Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2947/20.7T8BRG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: SANEADOR-SENTENÇA
INEXISTÊNCIA DE FACTOS ESSENCIAIS INTEGRATIVOS DA CAUSA DE PEDIR
FACTICIDADE CONTROVERTIDA IRRELEVANTE PARA A DECISÃO A PROFERIR
SOLUÇÕES DIFERENTES QUANTO À QUESTÃO A DECIDIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A possibilidade de o juiz, na fase do saneamento do processo, conhecer do mérito da causa, depende da circunstância de não existirem então factos essenciais integrativas da causa de pedir alegada pelo autor ou das exceções que tenham sido invocadas pelas partes que permaneçam controvertidos, ou então que a facticidade que permanece controvertida se mostrar totalmente irrelevante, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, para a decisão final a proferir, por não implicarem nenhuma modificação dessa decisão final.
2- Daí que sempre que existam, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes quanto à questão a decidir, deva ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e de reunirem provas com vista ao acolhimento de uma dessas soluções plausíveis de direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

RELATÓRIO

J. M., residente no Campo …, n.º … Barcelos, instaurou a presente ação declarativa, como processo comum, contra J. L., advogado, com domicílio profissional na Av. … Barcelos, e Seguradora X Company, SE, com representação em Portugal na Avenida … Lisboa, pedindo que se:

a) declarasse que o 1º Réu incumpriu as suas obrigações enquanto advogado para com o Autor;
b) declare que a 2ª Ré fosse solidariamente responsável com o 1º Réu, em resultado do contrato de seguro referente a responsabilidade civil profissional a que foi atribuída a apólice n.º …………..9A, pelo pagamento ao Autor da quantia correspondente a 300.000,00 euros, em resultado do parecer jurídico errado que o 1º Réu deu ao Autor, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até efetivo pagamento;
c) se condenasse solidariamente os Réus ao pagamento ao Autor da quantia de 300.000,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, que o 1º Réu é advogado e que, em 10/11/2005, o Autor dirigiu-se ao escritório deste, a fim de lhe solicitar parecer sobre o modo seguro de conceder um empréstimo de 300.000,00 euros a A. S..
Nessa reunião, o Autor entregou ao 1º Réu uma minuta de contrato promessa de compra e venda para que o lesse e emitisse parecer se seria necessário aditar alguma cláusula ou elaborar um outro contrato.
O Autor explicou ao 1º Réu que conhecia A. S. desde 2005 e que este era sócio e gerente da sociedade “Y”, a qual tem por objeto a construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim.
Mais explicou que essa sociedade estava a construir um empreendimento, em propriedade horizontal, e que dos cinco blocos que integram o empreendimento, quatro estavam prontos e praticamente todos vendidos, e que apenas estava um bloco, constituído por cinco apartamentos destinados a habitação, em fase de acabamentos.
Também explicou que o empréstimo a fazer a A. S. se destinava a permitir o pagamento ao empreiteiro dos trabalhos de acabamento desses cinco apartamentos.
O Autor pretendia que o 1º Réu verificasse se pelo referido contrato promessa de compra e venda os cinco apartamentos que ainda não tinham sido vendidos, ficavam como garantia desse empréstimo a conceder a A. S. e se este último também garantia pessoalmente a restituição dos 300.000,00 euros.
Após ler o contrato promessa, o 1º Réu disse ao Autor que não havia riscos de não restituição dos 300.000,00 euros, na medida em que ao Autor eram prometidos vender quatro apartamentos e que o valor destes era superior ao do empréstimo, já que cada apartamento tinha um valor comercial superior a 95.000,00 euros, pelo que, em caso de incumprimento, o Autor receberia por parte do A. S. 380.000,00 euros e, bem assim, que este teria o prazo de um ano para concluir o pagamento do empréstimo e que o poderia fazer de duas maneiras: ou a sociedade vendia os quatro apartamentos e pagava ao Autor, por cada apartamento vendido, 80.000,00 euros, a que correspondia um lucro para o último de 5.000,00 euros por apartamento; ou a sociedade não conseguia vender os apartamentos no prazo de um ano e teria de efetuar a escritura de compra e venda a favor do Autor, no prazo de um ano a contar da assinatura do contrato promessa.
À pergunta do Autor sobre se era necessário efetuar algum contrato complementar ou registo sobre as frações, o 1º Réu disse-lhe que não era necessário, que o contrato promessa era o bastante.
Confiando nas palavras do 1º Réu, a quem pagou 400,00 euros pela consulta e análise do contrato-promessa, o Autor assinou esse contrato e entregou ao A. S. os 300.000,00 euros.
Acontece que o A. S. nunca mais contactou com o Autor, não atende os telefonemas deste e ausentou-se para parte incerta e não lhe restituiu os 300.000,00 euros.
Iniciadas as buscas no sentido de apurar a situação do empreendimento, o Autor apurou que as frações prometidas vender àquele estavam hipotecadas à Caixa … e que já tinham sido penhoradas pela Segurança Social no âmbito de processos de execução.
Mais apurou que a sociedade “Y” tem as suas instalações encerradas e foi declarada insolvente por sentença proferida em 12/11/2006.
Também apurou que A. S. e a mulher eram proprietários de um terreno, mas que este já se encontrava penhorado.
O Autor instaurou ação de condenação contra A. S. e mulher, em que estes, por sentença transitada em julgado, foram condenados a restituírem-lhes os 300.00,00 euros emprestados.
Acontece que o A. S. e a mulher nada restituíram ao Autor e desconhece-se o paradeiro daqueles e a existência de bens.
O 1º Réu deu uma consulta verbal ao Autor, em que emitiu um parecer errado e incompleto, com o lhe causou um prejuízo de 300.000,00 euros.
A responsabilidade civil profissional do 1º Réu, à data daquela consulta e emanação do dito parecer verbal, encontrava-se transferida para o 2º Réu, por contrato de seguro, até ao limite de 150.000,00 euros, com uma franquia de 5.000,00 euros.
O 1º Réu contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção dilatória da sua ilegitimidade passiva para ser demandado para os termos da presente ação, alegando que, de acordo com os factos alegados pelo Autor, este não lhe conferiu qualquer mandato, não foi o 1º Réu quem elaborou o contrato promessa, nem o Autor o procurou para o patrocinar no assunto em questão.
Mais invocou a exceção perentória da prescrição do direito indemnizatório que o Autor exerceu nos autos, alegando que, atenta a relação jurídica alegada na petição inicial, esse pretenso direito indemnizatório fundava-se no instituto da responsabilidade civil aquiliana, pelo que, alegando o Autor que o pretenso parecer jurídico que o 1º Réu lhe terá prestado foi emanado em 10/11/2005, o direito indemnizatório a que aquele se arrogou titular há muito que se encontrava prescrito.
Em sede de impugnação, com exceção dos factos articulados nos pontos 1º e 2º da petição inicial, o 1º Réu impugnou, por falsa ou por desconhecimento, toda a restante facticidade alegada pelo Autor.
Concluiu pedindo que se julgasse a ação improcedente e se condenasse o Autor como litigante de má fé, em severa multa e em indemnização não inferior a 10.000,00 euros.
A 2ª Ré seguradora contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção perentória da prescrição do direito indemnizatório a que o Autor se arrogou titular basicamente com os mesmos argumentos deduzidos pelo 1º Réu.
Em sede de impugnação, com exceção da facticidade alegada nos arts. 1º e 2º (o exercício da advocacia pelo 1º Réu a título profissional) e 52º a 55º (a existência de contrato de seguro, mediante a qual a responsabilidade civil profissional do 1º Réu decorrente do exercício da advocacia, à data dos factos descritos pelo Autor na petição inicial, encontrava-se transferida para a 2ª Ré, até ao limite de 150.000,00 euros e com uma franquia de 5.000,00 euros) da petição inicial, a 2ª Ré impugnou toda a restante facticidade alegada pelo Autor.
Concluiu pedindo que se julgasse procedente a exceção perentória da prescrição e se absolvesse aquela do pedido e, subsidiariamente, se julgasse a ação improcedente, por não provada, com igual consequência.
O Autor apresentou réplica em que conclui pela improcedência da exceção perentória da prescrição invocada pelos Réus, sustentando que, atenta a facticidade que alega na petição inicial, a sua pretensão indemnizatória se fundava na responsabilidade civil contratual, cujo prazo de prescrição ascendia a vinte anos, não estando, portanto, esse prazo ainda decorrido.
Concluiu pela improcedência do pedido de condenação como litigante da má fé formulado pelo 1º Réu.
Por despacho proferido em 20/09/2021, suspendeu-se a instância até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir no âmbito do Proc. n.º 1718/18.7T8BCL, a correr termos no Juízo Central Cível de Braga, Juiz 2.

Transitado em julgado essa decisão final, em 03/03/2022, a 1ª Instância proferiu o despacho que se segue:

“O Tribunal pondera conhecer de mérito a ação já no saneador uma vez que, analisando as posições das partes nos respetivos articulados, pensamos não estarem reunidos os pressupostos para a condenação do Réu com base na responsabilidade civil contratual.
Concedo o prazo de 3 dias para que as partes informem se pretendem a marcação de audiência prévia com a finalidade prevista no artigo 591º, n.º 1, al. b) do CPC, ou se optam pela dispensa da audiência prévia, sendo, nesse caso, fixado pelo Tribunal um prazo ulterior de 10 dias para pronúncia por escrito quanto a essa possibilidade”.

Autor e Réus declararam expressamente optarem pela segunda alternativa ou nada terem a opor que se dispensasse a realização de audiência prévia.
Nessa sequência, a 1ª Instância concedeu às partes o prazo de dez dias para se pronunciarem “quanto à possibilidade de se proferir decisão de mérito a indeferir a pretensão do Autor pela não verificação dos requisitos inerentes à responsabilidade civil contratual de advogado”.
Pela Ré seguradora foi dito não se opor “à possibilidade de o Tribunal proferir decisão de mérito a indeferir a pretensão do Autor pela não verificação dos requisitos inerentes à responsabilidade contratual de advogado”.
Pelo 1º Réu foi dito concordar com a posição assumida pelo tribunal.
Finalmente, pelo Autor foi dito, em síntese, que, na sua perspetiva, alegou matéria de facto suficiente para se concluir estarem reunidos todos os pressupostos legais da responsabilidade civil de advogado em que fundou a sua pretensão indemnizatória.

Em 30/03/2022, a 1ª Instância proferiu saneador-sentença, fixando o valor da presente ação em 300.000,00 euros e julgando a ação improcedente, absolvendo os Réus do pedido, constando esse saneador-sentença da seguinte parte dispositiva:
“Julgo a ação manifestamente improcedente e, em consequência absolvo os Réus de todos os pedidos contra si formulados.
Custas pelo Autor, in totum”.

Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

A) Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil dos RR na medida em que da conduta do 1º R. resultou negligenciada a segurança do negócio que o A. pretendia quando se deslocou ao escritório do 1º R. para ter a consulta e o parecer jurídico.
B) O autor foi ao escritório do 1º R. para lhe explicar as cautelas que deveria ter e o modo como apurar a situação financeira do A. S. e da empresa que este dizia gerir e saber se à data do negócio os imóveis estavam ou não hipotecados e se tinham algum para a segurança do negócio. É o que o A. diz nos nº 9º a 17º da petição inicial:
C) O A. pretendia que o 1º R. verificasse se pelo contrato promessa de compra e venda, os cinco apartamentos que ainda não tinham sido vendidos, ficavam como garantia do pagamento desse empréstimo e se A. S., pessoalmente também garantia o pagamento dos 300.000,00.
D) O 1º R. leu as cláusulas do contrato promessa de compra e venda e disse ao A. que não havia riscos de não pagamento do empréstimo dos 300.000,00, na medida em que ao A. eram prometidos vender quatro apartamentos de habitação, com garagem individual na cave e arrumos no sótão, correspondentes ao Tipo T2+1 do 1º andar Direito do Bloco .., ao Tipo T3 do rés-do-chão Direito do Bloco .., ao Tipo T3 do 1º andar Direito do Bloco .. e ao Tipo T2 do 1º andar Esquerdo do Bloco ...
E) O 1º R. salientou ao A. que o valor desses quatro apartamentos era superior ao valor do empréstimo, na medida em que cada apartamento tinha um valor comercial superior a 95.000,00, pelo que o valor a receber pelo A. em caso de incumprimento por parte do A. S. seria de 380.000,00.
F) O 1º R. explicou ao A. que A. S. tinha o prazo de 1 ano para concluir o pagamento do empréstimo ao A. e que o poderia fazer por uma de duas formas. A primeira e que seria a mais provável, a sociedade Y vendia os quatro apartamentos e pagava ao A. por cada apartamento vendido 80.000,00, a que correspondia um lucro de 5.000,00 por apartamento, ou seja, o A. recebia 320.000,00.
G) Se a sociedade Y não conseguisse efetuar as vendas no prazo de 1 ano, os quatro apartamentos ficariam para o A. em pagamento da divida, devendo a escritura pública de compra e venda ser celebrada no prazo de 1 ano, a contar do dia da assinatura do contrato promessa.
H) O A. perguntou ao 1º R. se era necessário efetuar algum contrato complementar ou fazer algum registo sobre as frações autónomas na Conservatória do Registo Predial, tendo o 1º R. dito que não era necessário, que o contrato promessa de compra e venda era o bastante.
I)- Confiando nas palavras dadas, o A. assinou o contrato promessa de compra e venda e deu o contrato a assinar a A. S..
J) Ora, como se veio a verificar, um simples contrato promessa destituído de eficácia real ou sem o empréstimo ser acompanhado da hipoteca das frações autónomas não havia segurança nenhuma para o A.
L) O 1º R. tinha o dever de explicar ao A. que para ficar assegurado tinha que registar sobre o prédio ou sobre as frações hipoteca a seu favor ou pelo menos o contrato promessa de compra e venda. Mas nada disso foi dito pelo 1º R. ao A.
M) O 1º R. incorreu em responsabilidade enquanto advogado porque deu uma consulta verbal e emitiu culposamente um parecer errado e incompleto, porquanto o Advogado tem o dever jurídico de dar o conselho, recomendação ou informação corretas face ao disposto no artigo 485º, nº 2, do Código Civil.
N) Ora, a responsabilização pelo incumprimento, doloso ou negligente, deste dever confere o direito a ser indemnizado à pessoa perante quem o Advogado deu a informação, recomendação ou conselho errados.
O) O 1º R. incumpriu as suas obrigações enquanto advogado para com o A.;
P) Os factos alegados são suficientes para, apreciando a sua conduta à luz do que é exigível a um advogado medianamente prudente e diligente, a classificar como culposa, por violadora dos deveres que para o advogado emergem do contrato de mandato, constituiu-se na obrigação de indemnizar o A. pelos danos que lhe causou.
Q) O Tribunal “a quo” erra quando afirma que no caso dos autos e face aos elementos que foram comunicados pelo autor, o réu atuou de uma forma diligente e dentro dos parâmetros profissionais que lhe eram exigidos.
R) O contrato promessa, enquanto simples contrato obrigacional com eficácia limitada às partes não assegurava o pagamento da quantia mutuada ao A. porquanto, embora objetivamente, os imóveis pudessem ter um valor superior ao valor mutuado, o vendedor não se encontrava impedido de transmitir esse imóvel a terceiros, como veio a acontecer, assim, lesando o A. que ficou impedido de reaver a quantia mutuada, por ter desaparecido a garantia que os imóveis visavam acautelar e que foi a razão do A. se ter deslocado ao escritório do R..
Deverá, assim, ser julgada a apelação procedente e revogado o despacho recorrido e, em consequência, determinar-se o prosseguindo da ação, para a prolação de despacho saneador com fixação dos factos assentes e dos factos a provar.

Apenas o 1º Réu contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e concluindo as suas contra-alegações nos termos que se seguem:

1.º - Sempre se dirá que não assiste qualquer razão ao Recorrente, tendo bem decidido o douto tribunal ao julgar a ação manifestamente improcedente e, em consequência, absolver os réus dos pedidos contra si formulados.
2.º - Bem andou o tribunal ao concluir que “no contexto específico alegado pelo autor na petição inicial e com base nos elementos factuais e jurídicos que o autor comunicou ao réu, este emitiu um parecer que não pode ser censurável. Acresce a isto o facto de não existir um nexo causal entre esse parecer, a feitura do negócio pelo autor e a perda do dinheiro.
3.º - Não assiste a qualquer razão ao Recorrente ao requerer a revogação do despacho recorrido e, em consequência, determinar-se o prosseguimento da ação, para a prolação de despacho saneador com fixação dos factos assentes e dos factos a provar.
4.º - Na verdade, a pretensão do recorrente foi considerada improcedente porque perante tudo o quanto o alegado pelo Autor na petição inicial e nos elementos factuais e jurídicos transmitidos pelo Autor ao Réu aqui recorrido, não permite concluir pela responsabilidade civil contratual.
5.º - Por isso, salvo melhor opinião, é nosso entendimento que não pode ser sufragado pelo presente tribunal a posição vertida nas alegações do Recorrente, pois não existe qualquer razão ou vício que possa apontar a presente douta sentença, resumido em suma a transcrever a douta sentença, não a colocando em crise.
6.º- Em suma, alegou o Autor que “se terá deslocado como cliente ao escritório do réu que exerce a profissão de advogado e solicitou uma consulta jurídica relativamente a um contrato promessa de compra e venda de vários apartamentos que serviria para garantir a devolução de um empréstimo monetário que estava a pensar fazer a um conhecido de nome A. S.. Esse conhecido do autor era sócio gerente de uma sociedade que estava a construir vários imóveis. Esses imóveis figuravam no contrato promessa como as frações a vender sendo que o autor iria “executar” esse contrato caso o dinheiro que ia emprestar ao conhecido não fosse devolvido no prazo de um ano. O autor alega que o réu leu o contrato e disse ao autor que esse contrato garantia o pagamento dessa quantia uma vez que o valor dos imóveis era superior ao valor do empréstimo. O autor alega ainda que, com a venda desses imóveis, iria receber um lucro de €5.000,00 por cada apartamento, recebendo, por isso, €20.000,00 de lucro com a venda dos quatro apartamentos, que figuravam no contrato promessa que o réu analisou. Outrossim, o autor argumenta que perguntou ao réu se era preciso “efetuar algum contrato complementar ou fazer algum registo sobre as frações autónomas na Conservatória do Registo Predial”, ao que o réu disse que não uma vez que o contrato promessa seria o suficiente para garantir o pagamento. Ora, o autor confiou no conselho do réu e entregou o dinheiro ao A. S. que, assim, que se viu com o numerário, fugiu e não mais devolveu qualquer quantia. O autor veio a descobrir que a sociedade desse A. S. se encontrava insolvente e que os imóveis em questão estavam hipotecados e penhorados. Finalmente, argui que intentou execução contra o A. S., mas que este não tem bens pelo que perdeu a totalidade do valor.”
Ainda, “no entendimento do autor o réu incumpriu o seu dever enquanto advogado porquanto deu um parecer jurídico e uma consulta verbal errada”.
7.º - Apesar de não expedido na douta sentença, o aqui Réu e aqui Recorrido apresentou a sua contestação no qual em suma alegou “que o Autor não conferiu ao Réu qualquer mandato” e “foi solicitado um parecer, pasme-se numa consulta que ocorreu em 10 de novembro de 2005, mais de 15 anos, sobre um contrato elaborado, datado da mesma data, que foi apresentado ao aqui contestante, contrato que a petição inicial não revela quem elaborou”. E, “o contrato consubstancia um contrato promessa de compra e venda e não um contrato de empréstimo. Alega o autor que apenas teve uma reunião com o contestante. Não existiu qualquer outra consulta ou reunião com o contestante segundo o alegado na petição inicial. O aqui contestante não teve qualquer intervenção na elaboração do citado contrato promessa de compra e venda, na elaboração do alegado aditamento ao contrato promessa de compra e venda, não patrocinou o autor na ação intentada contra os fiadores, ou, facto omitido na petição inicial, na insolvência da sociedade Y, em sede de reclamação de créditos com eventual direito de retenção sobre as alegadas frações. Pior, não se encontra sequer alegado, porque não aconteceu, o autor ter procurado o aqui contestante para o patrocinar no assunto em questão.
8.º E, por impugnação afirma, entre outros factos, o aqui Recorrido que “não conhece o Autor, nunca realizou com o autor relativamente ao assunto alegado na petição inicial, que qualquer outro”, “nunca o alegado contrato promessa de compra e venda foi apresentado ao contestante para ser emitido o parecer”, “da mesma forma, o contestante não conhece, nem nunca reuniu com a sociedade Y, seus gerentes, ou com os alegados fiadores, com referência ao aditamento ao contrato promessa de compra”;
“O autor nunca esteve o escritório do aqui contestante com o senhor A. S., no dia 10 de novembro de 2055”; “sendo igualmente falso que por tal consulta, que nunca existiu, tenham sido pagos €400,00 quatrocentos euros.” “Preço de consulta, mesmo com elaboração de contratos, totalmente desajustada para a época”; “Aliás, a ser verdade o alegado pelo autor, teria sempre ter uma fatura e recibo comprovativo de tal facto”; e ainda, “uma coisa o aqui contestante tem a certeza o autor tem de estar equivocado sobre a pessoa do alegado advogado com quem reuniu, alegadamenteem10 de novembro de2005. Aliás, não é difícil ao autor estar equivocado. Segundo informação colhida pelo contestante, o autor recorre sistematicamente a apoios judiciários, sendo que no período que decorreu entre 2005 e 2016 solicitou e foram deferidos mais de uma centena de apoios judiciários. Processos patrocinados com recurso a apoio judiciário que terminam na maioria com queixas junto da Ordem dos Advogados contra os ilustres mandatários.”
9.º - Pelo que, o douto tribunal andou bem ao decidir proferir decisão de mérito no saneador, tendo sido oferecido prazo para as partes se pronunciarem.
10.º - De facto, perante a matéria recolhida e alegada pelo autor não estão cumpridos os pressupostos da responsabilidade contratual e contrariamente ao alegado pelo Autor e Recorrente não há violação do artigo 799.º n.º 1 do Código Civil.
11.º - O douto tribunal bem decidiu que perante a matéria de facto alegada pelo autor, estaria em causa a responsabilidade contratual do advogado com base em parecer jurídico por violação do disposto no artigo 485.º do Código Civil.
12.º - Posto isto, é de suma importância que perante a matéria de facto alegada pelo autor, sem apreciação de tudo o quanto alegado pelo Réu e aqui Recorrido, que não estão preenchidos os pressupostos para a verificação do incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação.
13.º - No exercício da sua atividade, os advogados gozam de discricionariedade técnica e encontram-se apenas vinculados a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da sua profissão. E tratando-se de um mandato forense havendo que observar na sua execução as normas do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo D.L. 84/84, de 16/3, então em vigor), assumindo relevo o estipulado no art.83º, onde se afirma, designadamente, ser dever do advogado estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade – cfr. nº1 alínea d).
14.º- Assim, os pressupostos da responsabilidade contratual são comuns ao da responsabilidade extracontratual: o facto voluntário; a ilicitude do facto; a culpa (dolo ou negligência do autor do facto); o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano sofrido pelo lesado.
15.º - Todavia, importa salientar que na responsabilidade contratual a ilicitude corresponde à violação de uma obrigação, através da não execução pelo devedor da prestação a que estava obrigado - cfr. art. 798º do Cód. Civil - sendo que, por outro lado, presume-se a culpa do devedor, pois é a este que incumbe provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua – cfr. art. 799º nº 1 do Cód. Civil.
16.º - Mas, como daí decorre, é ao credor que compete a prova do facto ilícito do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso.
17.º - Acresce que, é pacífico na doutrina e na jurisprudência que, no cumprimento do mandato forense, o advogado não se obriga a conseguir um determinado resultado, mas tão só a utilizar diligentemente os seus conhecimentos e experiência, segundo as regras de arte, para que, na defesa dos interesses do cliente, tal resultado se obtenha.
Por isso, a obrigação que o advogado assume é de meios e não de resultado – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pág.73; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ªed., pág. 1039; Nuno Pinto Oliveira, Direito das Obrigações, págs.143 e segs. e Acs. do STJ, de 29/4/2010, 5/2/2013 e 9/12/2014, disponíveis in www.dgsi.pt.
18.º - A este propósito Antunes Varela afirma que, nas obrigações de meios, não bastará a prova da não obtenção do resultado previsto com a prestação, para se considerar provado o não cumprimento. Não basta alegar a morte do doente ou a perda da ação para se considerar em falta o médico que tratou o paciente ou o advogado que patrocinou a causa. É necessário provar que o médico ou o advogado não realizaram os atos em que normalmente se traduziria uma assistência ou um patrocínio diligente, de acordo com as normas deontológicas aplicáveis ao exercício da profissão - cfr. obra citada, pág.101.
Assim sendo, compete ao mandatário agir segundo as exigências da leges ettis, os deveres deontológicos da classe e os conhecimentos jurídicos então existentes, atuando de acordo com o dever objetivo de cuidado, e não em função de um resultado pré-estabelecido – cfr. Carlos Mateus, A limitação da responsabilidade profissional de advogado em prática isolada, abril 2007
19.º - Ora, versando no tudo o quanto alegado pelo Autor em sede de petição inicial verifica-se que, sem mais, bem decidiu o douto tribunal ao determinar que estamos perante um caso de uma responsabilidade que emerge de um aconselhamento jurídico alegadamente negligente e errado prestado no contexto de uma relação contratual – qualificável como de prestação de serviços por profissional liberal – estabelecida entre Réu e Autor ao nível da consulta jurídica enquanto ato próprio de advogado.
20.º - E, de facto, perante tudo o alegado, face aos elementos apresentados pelo Autor alegadamente naquela consulta jurídica, o réu agiu de uma forma diligente e dentro dos parâmetros profissionais que lhe eram exigidos. Objetivamente, o contrato promessa em causa assegurava o pagamento da quantia mutuada, porquanto, objetivamente, os imóveis iriam ter um valor superior.
21.º - Repare-se, que o Autor alega que apresentou ao Réu, um contrato promessa já elaborado (sem mencionar por quem) com a data já devidamente preenchida, para que o Réu analisasse, apresentando-se na reunião com a parte interessa na assinatura do mesmo.
22.º - De facto, e bem, quando o Autor alega que se apresentou numa alegada consulta jurídica com o promitente vendedor A. S., pressupõe que havia uma elevada confiança pessoal, que saiu completamente gorada pelas intenções dolosas e intencionais daquele.
23.º - Como bem fundamenta a douta decisão, não existe qualquer nexo causal entre a atuação do réu e a decisão do autor de emprestar dinheiro a uma pessoa que estava enredada numa teia jurídica complexa e previamente elaborada e que fez com que o negócio estivesse morto à nascença.
24.º - E, nas doutas alegações apresentadas pelo Recorrente não colocam em causa a convicção do douto tribunal, porque contrariamente ao alegado, na reunião que ocorreu na presença do promitente vendedor A. S., e perante todas as circunstâncias e pedido de opinião imediata, o Réu nunca de modo algum poderia apurar a situação financeira de A. S. e da sua empresa e saber se à data do negócio os imóveis estavam ou não hipotecados.
25.º - As próprias alegações do Autor/Recorrente não colocam em causa a decisão do douto tribunal, tecendo meras considerações factuais sem qualquer fundamento ou suporte legal que permitam colocar em crise a douta sentença.
26.º - Porquanto, como bem fundamentado pela douta sentença “o parecer jurídico do réu não estava incorreto. O problema existiu a montante e a jusante desse parecer. A montante porque o Réu não estava ciente da situação jurídica dos prédios (situação jurídica essa que o autor deveria ter comunicado ao réu, ao invés, apresentou ao réu a premissa de que os imóveis estavam à disposição para serem negociados e incluídos no contrato promessa); a jusante, porquanto, o réu desconhecia em absoluto a intenção do A. S. de enganar o autor (repare-se que o autor alega um circunstancialismo factual que escapa completamente às regras da normalidade e experiência comum: com base no que foi alegado pelo autor, o A. S. desligou telemóveis, tornou-se incontactável e simplesmente desapareceu). Ora, a nossa opinião é a de que o réu não tinha obrigação de conhecer e/ou de prever qualquer uma das situações. Aliás, nem tal juízo de prognose foi solicitado.”
27.º - Por tudo o quanto alegado, não se pode concluir com os elementos fácticos e o especifico contexto alegado na petição inicial pelo Autor que o parecer jurídico emitido foi censurável e que a verdadeira causa para o insucesso do negócio foi aquele parecer jurídico.
28.º - Isto posto, que o Autor se apresentou para uma opinião imediata, com um documento previamente elaborado e na presença do A. S., pessoa em quem manifestamente confiava, não tendo a mínima cautela de verificar a situação financeira daquele, e conforme documentos juntos pelo Autor, à data da concretização do negócio aqueles imóveis já se encontravam hipotecados, caindo os argumentos alegados em sede de recurso pelo Autor.
29.º - Assim, como acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 12.05.2015 “O procedimento do advogado para ser culposo e merecer censura deontológica, deve constituir um indesculpável erro de ofício, ou seja, deve permitir concluir, a uma luz segura, que foi omitida atuação judicial aconselhável. Mas o direito não aponta, por regra, para soluções unívocas; as soluções adotadas correspondem, com frequência, apenas à que é entendida como assente na melhor construção jurídica, não encerrando a ideia de que a contrária ou incompatível esteja necessariamente errada.
30.º - Por tudo o exposto, e por muito respeito que mereça, não se concebe as doutas alegações apresentadas pelo Autor/Recorrente, que não colocam em crise a douta sentença, uma vez que todos os factos alegados à luz do que é exigível não permitem concluir que advogado não exigiu mediana, prudente e diligentemente.
31.º - Por esse motivo, não assiste qualquer razão ao Recorrente.
32.º - No que concerne à aplicação à incorreta aplicação do direito e violação do preceituado artigo 799.º do CC, é notório que não há qualquer violação desta norma, nem de qualquer outra, por isso deve negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida nos seus exatos termos.

Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida, fazendo-se assim, como sempre, a habitual JUSTIÇA!”.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, é uma única questão que se encontra submetida à apreciação do tribunal ad quem e que consiste em saber se o saneador-sentença recorrido, ao julgar a ação manifestamente improcedente e, em consequência, ao absolver os Réus (apelados) do pedido, padece de erro de direito, por, de acordo com as várias soluções plausíveis da questão de direito a ser decidida nos autos, existir matéria alegada pelo apelante na petição inicial, que permanece controvertida e que é suscetível de preencher todos os requisitos legais de que depende a constituição dos apelados em responsabilidade civil contratual perante o apelante, decorrente do 1º Réu ter incumprido os deveres de cuidado que emergem das suas obrigações legais e estatutárias, enquanto advogado, para com os seus clientes ou simples consulentes, ao alegadamente, na consulta que o apelante teve com o mesmo, em que pretensamente lhe solicitou um parecer sobre se a minuta do contrato promessa de compra e venda que lhe apresentou lhe assegurava a restituição da quantia de 300.000,00 euros que se dispunha a emprestar a A. S. e de, nessa sequência, o 1º Réu ter emitido parecer verbal errado ou incompleto, garantindo ao apelante que esse contrato promessa era garantia suficiente, quando assim não era, levando-o a emprestar os 300.000,00 euros a A. S., que veio a perder, impondo-se revogar o saneador-sentença recorrido e substitui-lo por decisão em que se determine o prosseguimento dos autos, com a prolação, pela 1ª Instância, de despacho saneador, em que fixe o objeto do litígio e dos temas da prova, seguindo após os autos os seus termos legais.
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão a proferir no âmbito da presente apelação são os que constam do relatório acima exarado.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Estando já enunciada supra a concreta questão que se encontra submetida à apreciação desta Relação, cumpre referir que, não sendo o direito uma ciência exata (se é que existem ciências exatas), no sentido de que sobre a mesma questão jurídica que é submetida à apreciação e à decisão do juiz, não é inusual não existir, da parte da doutrina e da jurisprudência, uma solução jurídica única, isto é, uma resposta inequívoca e unívoca para essa questão, a possibilidade do juiz de conhecer de mérito na fase do saneamento do processo encontra-se dependente do facto de não existir matéria de facto que se mostre controvertida ou que, existindo, a facticidade que permanece controvertida, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, se mostrar totalmente indiferente para a decisão final a proferir, por ser insuscetível de se projetar nessa decisão final, de modo a puder alterar o dictat do juiz a explanar nessa decisão final.
Tal significa que os casos em que estão reunidos os pressupostos legais para o juiz conhecer, total ou parcialmente, de mérito, em sede de despacho saneador, são necessariamente situações excecionais, uma vez que não serão frequentes os casos em que não exista matéria controvertida, ou em que existindo, esta se mostre, de todo, irrelevante, atentas as várias soluções de direito plausíveis, para a decisão final a proferir, de forma a possibilitar ao juiz que, sem a produção de prova, profira já essa decisão final.
De resto, porque assim é, compreende-se que, sem prejuízo das partes expressamente autorizarem a não realização de audiência prévia após notificação do juiz para esse efeito e sem prejuízo da advertência do conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa, o art. 592º do CPC, não prevê a possibilidade de não se realizar audiência prévia sempre que o juiz se proponha a conhecer, já na fase do saneamento do processo, em todo ou em parte, do mérito da causa, pelo que a decisão de mérito proferida fora da audiência prévia e sem a prévia autorização das partes para que não se realizasse essa diligência, apesar de devidamente advertidas de que o tribunal iria conhecer do mérito da causa, é nula, por violação do princípio do contraditório, na sua dimensão positiva de influência, prevista no n.º 3 do art. 3º do CPC, consubstanciando uma decisão surpresa (1).
Note-se que a opção do legislador de, sem prejuízo de as partes autorizarem a não realização de audiência prévia, apesar de advertidas pelo juiz de que iria conhecer, no todo ou em parte, do mérito da causa, obrigar o juiz a realizar essa audiência sempre que se proponha conhecer do mérito da causa, está subjacente a consideração de que, “é de toda a conveniência que o juiz não decida o litígio sem uma debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa”, evitando-se, assim, não só a prolação de decisões surpresa, mas também a “precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final” (2).
A antecipação do conhecimento de mérito, pressupõe assim que, “independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes. Assim acontecerá quando: a) Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos: nestas circunstâncias, é inviável a elaboração de temas da prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica; b) Quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da ação para a audiência final; mutatis mutandis quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados, se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação, inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão” (3).
Destarte e em suma, o juiz apenas pode conhecer, em todo ou em parte, do mérito da causa, na fase do saneamento do processo, quando não existam factos essenciais controvertidos, isto é, factos constitutivos da causa de pedir alegados pelo autor na petição inicial para ancorar a pretensão de tutela judiciária que aí deduz contra o réu (pedido), ou integrativos das exceções que tenham sido alegadas pelo último na contestação, com vista a impedir, modificar ou extinguir o direito em que o autor faz assentar o seu pedido, ou constitutivos das contra exceções que o autor oponha às exceções invocadas pelo réu na contestação, ou sempre que os factos que permaneçam controvertidos, de acordo com as várias soluções de direito plausíveis, se mostrem, de todo, indiferentes para provocar uma alteração da decisão final a proferir.
Logo, sempre que existam factos controvertidos e em que existam, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes quanto à questão a decidir, será prematura qualquer decisão de mérito, impondo-se ao juiz dar às partes a possibilidade de as discutirem e de reunirem provas com vista ao acolhimento de uma dessas soluções plausíveis de direito (4).
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, o apelante (Autor) instaurou a presente ação contra os apelados (Réus), pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe a quantia de 300.000,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento, alegando, como causa de pedir, os concretos fundamentos de facto que supra se sintetizaram em sede de relatório, e que se resumem à circunstância do apelante ter consultado o 1º Réu, enquanto advogado, solicitando-lhe que emanasse parecer verbal sobre se o contrato promessa de compra e venda que lhe apresentou garantia, de forma suficiente, a restituição da quantia de 300.000,00 euros que aquele se propunha emprestar a A. S., obtendo dele um parecer positivo, o qual se veio a revelar ser errado ou incompleto, uma vez que, ancorado nesse parecer, tendo o apelante emprestado os referidos 300.000,00 euros ao identificado A. S., este não lhos restituiu, nem a promitente vendedora, a sociedade “Y”, lhe vendeu as frações objeto daquele contra promessa e não existe qualquer possibilidade real de o vir a fazer, uma vez que essa sociedade foi declarada insolvente e, quanto ao A. S., apesar de ter instaurado uma ação contra aquele e a mulher, com vista a obter a sua condenação a restituir-lhe a referida quantia emprestada, e de ter obtido sentença, transitada em julgado, que os condenou à restituição, os mesmos não dispõem de quaisquer bens conhecidos que respondam por essa dívida, uma vez que o único bem que lhes é conhecido é um prédio, que já se encontra penhorado.
Assim, a pretensão indemnizatória que o apelante deduz nos autos assenta na responsabilidade civil contratual em que se terá constituído o 1º Réu, no exercício da sua atividade profissional de advogado, decorrente de ter incumprido os deveres de cuidado a que se encontra legal e estatutariamente obrigado perante o apelante, seu consulente, ao emitir um parecer verbal alegadamente erróneo ou incompleto, do que terão decorrido danos patrimoniais para o apelante, mais concretamente, a perda da quantia de 300.000,00 euros que, na sequência daquele parecer, emprestou a A. S., assentando, por sua vez, a responsabilidade civil contratual da 2ª Ré seguradora na circunstância do 1º Réu ter transferido para a mesma a sua responsabilidade civil profissional emergente do exercício da advocacia, por contrato de seguro, até ao limite de 150.000,00 euros, sujeita a uma franquia de 5.000,00 euros.
Apesar de, com exceção da facticidade relativa ao exercício profissional pelo 1º Réu da atividade de advogado e, bem assim, da alegada relativa ao contrato de seguro que aquele celebrou com a 2ª Ré-seguradora, toda a restante facticidade integrativa da causa de pedir que o apelante alegou, na petição inicial, se encontrar controvertida, ficcionando que o apelante lograria provar toda essa facticidade, ancorando-se no acórdão do STJ de 14/04/2015, a 1ª Instância sustenta que, a pretensão indemnizatória exercida pelo apelante nos autos, assenta na responsabilidade contratual do 1º Réu filiada no art. 485º, n.º 2 do CC; que assumindo o advogado perante o cliente ou simples consulente uma obrigação de meios, cabe aos últimos, isto é, no caso, ao apelante, demonstrar a ilicitude e a culpa do advogado, ou seja, que este incumpriu as regras da arte e que não empregou o comportamento que lhe era contratualmente exigível ou que a sua atuação, de acordo com as regras da arte, e sem prejuízo da independência técnica do advogado, se mostra desconforme a essas regras da arte, tendo aquele omitido deveres de cuidado que lhe eram impostos por lei e pelos estatutos da sua profissão e que são exigíveis a qualquer advogado médio.
Passando à análise do caso concreto sobre que versam os autos, conclui a 1ª Instância que, ante a facticidade alegada pelo apelante na petição inicial, o 2º Réu, “face aos elementos de que dispunha, rectius, face aos elementos que foram comunicados ao Autor, agiu de uma forma diligente e dentro dos parâmetros profissionais que lhe eram exigíveis. Objetivamente, o contrato promessa em causa assegurava o pagamento da quantia mutuada porquanto, objetivamente, os imóveis iriam ter um valor superior ao valor mutuado (…); um negócio destes envolve sempre um risco e é justamente o risco que legitimava o lucro de quase 7% que o Autor ia obter face ao montante emprestado (…). No caso concreto, a confiança pessoal que o Autor depositou no A. S. foi completamente gorada por uma atitude, partindo dos factos alegados pelo Autor, dolosa e intencional daquele (…). O parecer jurídico do Réu não estava incorreto. O problema existiu a montante e a jusante desse parecer. A montante porque o Réu não estava ciente da situação jurídica dos prédios (situação jurídica essa que o Autor deveria ter comunicado ao Réu (…); a jusante, porquanto o Réu desconhecia em absoluto a intenção de A. S. de enganar o Autor (…). Paralelamente não nos podemos olvidar que a verdadeira causa do insucesso do negócio não foi o parecer jurídico do Réu, foi por um lado, a atuação dolosa do A. S., mas por outro lado, a conduta imprudente e temerária do Autor. Foi o Autor que apresentou o contrato promessa ao Réu e, por isso mesmo, que escolheu esse mecanismo jurídico como garantia do seu investimento (…). Por outro lado, ainda o Autor não teve uma cautela mínima de modo a apurar a situação financeira do A. S. e da empresa que este dizia gerir tato mais que à data do negócio já os imóveis estavam hipotecados”.
E com base nesta argumentação fáctico-jurídica, conclui, em sede de saneador sentença recorrido que, a facticidade alegada pelo apelante na petição inicial, não permite concluir que ao emitir aquele parecer, o Autor tivesse agido ilícita e culposamente e que também não existe nexo causal entre esse parecer, a feitura do negócio pelo Autor e a perda do dinheiro.
Ponderando nesta construção fáctico-jurídica, cumpre referir que consentimos que a solução jurídica (abstrata) que vem explanada no acórdão do STJ de 14/04/2015 a propósito da responsabilidade contratual profissional de advogado perante os seus clientes ou simples consulentes, não merece divergência ao nível doutrinário e jurisprudencial.
No entanto, conforme dá nota esse aresto, já ocorrem naturais, até porque está-se perante matéria árida e complexa, divergências ao nível da jurisprudência a propósito de aplicação, em concreto, desses pressupostos abstratos constitutivos da responsabilidade contratual de advogado.
Ora, analisada a aplicação desses requisitos abstratos constitutivos da responsabilidade contratual de advogado perante os seus clientes ou simples consulentes, feita pela 1ª Instância ao caso concreto sobre que versam os presentes autos, dir-se-á que se coloca, desde logo, a questão sobre se o apelante (Autor) tinha efetivamente confiança no A. S. (conforme pretende a 1ª Instância acontecer) e, no caso positivo, qual o grau dessa confiança, até porque, conforme alega o apelante, este deslocou-se com o A. S. aos préstimos de um advogado, mais concreta e alegadamente aos do 1º Réu, para que este analisasse a minuta do contrato promessa e emitisse parecer se esse contrato lhe garantia a restituição do dinheiro que se propunha a emprestar ao A. S..
Depois, alegando o apelante ter-se deslocado ao escritório do 1º Réu, a fim de solicitar parecer sobre o modo seguro de conceder um empréstimo de 300.000,00 euros e, bem assim, sustentando que, após análise do contrato, o parecer do 1º Réu terá sido no sentido de que não existiam riscos de não restituição dos 300.000,00 que o apelante se propunha a emprestar a A. S., e que perante a pergunta sobre se era necessário efetuar algum contrato complementar ou registo sobre as frações, o 1º Réu lhe terá dado resposta negativa, coloca-se a questão de, a vir a ser provada esta concreta facticidade, sobre se o apelante já tinha efetivamente escolhido o contrato promessa de compra e venda como “mecanismo jurídico” de “garantia do seu investimento” (conforme pretende a 1ª Instância acontecer), ou se antes se encontrava aberto a outras soluções jurídicas que o 1º Réu lhe sugerisse e que melhor lhe garantissem a restituição da quantia que se propunha a emprestar ao A. S..
Acresce que, perante o alegado escopo com que o apelante se terá deslocado ao escritório do 1º Réu e face ao que então alegadamente lhe comunicou, coloca-se a questão, face às diversas soluções jurídicas plausíveis suscetíveis de serem aplicáveis ao caso, em particular, a forma de olhar para as circunstâncias concretas que se vierem a quedar como provadas e não provadas e a aplicação do direito a esses factos, se, atento o padrão de diligência de um advogado médio, não competiria ao 1º Réu alertar o apelante sobre se já tinha indagado sobre a situação económica de A. S. e da sociedade “Y” e, bem assim, se já se tinha deslocado à Conservatória do Registo Predial, a fim de se informar quanto à situação jurídica dos prédios objeto do contrato promessa, ou se esse dever de indagação, face às circunstâncias específicas do caso concreto alegadas pelo apelante na petição inicial e que se vierem a apurar, não existe ou nem sequer a questão se coloca.
Ora, será em função da concreta facticidade alegada pelo apelante na petição inicial que se vier (ou não a apurar), dos factos complementares e instrumentais que eventualmente se venham a apurar na sequência da instrução da causa, que, em função das várias soluções jurídicas plausíveis que são suscetíveis de serem aplicadas ao caso presente, em particular, a mundividência que cada julgador tem sobre a realidade da vida, a qual necessariamente influencia a aplicação da solução jurídica aos factos que se quedarem provados e não provados no caso concreto, que, salvo melhor opinião, se poderá responder a essas questões num sentido ou noutro e, em função disso, se poderá (ou não) concluir pelo preenchimento dos requisitos legais da responsabilidade civil contratual em que o apelante ancora a sua pretensão indemnizatória em relação aos apelados Réus – facto ilícito, culpa, dano e nexo causal entre o facto ilícito e culposo alegadamente praticado pelo 1º Réu, no exercício da sua atividade profissional de advogado, e os alegados danos sofridos pelo apelante.
Aqui chegados, resulta do que se vem dizendo que, estando a facticidade alegada pelo apelante, na petição inicial, e que serve de causa de pedir ao pedido indemnizatório que deduz contra os apelados (Réus), praticamente toda ela controvertida, e não sendo a prova ou não prova dessa facticidade, de acordo com as várias soluções jurídicas que são suscetíveis de serem aplicadas ao caso concreto, em particular, as diversas mundividências que cada julgador lança sobre a facticidade que se vier a quedar como provada e não provada e a subsunção jurídica que, em função dela, fará desses factos, absolutamente indiferente para a decisão final a proferir nos autos, no sentido da improcedência ou da procedência total ou parcial do pedido, diversamente do decidido pela 1ª Instância, não estão efetivamente recolhidos nos autos os pressupostos legais que lhe permitiam proferir já, na fase do saneamento do processo, decisão sobre o mérito da presente causa. Antes, conforme é de lei, impõe-se dar a possibilidade às partes de discutirem as questões fácticas e de direito a decidir no âmbito dos presentes autos, e reunirem provas com vista ao acolhimento de uma dessas soluções plausíveis de direito.
Resulta do exposto, em suma, impor-se concluir pela total procedência da presente apelação e, em consequência, impõe-se revogar o saneador-sentença recorrido e determinar o prosseguimento dos autos, com a fixação, pela 1ª Instância, do objeto do litígio e dos temas da prova, seguindo após os autos os seus termos legais.
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Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar a presente apelação procedente e, em consequência:
- revogam o saneador-sentença recorrido, e determinam o prosseguimento dos autos, com a fixação, pela 1ª Instância, do objeto do litígio e dos temas da prova, seguindo após os autos os seus termos legais.
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Custas da apelação pelo apelado Luís Costa Dias (1º Réu) - art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Notifique.
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Guimarães, 13 de julho de 2022

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:
José Alberto Moreira Dias - relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes - 1ª Adjunta
Rosália Cunha - 2ª Adjunta



1. Acs. STJ. de 16/12/2012, Proc. 4260/15-4T8FNC.E.L1.S1; RG. de 20/01/2022, Proc. 1167/20.7T8VRL-G1 (relatado pelo aqui relator e em que foi 1º adjunta a aqui 2ª adjunta); RP de 12/11/2015, Proc. 4507/13.1TBMTS-A.P1; RE. de 24/05/2018, Proc. 10442/15.1T8STB-A.E1.
2. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs. 230 e 231.
3. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., 2020, Almedina, págs. 721 e 722.
4. Ac. RG. de 15/06/2022, Proc. 2170/21.5T8BRG.G1; RC. de 05/04/2022, Proc. 449/20.2T8LRA.C1; RP. 28/05/1991, Proc. 0222842; RL. de 07/12/2011, Proc. 62/11.5TTFUN.L1-4.