidade da existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, entende-se necessário que os factos indiciadores sejam plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes; 5.º - A capacidade demonstrativa da prova indicaria não pode ser determinada pela análise isolada de cada indício ou facto base, nem de uma forma meramente formal. Com efeito, os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o acusado e o crime, quer os “contra indícios”, ou seja os indícios de teor negativo que a partir de máximas de experiencia, enfraquecem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Com efeito, “só após o sopesar das provas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno e só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária - quando é este tipo de prova que está em causa - pode alicerçar a convicção do julgador ”. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2012,proc.233/08.1PBGDM.P3.S1). Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo . 6. Aplicando estas considerações genéricas na situação sub judicie : Com fundamento no teor dos documentos, nos autos de apreensão, autos de diligência externa e nos exames periciais constantes do processo, sabemos que o arguido era dono e trouxe da Alemanha um veículo automóvel marca … modelo …, registado e de matrícula desse país …, então em “bom estado” Assim como se tem como assente que o arguido adquiriu um outro veículo, de marca … com a matrícula …, em estado de “salvado” pelo preço de 500 €. Sendo certo que este veículo tinha sido queimado por um incêndio que lhe destruiu todo o interior e quase o inutilizou totalmente, como bem se alcança da reportagem fotográfica de fls. 44 a 51. No relato de quem o vendeu, o veículo “nem servia para peças”. Seguidamente, também não há dúvida que o veículo vindo da Alemanha foi viciado quer quanto ao número de chassis, quer quanto à placa de construtor e por fim à matrícula, passando a ter aposta a matrícula … e o número de chassis que pertencia ao veículo “salvado”. Sabemos ainda que o arguido teria de pagar uma quantia de ISV de € 7541,44 para poder circular em Portugal e que o mesmo veículo se encontrava para venda num stand por um valor compreendido entre 11.500 e 12000 €. Temos como inquestionável que só o arguido tinha um interesse patrimonial relevante na viciação e adulteração dos elementos de identificação do veículo … trazido da Alemanha; Assim como sempre foi só o arguido, por ser o dono, quem dispôs ao longo do tempo do acesso e da possibilidade de planear, determinar e executar a viciação ou adulteração que lhe permitisse passar a circular em Portugal com o veículo trazido da Alemanha e vendê-lo, sem o pagamento do imposto normalmente devido. Por outro lado, a versão exposta pelo arguido revela-se destituída de razoabilidade e não infirma os indícios da culpabilidade já recolhidos: não é de forma alguma plausível que alguém compre um veículo praticamente destruído para nele colocar as peças de um outro veículo bem mais novo, de superior valor e em bom estado de conservação; além da evidente falta de razoabilidade da solução engendrada para a transformação dos veículos, não se pode aceitar entre pessoas de mediana experiencia social que alguém entregue um veículo a um mero “conhecido” e lhe confie todo o trabalho de modificação estrutural, sem o conhecimento e as instruções concretas do dono desses mesmos veículos. Percorridos os excertos dos depoimentos das testemunhas César A., José C., António R, e Manuel S. que o recorrente transcreve na motivação, também não descortinamos o mínimo fundamento para concluir que o tribunal teria de ficar na dúvida e decidir de maneira diferente. Tendo presente critérios de razoabilidade e a experiencia extraída de muitas outras situações semelhantes da vida real, os indícios recolhidos permitem-nos ter como provado, para lá de qualquer dúvida razoável, que foi efectivamente o arguido quem de forma voluntária e consciente e por intermédio de outra pessoa, planeou e executou a viciação e adulteração dos sinais de identificação do veículo apreendido nestes autos. O que vale por dizer que não encontramos qualquer erro de lógica ou de razoabilidade na interpretação e valoração dos meios de prova do tribunal de primeira instância, nem elemento probatório que nos imponha uma decisão diferente. Uma vez atingidos os limites do objecto do recurso e dos poderes de cognição deste tribunal, fixados pelo recorrente nas conclusões da motivação, nada mais há a apreciar e decidir. 7. O arguido decaiu no recurso que interpôs pelo que será responsabilizado pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em cinco UC. 8. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e em manter na íntegra a sentença recorrida. Por ter decaído no recurso, vai o arguido condenado nas custas com cinco UC de taxa de justiça. Guimarães, 16 de Maio de 2016. Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem. |