Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3162/20.7T8VNF.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: COOPERATIVA
TRABALHADOR COOPERANTE
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
CONTRATO DE TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Nas “cooperativas de trabalho” pertencentes aos ramos de produção operária ou de serviços, mormente de ensino, a aquisição e manutenção da qualidade de membro cooperador depende obrigatoriamente da contribuição com prestação de trabalho, além de capital.
II - A prestação de actividade por parte do cooperador trabalhador tem na sua origem um vínculo complexo de cariz cooperativo formalizado na adesão voluntária e aceitação de estatutos e regulamentos internos.
III- São os cooperadores que aprovam a elaboração e modificação dos estatutos, que aprovam e alteram os regulamentos internos, designadamente em matérias respeitantes à contribuição com trabalho para a cooperativa.
IV - Os cooperadores trabalhadores actuam segundo regras estabelecidas pelos próprios, sendo “empresários de si próprios”, o que é incompatível com a subordinação jurídica própria do contrato de trabalho.
V - Não foi alegada factualidade que demonstre que, sob a aparência de um «acordo de trabalho cooperativo», esteja camuflado um contrato de trabalho, designadamente circunstâncias que viciassem a formação do vínculo de cooperadora, ou que impedisse a autora do exercício dos direitos de cooperadora, designadamente de voto ou de participação em geral na vida da cooperativa.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

F. C. instaurou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum laboral contra X – Cooperativa de Ensino de …, CRL.

PEDIDO - condenação da ré a: a) atribuir-lhe o nível salarial que lhe corresponde, designadamente, a esta data o nível A5 a que corresponde o vencimento de 1.768,00€; b) proceder ao pagamento das diferenças salariais em falta no valor de 2.563,18€, acrescidas de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, que ascendiam, à data de entrada da ação, a 184,55€, tudo totalizando 2.747,73€.

CAUSA DE PEDIR-alega, em síntese, que foi admitida pela ré em 01/09/2000 para prestar o seu trabalho de professora de português e inglês, auferindo atualmente a retribuição mensal ilíquida de 1.718,46€. Apesar de (após recurso interposto de decisão de avaliação inicialmente proferida, com vista a progredir na carreira) ter obtido a classificação de “Bom”, a ré não a colocou no escalão correto decorrente de tal classificação, estando a auferir desde setembro de 2015 retribuição mensal inferior à devida.

CONTESTAÇÃO - admite a existência do contrato, funções exercidas e retribuição auferida, bem como os factos alegados pela autora quanto à classificação obtida. Impugna, porém, que se esteja perante um contrato de trabalho, alegando que a autora foi admitida em 02/09/2013 como cooperadora, pelo que se está perante uma relação de cooperação e não perante um contrato de trabalho. Exceciona a incompetência material do tribunal e o erro na forma do processo, dizendo que a autora pretende executar a decisão de avaliação, que constitui uma decisão arbitral. Termina pedindo a procedência das exceções invocadas e a improcedência da ação, com a sua absolvição dos pedidos deduzidos pela autora.
A autora respondeu. Admite a sua admissão como cooperadora da ré, mas pugna pela improcedência das exceções arguidas.

Foi proferido despacho saneador, no qual;

a) se julgaram improcedentes as exceções dilatórias de incompetência material e de erro na forma de processo;
b) se decidiu do mérito da causa, julgando-se a acção totalmente improcedente com absolvição da ré dos pedidos.

A AUTORA RECORREU. CONCLUSÕES:

A) Mesmo entendendo não ser aplicáveis as normas laborais, o Tribunal a quo declara-se materialmente competente para apreciar a questão uma vez a autora estrutura a sua pretensão no facto de estar vinculada á ré por um contrato de trabalho.
B) Depois, aprecia de imediato o mérito, concluindo que em causa está um contrato de relação cooperativa, única e exclusivamente apoiado no facto de a autora ser cooperante desde o ano de 2013 e absolve a ré do pedido.
C) Tudo isto acontece sem produção de prova.
D) ORA, se o Tribunal conclui que em causa está uma relação de cooperação á qual não se aplicam as regras laborais atento o disposto no artigo 126º, nº 1, da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ) não podia conhecer do pedido, deveria declara-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer o litígio dos autos e absolver a ré da instância,
E) Em causa está uma exceção dilatória, conducente à absolvição da ré da instância, atento o disposto nos artigos 96º, 99º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Cód. Proc. Civil.
F) O Tribunal de 1º instância ao decidir do mérito da questão violou as regras da competência material em matéria cível dos Tribunais de Trabalho prevista no artigo 126º nº1 alínea b) do Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ).
G) E conheceu de questão que não podia tomar conhecimento, sendo, portanto, NULA atento o disposto no artigo 615º nº1 alínea d) do C.P.C. garantia que prestou.

Acresce que.
H) Não é pelo facto de a autora ser cooperante que poderá concluir-se automaticamente pela inexistência de um verdadeiro contrato de trabalho.
I) Importa apurar todas as circunstâncias que rodeiam a formação e manutenção do vínculo laboral – e que são alegadas pela autora.
J) Qualificar juridicamente a relação estabelecida entre a autora e a ré, de forma automática, somente apoiada no facto de ser cooperante, configura uma violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
K) Este raciocino é meramente formal e profere-se uma decisão de mérito, formando-se caso julgado sobre a questão da inexistência de um contrato de trabalho sem dar possibilidade á autora de provar que, não obstante ser cooperante, existe um verdadeiro contrato de trabalho.
L) O entendimento constante na Douta Sentença em recurso configura uma violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e viola direitos fundamentais previstos nos artigos 20º e 268º da CRP.
M) Deve, pois, a decisão proferida pela 1ª instância ser revogada e ordenada a prossecução dos autos para produção de prova com vista á qualificação jurídica da relação existente entre a autora e a Ré com vista á apreciação da pretensão da autora.
N) Sendo o Tribunal de Trabalho o competente para apreciar a questão atento o disposto no artigo 126º nº 1, da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ)

CONTRA-ALEGAÇÕESRefere-se que o recurso não é admissível atento o valor da acção. Objecção que se rejeita liminarmente, porquanto a autora pretende a atribuição de categoria superior (79º, a), CPT).
No mais, apela à improcedência do recurso
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – propugna-se pela manutenção da decisão recorrida.
As partes não responderam ao parecer.
O recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): excepção de incompetência material; nulidade da sentença; qualificação do vinculo jurídico mantido entre a autora cooperadora trabalhadora e a ré cooperativa.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:

Os factos provados pela primeira instância são os seguintes:
A) A ré é uma cooperativa de responsabilidade limitada que tem como principal fim o ensino regular e profissional;
B) A autora foi admitida ao serviço da ré em 01/09/2000 para exercer a função de docente de Português e Inglês;
C) Para o efeito, a autora aufere, atualmente, a quantia ilíquida de 1.718,46€ e líquida de 1.171,43€;
D) Todos os docentes integrados na carreira docente regem-se pelo Regulamento de Avaliação de Desempenho anexo ao BTE n.º 29 de 08/08/2015;
E) A autora, em cumprimento das normas relativas à sua avaliação e com vista à progressão na carreira, enviou a sua autoavaliação nos termos e do disposto no artigo 7º do Regulamento de Avaliação de Desempenho;
F) Fê-lo no dia 18/05/2017, via email para ...@....pt;
G) Após o envio, foi a autora notificada para comparecer em entrevista que veio a ter lugar no dia 10/08/2017;
H) Dia esse em que foi igual e formalmente notificada da sua classificação: Insuficiente;
I) Confrontada com tal e tendo da mesma discordado, recorreu, apresentando alegações, o que fez, em 31/08/2017, via email enviado para ...@....pt;
J) Após tal, a ré contra-alegou;
K) Posteriormente, em abril de 2018, foi remetido à autora o Relatório Final de Avaliação de Desempenho datado de 29/03/2018, emanado pela Comissão de Arbitragem composta pelos árbitros da autora e ré e por um terceiro nomeado por aqueles dois;
L) Do referido relatório consta do ponto - II. Parâmetros de Avaliação - a nota atribuída à autora pelos árbitros nomeados, podendo daí retirar-se o seguinte: proposta consensual – média final arredonda à unidade: 4;
M) Daqui resulta que a classificação final atribuída após recurso é BOM;
N) Por deliberação da Assembleia Geral da ré realizada em 02 de setembro de 2013, a autora foi admitida como membro efetivo da ré – ata junta a fls. 92 e ss., que aqui se dá por integralmente reproduzida.

B) INCOMPETÊNCIA EM RELAÇÃO DA MATÉRIA

A autora reclama diferenças salariais derivadas de incorrecta classificação em escalão inferior, alegando que foi admitida pela ré para prestar o seu trabalho de professora de português e inglês, mediante retribuição e ao abrigo de um contrato de trabalho.
A ré excepcionou a incompetência material do tribunal de trabalho alegando que a autora foi admitida como cooperadora em 02/09/2013, motivo pelo qual a relação estabelecida entre ambas não pode ser qualificada como relação laboral, o que leva à incompetência do Juízo do Trabalho para a apreciação da ação. A autora em resposta manteve que se trata de relação laboral.

A excepção foi julgada improcedente dizendo-se, a dado passo, na decisão recorrida que:
É perante a causa de pedir alegada por este e perante os pedidos por si deduzidos que se deve decidir da adequação da jurisdição escolhida para fazer valer a pretensão trazida a juízo. Isto independentemente da procedência ou improcedência de fundo da ação – estamos no domínio dos pressupostos processuais de que depende a admissibilidade de apreciação do mérito, e não na apreciação do mérito em si. Para a apreciação do mérito já terão de ser considerados os factos que resultem da conjugação das posições de ambas as partes (e da prova que seja ou não feita de cada uma das versões), podendo então o tribunal aplicar o direito aos factos provados. Neta fase, porém, o que releva é a causa de pedir tal como apresentada pela autora. “
Agora em sede de recurso vem a autora, como que subscrever a tese da ré, alegando que “se o Tribunal conclui que em causa está uma relação de cooperação á qual não se aplicam as regras laborais atento o disposto no artigo 126º, nº 1, da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ) não podia conhecer do pedido, deveria declara-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer o litígio dos autos e absolver a ré da instância”.
Nos tribunais judiciais a distribuição da competência em razão da matéria é norteada pela regra da especialização. Atribui-se competência própria a juízos especializados que a priori detêm maior preparação técnico-jurídica na matéria. Os juízos cíveis, por sua vez, detêm competência residual, achada por exclusão de partes - 60º, 65º CPC, 33º, 37º/1, 40º, 80º, 81º/3, a/b, 117º, 130/1, LSOJ (2).
Aos juízos do trabalho, de competência especializada, compete julgar em matéria cível as questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho (entre outras) – 126º, 1, b) LSOJ (3).
A autora apresentou a acção no tribunal de trabalho, alegando na petição inicial a existência de uma relação de trabalho subordinado com a ré e o não cumprimento por parte desta das respectivas obrigações.
Como bem se refere na decisão recorrida a competência em razão da matéria afere-se em função dos termos em que o autor propõe a acção. Atende-se ao pedido formulado e à causa de pedir invocada. A competência é decidida unicamente de acordo com estas duas variantes. À aferição da competência, enquanto mero pressuposto processual, é indiferente a prova da materialidade invocada e a procedência das razões de mérito. Estamos no domínio da forma, dos pressupostos processuais, os quais são meros instrumentos para que, uma vez verificados, o tribunal possa avançar para a apreciação de fundo.
Esta é uma afirmação completamente pacífica no meio jurisprudencial, sendo evidente a falta de razão da autora, ademais sendo ela própria a intentar a acção no tribunal do trabalho. A jurisdição especializada tem competência para apreciar uma determinada matéria, quer julgue a acção procedente, quer a julgue improcedente. Tal não corresponde a qualquer denegação de tutela jurisdicional, como parece evidente, pois o que não se pode recusar é a apreciação jurisdicional.

Veja-se, a título exemplificativo do afirmado, o acórdão do STJ de 10-10-2007, www.dgsi.pt, referente a uma providência igualmente também intentada por um cooperador, com o seguinte sumário:

I - A competência em razão da matéria do tribunal é apreciada em função dos termos em que a acção é proposta, determinando-se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos.
II - Daí que o juízo a formular quanto à referida competência deva ser elaborado independentemente da verificação dos demais pressupostos de que depende a apreciação do mérito da causa e da verificação das condições de provimento desta, e independentemente da natureza estritamente civil ou laboral das normas jurídicas aplicáveis.
III - Para que se verifique a hipótese de competência material do Tribunal do Trabalho prevista na alínea b), do art. 85.º da LOFTJ, é necessário que o direito que se pretende ver acautelado provenha da violação de obrigações que, para o demandado, resultem de uma relação jurídica laboral.
IV - Por força do referido normativo legal, o Tribunal do Trabalho é competente para conhecer de uma providência cautelar que o requerente, cooperador de uma cooperativa de rádio, intentou contra dez cooperadores dessa mesma cooperativa, com fundamento na celebração e vigência de um contrato de trabalho com a cooperativa e na existência de actos violadores dos direitos do requerente emergentes desse contrato de trabalho praticados pelos requeridos, que controlam, de facto, a gestão, os negócios, o pessoal e os recursos da cooperativa.
V - Do mesmo modo, o Tribunal do Trabalho é competente para conhecer da acção principal, em que os fundamentos explanados na petição inicial correspondem, no essencial, aos fundamentos da providência, acrescentando-se naquela um pedido de indemnização por danos não patrimoniais derivado, também, da relação de trabalho e da sua violação por parte dos réus.

Improcede o recurso sobre esta questão.

C) NULIDADE DA SENTENÇA

Alega a autora que a decisão recorrida é nula porque se ocupou a decidir uma questão para a qual afinal não seria competente.
Teria sido violado o disposto no artigo 615º, 1, d), CPC, que refere que é nula a sentença quando “O juiz …conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, o que, segundo o nº 2, do artigo 608º, CPC, ocorre quando o tribunal conhece de questões não suscitadas pelas partes, salvo se forem do conhecimento oficioso.
A recorrente confunde conceitos.
É pacífico que por “questões” se entendem os pedidos deduzidos, causas de pedir e excepções (e não a retórica ou argumentação das partes) conforme tem sido decidido uniformemente pela jurisprudência (4) e acolhido pela doutrina (5).
Ora, o tribunal a quo não fez mais do que ocupar-se da questão que lhe foi posta, que era a de decidir se estávamos perante um contrato de trabalho ou perante uma outra relação jurídica, mormente de cooperação. Limitou-se a decidir o pedido, independente deste ser procedente ou improcedente.
A questão da competência como supra referimos nada tem a ver com o mérito da acção. O tribunal do trabalho é competente para decidir que uma determinada relação tem cariz laboral, assim como para decidir o contrário, a regra da especialização funciona para os dois lados. Classificar uma relação de não laboral também implica conhecimento laboral.
Improcede a questão.

D) RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE A AUTORA E A RÉ COOPERATIVA:

Questão: qualificação do vínculo jurídico entre a autora, cooperadora trabalhadora, e a ré cooperativa de serviços, ramo ensino. «Acordo de trabalho cooperativo» ou contrato de trabalho?
A autora reclama diferenças salariais por incorreta classificação em nível inferior, pedido apresentado no tribunal de trabalho e ao qual subjaz a consideração de que o contrato que mantém com a ré é uma relação jurídica de natureza laboral. A ré esgrime que a autora a partir de certa altura passou a cooperadora trabalhadora, pelo que tal qualidade é incompatível com a manutenção de um contrato de trabalho.
Na decisão recorrida entendeu-se que” … a relação existente entre as partes do presente processo não pode ser qualificada juridicamente como um contrato de trabalho, antes o devendo ser como uma relação cooperativa “. Os argumentos constam na decisão e são conhecidos das partes.
Concordamos com a decisão recorrida. Ademais, afigura-se que a matéria factual trazida aos autos na petição inicial não permite equacionar uma diferente natureza ao contrato.
A questão teórica equaciona-se do seguinte modo: um membro de uma cooperativa que dela faz parte e participa na sua gestão, que também desenvolve no seu seio uma actividade profissional remunerada, pode ser simultaneamente seu trabalhador ao abrigo de um contrato de trabalho?
Na verdade, a legislação portuguesa não estabelece um regime jurídico próprio a aplicar aos cooperadores trabalhadores.
A questão tem sido debatida a propósito das “cooperativas de trabalho”, que são as que pertencem aos ramos de “produção operária” e “de serviços”, porquanto, nelas, os membros são obrigados a contribuir com prestação de trabalho, além de capital.

A cooperativa e o cooperador:

As cooperativas fazem parte das organizações que integram a chamada “economia social”, de que são também exemplo as fundações, as misericórdias, as associações mutualistas, outras instituições particulares de solidariedade social, etc… Que se distinguem das “empresas capitalistas”, por não visarem uma lógica de mercado ou de lucro, sendo antes movidas pela satisfação de necessidades sociais e de promoção da coesão social, em que os excedentes são de apropriação colectiva.
A iniciativa cooperativa, a par da iniciativa privada, tem consagração constitucional, constituindo direito fundamental de com natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias - 61º, 80º, f), 82º e 85 CRP.
Pode-se afirmar a prevalência de uma discriminação positiva na ordem constitucional económica a favor do sector cooperativo e social no confronto com o estatuto da iniciativa privada. São exemplo desse estímulo ou “estatuto de favor” os benefícios e isenções fiscais, bem como as vantagens financeiras e o acesso ao crédito de que beneficiam tais entidades – 85º CRP e ANDRÉ ALMEIDA MARTINS, em “A relação jurídica entre cooperador trabalhador e cooperativa. Notas sobre a sua qualificação e regime”, in CES - Cooperativismo e Economia Social, nº 36 (curso 2013-2014), pág. 31 a 53, em especial p. 34 e 35.
Este regime protectivo radica na reconhecida função social que as cooperativas desempenham, ao permitirem o acesso dos trabalhadores aos meios de produção e ao investirem na respectiva formação profissional.
Segundo a declaração da Aliança Cooperativa Internacional sobre “Identidade Cooperativa”, a cooperativa “ é uma associação autónoma de pessoas, que se unem, voluntariamente, para satisfazer necessidades e aspirações económicas, sociais e culturais comuns, através de uma empresa de propriedade conjunta e democraticamente controlada.”
Sobressai, pois, o conceito de grupo de pessoas com interesses comuns que constituem uma “empresa” que é de todos e por todos gerida.
As cooperativas, além da previsão constitucional, são reguladas pelo Código Coooperativo (doravante CCoop.), Lei 51/96, de 07 de setembro (6) e alterações posteriores (em vigor à data de admissão da autora como membro da ré), pela legislação complementar aplicável aos seus vários ramos, pelos estatutos e pelos regulamentos internos aprovados em assembleia geral e, subsidiariamente, pelo CSC- 7º, 3, 9º, 12º, 15º, 34º, 1, 44º 49, g), CCoop. Toda esta panóplia de fontes terá de ser, assim, convocada.

O CCoop. (2º, 1) contém a seguinte definição de cooperativa:

“…são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”.

As cooperativas obedecem a sete princípios básicos, dos quais, para a temática que nos interessa, destacamos os seguintes (3º CCoop):

(i) a “adesão voluntária e livre”, segundo o qual são organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas aptas a utilizar os seus serviços e dispostas a assumir as responsabilidades de membro;
(ii) a “gestão democrática pelos membros”, segundo o qual são organizações geridas pelos seus membros, os quais participam nas suas políticas e na tomada de decisões. Os representantes eleitos são responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram. Nas cooperativas do primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto), estando as cooperativas de outros graus organizadas também de uma forma democrática;
(iii) a “participação económica dos membros”, segundo o qual os membros contribuem equitativamente para o capital e controlam-no democraticamente. Pelo menos parte desse capital é, normalmente, propriedade comum da cooperativa. Os cooperadores, habitualmente, recebem, se for caso disso, uma remuneração limitada pelo capital subscrito como condição para serem membros. Os cooperadores destinam os excedentes a objectivos de desenvolvimento das suas cooperativas, a benefício dos membros, a apoio a outras actividades aprovadas pelos membros;
(iv) A “autonomia e independência, segundo o qual são organizações autónomas de entreajuda, controladas pelos seus membros.
O sector cooperativo compreende vários ramos. Em alguns dos quais as relações cooperativas têm por objeto principal a prestação de trabalho por parte dos cooperadores. É o caso, designadamente, dos ramos de produção operária (DL 309/81, de 16-11), de serviços, na modalidade de produtores de serviços (DL 323/81, de 4-12), de cultura (DL 313/81, de 19-11) e de ensino onde se integra a ora ré (Decreto-Lei n.º 441-A/82, de 6 de novembro) – 4º, 1, l), CCoop.
Ora, neste tipo de cooperativas a aquisição e manutenção da qualidade de membro depende obrigatoriamente da contribuição com trabalho, além de capital.
Essa contribuição de trabalho é prestada segundo o disposto no CCoop, na legislação complementar do sector em que se integrem, nos estatutos, no regulamento interno, ou nas deliberações dos órgãos sociais, mormente a assembleia geral ou o órgão de administração.
É dever do cooperador o respeito por todos estes normativos (34º, 1, CCoop), bem como a participação nas actividades da cooperativa e a prestação do trabalho ou serviço que lhes competir (34º, 2, c), CCoop.) O trabalho ou os serviços com que os cooperadores concorrem deve aliás obrigatoriamente constar da acta da mesa da assembleia fundadora da cooperativa – 12º, 1, f), CCoop.
A ré é uma cooperativa de ensino. Atenta a legislação complementar aplicável ao ramo (DLº 441-A/82, de 06/11) e os seus estatutos (4º, 2,) esta classifica-se como cooperativa polivalente quanto ao seu objeto (7) e de prestação de serviços quanto aos seus cooperadores – 3º CCoop.

Segundo o artigo 10º da referida legislação complementar do ramo “ensino” (8), as cooperativas de prestação de serviços são constituídas exclusivamente por docentes e investigadores ou por docentes, investigadores ou outros trabalhadores do estabelecimento de ensino ou da cooperativa. Ademais, em concordância, os docentes só poderão ser membros se possuírem as habilitações legais definidas pelo Ministério da Educação para um dos graus de ensino oficial ministrados no ou nos estabelecimentos de ensino a cargo da cooperativa e desempenharem de forma efectiva as suas funções nesses estabelecimentos.
Ou seja, a qualidade de membro cooperador depende da vinculação à prestação de actividade de docente, investigador ou de outros trabalhos no estabelecimento/cooperativa. Não se pode ser membro recusando a prestação do trabalho.
É certo que o cooperador/membro é também substancialmente um trabalhador, mas a sua posição é complexa e nasce de um negócio jurídico misto. Na verdade, a prestação de trabalho a que se obriga, pese embora possa ter um conteúdo muito próximo do laboral, baseia-se na adesão voluntária “ao grupo” e tem na sua origem um vínculo de cariz cooperativo formalizado na aceitação dos estatutos.
Este cariz comunitário também se manifesta durante o desenvolvimento da contribuição do trabalho por parte do cooperador, na medida em esta ocorrerá como vimos segundo regras definidas pelos estatutos, pelo regulamento interno, pela assembleia geral ou mesmo pelo órgão de administração.
Ora, são os membros que elaboram os estatutos e os modificam. São eles que estabelecem as condições em que decorre o trabalho ou os serviços com que os cooperadores concorrem. São eles que deliberam as condições de admissão, suspensão, exclusão e demissão dos membros, bem como os seus direitos e deveres. São eles que aprovam ou alteram os regulamentos internos. Os assuntos são deliberados em assembleia geral, que é o órgão deliberativo supremo, onde todos os cooperadores participam e têm direito de voto. Mais, os próprios órgão sociais (assembleia geral, direcção e conselho fiscal), são eleitos por e entre os cooperadores -12º, 1, f), 15, 2, a), 33º, 1, a), b), 34º, 2, a), b), 39ç, 40º, 43º e 44º, 48º e 49º CCoop.
Portanto, os cooperadores trabalhadores actuam segundo regras estabelecidas pelos próprios. A atividade profissional dos cooperadores é exercida no contexto da cooperativa sem dependerem de um poder externo. Prestam um serviço sob a responsabilidade de todos os que trabalham na cooperativa, porque a respectiva atividade dirige-se aos seus membros, que são os destinatários principais das atividades económicas e sociais por esta prosseguidas – 2ºCCoop.

Vejamos agora o trabalhador não cooperador:

Nas cooperativas encontramos trabalhadores que desempenham actividade profissional remunerada e que não são membros. Podendo acontecer que o façam em condições que, na prática, são muito similares àquelas que são prestadas pelo cooperador trabalhador.
Mas aqui a posição do trabalhador não tem por base uma relação de cooperação, mas sim um contrato de trabalho ou de prestação de serviços, consoante o caso.
Em conformidade com o disposto no artigo 11º do CT, têm sido considerados pela doutrina e jurisprudência a existência de três elementos essenciais capazes de caracterizarem a relação laboral. São eles a prestação a outrem de uma actividade por parte de uma pessoa singular, a remuneração dessa actividade e a subordinação jurídica (“no âmbito de organização e sob a autoridade”), com especial enfoque para esta última característica, porquanto as outras duas são comuns a outros contratos.
Não interessa demoramo-nos nos indícios normalmente invocados para distinguir o contrato de trabalho da prestação de serviços (observância de horário, local de trabalho, propriedade dos instrumentos de trabalho, periodicidade de pagamento de quantia certa…), o que aliás já consta na decisão recorrida.
O que importa problematizar é se a relação de cooperação inerente ao vínculo cooperativo afasta a subordinação jurídica que é o cerne do contrato de trabalho.
Por norma nas cooperativas em que existe contribuição obrigatória com trabalho exclui-se a subordinação jurídica porque a actividade assenta na cooperação e porque se “reúnem na mesma pessoa qualidades antagónicas que o contrato de trabalho subordinado separa: a de trabalhador e a de empregador. É neste sentido que é possível afirmar que o cooperador trabalhador torna-se empresário de si mesmo.” - Deolinda Meira, André Almeida Martins, Tiago Pimenta Fernandes, “Regime Jurídico das Cooperativas de Trabalho em Portugal: Estado da Arte e Linhas de Reforma, p. 9, CIRIEC-España. Revista Jurídica Nº 30/2017, p. 9, www.ciriec-revistajuridica.es.
Neste tipo de cooperativas os membros apresentam-se assim como “produtores autónomos”, sendo inseparável a qualidade de cooperador e trabalhador. Não poderemos considerar que existem dois vínculos, um autónomo enquanto cooperador e outro subordinado, enquanto trabalhador.
Apesar de o trabalhador não cooperador e cooperador trabalhador puderem desempenhar funções idênticas para as mesmas pessoas físicas, estas intervêm no primeiro caso como empregador e no segundo como cooperador investido de funções de organização e distribuição de trabalho – Deolinda Aparício Meira, Ana Luísa Martinho, “Especificidades dos vínculos laborais nas cooperativas. Um estudo empírico”, CEOS.PP/ISCAP/POLITÉCNICO DO PORTO.
A jurisprudência, pese embora as oscilações, depois de uma fase inicial em que considerava que nada impedia que o sócio de uma cooperativa pudesse ser simultaneamente seu trabalhador (ac. STJ de 22-09-1098, wwww.dgsi.pt), nos acórdãos mais recentes e conhecidos da RP tende a considerar a incompatibilidade de coexistência de subordinação jurídica e económica com a relação de cooperação- ac. RP de 19-09-2011 e 27-02-2012, www.dgsi.pt
Alguma doutrina mais defensora da corrente juslaboralista (9) critica a tese contrária por esta supostamente se basear numa visão de inexistência nas cooperativas de conflito entre o capital e o trabalho, lógica o que não corresponderá a actual realidade das cooperativas dos dias de hoje. Chama-se a atenção para os riscos de, sob a veste de “acordos de trabalho cooperativos”, se camuflarem verdadeiros contratos de trabalho com vista a redução de custos laborais. Ou o risco de transformação das cooperativas numa qualquer entidade empregadora com fins lucrativos, o que acontecerá quando o peso das operações com trabalhadores não cooperadores for muitos superior ao dos cooperadores trabalhadores. Haverá também casos de trabalhadores pressionadas a assumirem a qualidade de membros, com vista a obtenção de benefícios fiscais. Acresce que nas cooperativas de grande dimensão, com concentração da gestão em estruturas dirigentes, dificilmente os cooperadores trabalhadores poderão ser “empresários de si próprios”.
Pelo que haverá que estar atento: (i) às circunstâncias que rodearam a formação do vínculo com a cooperativa; (ii) aos indícios de ausência do real exercício do direito de participação dos cooperadores na vida das cooperativas se tal resultar de imposição destas e não de desinteresse do trabalhador.
Competirá, contudo, ao cooperador trabalhador que pretenda ver qualificado o seu vínculo como laboral, por simulação do “acordo cooperativo de trabalho” alegar os factos demonstrativos de simulação – Deolinda Meira, André Almeida Martins, Tiago Pimenta Fernandes, ob. cit, p. 11.
Tendo em conta os princípios cooperativos supra elencados, por princípio o trabalhador opta voluntariamente por aderir ao grupo, com contribuição de prestação de trabalho, além de capital, em moldes por todos definidos e onde todos participam, face ao principio de “gestão democrática”. Beneficiando, por isso, a organização (todos, portanto) dos benefícios concedidos por lei. Só assim não será quando o demandante demonstre que esta é uma falsa realidade.

O caso dos autos

A autora invoca que se decidiu precipitadamente no despacho saneador e não lhe foi dada oportunidade de provar a existência de um contrato de trabalho.
Contudo, a autora não recorre da decisão relativa à matéria de facto. Não indica que pontos da matéria de facto, oportunamente alegada, não foi tida em conta e que poderia relevar para uma das soluções plausíveis de direito – 640º CPC.
Ademais, lida a petição inicial não encontramos factualidade que extravase aquela que foi considerada assente, sendo o mais ali alegado matéria conclusiva ou de direito. Mormente, nos termos supra ditos, não foi alegada qualquer circunstancia que viciasse, na sua formação, o vínculo de cooperadora, que este não tenha nascido por iniciativa própria da autora e de forma livre. Igualmente nada é alegado em termos de impedimento de exercício dos direitos de cooperadora e de participação na vida da cooperativa.
Ademais, cumpre ressalvar, como se refere na decisão recorrida que: “ …ainda que se pudesse considerar que até à data da adesão da autora (02/09/2013) tal contrato de trabalho existiria, sempre o período temporal a que a autora se reporta para deduzir os seus pedidos é posterior – a autora pede diferenças retributivas relativas ao período decorrido entre setembro de 2015 e junho de 2020”, altura em que já era membro cooperador.
Assim, nos termos expostos, adere-se à tese do «acordo de trabalho cooperativo», por melhor caracterizar a relação complexa que existe entre a cooperativa e o cooperador e inexistir no caso concreto factualidade que suporte a camuflagem de um contrato de trabalho.
É assim de indeferir o recurso.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida (87º, CPT e 663º, CPC).
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
18-03-2021

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s salvo as questões de natureza oficiosa.
2. Lei 62/2013, de 26-08.
3. Lei 62/2013, de 26-08.
4. Por exemplo, vd STJ de 13-01-2005, 12-05-2005 e 6-11-2019, www.dgsi.pt.
5. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito de Processo Civil, vol. II, 2ª ed., p 437.
6. Posteriormente revogado pela Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto (doravante Novo CCoop.).
7. São cooperativas polivalentes as que, nos termos do nº 3 do artigo 4º do Código Cooperativo, visem a manutenção de estabelecimento de ensino destinado à prossecução simultânea de actividades de educação escolar, de educação especial e de integração, de formação técnica ou profissional, de educação permanente – art. 8º.
8. DLº 441-A/82, de 06/11.
9. Citando-se recorrentemente a favor da corrente que entende o vínculo como contrato de trabalho, Júlio Gomes, Direito do Trabalho - Volume I - Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2007. p. 177, e em sentido contrário que entende o vínculo como “acordo de trabalho cooperativo” Jorge Leite, «Relação de Trabalho Cooperativo», Questões Laborais, Ano I, n.º 2, Coimbra, 1994, p. 89-108;