Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1825/13.2TAGMR. G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
DANO
LEGITIMIDADE
ASSISTENTE
DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
INEXISTÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) A instrução requerida pelo assistente, não exige a existência de um despacho de arquivamento, podendo o mesmo pretender comprovar judicialmente a decisão do Mº Pº de acusar por um crime diverso ou menos grave, ainda que não tenha havido um arquivamento expresso nessa parte, pugnando pela pronúncia do arguido por outro crime ou por um crime mais grave.
Assim, quando o artº 256º, nº 1, estipula que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, não está a pretender restringir aquela primeira finalidade à instrução requerida pelo arguido e esta segunda à instrução requerida pelo assistente.
II) A utilização das expressões "acusação" e "arquivamento", quer nesse artigo, quer na primeira parte do artigo seguinte, deve-se ao facto de serem as formas legalmente previstas de encerramento do inquérito (artº 276º).
III) No caso vertente, os assistentes apresentaram queixa por factos suscetíveis de integrar a prática pelos arguidos, também, de um crime de dano.
Tais factos não só foram investigados em inquérito, nomeadamente através da tomada de declarações sobre eles aos assistentes, como inclusivamente foram descritos na acusação deduzida pelo Mº Pº.
IV) Não obstante, o Mº Pº, ao deduzir acusação, apenas imputou aos arguidos a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, nada dizendo sobre o eventual crime de dano, que se encontrava fortemente indiciado, pelo menos na sua vertente objetiva, em face dos factos descritos na acusação.
V) Significa isto que, relativamente a esses factos, o Mº Pº não deduziu acusação, o que legitima a abertura da instrução pelos assistentes, com vista a comprovar judicialmente essa decisão de não acusar os arguidos por esses factos (artº 287º, nº 1, al. b), independentemente de não ter arquivado expressamente o inquérito quanto a eles.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. Nos presentes autos de instrução com o NUIPC 1825/13.2TAGMR, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo de Instrução Criminal de Guimarães - J1 (extinta Secção de Instrução Criminal da Instância Central), no termo da instrução requerida pelos assistentes J. C. e R. C., visando a pronúncia dos arguidos M. C., E. S. e D. M. pela prática, em coautoria, de um crime de dano qualificado, previsto e punido (p. e p.) pelo art. 213º, n.º 1, al. a), do Código Penal, bem como da instrução requerida pelo arguido D. M., face à acusação deduzida pelo Ministério Público, imputando-lhe a prática, em coautoria com os demais arguidos, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191º do Código Penal, visando a sua não pronúncia, foi proferida, em 11-11-2015, decisão instrutória a:
a) Não dar provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido D. M. e, em consequência, pronunciar os arguidos M. C., E. S. e D. M. pela prática, em coautoria, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art. 191º do Código Penal, pelos factos constantes da acusação pública de fls. 181 a 183, cujo teor se deu por integralmente reproduzido.
b) Dar, parcialmente, provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelos assistentes J. C. e R. C. e, em consequência, pronunciar os arguidos M. C., E. S. e D. M. pela prática, em coautoria, de um crime de dano simples, previsto e punido pelo art. 212º, n.º 1, do Código Penal, pelos seguintes factos constantes do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes a fls. 206 e seguintes: - Facto constante na alínea C), a fls. 208; - Facto constante na alínea D), a fls. 208 (com exceção “o que causou o prejuízo nunca inferior a €650,00); e - Facto constante na alínea E), a fls. 208, cujo teor se deu por reproduzido.
Finda a prolação dessa decisão instrutória, o arguido D. M. invocou a respetiva irregularidade, por falta de fundamentação, bem como a circunstância de a indiciação de alguns factos ter decorrido da valoração de depoimento indireto, prova essa que não podia ser valorada, pelo que pediu que fosse declarada a nulidade do despacho, tendo em conta o disposto nos art.s 97º, n.º 1, 129º, n.º 1, e 123º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, requerimento esse que foi indeferido pelo Exmo. Juiz de Instrução, mais tributando o arguido em custas pelo incidente anómalo, com taxa de justiça fixada em 2 UCs.
2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido D. M., terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«CONCLUSÕES:
1ª Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que pronunciou pela prática de um crime de dano e do despacho posterior que indeferiu a arguição de irregularidade por falta de fundamentação e por valoração de prova proibida e ainda condenou o recorrente nas custas do incidente anómalo em 2 UC´s.
2ª O despacho que declara aberta fase de instrução não faz caso julgado formal, pelo que o requerimento de abertura da instrução pode ser até à decisão instrutória rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução (cfr. Vinício Ribeiro in Código de Processo Penal Notas e Comentários, pág. 794).
3ª O encerramento do inquérito dá-se, entre o mais, com a prolação de despacho de arquivamento ou de acusação, sendo que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” – artº 286º nº1 do Código de Processo Penal.
4ª Só o despacho de arquivamento ou de acusação podem ser alvo de instrução.
5ª No caso concreto, foi deduzida contra o aqui arguido, acusação pública pela prática em co-autoria material de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art. 191º do Código Penal, não tendo o Ministério Público se pronunciado sobre a prática de qualquer outro crime.
6ª Vieram, entretanto, os assistentes pugnar pela pronúncia do arguido também pela prática de um crime de dano qualificado p. e p. pelo art. 213º, n.º 1, al. a) do Código Penal através de requerimento de instrução a tal dirigido.
7ª Lido o despacho proferido pelo Exmo. Procurador, aquando do terminus do inquérito, verificamos que, quanto a esta matéria, nada se diz, Ou seja, quanto aos factos pelos quais pretendem os assistentes que o arguido venha agora pronunciado, não se deduziu acusação, nem se proferiu despacho de arquivamento, não se enquadrando juridicamente os factos.
8ª Ora, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar o inquérito, pelo que para que a mesma seja admissível necessário será que tenha ocorrido acusação ou arquivamento pelos factos que serão sujeitos a instrução, o que não se verifica nos presentes autos.
9ª A instrução não é a reação idónea à omissão de pronúncia, por parte do Ministério Público, mas sim a reclamação hierárquica ao abrigo do disposto no art. 278º do Código de Processo Penal, caminho que os assistentes não quiseram trilhar (neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 30-04-2014, processo n.º 1059/11.0GBPNF-A.P1, em que é relator José Carreto, disponível em www.dgsi.pt e o acórdão da mesma Relação, datado de 26-09-2012, processo n.º 276/10.5JAPRT-A.P1, em que é relatora Maria do Carmo Silva Dias, disponível em www.dgsi.pt).
10. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes não era, por isso, admissível e, como tal, deveria o mesmo ter sido rejeitado com as consequências legais.
11. Na queixa, assinada pessoalmente pelos assistentes, não se alinha um só facto referente ao crime de dano, tal como não é alinhado no seu depoimento de fls. 18, prestado em 12/11/13, do proprietário do terreno – J. C. – que afirma não ter presenciado qualquer invasão de propriedade.
12. Já no seu depoimento de fls. 20, prestado em 12/11/13, o alegado arrendatário R. C., afirma, pela primeira vez nos autos que “o suspeito M. e E., tentaram abrir o portão que dá acesso à propriedade, como não conseguiram arrombaram o portão com o tractor, daqui resultaram danos no muro que suporta o portão, já no interior da propriedade partiram esteios, e arrebentaram arriostas que seguram as ramadas.”
13. Não se diga que o mero facto de se dizer que ocorreram danos patrimoniais e não patrimoniais é suficiente para se considerar apresentada queixa pelo crime de dano.
14. O crime de dano é um crime semi-público e, como tal, a sua investigação está dependente de queixa do ofendido nos termos do artigo 212º, n.º 3 do Código de Processo Penal, pelo que o Ministério Público não poderia investigar e acusar o arguido sem que este apresentasse queixa narrando tais factos e manifestando o propósito de proceder criminalmente pelos mesmos, o que não aconteceu.
15. É que a queixa é uma manifestação de vontade de quem tem legitimidade para o efeito, sendo que tal manifestação de vontade deve ser inequívoca no sentido de responsabilizar determinada pessoa criminalmente pelo “substracto fáctico” apresentado pela mesma – cfr. As consequências jurídicas do crime de Figueiredo Dias, 2005, reimpressão, pág. 665; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 1998 proferido no proc. n.º 630/98, citado in “Código Penal Anotado”, 1º Vol., 3ª Edição, Leal Henriques Simas Santos, pág. 1188; acórdão do STJ de 31 de Outubro de 1989, publicado in Actualidade Jurídica, n.º2, pag.9; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol.III, pag. 139 e ainda acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/06/05, relatado por Tomé Branco, proferido no Proc. n.º 901/05 da 1ª Secção e publicado in www.dgsi.pt.
16. A queixa apresentada nos autos dever ser interpretada de acordo com a sua forma e conteúdo, tendo o queixoso de demonstrar na sua queixa que inequivocamente pretende que seja desencadeado procedimento criminal contra o arguido pelos factos que aí relata.
17. Ora, os assistentes não exprimiram a sua vontade de participar por dano contra o recorrente, não tendo alegado qualquer dano, não o quantificando ou explicitando quais os bens de que era proprietário que terão sido atingidos.
18. Assim sendo, não existe qualquer manifestação de vontade expressa e inequívoca do ofendido de apresentar queixa pelo crime de dano, pelo que o M.P. não tinha, como já se disse, legitimidade para exercer a acção penal e, como tal, o arguido não poderia ser pronunciado ou sujeito a julgamento pelo crime de dano (cfr. artºs 212º, n.º3 do Código Penal e 49º, n.º1 do Código de Processo Penal).
19. Restaria a alegada queixa do não menos alegado arrendatário, no entanto a testemunha R. C., nenhuma prova faz relativamente a tal matéria, sendo certo que, nos termos do disposto no artº 6º nº1 do DL 294/09 de 13/10, é obrigatória a redução do contrato de arrendamento rural a escrito.
20. Como supra se disse, apenas este – alegado arrendatário - alegou no seu depoimento que os arguidos M. e E. fizeram estragos na referida quinta. No entanto, nem este, em qualquer momento afirmou que o portão tenha sido destruído, como se deu como provado na decisão instrutória, ou que tenham sido destruídas ramadas e redes.
21. Assim, ainda que se concluísse que existe prova bastante de que o referido R. C. era arrendatário da referida quinta, o que não se concebe, por falta de queixa não se podia dar como provada a matéria referente ao portão que alegadamente foi destruído, como se deu como provado na decisão instrutória, ou que tenham sido destruídas ramadas e redes.
22. No entanto, deve ser excluída a legitimidade do arrendatário rural para fazer queixa relativamente aos danos em causa.
23. O ofendido, que figura entre os titulares do direito a constituir-se assistente e de apresentar queixa, não é, pois, qualquer pessoa prejudicada pelo crime, mas sim o titular do interesse especialmente protegido pela incriminação, que o mesmo é dizer, o titular do interesse violado ou posto em perigo pelo crime.
24. Permitir que um sem número de pessoas estejam legitimadas a apresentar queixa, ou a considerar-se como ofendidas, quando o que está em causa é um bem jurídico da qual estas não são titulares, é permitir que passem a ter tutela penal bens jurídicos não previstos constitucionalmente como protegidos e alargar o âmbito da tutela da norma para fins não permitidos pelo direito penal, afrontando-se o princípio da intervenção mínima do direito penal.
25. Assim, deve considerar-se inconstitucional a interpretação que se extraia do disposto nos artºs 113º nº1 e 212º nº1 e 3 do Código Penal no sentido de que é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa quem é mero arrendatário de um imóvel, por violação do princípio do Estado de Direito e do princípio da proporcionalidade previstos nos artºs 2º e 18º nº2 da Constituição violando-se ainda o artº 62º nº1 do mesmo diploma legal.
26. A queixa, como decorre dos autos, foi assinada pessoalmente pelo proprietário e pelo alegado arrendatário, sendo que em nenhum momento os queixosos relatam qualquer estrago feito na quinta no dia 28/6/13, mas afirmam nessa queixa que chamaram a PSP ao local e efectivamente, consta de fls. 45 e 46 o auto de ocorrência lavrado pelo agente da PSP presente no local que afirma lá ter ido no dia 26/6/13 – e não no dia 28/6/13 como se afirma na queixa e na acusação.
27. Nesse auto o agente fez constar que se lhe apresentou o referido R. C. que declarou ser filho do proprietário da quinta e, depois de lhe ter explicado os antecedentes dos factos, lhe disse que “Hoje, momento antes, verificou que um tractor e duas pessoas que afirma não conhecer se encontravam no interior da quinta pretendendo que as mesmas abandonassem aquele espaço, por se encontrarem no interior de uma propriedade privada”.
28º Ou seja, em nenhum momento o referido R. C. afirmou que era arrendatário do que quer que fosse ou que foi destruído o que quer que fosse na quinta referida.
29º Apenas no seu depoimento de fls. 20, prestado em 12/11/13, o alegado arrendatário R. C., afirma, pela primeira vez nos autos que os co-arguidos arrombaram o portão com o tractor e daqui resultaram danos no muro que suporta o portão, já no interior da propriedade partiram esteios, e arrebentaram arriostas que seguram as ramadas.”
30ª Ou seja, apenas 5 meses depois dos “factos” narrados na queixa, o referido R. C.se lembrou que, a final, havia ocorrido o arrombamento do portão com o tractor, danos no muro, esteios e arriostas.
31ª Ora, a fotografia junta aos autos pelos assistentes – cfr. fls. 493 - bem demonstra que o portão, que se afirma no requerimento de abertura da instrução destruído, se encontra intacto e no local onde devia estar, ou seja, à entrada da quinta, pelo que é rotundamente falso que o portão tenha sido destruído.
32ª Da prova produzida (inquirição do arguido e das testemunhas e ainda de uma foto junta aos autos pelo assistente) decorreu que nenhuma ordem existiu por parte do arguido no sentido de os co-arguidos destruírem o que quer que fosse na quinta e que, ao contrário do que se alega na participação criminal, o portão da quinta sempre esteve aberto.
33ª A prova indiciária de que ocorreram estragos na quinta, de que o terreno se encontrava vedado e com o portão fechado, decorre apenas do depoimento do ofendido R. C. que é filho do dono do terreno, pelo que o seu depoimento é comprometido e não credível (fls. 20).
34ª Por outro lado, nenhuma prova foi produzida no sentido de serem derrubados ou danificados, esteios ou ramadas, sendo certo que o arguido nega que tenha sido destruído o que quer que seja na quinta, tal como o nega a testemunha J. S. ouvida em sede de instrução.
35ª Assim, por inexistência de indícios suficientes, os arguidos devem ser despronunciados dos crimes de que vêm acusados.
36ª «Para que o facto atinja o limiar da dignidade penal exige-se ainda: por um lado, que a coisa tenha algum valor; em segundo lugar e complementarmente, que a conduta lesiva se revista de algum relevo» - cfr. Manuel da Costa Andrade in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999.
37ª Ou seja, para que se considere que o acto lesivo é susceptível de ser punido criminalmente impõe-se que o bem danificado tenha algum valor económico e que a acção danosa seja de tal forma grave que seja merecedora da tutela do direito penal.
38º Isto porque o direito penal apenas deve intervir na regulação e resolução de litígios emergentes na comunidade como ultima ratio, ou seja, quando a lesão de bens jurídicos assume uma gravidade justificativa da intervenção do sistema jurídico e da justiça na limitação da liberdade individual.
39ª Assim, não se encontram protegidas pelo tipo do crime de dano as acções que impliquem a destruição, inutilização ou desfiguração minimamente significativas.
40ª Ora, na pronúncia – que reproduz o requerimento de instrução – não se deu como provado o valor dos bens ou sequer o seu grau de destruição – se ficaram totalmente danificados ou apenas parcialmente de forma a que se possa concluir pelo mínimo de danosidade social - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Março de 1998, publicado in CJ ano XXIII, tomo II, pág. 140 e ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de Setembro de 2007, relatado por Maria Elisa Marques, disponível em www.dgsi.pt,
41ª Assim, não estando indiciariamente provado que a conduta dos arguidos reduziu o valor económico da coisa de molde a que tal conduta se revista de algum relevo jurídico, não se encontra preenchido o elemento objectivo do crime de dano.
42ª Na fundamentação do despacho recorrido o Tribunal invoca existirem duas versões dos factos diametralmente opostas, no entanto a mesma decisão não afirma o porquê de considerar mais credível a versão dos ofendidos do que a versão do arguido.
43ª Acresce que, na decisão instrutória recorrida se diz que os arguidos não prestaram declarações em inquérito, mas o recorrente fê-lo em instrução.
44ª Daí que se entenda que nessa parte se deve concluir que a decisão instrutória é infundamentada não se conseguindo discernir o porquê de o arguido ser pronunciado, pelo que ocorre irregularidade prevista nos artºs 97º nº5 e 123º nº1 do Código de Processo Penal que deve ser decretada com as legais consequências.
45ª Por outro lado, a eventual indiciação do facto dos co-arguidos se terem deslocado ao terreno em causa por ordens do recorrente e que a eventual destruição de bens do assistente, decorre da valoração de depoimento indirecto dos co-arguidos que chegou aos autos pelo testemunho do ofendido R. C., quer pela participação elaborada pelo agente da PSP J. Q., sendo certo que tal prova não pode ser valorada nos termos do art.º 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
46ª Assim, também nesta parte a prova não pode ser valorada por proibida, nos termos do artº 129º nº1 do Código de Processo Penal, o que devia ser levado na devida conta, o que não aconteceu.
47ª É entendimento do recorrente que não se aplica o disposto no artº 7º nº8 do RCP a requerimento apresentado em momento posterior à prolação da decisão instrutória invocando a sua falta de fundamentação.
48ª De facto, o requerimento em causa não se pode considerar um incidente anómalo, desde logo porque é a própria lei que impõe que a irregularidade por falta de fundamentação seja imediatamente arguida, não podendo ser alvo de recurso autónomo.
49ª Por outro lado, a fundamentação das decisões judiciais é imposição constitucional (artº 205º nº1 da Constituição), independentemente de estar prevista na lei ordinária, como acontece com o Código de Processo Penal no artº 97º nº5.
50ª E, jamais poderá o requerido pelo arguido configurar um “incidente” uma vez que não se afasta da normalidade de uma tramitação, nem constitui uma violação dos princípios gerais da boa-fé e da lealdade processual que impendem sobre os sujeitos processuais (cfr. Joel Timóteo Ramos Pereira in “Regulamento das Custas Processuais e Legislação Complementar, com nótulas explicativas”, Quid Juris, 2012, pág. 45).
51ª Pelo exposto, sempre deverá o despacho recorrido ser revogado na parte em que sanciona o arguido pelo incidente causado, por não corresponder à verdade que revista carácter anómalo ou sequer de incidente.
52ª O despacho recorrido violou ou fez errada aplicação do disposto nas normas supra referidas e, designadamente, do artº 308º nº1 do Código de Processo Penal, não podendo, pois, manter-se.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o arguido despronunciado dos crimes pelos quais vem pronunciado, por só assim se fazer
JUSTIÇA!»
3. Inicialmente o recurso não foi admitido, com o fundamento de respeitar a decisão instrutória de pronúncia por factos constantes da acusação pública e, como tal irrecorrível nos termos do art. 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e de os fundamentos aduzidos não se subsumirem às nulidades invocadas.
Tendo o recorrente reclamado desse despacho de não admissão, a Exma. Vice-presidente desta Relação determinou a admissão do recurso, com o fundamento de que o Ministério Público não deduziu factos nem acusou pelo crime de dano, pelo que, nesta parte, terá a decisão de pronúncia de se reconduzir à regra geral de recorribilidade consignada no art. 399º do Código de Processo Penal, e de que, relativamente ao despacho posterior, o recurso é admissível por respeitar a nulidade alegadamente cometida em despacho de pronúncia recorrível.
4. O Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância contra motivou, entendendo assistir razão ao recorrente quanto à questão da não admissibilidade do requerimento de abertura da instrução, o qual deveria ter sido rejeitado, bem como à questão de o direito de queixa pelo crime de dano não ter sido exercido, devendo, pois, o recorrente ser não pronunciado por esse ilícito, ficando prejudicada a questão relativa ao facto de a decisão proferida se ter baseado em depoimento indireto, e devendo ser confirmada a condenação pelo incidente anómalo.
5. Por seu turno, também os assistentes responderam ao recurso, defendendo a manutenção do decidido, alegando, em suma, que na acusação pública são descritos factos típicos e caraterísticos dum crime de dando, pelo qual apresentaram queixa, alegando que “os denunciados causaram à propriedade dos denunciantes danos de natureza patrimonial enão patrimonial”, tendo-se o Ministério Público “esquecido” de subsumir tais factos ao respetivo preceito incriminador, pelo que têm os assistentes legitimidade para requerer a instrução. Por outro lado, está fora de qualquer possibilidade legal a reclamação hierárquica, uma vez que não existe qualquer despacho de arquivamento, mas sim de acusação, e foi requerida a instrução, relativamente à qual estão reunidos todos os pressupostos legais, o que afasta qualquer possibilidade de “inadmissibilidade legal” da mesma, tendo transitado em julgado o despacho que a admitiu, pelo que o recurso deve improceder em toda a sua extensão.
6. Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de a questão relativa à inadmissibilidade da instrução não poder ser apreciada, uma vez, relativamente a ela, o recurso foi interposto fora de prazo e, caso assim não se entenda, o recorrente deixou transitar o despacho proferido a fls. 512, que indeferiu o seu requerimento a solicitar que fosse declarado inadmissível o requerimento de abertura de instrução, pelo que não poderá agora suscitar de novo a mesma questão. Por outro lado, entende a Exma. Procuradora-Geral Adjunta que foi apresentada queixa, ainda que de forma não perfeita, pelo crime de dano e que os factos integrantes de tal ilícito estão descritos na acusação, tendo o Ministério Público, por manifesto lapso, olvidado proceder à respetiva qualificação jurídica, pelo que, tendo a decisão instrutória pronunciado os arguidos por esses factos, é a mesma irrecorrível, devendo o recurso, nesta parte, ser rejeitado. Por fim, quanto à condenação pelo incidente anómalo, manifesta o seu acordo com a resposta do Ministério Público em primeira instância.
7. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu àquele parecer, alegando que apesar de ter suscitado a questão da inadmissibilidade da instrução através de requerimento autónomo, e de o mesmo ter sido indeferido, através de despacho que o Mmo. Juiz de instrução considerou ser de expediente, motivo pelo qual não admitiu o recurso que dele interpôs, tal não impede que a questão possa ser suscitada no recurso a interpor da decisão instrutória, como fez, tanto mais que o despacho que declara aberta a instrução não faz caso julgado, pelo que deve tal questão ser decidida. Quanto ao mais, reforça o já alegado na sua contra motivação.
8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os demais preceitos citado sem qualquer menção, âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente das respetivas motivações, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões do recurso, as questões a decidir consistem em saber:
a) - Se a instrução requerida pelos assistentes era legalmente inadmissível (conclusões 3ª a 10ª);
b) - Se foi apresentada queixa quanto ao crime de dano (conclusões 11ª a 25ª);
c) - Se existem nos autos indícios suficientes da prática de tal ilícito pelo recorrente (conclusões 26ª a 35ª);
d) - Se se encontra preenchido o elemento objetivo do mesmo crime (conclusões 36ª a 41ª);
e) - Se a decisão instrutória padece de irregularidade, por falta de fundamentação e por ter valorado prova proibida, traduzida em depoimento indireto (conclusões 42ª a 46ª);
f) - Se o requerimento formulado pelo recorrente, mediatamente após a prolação da decisão instrutória, se traduz num incidente anómalo e, como tal, sancionável (conclusões 47ª a 51ª).

2. A DECISÃO RECORRIDA
2.1 - O recurso incide, por um lado, sobre o despacho de pronúncia, cujo teor se transcreve na parte relevante para apreciação das questões suscitadas:
«DECISÃO INSTRUTÓRIA
(…)
2.
Findo o Inquérito, o Ministério Público proferiu a fls. 183 e ss acusação pública contra os arguidos M. C. , E. S. e D. M., imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal.
*
Não se conformando com a acusação pública deduzida, vieram os assistentes J. C. e R. C., a fls. 206 e ss requerer a abertura de instrução, requerendo a pronúncia dos arguidos M. C., E. S. e D. M. por factos que, na sua perspectiva, consubstanciam a prática, em co-autoria, de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo art.º 213.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
*
O arguido D. M., não se conformando com a acusação pública contra si deduzida, veio nos termos de fls. 213 e ss, requer abertura de instrução, requerendo que seja proferido despacho de não pronúncia do arguido Domingos por não estarem verificados os elementos típicos do crime que lhe vem imputado na acusação pública deduzida, ou por falta de indiciação suficiente da prática dos factos pelo arguido.
*
3.
Por despacho de fls. 331 e 332 foi declarada aberta a instrução.
Por despacho de fls. 440 foi admitido o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes J. C. e R. C..
Procedeu-se ainda à realização de debate instrutório, o qual decorreu de acordo com as formalidades legais.
*
4.
Cumpre proferir decisão instrutória nos termos do art.º 308.º do CPP.
(…)
5.
Fixadas as directrizes, que de acordo com a lei, nos devem orientar na prolação da decisão instrutória, de pronúncia ou não pronúncia, interesse, agora, apurar, por um lado, sem em face da prova recolhida até ao momento se indicia suficientemente a prática pelo arguido dos factos que lhes são imputados na acusação pública e particular e, por outro lado, concluindo-se afirmativamente, se tais factos sustentam a imputação jurídico criminal efectuada naqueles mesmos articulados.
*
Cumpre, pois, proceder à análise da factualidade apurada, ainda que de forma meramente indiciária: a apreciação dos “indícios suficientes” a que se reporta o art.º 308.º, n.º 1 do CPP.
Vejamos o que dos autos dimana.
Da fase de Inquérito.
- Participação criminal de fls. 3 a 4;
- Participação de fls. 45;
- Cópia da Sentença e dos Acórdãos da Relação de Guimarães e do Supremo Tribunal da Justiça de fls. 47 a 148;
- Certidão de Registo Predial de fls. 175 a 180;
- Auto de Inquirição do ofendido J. C.de fls. 18 e verso;
- Auto de Inquirição do ofendido R. C. de fls. 20 e verso;
*
Da fase de instrução:
Inquirição das testemunhas J. S. e interrogatório do arguido D. M., cujos depoimentos constam de registo áudio.

*
Procedeu-se ainda à realização de debate instrutório, o qual decorreu de acordo com as formalidades legais.
*
6.
Da apreciação dos indícios.
Em sede de instrução, a testemunha J. S. vem, além do mais, referir que os arguidos não destruíram o portão e, confrontado com a foto de fls. 439, referiu que este sempre se encontrou aberto.
Interrogado a arguido D. M., negou a prática dos factos, referido que tudo foi inventado para o prejudicar e que o portão sempre se encontrou aberto e as pedras do muro sempre estiveram tombadas.
Assim sendo, verifica-se que existem, desde logo, duas versões diametralmente opostas quanto à ocorrência dos factos.
Com efeito e conforme resulta da participação criminal de fls. 2 a 4, os denunciantes, depois de referirem que a Quinta de Mataduços se encontra completamente vedada e que os denunciados causaram danos à propriedade, veio o ofendido J. C. a fls. 18 confirmar o teor da participação criminal, referindo desejar o competente procedimento criminal.
Também R. C., inquirido a fls. 20, confirma o teor da participação criminal, referindo que presenciou “evasão da propriedade” e esclareceu que os suspeitos M. e E. “tentaram abrir o portão que dá acesso à propriedade” e, como não conseguiram, “arrombaram o portão com um trator” e daqui resultaram danos no muro, partiram os estios e rebentaram os arames que seguram as ramadas.
Mais referiu que o suspeito M. estava no local “a mando do patrão” (o arguido D. M.) e só cumpria ordens.
Por tais factos desejou procedimento criminal.
Vistas estas duas versões opostas dos factos e tendo em conta que, quanto a nós, da prova recolhida em sede de instrução não foram postos em crise os fundamentos que levaram à dedução da acusação pública, entendemos que do confronto dos depoimentos dos ofendidos é mais provável a futura condenação dos arguidos (que, legitimamente, em sede de inquérito usaram do direito de não prestar declarações), razão pela qual entendemos que se mostram suficientemente indiciados os factos constantes da acusação pública, factos esses que integram a prática do crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art.º 191.º do Código Penal.
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No que concerne ao requerimento de abertura de instrução apresentados pelos assistentes, desde logo entendemos que, em parte, lhes assistente razão, até porque da participação criminal foram invocados danos, sendo que posteriormente o próprio ofendido R. C. a fls. 20 relata danos no muro, portão, esteios e armes que suportam as ramadas.
Assim e quanto a nós, incumbia ao Ministério Público, no despacho final, ou proferir despacho de arquivamento quanto ao alegado crime de dano ou, então, concluir pela verificação também de um crime de dano, porquanto da própria acusação resultam elementos objectivos desse tipo de crime.
Com efeito, estando o Ministério Público sujeito a critérios de estrita objectividade e legalidade, deveria, em consonância com o que resulta dos próprios factos que articulou na sua acusação, concluir, igualmente, pela verificação do crime de dano e, não o tendo feito, ocorreu em omissão de pronúncia.
Pelo exposto, cotejados os elementos probatórios supra referidos, mormente a participação criminal de fls.2 e ss, corroborada pelas declarações dos ofendidos J. C. a fls. 18 e R. C. a fls. 20, o Tribunal tem por suficientemente indiciados os seguintes factos:
Os seguintes factos constantes do requerimento de abertura de instrução:
- Facto constante na alínea C), a fls. 208;
- Facto constante na alínea D), a fls. 208 (com excepção “o que causou o prejuízo nunca inferior a €650,00), e ainda;
- Facto constante na alínea E), a fls. 208.
Quanto a nós e relativamente à qualificação do crime de dano, pese embora o orçamento junto pelos assistentes a fls. 438, não se apurou o valor efectivo dos danos causados pela conduta dos arguidos, razão pela qual um non linquet na questão da prova do valor dos danos terá que ser valorada a favor dos arguidos.
Assim, pronuncio os arguidos M. C., E. S. e D. M., pela prática, em co-autoria, de um crime de dano simples, previsto e punido pelo art.º 212.º, n.º 1, do Código Penal.
*
8.
Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 308.º, nº 1, do Código de Processo Penal, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido:
a) Não dar provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido D. M. e, em consequência,
Pronunciar os arguidos M. C., E. S. e D. M. para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, pela prática, em co-autoria, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo art.º 191.º do Código Penal, pelos factos constantes da acusação pública de fls. 181 a 183, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida.
*
b) Dar, parcialmente, provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelos assistentes J. C. e R. C. e, em consequência,
Pronunciar os arguidos M. C., E. S. e D. M. para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, pela prática, em co-autoria, de um crime de dano simples, previsto e punido pelo art.º 212.º, n.º 1, do Código Penal, pelos seguintes factos constantes do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes a fls. 206 e seguintes:
- Facto constante na alínea C), a fls. 208;
- Facto constante na alínea D), a fls. 208 (com excepção “o que causou o prejuízo nunca inferior a €650,00); e
- Facto constante na alínea E), a fls. 208,
cujo teor aqui se dão por reproduzidos nos termos do artº 307º, nº 1, do CPP.
*
Prova:
A indicada na acusação pública e nos RAI´s.
*
(…).»
2.2 - Por outro lado, o recurso incide também sobre o despacho proferido imediatamente após a prolação da decisão instrutória, e que apreciou o requerimento apresentado pelo arguido D. M., a invocar a irregularidade/nulidade por falta de fundamentação dessa decisão, por valoração de depoimento indireto, despacho esse do seguinte teor (transcrição):
«DESPACHO
Cumpre desde já referir que concordamos na totalidade com o defendido pelo Digno Magistrado do Ministério Público e, que por razões de economia processual, aqui se dão por reproduzidos tais fundamentos.
Acresce que não existe qualquer irregularidade que cumpra sanar, porquanto o que poderá existir é apenas e tão-só discordância quanto à fundamentação das razões de facto e de direito sufragadas na decisão instrutória, discordância, aliás, perfeitamente legítima.
No entanto, não se invoque qualquer falta de fundamentação ou omissão de pronúncia, porquanto a decisão em causa se encontra fundamentada de facto e de direito, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 97.º, n.º 5 e 307.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, sendo que se mostram especificados os factos que o Tribunal considerou indiciados e os tipos de crime que consubstanciam esses mesmos factos.
Reitera-se, pois, que não existe qualquer irregularidade (art.º 123.º do Código de Processo Penal).
Poderá existir é discordância, legítima, quanto aos fundamentos da decisão, sendo que, nesta parte, o Tribunal apreciou criticamente a prova nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto e sem necessidade de quaisquer outros considerandos, nada mais há decidir.
Custas pelo incidente anómalo a que deu causa o arguido requerente, com taxa de justiça que se fixa em 2 UCs.
Notifique.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 - Da inadmissibilidade legal da instrução requerida pelos assistentes
Nas conclusões 3ª a 10º invoca o recorrente que, encerrado o inquérito, foi proferida contra si acusação pública, imputando-lhe a prática, em coautoria material com os demais arguidos, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191º do Código Penal, não se tendo o Ministério Público pronunciado sobre a prática do crime de dano qualificado, p. e p. pelo art. 213º, n.º 1, al. a), do mesmo código, pelo que, quanto a este crime, não se deduziu acusação nem se proferiu despacho de arquivamento.
Mais defende a posição segundo a qual visando a instrução a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar o inquérito, para que a mesma seja admissível é necessário que tenha ocorrido acusação ou arquivamento pelos factos que serão sujeitos a instrução, o que entende não se verificar no caso vertente, em que houve uma omissão de pronúncia quanto a esses factos, cuja forma adequada de reação era a reclamação hierárquica e não a abertura de instrução.
Assim, a instrução requerida pelos assistentes, visando a pronúncia dos arguidos pelo dito crime de dano e pelo qual foram efetivamente pronunciados, era legalmente inadmissível, pelo que o respetivo requerimento deveria ter sido rejeitado.
Em abono desse seu entendimento, invoca o recorrente os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30-04-2014 e de 26-09-2012(1).
Refere-se, efetivamente, nesse primeiro aresto o seguinte:
« (…) para que haja pronúncia e instrução, diz-nos o art. 286º1 CPP que esta “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, necessário será que tenha ocorrido acusação (que não houve) ou arquivamento.
Através da instrução visa-se reagir contra um despacho de arquivamento, por se considerar que tal não devia ocorrer.
Só que como se vê dos autos (e dos despachos) o Mº Pº nada refere quanto ao crime do artº191º CP, não proferindo acusação quanto a ele nem proferindo despacho de arquivamento, pelo que parece não haver decisão contra a qual reagir através do requerimento de instrução.
Como proceder, reagir contra tal facto?
Como expressa Germano M. da Silva, Curso de Proc. Penal, III, verbo, 3ª ed 2009, pág. 151 “A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura da instrução”, pelo que se não existe arquivamento não pode haver instrução, pois sendo a instrução neste caso um acto de sindicância da legalidade da atuação do Mº Pº nada há para sindicar ainda
Não se pode falar de um arquivamento implícito, que seria inadmissível face ao princípio da legalidade mas também por revestirem a qualidade de actos decisórios que devem ser escritos e fundamentados (artºs 97º3, 4 e 5 CPP), mas apenas e só de uma ausência de decisão quanto a determinado facto, pois o requerente do RAI nunca poderia indicar as razões da sua discordância “relativamente à não acusação” (artº 287º2 CPP).
Assim parece-nos que o assistente não poderá reagir requerendo a instrução mas primeiramente deve provocar a acção do MºPº, para depois se for o caso sindicar jurisdicionalmente a sua atuação (de arquivamento ou acusação).
Ora tal reacção apenas pode ocorrer no inquérito e perante o Mº Pº, donde perante tal omissão, o assistente deve provocar ou a tomada de uma decisão - alertando para a omissão de pronuncia sobre um investigado ou denunciado crime (e na medida em que o tenha sido), pois o MºPº está obrigado também por força do principio da legalidade a pronunciar-se sobre ele, podendo a sua falta constituir nulidade por omissão de pronuncia, nos termos o artº 120º1d) a arguir nos termos do artº 120º3c) no prazo de 5 dias a contar da notificação do despacho do encerramento do inquérito, - ou promover a intervenção hierárquica, nos termos do artº 278º de modo a que se determine que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam;»
Por seu turno, no segundo acórdão conclui-se que não havendo despacho de arquivamento dos autos quanto a um determinado indivíduo, que também não foi abrangido pela acusação, resta ao assistente, verificados os respetivos pressupostos, requerer a intervenção hierárquica ou a reabertura do inquérito, considerando-se, para tanto, o seguinte (transcrição):
« (…) Estatui o artigo 287º, nº 1, alínea b), do CPP que o assistente pode requerer a abertura de instrução, “se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”.
Pressuposto para o Ministério Público não deduzir acusação é que, por um lado, tenha havido inquérito e, por outro lado, tenha sido proferido despacho final de encerramento (v.g. de arquivamento quando está em causa a legitimidade do assistente para requerer a abertura da fase de instrução).
Isso mesmo decorre igualmente do estabelecido no art. 286º, nº 1, do CPP quando dispõe que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” (…)
Como sabido, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286º, nº1, do CPP).
Enquanto fase jurisdicional, a instrução (que não é um complemento da investigação que devia ter sido feita em inquérito, nem tão pouco se traduz num pré-julgamento), compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.»
Embora reconhecendo a valia da argumentação subjacente ao entendimento perfilhado em tais acórdãos, estamos em crer que a mesma não pode ser transposta para o caso vertente nos termos propugnados pelo recorrente, por corresponderem a uma interpretação demasiado formalista.
Da estrutura acusatória do nosso processo penal deriva que o inquérito é a fase legalmente prevista destinada, especificamente, a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas (art. 262°, nº 1).
Encerrado o inquérito (ressalvadas as hipóteses previstas para os crimes particulares - art.s 50º e 285º - e para as situações especiais a que aludem os art.s 280º e 281º), o Ministério Público terá de decidir quanto aos factos objeto de investigação e a participação nos mesmos de cada um dos agentes sobre a qual aquela foi dirigida, proferindo despacho de arquivamento, na hipótese de ter sido recolhida prova bastante de se não ter verificado o crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser inadmissível o procedimento ou se não tiver sido possível obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes (art. 277º, nºs 1 e 2) ou, deduzindo acusação, caso tenham sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente (art. 283º).
Seja qual for a decisão do Ministério Público (de arquivamento ou de acusação), a mesma encontra-se sujeita a controlo judicial através do recurso à fase da instrução.
De acordo com o disposto no art. 286º, n.º 1, "A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento" e o art. 287º, n.º 1, refere que "a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento …", o que, numa primeira leitura, pode levar a estabelecer e a exigir como pressuposto necessário e indefetível da admissibilidade legal da instrução a existência de um despacho formal de acusação ou de arquivamento.
Porém, de acordo com o restante teor literal deste último artigo, pressuposto para a instrução requerida pelo assistente é que o procedimento não dependa de acusação particular, pois esta terá de ser deduzida pelo próprio assistente, e que seja relativa a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
A expressão utilizada pela lei foi "não tiver deduzida acusação" e não a expressão "tiver arquivado".
Em conformidade, o n.º 2 do art. 287º exige que o assistente, no requerimento de abertura da instrução, indique, além do mais, as razão de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, mais uma vez não se utilizando a palavra arquivamento.
Isto porque também em caso de dedução de acusação, o assistente pode requerer a abertura de instrução, desde que destinada a obter a pronúncia do arguido por outros factos relativamente aos quais este não foi acusado.
Com efeito, se a divergência do assistente relativamente à acusação do Ministério Público for substancial, por o assistente entender que a acusação deveria ter conteúdo substancialmente diverso, donde resultasse a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, o assistente pode requerer a abertura da instrução para esses fins.
Não é, pois, pressuposto necessário da instrução requerida pelo assistente a existência de um despacho de arquivamento, podendo o mesmo pretender comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público de acusar por um crime diverso ou menos grave, ainda que não tenha havido um arquivamento expresso nessa parte, pugnando pela pronúncia do arguido por outro crime ou por um crime mais grave.
Assim, quando o art. 286º, n.º 1, estipula que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, não está a pretender restringir aquela primeira finalidade à instrução requerida pelo arguido e esta segunda à instrução requerida pelo assistente.
A utilização das expressões "acusação" e "arquivamento", quer nesse artigo, quer na primeira parte do artigo seguinte, deve-se ao facto de essas serem as formas legalmente previstas de encerramento do inquérito (art. 276º).
No caso vertente, os assistentes apresentaram queixa por factos suscetíveis de integrar a prática pelos arguidos, também, de um crime de dano (como veremos adiante - ponto 3.2).
Tais factos não só foram investigados em inquérito, nomeadamente através da tomada de declarações sobre eles aos assistentes, como inclusivamente foram descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, onde consta que os arguidos dirigiram um trator contra o portão de acesso ao prédio dos assistentes, estroncando os respetivos fechos e forçando a sua abertura, e, já no interior do prédio, partiram os esteios e os arames que seguram as ramados do portão com as rodas do trator.
Não obstante, o Ministério Público, ao deduzir acusação, apenas imputou aos arguidos a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, nada dizendo sobre o eventual crime de dano, que se encontrava fortemente indiciado, pelo menos na sua vertente objetiva, em face dos factos descritos na acusação.
Significa isto que, relativamente a esses factos, o Ministério Público não deduziu acusação, o que, a nosso ver, legitima a abertura da instrução pelos assistentes, com vista a comprovar judicialmente essa decisão de não acusar os arguidos por esses factos (art. 287º, n.º 1, al. b), independentemente de não ter arquivado expressamente o inquérito quanto a eles.
Embora se desconheça a razão daquela omissão do Ministério Público, tudo leva a crer que não se tratou de um mero lapso, uma vez que na acusação não descreveu os factos relativos aos elementos subjetivos do crime de dano, mas sim de ter perspetivado a conduta dos arguidos apenas à luz do crime de introdução em lugar vedado ao público, sem valorizar ou autonomizar os factos eventualmente subsumíveis àquele outro ilícito criminal. Como tal, terá entendido desnecessário fazer qualquer alusão à razão da não imputação do crime de dano, abstendo-se de proferir um despacho de arquivamento nessa parte.
Perante isso, não se vê como sustentar que a instrução requerida pelos assistentes, com vista a obter a pronúncia dos arguidos pelo crime de dano, não é relativa a factos pelos quais o Ministério Público não deduziu acusação, encontrando-se, pois, em nossa opinião, verificado o pressuposto exigido pelo art. 287º, n.º 1, al. b), para tornar legalmente admissível tal instrução.
Diferente seria a situação de, durante o inquérito, não terem sido realizadas quaisquer diligências investigatórias relativas a esses factos, caso em que, efetivamente, não poderia ser requerida a abertura da instrução contra pessoa que não foi investigada, sob pena de nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. d), por ausência de inquérito.
Como referem Figueiredo Dias e Nuno Brandão(2) “ … a admissão de uma instrução requerida pelo assistente contra alguém que não foi objeto da investigação na fase do inquérito e não viu a sua hipotética responsabilidade penal apreciada pelo Ministério Público, ou ainda mesmo contra pessoa formalmente acusada pelo Ministério Público, mas relativamente a factos estranhos aos descritos na acusação, implicaria a assunção pelo juiz de instrução criminal de um papel "primário" de autêntico investigador; e não apenas "subsidiário" ou "supletivo", como está pressuposto no modelo do processo penal português e vem de há muito sendo vivamente acentuado pelo primeiro subscritor desta anotação. Um tal juiz de instrução abandonaria o papel recatado que a lei lhe reserva, o de escrutinar a decisão do Ministério Público com que é encerrado o inquérito, e transformar-se-ia num investigador criminal que tem por missão apurar “ex novum” a hipótese delituosa que lhe é sugerida pelo assistente no seu requerimento de abertura da instrução e que não chegou a ser admitida ou explorada pelo Ministério Público na fase processual azada para o efeito, o inquérito. Que daí resultaria uma transfiguração funcional do juiz de instrução criminal e uma autêntica subversão da estrutura acusatória do processo penal português, imposta constitucionalmente (art. 32.°-5 da CRP) e plasmada na regulação legal das fases do inquérito e da instrução, é coisa de que não pode duvidar-se. Motivo pelo qual, aliás, como veremos infra, um processo penal que nessas condições começasse a correr contra certa pessoa estaria viciado por nulidade insanável, decorrente da falta de inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade (art.119º/d), do CPP). E se assim é, não resta senão repudiar “in limine” a admissibilidade de uma instrução requerida contra quem não foi investigado em inquérito e não foi abrangido por despacho de acusação ou de arquivamento, por frontalmente contrária às regras legais que conformam as fases do inquérito e da instrução e ao modelo acusatório de que as mesmas constituem expressão».
Não é, porém, essa a situação dos autos, em que, como vimos, os factos eventualmente subsumíveis ao crime de dano foram objeto de investigação durante o inquérito e, na vertente objetiva do tipo, foram inclusivamente descritos na acusação.
Por seu lado, refira-se que também não colhe o argumento, invocado nos mencionados acórdãos e convocado pelo ora recorrente, de que o meio adequado de reação por parte do assistente seria suscitar a intervenção hierárquica do Ministério Público ao abrigo do disposto no art. 278º, n.ºs 1 e 2, e não requerer a abertura da instrução.
Com efeito, basta pensar na hipótese de, nesse caso, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público entender não ser de determinar qualquer tomada de posição por parte deste, mantendo-se integralmente o despacho de encerramento do inquérito, caso em que o assistente veria coartada a possibilidade de reagir contra esse despacho, salvo, claro está, através da eventual invocação de alguma nulidade.
Salientem-se, ainda, os termos em que o citado n.º 2 do art. 278º está redigido, colocando como opcionais as faculdades de requerer a abertura da instrução e de suscitar a intervenção hierárquica, o que, na prática, é propício a equívocos que, seguindo-se a interpretação defendida pelo recorrente, poderão deixar o assistente ou denunciante desprotegidos.
Pelo exposto, concluímos pela admissibilidade legal da instrução requerida pelos assistentes, improcedendo o recurso nesta parte.

3.2 - Da inexistência de queixa quanto ao crime de dano
Por outro lado, nas conclusões 11ª a 25º, invoca o recorrente que na queixa apresentada, assinada por ambos os assistentes, não foi alinhado qualquer facto referente ao crime de dano, pelo que, sendo a queixa uma manifestação de vontade que deve ser inequívoca no sentido de responsabilizar determinada pessoa criminalmente pelo substrato fáctico apresentado pela mesma, assim não procederam os assistentes, já que não alegaram qualquer dano, não o quantificando ou explicitando quais os bens de que o primeiro era proprietário e que foram atingidos, pelo que não tinha legitimidade o Ministério Público para exercer a ação penal relativamente a tal crime e, como tal, o arguido não podia ser pronunciado por ele.
Por outro lado, embora o assistente R. C., alegado arrendatário do prédio, aquando das declarações prestadas em inquérito, tenha afirmado factos suscetíveis de se traduzirem em estragos causados no dito prédio, o certo é que, por um lado, não está comprovada nos autos essa sua qualidade de arrendatário, e, por outro lado, ainda que se entendesse o contrário, o mesmo em momento alguém afirmou que o portão tenha sido destruído ou que tenham sido destruídas ramadas e redes, conforme referido na decisão instrutória.
De todo o modo, sempre deveria ser excluída a legitimidade do arrendatário rural para fazer queixa relativamente aos danos em causa, devendo considerar-se inconstitucional a interpretação que se extraia do dispostos nos art.s 113º, n.º 1, e 212º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, no sentido de que é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, quem é mero arrendatário de um imóvel, por violação dos princípios do Estado de direito e da proporcionalidade.
Vejamos se o recorrente tem razão.
Nos termos do n.º 1 do art. 113º do Código Penal, quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Dispõe o art. 49º, nº 1, que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, que não se pode confundir com denúncia (art.s 241º e ss.).
Segundo Figueiredo Dias(3), a “queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…)”. E acrescenta o mesmo autor(4): “No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto. … Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”.
A noção de queixa tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia, pois na queixa além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda "uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente"(5).
No caso em apreço, os autos tiveram início com a "participação criminal" junta a fls. 2 a 4, subscrita por ambos os denunciantes, posteriormente constituídos assistentes, na qual, depois de referirem que, contra a sua vontade, os segundo e terceiro denunciados, munidos de instrumentos de trabalho agrícolas e máquinas, por ordem, a mando e no interesse do primeiro denunciado, entraram no quintal e propriedade rústica dos denunciantes, que está completamente vedada e da qual são dono e arrendatário, respetivamente, e aí, com o maior à vontade iniciaram trabalhos de natureza agrícola, referem, além do mais, que os denunciados causaram à propriedade danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, que se liquidarão em tempo oportuno, concluindo que, por todos os motivos apresentados, vêm trazer ao conhecimento do Ministério Público esta factualidade, requerendo que seja instaurado o respetivo procedimento criminal.
Acresce que o denunciante J. C., ao ser inquirido, no dia 12-11-2013, ou seja, ainda dentro dos seis meses subsequentes à data dos factos denunciados (28-06-2013), declarou que confirma o teor da queixa apresentada e que no que concerne aos factos descritos deseja o competente procedimento criminal contra os denunciados e ser indemnizado por todos os prejuízo sofridos e decorrentes da ação delituosa.
Perante a alegação constante da queixa, concretamente ao aludir expressamente a danos causados à propriedade, complementada pelo teor das referidas declarações, dúvidas não existem de que os denunciantes manifestaram de forma inequívoca pretenderem que fosse instaurado procedimento criminal conta os denunciados também pelos factos consubstanciadores dos alegados danos.
Para efeitos de apresentação da queixa não se revela necessário concretizar ou especificar os danos causados na coisa, nem a sua quantificação, bastando alegar os factos de onde os mesmos derivem ou a sua existência, como inequivocamente fizeram os denunciantes.
Conclui-se, assim, que a referida participação criminal, para além da declaração de ciência acerca de um facto com relevância criminal, contém a manifestação da vontade específica de perseguição criminal pelo mesmo, pelo que preenche os requisitos da queixa relativamente ao crime de dano pelo qual os arguidos foram pronunciados.
Consequentemente, ficam prejudicados os demais argumentos invocados a este respeito pelo recorrente, relativos à falta de legitimidade do alegado arrendatário para apresentar queixa, sendo certo que essa questão se encontraria resolvida em face do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 27-04-2011(6), segundo o qual, "no crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113º, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afetado no seu direito de uso e fruição."
Improcede, pois, este segmento do recurso.

3.3. - Da inexistência de indícios suficientes quanto ao crime de dano
Sustenta também o recorrente, nas conclusões 26ª a 35º, que inexistem indícios suficientes da prática do crime de dano, alegando, para tanto, que do auto elaborado pelo agente da PSP que se deslocou ao local no dia dos factos resulta que estes ocorreram no dia 26-06-2013 e não no dia 28-06-2013, conforme se afirma na queixa e na acusação, e que dele não consta que o assistente R. C. tenha referido ao agente da PSP que foi destruído o que quer que fosse na referida quinta, o que apenas veio a fazer cinco meses depois, no dia 12-11-2013, quando foi inquirido em inquérito, ao afirmar que os coarguidos arrombaram o portão com o trator, donde resultaram danos no muro que suporta o portão e, já no interior da propriedade, partiram esteios e arrebentaram arriostas que seguram as ramadas, quando é certo que, de acordo com a fotografia junta a fls. 349 pelos assistentes, resulta que o portão se encontra intacto, sendo, pois, falso que tenha sido destruído. Conclui, assim, que a prova indiciária sobre a ocorrência de estragos na quinta decorre apenas do depoimento do assistente R. C., que é filho do dono do terreno, pelo que tal depoimento é comprometido e não credível, e que nenhuma prova foi produzida no sentido de serem derrubados ou danificados esteios ou ramadas, conforme o nega o arguido e a testemunha J. S., quando ouvidos em instrução.
Afigura-se-nos, porém, que os argumentos invocados pelo recorrente são insuscetíveis de afastar a existência de indícios suficientes conducentes à pronúncia dos arguidos pelo crime de dano.
Em primeiro lugar, para esse efeito é irrelevante que os factos tenham tido lugar no dia 28-06-2013, conforme é mencionado na queixa e na acusação, ou no dia 26-06-2013, como resulta da participação elaborada pelo agente da PSP que se deslocou ao local na sequência de comunicação da ocorrência e é mencionado no requerimento de abertura da instrução dos assistentes e na pronúncia.
Trata-se, seguramente, de um lapso, muito provavelmente cometido na elaboração da queixa e transposto para a acusação, lapso esse certamente derivado de na participação policial também constar o dia 28-06-2013, como data de elaboração da mesma, o que, numa leitura menos atenta, pode ter induzido os denunciantes em erro.
De todo o modo, trata-se de uma divergência sem relevo para efeitos de aferir a suficiência dos indícios e que não deixará de ser esclarecida em sede de julgamento, tanto mais que no despacho de pronúncia já figura como data dos factos o dia 26-06-2013.
Por seu lado, o facto de não constar da referida participação que o assistente R. C., aquando da respetiva deslocação do agente da PSP ao local, lhe tenha referido a existência de quaisquer danos, não é apto a afastar a suficiência dos indícios, nos termos exigidos em fase de instrução, que resultam das suas declarações prestadas posteriormente em sede de inquérito, sendo certo que já na queixa é referida a existência de danos. O facto de terem decorrido cerca de cinco meses entre a data dos factos e a prestação dessas declarações deveu-se apenas à normal tramitação dos autos, uma vez que a queixa apenas foi apresentada a 16-09-2013. Acresce que o assistente pode não ter mencionado quaisquer danos ao agente da PSP por, nomeadamente, não se ter apercebido da sua extensão e relevância ou de não os ter valorado na altura.
Por seu turno, o facto de no despacho de pronúncia se descrever, por remissão para a al. D) do requerimento de abertura de instrução, que com a atitude e atos dos arguidos, o portão foi destruído, não briga com a circunstância de na fotografia junta pelos assistentes em instrução se observar que o mesmo se encontra intacto. Isto porque aquela alegação é, logo de seguida, concretizada com o seguinte segmento: "danificaram (os arguidos, com a sua atitude e atos) de forma definitiva a respetiva fechadura”. Aliás, a referida afirmação vem na sequência da factualidade descrita na al. C), onde se refere que os arguidos, ao forçarem a abertura do portão de ferro com o trator, estroncaram os respetivos fechos, forçando a sua abertura. Ou seja, o dano alegadamente causado no portão reporta-se à sua fechadura, o qual, obviamente, não pode ser percetível na observação da mencionada fotografia.
Por fim, não é pelo facto de o assistente R. C. ser filho do proprietário do prédio que as suas declarações são necessariamente comprometidas e não credíveis, tanto mais que o mesmo relatou pormenorizadamente os danos causados pelos arguidos, e estes, em sede de inquérito optaram por não prestar declarações, não infirmando, pois, aquela versão.
Quanto ao facto, descrito no despacho de pronúncia, por remissão para a al. C) do requerimento de abertura a instrução, de terem sido destruídos esteios e ramadas, não é correto afirmar-se, como faz o recorrente, que não foi feita nenhuma prova, porquanto o assistente R. C., aquando das suas referidas declarações (a fls. 20), afirmou expressamente que os arguidos, com as rodas do trator partiram esteios e rebentaram as arriostas (arames) que seguram as ramadas. A circunstância de o arguido D. M. e a testemunha J. S., quando ouvidos em instrução, terem negado tal facto, não é suficiente para infirmar os indícios resultantes daquelas declarações, tanto mais que da fundamentação do despacho de pronúncia resulta que o Exmo. juiz a quo, não obstante esta prova produzida em instrução, com o imediatismo e a oralidade a ela inerentes, não considerou infirmados os indícios derivados das mesmas.
Pelo exposto, permanece intocado o juízo que conduziu à conclusão sobre a existência de indícios suficientes quanto à prática do crime de dano pelos arguidos, nesta parte improcedendo o recurso.

3.4 - Do preenchimento do elemento objetivo do crime de dano
Nas conclusões 36ª a 41º, sustenta o recorrente que não se encontra preenchido o elemento objetivo do crime de dano, porquanto na pronúncia, que reproduz o requerimento de abertura de instrução, não se dá como indiciado o valor dos bens ou sequer o seu grau de destruição (se ficaram totalmente ou apenas parcialmente danificados, de forma a que se possa concluir por um mínimo de danosidade social.
É um facto que, conforme também salienta o recorrente, a conduta típica do crime de dano, em qualquer das suas quatro modalidades (destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável a coisa alheia) tem de atingir um limiar mínimo de danosidade social, o que implica que o facto atinja o limiar da dignidade penal, o que, por seu turno, exige que a coisa tenha algum valor e que a conduta lesiva se revista de algum relevo(7).
Ainda que estes elementos não estejam expressos no tipo, resultam dos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo os quais o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social.
Atentas as dificuldades em definir a linha divisória que concretiza aquela exigência, deve seguir-se o critério de que assumirão relevância típicas as lesões não reparáveis ou só reparáveis com custos significativos de tempo, trabalho ou dinheiro. Daí que, por exemplo, como já decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa(8), não assuma relevância típica a conduta do agente que provocou meia dúzia de pequeníssimas e quase impercetíveis mossas na porta de entrada da residência do vizinho quando a ela bateu insistentemente para lhe pedir satisfações por não o ter deixado descansar durante a noite.
No caso vertente, resultando suficientemente indiciado que os arguidos, com um trator, forçaram a abertura do portão de ferro do prédio do assistente, danificando de forma definitiva a respetiva fechadura, bem como derrubaram parte do muro de pedra que veda a propriedade e destruíram esteios de pedra e ramadas, bem como redes, conforme consta do despacho de pronúncia, apresenta-se como inequívoca a conclusão de que a reparação de tais estragos implicará necessariamente dispêndio de tempo, trabalho e dinheiro consideráveis, não sendo necessário que tais elementos constem daquele despacho para efeitos de verificação do elemento típico em apreço.
Com efeito, em face dos elementos disponíveis, os bens danificados tem inequivocamente um valor económico e a ação danosa revestiu gravidade merecedora de tutela penal.
Consequentemente, a conduta dos arguidos atinge o limiar mínimo de danosidade social, preenchendo os elementos objetivos do crime de dano.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.

3.5 - Da irregularidade da decisão instrutória por falta de fundamentação e da valoração de depoimento indireto
Nas conclusões 42º a 46º, o recorrente insurge-se contra o despacho que indeferiu o seu requerimento formulado imediatamente após a leitura da decisão instrutória, no qual invocou que esta última é infundamentada, não se conseguindo discernir o porquê de o arguido ser pronunciado, pelo que se verifica a irregularidade prevista nos art.s 97º, n.º 5, e 123º, n.º 1, bem como que aquela decisão valorou prova proibida, traduzida em depoimento indireto, nos termos do art. 129º, n.º 1.
No que concerne àquele primeiro segmento, atinente à irregularidade do despacho de pronúncia por falta de fundamentação, os argumentos invocados pelo recorrente no aludido requerimento (fls. 500) consistiram em a decisão instrutória referir, por um lado, que existem duas versões dos factos diametralmente opostas sem esclarecer o porquê de considerar mais credível a versão dos ofendidos que a versão do arguido, e, por outro lado, que os arguidos não prestaram declarações em inquérito quando ele o fez em instrução, não se discernindo da última frase constante da decisão na parte em que analisa o crime de introdução em lugar vedado ao público se o arguido é ou não pronunciado.
Sobre esse requerimento incidiu o despacho recorrido, transcrito supra, no qual o Exmo. juiz a quo entendeu, em suma, inexistir qualquer irregularidade, mas apenas e tão só discordância do requerente quanto à fundamentação das razões de facto e de direito sufragadas na decisão instrutória, a qual se encontra fundamentada de facto e de direito, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 97º, n.º 5, e 307º, n.º 1, mostrando-se especificados os factos que o tribunal considerou indiciados e os tipos de crime que os mesmos consubstanciam.
Na motivação do recurso sobre esse despacho, o recorrente reafirma a existência da apontada irregularidade, com base nos mencionados fundamentos.
3.5.1 - O dever de fundamentação das decisões judiciais é uma garantia integrante do próprio Estado de direito democrático, tendo consagração constitucional no art. 205º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Com a revisão constitucional de 1989 deu-se uma alteração nos contornos desse dever de fundamentação, porquanto deixou de se remeter para a lei os casos em que a fundamentação é exigível, passando então a concretizar-se que a mesma se impõe em todas as decisões que não sejam de mero expediente, remetendo-se apenas a remissão para a lei quanto à “forma” que ela deve revestir. De todo o modo, qualquer que seja essa forma, definida pela lei, terá sempre de permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão proferida.
Tratou-se de um aprofundamento do dever de fundamentar as decisões judiciais, reforçando os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afetam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adoção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.
Para além desse relevo da fundamentação, enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático, no domínio do processo penal, a mesma assume uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos.
Uma fundamentação cuidada é, pois, absolutamente essencial, desde logo, para garantir a possibilidade do exercício eficaz do direito ao recurso.
O art. 97º, n.º 5, consagra o princípio geral sobre a fundamentação dos atos decisórios, estatuindo que estes são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Esse princípio geral é reiterado relativamente a alguns particulares e específicos atos que afetam ou podem afetar os direitos dos arguidos, como é o caso da sentença, cuja falta de fundamentação, nos termos exigidos pelo n.º 2 do art. 374º, é geradora de nulidade (art. 379º, n.º 1, al. a), e do despacho judicial que decrete medidas de coação ou de garantia patrimonial, do qual devem constar os requisitos previstos no art. 194º, n.º 6, sob pena de nulidade.
Especificamente para o caso da decisão instrutória, não se prevê expressamente que a respetiva falta de fundamentação constitua nulidade nem tal vício faz parte do elenco dos art.s 119º e 120º, pelo que configura uma mera irregularidade processual, posto que, de acordo com o princípio da tipicidade ou da legalidade consagrado em matéria de nulidades no art. 118º, n.º 1, “a violação ou infração das leis de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”, dispondo o n.º 2 que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”.
De acordo com o disposto no art. 123º, n.ºs 1 e 2, nem todas as irregularidades merecem tutela legal, sendo unicamente relevantes para o efeito aquelas que possam afetar o ato praticado.
Por seu turno, o regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida.
A arguição da irregularidade está sujeita ao apertado regime de tempestividade previsto no n.º 1 do citado art. 123º. Assistindo o interessado à prática do ato a que se refere a irregularidade, como foi o caso, terá de a invocar no próprio ato, como o recorrente efetivamente fez, pois que arguiu a irregularidade de falta de fundamentação do despacho de pronúncia imediatamente após a prolação do mesmo.
As irregularidades, tal como as demais nulidades para além da relativa à sentença, que são suscetíveis de, por si só, serem fundamento de recurso (art. 379º, n.º 2 do Código de Processo Penal), devem ser previamente suscitadas perante o tribunal que as cometeu, que as apreciará em primeira instância, só havendo recurso da decisão que delas conhecer(9).
3.5.2 - Cumpre, pois, apreciar esse segmento do recurso, averiguando se o despacho de pronúncia padece de falta de fundamentação, afigurando-se-nos que a resposta vai no sentido negativo.
A irregularidade relativa à fundamentação da decisão instrutória, tal como sucede com qualquer outra decisão (exceto a sentença, em que o vício é a nulidade), pode derivar de uma falta absoluta de fundamentação ou de uma fundamentação insuficiente (no sentido de não ser bastante para suportar as conclusões extraídas). Já a fundamentação deficiente (inadequada a suportar tais conclusões), se traduz numa questão de correta aplicação do direito ao caso concreto, ou seja, de julgamento da situação real em face do regime legal.
Refira-se que a possibilidade prevista no art. 307º, nº 1, de fundamentação da decisão instrutória por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, refere-se somente à dispensa da narração/descrição dos factos e da respetiva qualificação jurídica, não desobrigando o juiz de instrução de explicitar os motivos pelos quais, nomeadamente, não viu nos factos e nos elementos probatórios indicados pelo arguido virtualidade suficiente para infirmar a tese da acusação(10).
O recorrente argui a irregularidade do despacho de pronúncia, imputando-lhe o facto de invocar a existência de duas versões dos factos diametralmente opostas e não explicar porque considerou mais credível a versão dos ofendidos que a do arguido, bem como por afirmar que os arguidos não prestaram declarações em inquérito, mas o recorrente fê-lo em instrução.
Porém, se bem atentarmos na decisão instrutória, constatamos que, na parte relativa à apreciação dos indícios, o Exmo. juiz a quo afirma efetivamente que, em sede de instrução, a testemunha J. S. referiu que os arguidos não destruíram o portão e o arguido D. M. (ora recorrente) negou a prática dos factos, referindo que tudo foi inventado para o prejudicar e que o portão sempre se encontrou aberto e as pedras do muro sempre estiveram tombadas, concluindo, assim, pela existência de duas versões diametralmente opostas quanto à ocorrência dos factos.
Não obstante, aquando especificamente da apreciação do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes, visando a pronúncia dos arguidos pelo crime de dano, o Exmo. juiz a quo refere que considera suficientemente indiciados os factos descritos nesse requerimento em face do cotejo dos elementos probatórios constantes do inquérito, mormente o teor da participação criminal de fls. 2 e ss., corroborada pelas declarações dos ofendidos a fls. 18 e 20, tendo nesta última sido relatados os danos verificados no muro, portão, esteios e arames que suportam as ramadas.
Acresce que, a propósito da existência das duas versões opostas, também referiu que a prova produzida em instrução, ou seja, as declarações do recorrente e o depoimento da testemunha J. S., no confronto com os depoimentos dos ofendidos, não foi suficiente para pôr em crise os fundamentos que levaram à dedução da acusação pública (pelo crime de introdução em lugar vedado ao publico). Ora, embora não o refira expressamente, afigura-se-nos óbvio que tal conclusão é igualmente válida para o crime de dano, uma vez que ambos terão sido praticados no mesmo circunstancialismo e se apresentam fortemente interligados, não se descortinando qualquer razão para aquelas pessoas falarem verdade em relação a parte dos factos e mentirem relativamente aos demais.
Poder-se-á dizer que aquela fundamentação não é exaustiva, podendo ter sido complementada com uma mais clara explicitação dos motivos pelos quais a prova produzida em instrução não foi suficiente para infirmar os indícios resultantes do inquérito, no qual, aliás, os arguidos optaram por não prestar declarações.
Porém, não estamos perante uma falta de fundamentação nem sequer uma fundamentação insuficiente, pois que da leitura da decisão instrutória se consegue perceber que o Exmo. juiz a quo atribuiu maior credibilidade às declarações dos ofendidos, em detrimento das declarações do arguido D. M. e do depoimento da testemunha J. S. prestados em instrução, o que se compreende facilmente se atentarmos na circunstância de o ofendido R. C. ter presenciado os factos e descrito pormenorizadamente os danos causados e de a referida testemunha ser empregado daquele arguido há mais de 20 anos.
Afigura-se-nos, pois, que a decisão instrutória, no que concerne ao crime de dano, se apresenta suficientemente fundamentada, não padecendo da irregularidade em apreço.
3.5.3 - Por seu lado, quanto ao argumento invocado pelo recorrente de não se conseguir discernir da última frase constante da decisão na parte em que analisa o crime de introdução em lugar vedado ao público se ele é ou não pronunciado, refira-se que, nessa parte, o despacho de pronúncia (aliás irrecorrível), não é objeto do presente recurso, restringindo-se este à pronúncia pelo crime de dano. De todo o modo, sempre se dirá que decisão instrutória é inequívoca a esse respeito, pois que, no próprio segmento invocado pelo recorrente conclui pela suficiente indiciação dos factos descritos na acusação pública, na qual ele foi acusado pelo referido crime, e no dispositivo do despacho de pronúncia expressamente se refere que o mesmo é pronunciado pelo dito crime.
3.5.4 - Por outro lado, no requerimento formulado após a prolação da decisão instrutória, invocou o recorrente que a eventual indiciação do facto de os coarguidos (E. S. e M. C.) se terem deslocado ao terreno em causa por ordens suas, decorre da valoração de depoimento indireto, quer do testemunho do ofendido R. C., quer da participação elaborada por J. Q., prova essa que não pode ser valorada nos termos do art. 129º, n.º 1.
Na motivação e conclusões do presente recurso, o recorrente concretiza melhor essa alegação, permitindo perceber mais facilmente o seu alcance, ao aludir a "valoração de depoimento indireto dos coarguidos, que chegou aos autos pelo testemunho do ofendido R. C., quer pela participação elaborada pelo agente da PSP J. Q.".
A questão consiste, pois, em saber se a indiciação daquele facto (os coarguido E. S. e M. C. terem atuado por ordem do recorrente) derivou de depoimento indireto, que não possa ser atendido como meio de prova, atento o disposto no art. 129º, n.º 1, que impede o juiz de valorar como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas se não chamar estas a depor.
Ora, tal situação manifestamente não se verifica no caso vertente, desde logo e na medida em que as pessoas alegadamente transmissoras da informação assumem a qualidade de arguidos, sendo, pois, necessariamente ouvidos, ainda que se possam remeter ao silêncio, como fizerem em inquérito, postura que, para a questão em apreço é irrelevante.
De todo o modo, refira-se que no depoimento prestado em inquérito (fls. 20), o ofendido R. C. apenas afirmou que o denunciado M. estava ali a mando do patrão (o denunciado D. M.) e só cumpria ordens, sem referir que tal informação lhe foi transmitida pelo mencionado M..
Por seu turno, relativamente à participação policial (fls. 45), o seu teor não foi nem pode ser valorado como meio de prova do facto em apreço, apenas o podendo ser o depoimento do agente policial que se deslocou ao local e a elaborou, sendo certo que este não foi inquirido como testemunha em inquérito nem em instrução, embora surja como tal indicado na acusação pública e no despacho de pronúncia, a fim de ser ouvido em audiência.
Ora, tem-se entendido que uma testemunha - agente da PSP - que em audiência de julgamento depõe relatando o que lhe foi transmitido pelo denunciado, não profere um depoimento indireto, antes sendo algo que ela ouviu diretamente da sua boca, de viva voz, pelo que um tal depoimento constitui prova legalmente admissível, sendo valorado dentro da livre apreciação pelo Tribunal, nos termos do art. 127º (11).
Pelo exposto, improcede o segmento em apreço do recurso.

3.6 - Do incidente anómalo
Por fim, nas conclusões 47ª a 51º, insurge-se ainda o recorrente contra o despacho que indeferiu o seu requerimento formulado imediatamente após a prolação da decisão instrutória, a invocar a irregularidade da mesma, por falta de fundamentação, no segmento em o condenou em custas, fixando a taxa de justiça em 2 unidades de conta, a título de incidente anómalo.
Dispõe o art. 7º, n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais que "consideram-se procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas".
O pressuposto traduzido no carácter estranho ao desenvolvimento normal da lide deve ser entendido com o sentido de a questão suscitada ser descabida no quadro da lide e que tenha um mínimo de autonomia processual em relação ao processado da causa(12).
Deve, assim, considerar-se estranho ao “desenvolvimento da lide” o requerimento ou a arguição que se afaste da normalidade de uma tramitação (uma tramitação normal é aquela que radica no exercício e salvaguarda de direitos). Enquanto tal, essa “ocorrência” constituirá uma violação dos princípios gerais da boa-fé e da lealdade processual que impendem sobre todos os sujeitos processuais. O propósito do legislador ao estabelecer uma sanção funda-se na circunstância de tais atividades ou condutas processuais serem entorpecedoras da ação da justiça e, como tais, causadoras de um dispêndio inútil de meios humanos e materiais(13).
Em causa está o requerimento formulado pelo recorrente, imediatamente após a prolação da decisão instrutória, a invocar a irregularidade da mesma por falta de fundamentação.
Uma vez proferida a decisão instrutória, o arguido, para além da nulidade prevista no art. 309º, n.º 1, consubstanciada em pronúncia por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento de abertura da instrução, também pode arguir qualquer irregularidade processual de tal decisão, carecendo de a fazer perante a entidade que a proferiu e no próprio ato, caso a ele assista, ou, caso contrário, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (art. 123º, n.º 1), sob pena de se ter tal irregularidade como sanada.
As irregularidades devem ser previamente suscitadas perante o tribunal que as cometeu, que as apreciará em primeira instância, só havendo recurso da decisão que delas conhecer(14) .
Como vimos supra (ponto 3.5), a falta de fundamentação do despacho de pronúncia invocada pelo recorrente, a existir, consubstanciaria efetivamente uma irregularidade processual, pelo que carecia de ser invocada por aquele nos termos em que o fez.
Como tal, o requerimento apresentado pelo recorrente não se apresenta como uma ocorrência estranha ao normal desenvolvimento da lide, pelo que não se justifica o sancionamento em custas a título de incidente anómalo.
Nesta parte procede, pois, o recurso.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido D. M., revogando o despacho subsequente à prolação da decisão instrutória, na parte em que o condenou em custas a título de incidente anómalo, confirmando quanto ao mais a decisão recorrida.

Sem custas, atenta a parcial procedência do recurso (art. 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).
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(Processado em computador pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 20 de fevereiro de 2017
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(Jorge Bispo)
________________________________________
(Pedro Cunha Lopes)

(1) - Proferidos, respetivamente, nos processos 1059/11.0GBPNF-A.P1 e 276/10.5JAPRT-A.P1, disponíveis em http//www.dgsi.pt.
(2) - In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 19º, n.º 4 págs. 663 e ss.
(3) - In Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, pág. 665.
(4) - Ob. cit., pág. 675.
(5) - Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal 2.ª ed., Editorial Verbo, Tomo III, págs. 55 a 59.
(6) - Publicado no Diário da República n.º 105, Série I, de 31-05-2011.
(7) - Vd. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 219.
(8) - Acórdão de 03-03-1998, Coletânea de Jurisprudência, Ano, XXIII, Tomo II, pág. 140.
(9) - Cf. acórdão do TRL de 03-5-2016, disponível em http//www.dgsi.pt.
(10) - Cf. acórdão do TRP de 29-02-2012 (processo n.º 216/07.9TAMBR-C.P1), disponível em http//www.dgsi.pt.
(11) - Cf. acórdão do TRC de 18-06-2014 (processo n.º 356/12.2SAGRD.C1), disponível em http//www.dgsi.pt.
(12) - Vd. Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais, Anotado e Comentado, 4ª. Edição, 2012, pág. 257.
(13) - Vd. Joel Timóteo Ramos Pereira, Regulamento das Custas Processuais e Legislação Complementar, Quid Juris, 2012, pág. 45.
(14) - Cf. acórdão do TRL de 03-5-2016, disponível em http//www.dgsi.pt.