Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
228/14.6T8MDL.G1
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA JUSTIFICAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Tem legitimidade para instaurar ação de impugnação da justificação obtida em processo que correu termos na Conservatória do Registo Predial, qualquer interessado que invoque ser titular de direito ou interesse incompatível ou objectivamente afectado pelo reconhecimento do direito justificado.
Decisão Texto Integral: I- Relatório
1- M…, e esposa, M…, residentes na Rua da…, concelho de Mirandela, intentaram, no dia 18/12/2014, a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra A…, e esposa, B…, residentes igualmente na Rua da…, alegando, em breve resumo, que estes últimos, mediante despacho exarado pela Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Mirandela, datado de 13/03/2012, obtiveram a inscrição a seu favor da titularidade do direito de propriedade sobre dois prédios que identificam.
Sucede que, na base dessa decisão, encontram-se factos que não correspondem à verdade.
Efetivamente, os RR. não compraram verbalmente a B… qualquer “terra de cultivo de cereal”, mas uma casa, com cerca de 100m2, que existia ao lado caminho público; tal como não compraram à Junta de Freguesia de … qualquer outra “terra de cultura de cereal”, porquanto este órgão autárquico nunca foi proprietário de semelhante prédio rústico e no “Bairro da…” sempre e só existiu, e existe, espaço do domínio público, para onde os RR. ampliaram a dita casa, tornando-a habitável, além de que edificaram também uns barracos de madeira, onde guardam galinhas, cães e alguns objectos.
Assim, a utilização abusiva, e ilícita do solo, subsolo e espaço aéreo das identificadas áreas do domínio público, por parte dos RR., ou seja, a área de cerca de 61 m2 ocupada pelos barracos e a área de cerca de 60 m2 ocupada pela ampliação da casa de habitação, tem de cessar. Até porque as obras ilícitas realizadas pelos RR. lhes causam prejuízo a eles (AA.), uma vez que o acesso público à sua casa de habitação está estrangulado.
Deste modo, considerando o referido processo de justificação nulo, pedem que:
a) Se julguem “impugnados e ineficazes para todos os legais efeitos, os factos justificados pela decisão proferida por despacho da Senhora Doutora Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Mirandela, datado de 13 de Março de 2012, no âmbito do processo de justificação nº 07/2012”, traduzida na declaração de aquisição por usucapião dos prédios descritos (…)”, a favor dos RR;
b) Seja ordenado “à Conservatória do Registo Predial de Mirandela, o registo da anulação da inscrição de aquisição” dos mesmos prédios a favor dos RR;
c) Seja “cancelado qualquer eventual registo que os Réus hajam feito a seu favor, ou de quaisquer terceiros adquirentes, na Conservatória do Registo Predial de Mirandela, notificando-se esta para tal efeito”.
2- Contestaram os RR., começando por arguir a falta de interesse em agir dos AA., por os mesmos não terem alegado qualquer facto que se reconduza à violação de um direito subjectivo de que os mesmos sejam titulares.
Além disso, consideram também que os AA. são parte ilegítima nesta ação, uma vez que, como os mesmos reconhecem, estão em causa bens do domínio público, de que eles, portanto, não são titulares.
Assim, além do mais - que para a economia deste recurso não tem interesse-, pedem a procedência das indicadas exceções ou, subsidiariamente, a improcedência desta ação.
3- Contra esta pretensão manifestaram-se os AA., em réplica.
4- Findos os articulados, foi proferida sentença que, julgando os AA. parte ilegítima, absolveu os RR. da presente instância.
5- Inconformados, reagiram os AA. interpondo recurso que rematam com as seguintes conclusões:
“1 ­ O Tribunal “a quo”, por sentença de 18 de maio de 2015, julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa, tendo absolvido os Réus da instância.
2­ A legitimidade das partes deve ser referida à relação jurídica objeto do pleito e determina­se averiguando quais são os fundamentos da ação e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos.
3­ Sendo, no caso concreto, a causa de pedir complexa, tem, no entanto, também por base a defesa dos interesses privados dos aqui Apelantes e a ofensa do seu direito de propriedade por parte dos Apelados.
4 ­ O Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 30° do Código de Processo Civil.
5 ­ A parte é legítima quando o interesse, moral ou material, que se agita no processo, é, em relação a ela, direto, pessoal e legítimo.
6 ­ O interesse em agir consiste em os Apelantes estarem carecidos de tutela judicial, representando o interesse em utilizar a ação judicial e em recorrer ao processo respectivo, para ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento dos aqui Apelados.
7­ Com a presente ação, os aqui Apelantes pretendem defender os seus direitos relativamente ao identificados prédios, pois os aqui Apelados A… e esposa construíram uns barracos de madeira sobre o espaço do domínio público, no talude da Estrada Nacional, que liga Mirandela a Vinhais, em frente à casa dos autores, ocupando a área de cerca de 61 metros quadrados, que pretendem licenciar como “anexos” da casa de habitação, tendo essa faixa de terreno cerca de 4 metros de largura, junto ao muro da casa dos autores, por cerca de 17 metros de comprimento, porquanto a largura inicial, na parte frontal contrária ao muro da casa dos autores é de apenas cerca de 3,5 metros, sendo certo que esse espaço sempre foi do domínio público.
8­ A alegada justificação realizada pelos aqui Apelados é nula de pleno direito, ao abrigo do disposto no artigo 240°, nº 2, do Código Civil, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado, o que fizeram os aqui Apelantes através da presente ação.
9­ Por outro lado, estamos aqui perante atos absolutamente simulados, o que os torna nulos, além de tais comportamentos consubstanciarem a prática, por parte dos Apelados, do crime de falsas declaração perante oficial público.
10­ O Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos e 240°, nº 2, e 286° do Código
11­ Pedindo os AA. que se julguem não justificados os factos e o direito de propriedade dos RR, relativo a um prédio rústico, por considerarem pertencer ao domínio público e que aquele reconhecimento do direito de propriedade, justificado notarialmente, vai afetar o acesso ao seu prédio, em função da invocada dominialidade, devendo ser considerados “parte interessada”, para os fins previstos no art. 109º-A do Código do Notariado, são, consequentemente, parte legítima, além de demonstrarem interesse em agir.
12 ­ Assim, deveria ter o tribunal “a quo” ter considerado improcedente a invocada exceção dilatória de ilegitimidade ativa e, em consequência, ter mandado prosseguir a presente ação, sendo os aqui Apelantes considerados partes legítimas.
13­ Pelo que não podia o Tribunal “a quo” ter decidido, como decidiu, julgar procedente a exceção de ilegitimidade ativa, bem, pelo contrário, como exposto.
14­ Portanto, a douta sentença recorrida tem de ser substituída por outra que julgue improcedente a exceção de ilegitimidade ativa, e, em consequência, se considerem aos autores, aqui Apelantes, como partes legítimas, prosseguindo os presentes autos os seus termos legais, pelo que a douta sentença (saneador) violou, nesta parte, o disposto no artigo 615°, 1, do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal “a quo” está obrigado e limitado pelos factos articulados pelas partes (artigo 5° do C.P.C.), violando também o disposto nos artigos 552°, 578°, 577°, 609° e no artigo 30°, todos do Código de Processo Civil e seus basilares princípios, bem como os artigos 240° e 286° do Código Civil”.
Pedem, assim, que, com a procedência do presente recurso, se revogue a sentença recorrida.
6- Os RR. responderam pugnando pela confirmação do julgado.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Mérito do recurso
1- Definição do seu objecto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil), restringe-se à questão de saber se os AA. são parte legitima na presente demanda.
2- Baseando-nos, pois, nos factos descritos no relatório supra exarado -que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos como solucionar esta questão:
A legitimidade processual, nunca é demais lembrá-lo, reconduz-se à qualidade ou posição, juridicamente relevante, da parte em relação ao objecto (próximo) do processo[1] ; ou seja, em relação ao pedido. E isso, quer para o deduzir, quer para o contradizer.
A parte, sendo legítima, tem o direito de, dentro dos limites da lei, dispor do processo e de afirmar nele os seus interesses legalmente protegidos [2].
Ponto é que seja titular direto desses interesses. A lei (artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) não deixa qualquer margem para dúvidas, quando dispõe que “[o] autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”. E esclarece no n.º 2, que “[o] interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.
O interesse, pois, entendido nestes termos, é o critério decisivo para a aferição da legitimidade processual.
Mesmo no plano das relações jurídicas, como acrescenta o n.º 3 do citado preceito, a legitimidade depende da titularidade do interesse juridicamente relevante; ou seja, da coincidência entre a relação jurídica material controvertida e a relação processual em que aquela relação é afirmada, servindo de critério para aferição dessa coincidência, na falta de disposição legal em contrário, a tese do autor.
É certo que nem sempre, nos processos judiciais, se dirimem relações jurídicas, em sentido restrito ou técnico [3]. Casos há em que estamos apenas perante situações jurídicas absolutas, não integradas por relações jurídicas no sentido apontado, ou ainda diante de factos jurídicos cuja existência é afirmada ou negada.
Mas, mesmo nessas hipóteses, o critério mantém-se inalterado. O interesse direto em demandar ou em contradizer continua a ser o modelo de referência para a aferição da legitimidade processual [4].
De modo que, tendo presente este critério, o que se impõe decidir, no caso presente, é se os AA. têm algum interesse direto em ver julgados procedentes os pedidos que formularam; isto é, se, em tese, daí podem colher diretamente alguma utilidade jurídica.Ora, do nosso ponto de vista e ao contrário do decidido na sentença recorrida, a resposta só pode ser afirmativa.
E só pode ser afirmativa porque, a confirmar-se a tese dos AA., de que com as construções levadas a cabo pelos RR. ficou, além do mais, estrangulado o acesso à sua residência, é inequívoca a conclusão de que essas construções afetam objectivamente o pleno exercício do direito de propriedade de que aqueles se arrogam titulares (artigo 1305.º do Código Civil). E se essas construções tiverem sido levadas a cabo em terrenos que não são pertença dos RR. – como sustentam os AA.-, então maior razão há para não permitir essa interferência sem qualquer outra causa legítima.
Recorde-se que aquilo que os AA. pretendem ver confirmado é, no fundo, a ausência do direito dos RR. para levarem a cabo a ocupação que fizeram de espaço pertencente ao domínio público.
Ora, destruída presunção de titularidade do direito de propriedade sobre esse espaço, que foi afirmada na decisão impugnada e consequentes registos, ficam os RR. sem este título para legitimar essa ocupação e os alegados efeitos danosos que a mesma tem sobre a esfera jurídica dos AA.
Não ignoramos com isto que não estamos perante qualquer ação de condenação. Os AA. só pedem que se julguem “impugnados e ineficazes para todos os legais efeitos, os factos justificados pela decisão proferida por despacho da Senhora Doutora Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Mirandela, datado de 13 de Março de 2012, no âmbito do processo de justificação nº 07/2012”, traduzida na declaração de aquisição por usucapião dos prédios descritos (…)”, a favor dos RR, e que, consequentemente, se anule o registo dessa aquisição, seja a favor destes últimos, seja de terceiros.
Mas, como já vimos, mesmo não estando em causa uma relação jurídica em sentido restrito, como seria, por exemplo, a hipótese de ambas as partes se arrogarem de direitos substancialmente incompatíveis sobre o mesmo bem, ainda assim a lei confere legitimidade processual a todos aqueles que se arroguem titulares de outros interesses, desde que juridicamente relevantes; que é como quem diz, no caso presente, a todos aqueles que vejam a sua esfera jurídica objectivamente afetada pela justificação do direito de propriedade obtida pelos RR. E os AA., com a lesão do direito de propriedade que invocam, encontram-se, sem dúvida, entre esses potenciais afectados.
Daí que lhes deva ser reconhecida legitimidade processual para esta demanda. Como, de resto, tem sido orientação jurisprudencial dominante para casos semelhantes [5].
Questão diferente é a de saber se os AA. concretizam suficientemente a referida lesão, em termos de facto. Mas esta questão não vem colocada no presente recurso e, portanto, sobre ela não nos pronunciaremos. Até porque o Tribunal recorrido tem mecanismos legais aos seu dispor para a solucionar.
O que nos importa aqui e agora concluir é que tem legitimidade para instaurar ação de impugnação da justificação obtida em processo correu termos na Conservatória do Registo Predial, como sucedeu no caso presente, qualquer interessado que invoque ser titular de direito ou interesse incompatível ou objectivamente afectado pelo reconhecimento do direito justificado. E esse é, sem dúvida, o caso dos AA.
Daí que proceda este recurso, o que implica a revogação da sentença recorrida.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e reconhece-se legitimidade processual aos AA. para a presente demanda.
- Porque decaíram na sua pretensão, as custas serão suportadas pelos Apelados - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Guimarães, 17/12/2015
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Francisca Mota Vieira
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[1] João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, IIº Vol, Revisto e Atualizado, 1987, AAFDL, pág. 190.
[2] Neste sentido, Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 84.
[3] “Relação jurídica em sentido restrito ou técnico é a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição a uma pessoa de um direito subjectivo e a imposição a outra pessoa de um dever jurídico ou de uma sujeição” – Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, pág. 133.
[4] Neste sentido, referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, em anotação ao artigo 26.º do Código de Processo Civil anterior, na sua obra, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2ª Ed., Coimbra Editora, pág. 52: “Ainda dentro da regra geral, esta titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência de uma relação jurídica (ainda que para, com base nela, se constituir, pela sentença- constitutiva- nova relação jurídica entre as partes), pela titularidade das relações jurídicas (direito, dever, sujeição, etc.) que a integram: legitimados são então os sujeitos da relação jurídica controvertida, como estatui o nº3. Mas o critério geral dos nºs 1 e 2 guarda interesse autónomo quando pelo pedido se afirme (ou negue) a existência de situações jurídicas absolutas, não integradas em relações jurídicas, e ainda quando, em acção de simples apreciação, se afirme (ou negue) a existência de um facto jurídico”.
[5] Cfr. neste sentido, Ac RP de 24/11/2005, Proc. 0535685, Ac. RP de 05/07/2006, Proc. 0653027, Ac. RC de 23/09/2008, Proc. 219/06.0TBVZL.C1, Ac. RLx de 23/09/2009, Proc. 219/06.0TBVZL.C1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.