Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
437/11.0TUGMR.P1.G1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACIDENTE IN ITINERE
RESIDÊNCIA
LOGRADOURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/26/2015
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: A queda da sinistrada nas escadas que conduzem ao logradouro da moradia de 1.º andar, onde reside habitualmente, quando se dirigia para o local de trabalho, constitui um acidente de trabalho in itinere.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
Apelante: …Seguros, SA.
Apelados: L… e Instituto de Solidariedade da segurança Social.
Comarca de Braga, Instância Central, 3.ª secção de trabalho, J2

1. L… acionou a Companhia de Seguros…, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe:
A pensão que vier a ser fixada na sequência da perícia por junta médica; a indemnização no valor de € 2.182,39 e os juros de mora.
Em síntese, a autora alegou ter sofrido um acidente depois de sair do interior da sua residência em direção ao local de trabalho, conforme fazia habitualmente, e em resultado do qual sofreu incapacidade para o trabalho quer temporária quer permanente. Também alegou que a empregadora havia celebrado com a ré/seguradora um contrato de seguro de acidentes de trabalho relativamente a si e à totalidade da sua retribuição.
A ré contestou, negando a caraterização do acidente como sendo de trabalho por ter ocorrido numas escadas da sua moradia que não dão acesso à via pública e também pediu a realização de perícia médica colegial por discordar do resultado da perícia singular. Concluiu, pedindo a improcedência da ação.
O Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de…, I.P. veio deduzir contra a ré um pedido de reembolso da quantia de € 1.081,08 paga à autora, a título de subsídio de doença, no período de 13/5/2011 a 31/7/2011 em que esta esteve incapacitada por causa do acidente de trabalho a que se reportam estes autos.
A ré, também, contestou este pedido por não se tratar de um acidente de trabalho e pediu a improcedência do mesmo.
Realizou-se a audiência de discussão da causa e proferiu-se sentença que julgou a ação procedente e, em consequência:
I – Condenou a ré a pagar à autora, L…:
O capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 573,77 com início no dia 1/8/2011;
A diferença de indemnização no valor de € 1.101,31 (já deduzido o valor do subsídio de doença recebido da Segurança Social); e
- Os juros de mora, à taxa legal, sobre essas quantias pecuniárias.
II - Condenou a ré a reembolsar o Instituto de Segurança Social – Centro distrital de…, I.P. da quantia de € 1.081,08 que este pagou à autora/sinistrada a título de subsídio de doença durante o período de incapacidade temporária que resultou deste sinistro.

2. Inconformada, veio a R. seguradora interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1) A sentença recorrida não pode manter-se, uma vez que efetuou uma incorreta apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, bem como do direito aplicável.
2) Com interesse para a decisão da presente questão, foram dados como provados os seguintes factos:
“11 - Pelas 8h. e 50m. desse dia, a autora saiu do interior da sua habitação (sita na Rua…, Fafe) com destino ao local de trabalho (sito no lugar de…, em Fafe).
12 - E conforme fazia nos demais dias de trabalho.
13 – Quando, ao descer as escadas sitas no exterior da habitação e que dão acesso ao logradouro, escorregou num dos degraus e caiu pelas escadas.
14 - Essa residência era uma moradia unifamiliar cuja habitação estava situada no 1.º piso e tais escadas, com cerca de 17 degraus, eram as únicas que davam acesso desde a porta daquela habitação até ao logradouro, sito no rés-do-chão, e havendo neste um portão através do qual se acedia à via pública.”
3) Tendo por referência a data da ocorrência do acidente nos presentes autos é aplicável o regime jurídico previsto na Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
4) Dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do referido diploma que: “considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;”
5) Nos termos da alínea b) do n.º 2 do referido artigo "a alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho";
6) São elementos do acidente de trabalho:
a) Existência de relação jurídico-laboral entre o trabalhador e dador de trabalho;
b) Ocorrência de um evento em sentido naturalístico;
c) Lesão, perturbação funcional ou doença; morte ou redução da capacidade de ganho ou de trabalho;
d) Nexo de causalidade entre as lesões e a morte ou incapacidade.
7) O conceito atual de acidente de trajeto é o resultado de uma longa e laboriosa construção jurisprudencial que o legislador acabou por absorver e transformar em letra de lei;
8) A extensão do conceito de trabalho prevista no artigo 6.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro e atualmente no artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, pressupõe, necessariamente, que no momento da ocorrência do acidente, o trabalhador se encontre sob a alçada e subordinação da empregadora;
9) Conforme resulta da matéria dada como provada, a trabalhadora, aquando da queda, encontrava-se no espaço privado afeto à sua residência, ou seja, um espaço apenas controlado por aquela e em relação ao qual não se verifica o chamado "risco de autoridade" do empregador;
10) A trabalhadora ainda se encontrava nas escadas, que davam acesso desde a porta da sua habitação até ao logradouro, sito no rés-do-chão, e havendo neste um portão através do qual se acedia à via pública por onde passaria a circular.
11) Tendo por referência a redação do referido preceito legal, é imperioso o recurso ao artigo 9.º do Código Civil;
12) Foi jurisprudência unânime nos últimos anos, que, para considerar-se acidente de trabalho in itinere entre a residência e o local do trabalho, o trabalhador tivesse já acedido ao espaço público; tivesse iniciado a sua deslocação; sob a alçada da empregadora;
13) Não poderemos considerar acidente de trabalho aquele que ocorre na propriedade privada do trabalhador quando este nem sequer, ainda, iniciou o trajeto normal e diário, sob pena de se subverter o entendimento generalizado deste tipo de acidentes de trabalho;
14) Considerando-se, pura e simplesmente a atual redação da lei, sem o menor enquadramento contextual e ideológico, seria permitir a extensão do conceito de acidente de trabalho a situações do foro privado dos trabalhadores, isto é a acidentes domésticos;15) Não é de aceitar a ampliação do conceito de acidentes de trabalho a acidentes ocorridos no âmbito e na esfera privada dos trabalhadores sinistrados que a redação limitativa e infeliz da alínea b) do n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro possa vir a permitir;
16) A sentença proferida pelo tribunal a quo deve ser revogada, por errada interpretação do disposto na alínea a) do n.º 1 e alínea b) do n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, e substituída por outra que absolva a recorrente do pedido.
3. O Ministério Público contra-alegou pugnando pela manutenção da sentença, porquanto a ocorrência do acidente em causa configura um acidente de trabalho.
4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.
5. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
A questão a decidir reside em apurar se o acidente sofrido pela A. quando descia as escadas depois de sair da habitação, ainda dentro do logradouro da propriedade, para se deslocar para o trabalho, deve ser considerado acidente de trabalho

A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos provados:
1 - A autora trabalhava com a categoria profissional de monitora de ATL, sob as ordens, direção e fiscalização da Santa Casa da Misericórdia de… sediada na Rua…, em Fafe.
2 - Mediante a retribuição mensal de € 707 por 14 meses, acrescida de € 93,72 por 11 meses a título de subsídio de alimentação.
3 - A ré (“Companhia de Seguros…, S.A.”) e a empregadora da autora haviam celebrado entre si um contrato de seguro de acidentes de trabalho titulado pela apólice n.º 318036, através do qual esta transferiu para aquela a responsabilidade pela reparação de, eventuais, acidentes de trabalho sofridos pela autora relativamente à atividade e à totalidade da remuneração aludidas em A e B (atuais itens 1 e 2).
4 - A autora recebeu da ré a quantia de € 1.366,47 a título de indemnização por parte do período aludido em (atual item 5).
5 - A autora esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho entre 15/2/2011 e 31/7/2011 (data da alta).
6 - No âmbito deste processo, a autora foi sujeita a exame médico, no Gabinete Médico-Legal de Guimarães, segundo o qual a examinada apresenta como sequelas no ráquis e no membro superior direito: limitação da mobilidade da coluna lombo-sagrada, dores à mobilização da mesma e limitação da mobilidade do ombro não conseguindo levar à nuca e região lombar – cfr. o documento de fls. 37 a 39 cujo teor aqui se dá por reproduzido.
7 - A tentativa de conciliação, que encerrou a fase conciliatória do processo, ficou frustrada devido às razões constantes do respetivo auto de fls. 41-42, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
8 - A autora nasceu no dia 8/12/1963.
9 - A autora é beneficiária do Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de…, I.P. com nº ….
10 - Em 14/2/2011, a autora ia exercer a atividade aludida em A) e B (atuais itens 1 e 2).
11 - Pelas 8h. e 50m. desse dia, a autora saiu do interior da sua habitação (sita na Rua…, Fafe) com destino ao local de trabalho (sito no lugar de…, em Fafe).
12 - E conforme fazia nos demais dias de trabalho.
13 – Quando, ao descer as escadas sitas no exterior da habitação e que dão acesso ao logradouro, escorregou num dos degraus e caiu pelas escadas.
14 - Essa residência era uma moradia unifamiliar cuja habitação estava situada no 1.º piso e tais escadas, com cerca de 17 degraus, eram as únicas que davam acesso desde a porta daquela habitação até ao logradouro, sito no rés-do-chão, e havendo neste um portão através do qual se acedia à via pública.
15 - Em consequência dessa queda, a autora lesionou o cóccix e o braço direito.
16 - Em consequência dessas lesões, a autora sofreu as sequelas aludidas em F (atual item 6) e as incapacidades fixadas em E (atual item 5) e no apenso A (atual item 18).
17 - O Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de…., I.P. pagou à autora a quantia de € 1.081,08, a título de subsídio de doença, no período de 13/5/2011 a 31/7/2011 em que esteve incapacitada de trabalhar por causa das lesões aludidas em 7.º (atual item 15)
18 - Foi fixada uma incapacidade para o trabalho permanente e parcial de 7,5%.

B) APRECIAÇÃO
A questão a decidir é aquela que já elencamos: apurar se o acidente sofrido pela A. quando descia as escadas depois de sair da habitação, ainda do logradouro da sua propriedade, para se deslocar para o trabalho, deve ser considerado acidente de trabalho.
A apelante funda a sua discordância na circunstância da extensão do conceito de acidente de trabalho prevista no artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, pressupor, necessariamente, que no momento da ocorrência do acidente, o trabalhador se encontre sob a alçada e subordinação da empregadora.
Alega, por isso, que, resultando da matéria dada como provada, que a trabalhadora, aquando da queda, se encontrava no espaço privado afeto à sua residência, ou seja, um espaço apenas controlado por aquela e em relação ao qual não se verifica o chamado "risco de autoridade" do empregador, não pode concluir-se pela ampliação do conceito de acidentes de trabalho.
Prescreve o art.º 8.º n.º 1 da Lei 98/2009, de 4/09, aplicável ao acidente dos autos, que é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
O art.º 9.º n.º 1 da mesma lei já citada, procede à extensão do conceito de acidente de trabalho a outras situações aí referidas, entre as quais, o acidente ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho (alínea a)). O n.º 2 alínea b) deste mesmo artigo esclarece que compreende acidente de trabalho o que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Salvo o devido respeito, no caso dos autos não está em causa a subordinação jurídica do trabalhador no momento em que ocorre o acidente. O legislador quis estender a tutela da segurança na deslocação do trabalhador desde o seu lar até ao local de trabalho que for determinado pela empregadora, estabelecendo que o risco corre por conta desta, em obediência ao princípio do ubi commoda ibi incommoda.
Na verdade, é a empregadora quem retira mais benefício da atividade do trabalhador, o qual apenas tem a sua força laboral para oferecer, pelo que é justo que seja também esta que suporte os ónus decorrentes da deslocação do trabalhador desde a residência até ao local da prestação da obrigação.
A questão está em saber onde começa fisicamente esse risco. Se a partir da transposição da habitação em sentido estrito, local onde pernoita e toma as refeições, ou se só começa quando o trabalhador está na via pública.
O trajeto para o local de trabalho é constituído por um corpus e por um animus, no sentido de que o trabalhador para ficar a coberto dos riscos em caso de acidente deve seguir o caminho habitual e ao iniciar esse percurso tem que fazê-lo com a intenção de se dirigir para o local da prestação da atividade em obediência à empregadora e não para outro local qualquer.
Está provado que: “pelas 8h50m desse dia, a autora saiu do interior da sua habitação (sita na Rua…, Fafe) com destino ao local de trabalho (sito no lugar de…, em Fafe) e conforme fazia nos demais dias de trabalho, quando, ao descer as escadas sitas no exterior da habitação e que dão acesso ao logradouro, escorregou num dos degraus e caiu pelas escadas.
Essa residência era uma moradia unifamiliar cuja habitação estava situada no 1.º piso e tais escadas, com cerca de 17 degraus, eram as únicas que davam acesso desde a porta daquela habitação até ao logradouro, sito no rés-do-chão, e havendo neste um portão através do qual se acedia à via pública”.
Nos factos provados fala-se em residência e em habitação. O que resulta da matéria de facto assente é que aquele era o local da residência habitual da sinistrada. Este é o local onde a pessoa tem centrada a sua vida (Ac. RE, de 23.06.1988, BMJ, 378.º, p. 309 e Ac. do Tribunal Central do Sul, processo n.º 05810/12, www.dgsi.pt/jtca), consubstanciada em aí se acolher para se proteger dos elementos, dormir e alimentar-se. Ninguém se alimenta, dorme ou se abriga no logradouro ou nas escadas. Estas partes da propriedade são acessórias do núcleo essencial constituído pela residência habitual.
A partir do momento em que o trabalhador transpõe a porta da residência, ou habitação, onde normalmente vive e permanece, inicia o trajeto para o local de trabalho. Os factos assentes não deixam dúvidas de que a sinistrada caiu nas escadas depois de sair da habitação e quando se dirigia para o local de trabalho.
A lei não fala em via pública. Refere apenas entre a residência habitual ou ocasional. A residência a considerar para este efeito é apenas o lugar da habitação onde se alimenta, abriga e repousa.
Daí que o início do trajeto seja desde o lado de fora da porta da residência até ao local onde por onde expressa ou tácita da empregadora tenha de cumprir a sua obrigação de trabalho.
Nesta conformidade, decidimos julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção social do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante seguradora.
Notifique.
Guimarães, 26 de fevereiro de 2015
Moisés Silva
Antero Veiga
Manuela Fialho (vencida, conforme declaração que anexo)



VOTO DE VENCIDA

Pretende discutir-se neste recurso se o evento lesante se não deve qualificar como acidente de trabalho.
A apelante funda a sua discordância na circunstância de a extensão do conceito de acidente de trabalho prevista no artigo 9.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, pressupor, necessariamente, que no momento da ocorrência do acidente, o trabalhador se encontre sob a alçada e subordinação da Empregadora.
Alega, por isso, que, resultando da matéria dada como provada, que a trabalhadora, aquando da queda, se encontrava no espaço privado afeto à sua residência, ou seja, um espaço apenas controlado por aquela e em relação ao qual não se verifica o chamado "risco de autoridade" do empregador, não pode concluir-se pela ampliação do conceito de acidentes de trabalho.
Vejamos!
O evento reportado nos autos ocorreu em 14/02/2011, altura em que já estava em vigor a Lei 98/2009 de 4/09, que, por isso, se aplicará.
É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
A lei estende, porém, o conceito e todo o regime aplicável a acidentes de trabalho aos acidentes ocorridos no trajeto de ida para o local de trabalho (Artº 9º/1-a)).
Dispõe o nº 2/b) do Artº 9º da Lei que ali se compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador entre a sua residência habitual… e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Na génese da extensão do conceito aos acidentes in itinere esteve, conforme bem elucida Júlio Manuel Vieira Gomes, ou a ideia de risco de autoridade – defendeu-se que, em determinadas situações, subsistia a situação de dependência ou subordinação do trabalhador – ou a ideia de risco profissional – o acidente é tido como resultado de um risco ocorrido por força do trabalho, porquanto o trabalhador se exporá ao risco em maior grau do que a generalidade das pessoas (O Acidente de Trabalho, Coimbra Editora). É a ideia de risco específico ou genérico agravado.
Ocorre, porém, que conforme explica aquele autor, a tutela do trajeto não depende hoje daquela distinção. “O trabalhador pode expor-se, designadamente, da sua residência para o seu local de trabalho, a um risco idêntico ao que se expõe a generalidade das pessoas que com ele partilham as mesmas vias de comunicação ou até os mesmos meios de transporte públicos, muitas delas também trabalhadores subordinados, que tal em nada afetará a sua tutela” (ob. Cit.,pg. 165).
Acautelam-se, agora, situações que estão completamente fora do alcance do poder do empregador e, por outro lado, também situações em que não se pode falar de agravamento do risco.
Assim, o trajeto tutelado é “aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho…” (idem, pg. 177).
No caso que nos ocupa provou-se que em 14/2/2011, a autora ia exercer a sua atividade profissional quando, pelas 8h50m, ao sair do interior da sua habitação com destino ao local de trabalho, e conforme fazia nos demais dias de trabalho, ao descer as escadas sitas no exterior da habitação e que dão acesso ao logradouro, escorregou num dos degraus e caiu pelas escadas, lesionando-se.
A questão que se coloca é saber em que exato local começa o trajeto protegido, porquanto, ao que tudo indica, a A. ainda estava dentro do espaço particular (no logradouro).
Na verdade, tratava-se de uma moradia unifamiliar, cuja habitação estava situada no 1º piso e tais escadas, com cerca de 17 degraus, eram as únicas que davam acesso desde a porta daquela habitação até ao logradouro, sito no rés-do-chão, e havendo neste um portão através do qual se acedia à via pública.
No âmbito da Lei precedente – a Lei 100/97 de 13/09, regulamentada pelo DL 143/99 de 30/04 – consignava-se que estava abrangido o trajeto desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública até às instalações que constituam o local de trabalho.
Na atual lei esta especificação desapareceu, reportando-se, agora à proteção ao trajeto entre a residência habitual ou ocasional e as instalações que constituam o local de trabalho.
Parece, assim, que, encontrando-se o trabalhador ainda dentro da área envolvente da residência, como seja o logradouro, ainda não estará entre a residência e o local e trabalho, mas sim na residência.
Ora, os acidentes ocorridos na residência do trabalhador não encontram tutela neste regime por, conforme ensina ainda Júlio Gomes, “se situarem numa esfera de risco do próprio trabalhador, num espaço por este controlado e a cujos perigos sempre se exporia, mesmo sem trabalho” (idem, pg. 181).
Em sentido contrário decidiu a Relação do Porto, que afirmou que “comparada a redação das disposições transcritas da LAT/97 e da LAT/2009, constatamos que atualmente o acidente, para ser qualificado como de trabalho in itinere, não tem de ocorrer na via pública, bastando que ocorra em qualquer ponto do trajeto que liga a habitação do sinistrado e as instalações do local de trabalho, seja a via pública, sejam as partes comuns do edifício se o sinistrado habitar numa das suas frações, seja no logradouro se a habitação for uma moradia.” (Ac. de 22/04/2013, www.dgsi.pt). Mas já não a Relação de Évora que decidiu que uma situação semelhante não configura acidente de trabalho (Ac. de 24/05/2011, www.colectaneadejurisprudencia.com).
Estamos em crer que a ideia fulcral para decidir a questão passa ainda pelo conceito de risco. Poderá dizer-se que no logradouro, onde ocorreu o sinistro, a trabalhadora já está sob risco empresarial ou de autoridade ou, pelo contrário, tudo ainda se situa na sua esfera de atuação e sob o seu controle?
No caso concreto o espaço onde a sinistrada se encontrava é um espaço privado, que cabe na sua esfera particular de gestão - o logradouro, sito no rés-do-chão, e onde existe um portão através do qual se acedia à via pública por onde passaria aquela e iria circular.
Ora, tal como expõe Pedro Romano Martinez, “a responsabilidade por acidentes de percurso não abrange situações em que o trabalhador se encontra num espaço por ele controlado, em particular na sua vida privada” (Direito do Trabalho, 3.ª Edição, Almedina, pág. 829).
Assim, encontrando-se a sinistrada fora do espaço público, num local onde domina, não pode dizer-se que o acidente ali sofrido encontre proteção no regime da sinistralidade laboral.
E, assim, contrariamente, ao que se sustentou na sentença e no acórdão, não sufrago o enquadramento na Lei 98/2009, impondo-se a absolvição da Recrte. tal como esta propugna.
Razões pelas quais voto vencida.
Manuela Bento Fialho