Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
68/17.0T8MNC-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: REGIME DE BENS DO CASAMENTO
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
AQUISIÇÃO POR SUCESSÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
POSSE
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No regime de comunhão de adquiridos constitui bem próprio do cônjuge o prédio urbano que lhe adveio depois do casamento por sucessão.

II. Essa qualificação não é alterada pelo facto de ambos os cônjuges terem licitado no inventário e as tornas terem sido pagas com dinheiro de ambos.

III. A circunstância de terem sido realizadas obras no prédio, casa de morada da família, cujo custo foi suportado pelo outro cônjuge e de aí terem residido sequencialmente, ambos os cônjuges, apenas o outro cônjuge e o cônjuge adquirente com a filha de ambos, não qualifica o cônjuge não adquirente como possuidor para efeitos de invocação da contitularidade do prédio por via da usucapião.”
Decisão Texto Integral:
Sumário:

1 - No regime de comunhão de adquiridos constitui bem próprio do cônjuge o prédio urbano que lhe adveio depois do casamento por sucessão.
2. Essa qualificação não é alterada pelo facto de ambos os cônjuges terem licitado no inventário e as tornas terem sido pagas com dinheiro de ambos.
3. A circunstância de terem sido realizadas obras no prédio, casa de morada da família, cujo custo foi suportado pelo outro cônjuge e de aí terem residido sequencialmente, ambos os cônjuges, apenas o outro cônjuge e o cônjuge adquirente com a filha de ambos, não qualifica o cônjuge não adquirente como possuidor para efeitos de invocação da contitularidade do prédio por via da usucapião.
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Manuel e Patrícia, réus na ação declarativa que contra eles deduziu Laura, interpuseram recurso do despacho saneador, na parte em que não admitiu o pedido reconvencional relacionado com o reconhecimento do imóvel em causa nos autos como bem comum do casal, por se ter considerado tal pedido manifestamente improcedente e não admitiu a reclamação dos temas da prova realizada pelo mandatário dos recorrentes.

Apresentaram alegações que terminam com as seguintes
Conclusões:

1) O réu alegou factos que a serem provados podem conduzir a aquisição de metade deste bem por usucapião (nomeadamente nos pontos n.º 21, 22, 23, 24, 25, 26, 48 e no terceiro pedido da contestação/reconvenção),
2) Pois licitou esse bem no âmbito do processo de inventário facultativo n.º 51/88 por óbito de Carlos (avô da autora) e Joaquim (pai da autora) – ver documento n.º 3 junto com a PI,
3) Para adquirir o mesmo como bem comum do casal e convicto de que o fazia para aquisição da casa.
4) Sempre o habitou e considerou, bem como sua ex-mulher, familiares e amigos, como bem comum do casal, há mais de trinta anos sem oposição de ninguém, de forma pública, pacífica e ininterrupta.
5) Esta aquisição por usucapião pode e deve ser ponderada pelo Tribunal e como tal objeto de prova e não descartada liminarmente como aconteceu, pelo que a reclamação realizada pelos recorrentes deve ser admitida.
6) Foram violados os artigos 266.º, n.º 2 e 583.º do CPC
7)
Deverá o presente recurso ser julgado procedente como é de inteira JUSTIÇA!

A autora contra alegou, entendendo que o recurso não merece provimento.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se devia ter sido admitida a reconvenção, na parte não admitida, bem como a reclamação quanto aos temas da prova.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

1- Da admissibilidade da reconvenção

Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade da reconvenção deduzida pelos réus.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 266º do Código de Processo Civil, o Réu pode, verificando-se certos requisitos, deduzir - na acção em que é demandado -, pedidos contra o Autor. Esses requisitos podem ser de índole substantiva ou processual.

Assim, por um lado, para além dos requisitos processuais gerais temos que: o tribunal competente para a acção deve ser também o competente para a reconvenção (artº 93º do Código de Processo Civil); a reconvenção deve ser deduzida nos termos do artº 583º; e deve também existir uma identidade de formas de processo entre o pedido reconvencional e o do autor.

Por outro lado, deve existir alguma das conexões substantivas que vêm enumeradas, alternativa e taxativamente, no nº 2 do artº 266º do Código de Processo Civil. Ou seja: a reconvenção será admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um direito de crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
Ora, no caso em apreço, as partes têm capacidade jurídica e judiciária e os pedidos formulados pelos Réus cumprem as prerrogativas impostas pelo artigo 583.º do Código de Processo Civil, sendo que o foro para a apreciação de ambas as pretensões o mesmo.
Quanto à identidade da forma de processo ela também ocorre, dado que, a ambos os pedidos corresponde a forma de processo comum (cf. arts. 296º, 299º, 546º, nº 1 do CPC e 44º, nº 1 da LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto).
A causa de pedir na reconvenção é, em regra, distinta da deduzida pelo autor, mas exige-se uma conexão entre estas e os pedidos formulados. É necessário que o facto invocado, a verificar-se, produza um efeito útil defensivo, ou seja, tenha a virtualidade para deduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.
Ora, no caso em apreço, a autora pretende que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre um imóvel, condenando-se os réus a reporem a situação do prédio ao seu estado inicial (sem fechaduras na parte superior do mesmo), bem como a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos.
Os réus, em reconvenção, peticionam que se reconheça que o imóvel em causa nos autos se trata de um "bem comum" do extinto casal composto pela autora e pelo primeiro réu, a condenação da autora no pagamento de benfeitorias efectuadas pelos réus no imóvel em causa e o pagamento de despesas domésticas.
Nessa medida, entende este tribunal que o único pedido reconvencional admissível é o da condenação da autora no pagamento de benfeitorias e do crédito dos autores, ao abrigo do disposto no art. 266º, nº 2, alíneas b) e c) do CPC.

No que respeita ao primeiro pedido, cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o relatado pela autora na petição inicial, autora e réu foram casados no regime da comunhão de adquiridos.
O réu não impugnou tal factualidade na contestação.
O bem imóvel em causa nos autos foi adquirido por sucessão hereditária por óbito do avô da autora (vide fls. 9 e ss.), facto que não é negado pelo réu (vide artigo 12 da contestação).
Entende o réu, contudo, que tal bem é bem comum do casal, porquanto "autora e réu licitaram em conjunto o mencionado imóvel, tendo entregue tornas ao interessado Fernando". E, pretende, por isso, em reconvenção que se reconheça que o imóvel é bem comum do casal.
Ora, tal pedido é manifestamente improcedente, atento o que resulta do regime legal da comunhão de adquiridos. Se atentarmos para o disposto no art. 1722º do CC: "1. São considerados próprios dos cônjuges:
a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento;
b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;
c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.

2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:

a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;
b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;
c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;
d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.".

Assim sendo, nunca tal bem pode vir a ser declarado bem comum do casal, nem é pelo facto de terem "licitado em conjunto tal bem em processo de inventário", que o bem passa a ser comum. Acrescenta-se que nem se entende o motivo pelo qual o réu "licitou" o referido bem, pois os cônjuges casados em comunhão de adquiridos, não são interessados em processo de inventário no qual o seu cônjuge assuma a posição de interessado (vide art. 1327.º do CPC na redacção anterior à do NCPC).

Termos em que, admito os pedidos efectuados em sede de reconvenção relativamente ao pagamento das benfeitorias e direitos de crédito dos réus, e não admito o pedido reconvencional relacionado com o reconhecimento do imóvel em causa nos autos como bem comum do casal, por manifestamente improcedente.
Notifique”.

Entende o apelante que o seu pedido reconvencional relativo à declaração como proprietário ou co-proprietário do imóvel em questão, deveria ter sido admitido.

Vejamos.
As partes estão de acordo que foram casados no regime da comunhão de adquiridos e que o imóvel em causa adveio à propriedade da autora, depois do casamento, por sucessão (inventário por óbito de seu avô, sendo os pais pré-defuntos).
Ora, sendo assim, não há dúvida que se trata de um bem próprio do cônjuge mulher, ou seja, da autora – cfr. artigos 1721.º e 1722.º, n.º 1, alínea b) do Código Civil que estabelecem as normas aplicáveis ao regime da comunhão de adquiridos.
Como é sabido, os regimes de bens legalmente fixados são imutáveis, não podendo ser alterados depois da celebração do casamento – norma imperativa constante do artigo 1714.º, n.º 1 do CC.
E a natureza dos bens (próprios de cada cônjuge ou comuns do casal) depende do regime de bens do casamento e do título da aquisição dos bens, pelo que não há dúvida que, face ao regime de bens do casamento de autora e réu ter sido o da comunhão de adquiridos e o imóvel ter chegado à sua propriedade por via de sucessão do avô da autora, este imóvel é bem próprio da autora.
Alega o réu que licitou, juntamente com a autora, no inventário por óbito do avô desta e que pagaram as tornas com o seu dinheiro.
Ora, o artigo 1371.º, do anterior C.P.C., vedava, a intervenção nas licitações, de quem não é herdeiro ou meeiro ou, excepcionalmente, donatário ou legatário, e daí que ao cônjuge de um herdeiro, tal esteja, vedado.

Alega o réu que, para além da licitação nos termos referidos, o imóvel foi a casa de morada de família de autora e réu até 1993 e que, desde 1993 até 2002 o réu ficou a viver sozinho no imóvel, tendo a autora e sua filha regressado em 2002, para viver nesse prédio, altura em que o réu foi viver para Valença. Mais alega que sempre fez obras na casa e pagou todas as despesas.
O que se verifica, é que não existe fundamento para contrariar o efeito que formalmente decorre do preceito supra referido quanto à titularidade do bem em questão como bem próprio da autora – artigo 1722.º, n.º 1 b) do CC.

O facto de o réu ter comparticipado, ou pago integralmente, as despesas com obras que foram realizadas no prédio é insusceptível de alterar a qualificação jurídica do bem como bem próprio, sem embargo de outros direitos que lhe advenham e que decorrem, aliás, dos restantes pedidos reconvencionais que foram admitidos.
Os demais factos também não permitem reconhecer a titularidade ou contitularidade do imóvel que é reclamada pelo réu, “ainda que porventura pudesse admitir-se, na pendência do casamento, a invocação, por algum dos cônjuges, da figura da posse para efeitos de modificação do estatuto jurídico de bens” – Acórdão do STJ de 10/12/2015, processo n.º 164/10.5TBCUB.E1.S1 (Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.

Tendo sido invocada pelo réu uma situação possessória relativamente a um bem que adveio à autora depois do casamento, por sucessão, a sua pretensão, no sentido da titularidade ou mesmo reduzida à contitularidade do direito de propriedade, não consegue superar, de modo algum, os pressupostos da usucapião.
“A usucapião, como forma de aquisição originária de direito real de gozo, pressupõe a prova da existência de uma situação de verdadeira posse que tenha perdurado durante um período temporal determinado: em relação a bens imóveis, 15 anos (em caso de posse de boa fé) ou de 20 anos (em caso de posse exercida de má fé).
É, pois, imprescindível a demonstração de uma situação de posse, como poder que se manifesta quando alguém age relativamente a um bem como titular do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo (art. 1251º do CC), o que implica, por um lado, a materialidade da actuação (“corpus”) e, por outro, o intuito de agir como titular de um direito real que formalmente pertence a outro sujeito (“animus”)” – Acórdão do STJ citado.

No caso concreto, estando unicamente alegado que a ocupação do prédio urbano foi efetuada por ambos, como casa de morada de família desde o casamento, até 1993 e, desde essa data, até 2002, unicamente pelo réu e, posteriormente, pela autora e sua filha, tais factos são insusceptíveis de traduzir, por si, uma situação de verdadeira posse, sendo antes compatíveis com o uso de um bem de que formalmente é proprietário o outro cônjuge. Tratando-se de um bem que adveio à autora, depois do casamento, por sucessão, ainda que para a sua licitação tenha contribuído dinheiro auferido pelo cônjuge réu, constituindo bem próprio da autora, a instalação no mesmo da casa de morada de família ou o facto de constituir a residência da autora e filha do casal (ainda que com um intervalo de 9 anos em que apenas lá residiu o réu) revelam-se compatíveis com a manutenção do estatuto jurídico do bem – neste sentido veja-se o Acórdão do STJ já referido.
Como decorre do citado acórdão, em caso com bastantes semelhanças ao dos autos, a utilização que do referido imóvel fez, ou vem fazendo o réu (quer como administrador de jure ou de facto do bem - art. 1678º, nº 2, als. f) e g), do CC -, quer simplesmente como cônjuge do proprietário do imóvel) sempre seria insuficiente para o qualificar como possuidor, por oposição ao direito de propriedade pleno na esfera do outro cônjuge. A utilização referida é conforme com o estatuto familiar do réu, faltando, assim, o elemento material da posse.

Acresce que os factos alegados também nada revelam quanto ao elemento subjectivo da posse, a exigir a prova de que o réu se tenha arrogado a qualidade de contitular do direito de propriedade do prédio, em lugar de mera utilizador ao abrigo das regras próprias do casamento, não bastando a afirmação conclusiva que sempre considerou o bem como bem comum do casal.
Daí que, de modo algum, poderia o réu vir a ser reconhecido como titular ou contitular do imóvel dos autos, por a tal se opor o regime de bens do casamento que teve com a autora (comunhão de adquiridos) e a forma de aquisição do imóvel, por sucessão hereditária por óbito do avô da autora, e por não deter o estatuto de possuidor, não passando de mero fruidor do bem, atitude consentida no âmbito do casamento que teve com a autora.

Sendo um pedido manifestamente improcedente, bem andou a Sra. Juíza, em não admitir a reconvenção quanto ao mesmo.

O que supra se disse sempre deixaria prejudicado o conhecimento do recurso quanto ao indeferimento da reclamação acerca dos temas da prova, sendo certo, também, que nunca seria este o momento adequado para conhecer dessa parte do recurso, atento o que estabelece o artigo 596.º, n.º 3 do CPC “O despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final”.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 22 de fevereiro de 2018


Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro