Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1505/17.0T8GMR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
IVA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Apenas podem ser atendidos na sentença os factos que relevem para apreciação das questões que as partes tenham suscitado, atentos os pedidos e as exceções deduzidas, ou cujo conhecimento oficioso a lei impuser. Se um facto, ainda que provado, não relevar para a apreciação de uma questão a resolver, considerando as várias soluções plausíveis, não deve constar da sentença.
II- A obrigação de indemnizar a cargo da seguradora engloba o valor do IVA que o segurado terá que suportar para reparar os bens danificados pelo incêndio cujo risco foi assumido no contrato de seguro.
III- Os juros de mora contam-se desde a data em que se venceu a obrigação de indemnizar, emergente da responsabilidade civil contratual.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. X – Sistemas Integrados, SA, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Companhia de Seguros Y Portugal, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar à Autora: a) a quantia de € 121.498,85, respeitante ao custo de reparação do edifício segurado; b) a quantia de € 322.821,05 relativa ao valor da mercadoria armazenada no pavilhão sinistrado e perdida no incêndio aí deflagrado (sendo € 30.667,10 relativo a bens da sociedade W); c) a quantia de € 1.500,00 por cada mês decorrido entre a data do sinistro e a data em que a Ré pagar integralmente à Autora a indemnização que lhe é devida, quantia essa que na data da propositura da acção foi liquidada em € 27.000,00; d) os juros vencidos e vincendos, sobre as mencionadas quantias, contados desde a data do incêndio até efectivo e integral pagamento. Mais peticionou a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais, atenta a afectação da sua imagem perante o público em geral.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou ter celebrado com a Ré um contrato de seguro que abrangia o risco de incêndio nas instalações do pavilhão que identifica, e que esta, verificado o risco, recusou assumir a responsabilidade pelo pagamento da indemnização atinente aos danos quantificados nos termos peticionados.
Mais alegou que a recusa da Ré a forçou a procurar um novo espaço, que arrendou, sendo que, por um lado, está a suportar o encargo mensal da renda, por outro, está a sentir o impacto da degradação da sua imagem, pela permanência do edifício destruído, o que também consubstancia um dano.
*
A Ré contestou, aceitando a existência e validade do seguro, mas impugnando a acidentalidade do incêndio, que considera ter sido provocado, e a dimensão dos invocados danos e a respectiva cobertura.
Alegou ainda que o contrato seguro não inclui o terreno, os custos de preparação do mesmo e os bens pertencentes a terceiros que estavam ao cuidado e controle do tomador e/ou segurado, excepto quando devidamente descritos e valorizados nas condições particulares; que o prédio em causa está constituído em propriedade horizontal, pelo que não responde por mais de 33% do valor dos danos, pois parte da área afectada constitui zona comum; que o local do risco e onde ocorreu o sinistro relatado na p.i. é propriedade da Autora mas é também a sede social de outras duas sociedades, a saber, a K - Importação e Distribuição de Instrumentos Musicais, Lda., e a X SGPS, SA, sendo que 2/3 dos bens danificados na sequência do incêndio eram propriedade destas duas empresas; que não suporta gastos com a privação temporária de uso do local seguro, muito menos a que exceda 12 meses, sendo ainda que o montante máximo de indemnização ao abrigo desta cobertura é de € 25.000,00; que no local não foi observada mercadoria/existências que justificassem as quantidades constantes do inventário; que um averiguador apenas identificou/confirmou a existência de mercadoria no valor de € 36.363,75 e que, em todo o caso, mesmo admitindo que existissem cerca de € 50.000,00 de mercadoria, sempre a sua valorização máxima não ultrapassaria o valor de € 24.590,12.
*
A Autora reduziu o pedido, na parte respeitante ao equipamento pertencente à empresa W – Instrumentos Musicais, Lda., no montante de € 30.667,10, o que foi homologado (v. fls. 162 verso).
*
1.2. Proferido despacho-saneador, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizada a audiência final, proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando a pagar à Autora «a quantia de € 265.180,85 [duzentos e sessenta e cinco mil, cento e oitenta euros e oitenta e cinco cêntimos (€ 12.194,43 + € 85.356,32 + € 23.948,10 + € 143.682,00)], acrescida de juros à taxa civil, contados desde 02.06.2015 até integral pagamento».
*
1.3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:

«1. A reapreciação da matéria de facto constante do Facto 26, no sentido de ser dada como não provada e que se pretende alcançar por via do presente recurso, fundamenta-se na insuficiência da prova produzida nos autos para formar convicção positiva sobre o valor de 143.682,00€, nomeadamente, a prova documental e testemunhal apresentada pela Recorrida, bem como as conclusões UNÂNIMES e esclarecimentos do Colégio de Peritos, que teve por objecto a quantificação dos danos a título de existências/mercadorias peticionados pela Recorrida, no valor de 322.821,05€.
2. Face à insuficiência da restante prova produzida nos autos sobre o valor das existências consumidas pelo incêndio, o Tribunal recorrido, para fundamentar a sua necessidade de dar como provado um valor para aquele dano, decidiu então percorrer as conclusões da peritagem do sinistro efectuada a pedido da Recorrente, pela empresa P. na fase extrajudicial, dela extraindo APENAS a parte que interessou para chegar a um valor o mais próximo possível do peticionado, assim se colmatando a manifesta ausência de prova para sustentar o valor peticionado nesta sede pela Autora/Recorrida.
3. O próprio Tribunal recorrido reconhece na fundamentação da sentença que eram fundadas as queixas dos Peritos da Ré, sobre o facto de não terem sido fornecidos “pela autora, aos peritos da ré, os documentos necessários à quantificação das existências”, além de que as conclusões vertidas no seu relatório, sobre os cenários relativos a valores prováveis para o dano das existências/mercadorias, foram sustentados em documentação contabilística, que o Colégio de Peritos nomeado nos autos considerou insuficiente e pouco credível - pág. 25 e 26 da sentença recorrida.
4. Temos assim dois relatórios, que tiveram por objecto a quantificação dos prejuízos decorrentes da destruição das mercadorias/existências consumidas pelo incêndio, a partir de documentação contabilística fornecida pela Autora/Recorrida: a) RELATÓRIO DE AVERIGUAÇÃO, REALIZADO PELA EMPRESA P., a mando da aqui Ré, concluído já depois de Setembro de 2015 (Fls. 119 e sg.s); b) RELATÓRIO DA PERICIA COLEGIAL CONTABILISTICA (COMPLEMENTARES E FINAL): FLS. 257 e sg.s; FLS. 335 e sg.s e FLS 484 e sg.s;
5. Quanto ao relatório da P., tal como é pratica da actividade seguradora, em particular em sinistros desta grandeza, teve por objecto a averiguação das circunstâncias e causas do sinistro, de forma a apurar-se sobre a sua inclusão na cobertura do contrato de seguro – pela verificação de um sinistro/incêndio em que se objectivasse o risco transferido para a seguradora – e, cumulativamente, a avaliação dos danos passiveis de indemnização, em consequência do sinistro participado.
6. Do teor deste relatório resulta que o valor de 143.682,00€, a que o Tribunal recorrido considerou para dar como provado o Facto 26, resultou de um estudo económico que, no respeita à valorização das existências consumidas pelo incêndio, equacionou vários cenários prováveis a partir de documentação contabilística, que o insuspeito Colégio de Peritos, nomeado no âmbito desta acção, concluiu ser manifestamente insuficiente e pouco credível para apurar o valor deste mesmo dano.
7. Os Peritos da P. sublinham em vários momentos que, atenta a insuficiência da documentação fornecida pela Autora/Recorrida, as conclusões do estudo económico realizado, para apurarem uma estimativa sobre o valor da mercadorias consumidas pelo fogo, seriam sempre muito limitadas, devido ao facto de não lhes terem sido facultadas, entre outras, as facturas de aquisição da mercadoria existente em stock, o que condicionava a análise efectuada, na medida em que não lhes permitiram aferir se o valor contabilístico dos stocks, que a A./Recorrida fez constar das IES´s, seria, ou não, coerente com essas mesmas facturas de aquisição: tal como o Colégio de Peritos anos mais tarde concluiu, na pendencia destes autos!
8. Face à insuficiência da documentação contabilística fornecida aos Peritos da P., (nomeadamente o inventário permanente, que o Representante Legal da Autora só admitiu a sua existência em sede das suas declarações prestadas em julgamento, sendo como tal notificado para juntar tais elementos, uma vez que o próprio Tribunal entendeu que se tratava de documentação fundamental para o apuramento da verdade dos factos e que nunca antes tinham sido fornecidos, para a valorização das mercadorias em sede das peritagens realizadas na fase extrajudicial – pág. 25 sentença), foram várias as estimativas de valores apresentados/trabalhados pelos Peritos no seu relatório, para assim tentarem chegar aos vários cenários possíveis ou prováveis sobre o valor das mercadorias existentes no local seguro à data do incêndio.
9. Aliás, é o próprio Tribunal recorrido que fundamenta a sua convicção sobre o facto 26, numa forte probabilidade, ao referir que “creio que é razoável afirmar que há muita probabilidade de as existências destruídas serem de valor não inferior a € 143.682,00 “ – pág.27 da sentença, nosso sublinhado – assim aderindo a um dos vários cenários prováveis que constam do relatório da P.:
a) Desde o mínimo de €: 24.590,12 - admitindo que no local existissem cerca de 50.000,00E de mercadorias valorizada conforme inventário, incluindo a mercadoria consumida pelo incêndio, afectando tal mercadoria pela percentagem de 48,84%, teríamos o valor de 24.590,12. Apesar de solicitado o Tomador não apresentou facturas comprovativas de mercadorias que declarou terem sido adquiridas recentemente. – Fls. 142, pág. 24 do relatório;
b) ao valor de €: 36. 363,75, que é dado como provado no Facto 27, a que o Perito Sr. Eng. F. B. (da N., primeira empresa de averiguações que a aqui Ré/recorrente incumbiu da averiguação), chegou no local pela inventariação física dos escombros - Fls. 142, pág. 24 do relatório;
c) e, finalmente, ao valor máximo dos máximos, de €: 143. 682,00, que resultou de um “estudo económico” realizado pela empresa P., anexo ao referido relatório, fls. 26 a 34 do doc. 2 junto com a contestação da Ré.
10. Note-se que, como é de conhecimento geral e assim não podia ser olvidado pelo douto tribunal a quo, de acordo com as regras que regem a actividade seguradora, a partir do momento em que é participado um sinistro a qualquer Seguradora, esta tem que, obrigatoriamente, constituir uma provisão económica para aquele sinistro.
11. Ao constituir essa provisão económica sobre o custo do sinistro, considera-se uma estimativa sobre o prejuízo máximo indemnizável, uma vez que as provisões para sinistros são um instrumento financeiro essencial ao controle da solvabilidade das Seguradoras, porquanto correspondem ao custo total estimado que a empresa de seguros espera vir a suportar com a regularização de todos os sinistros, que tenham ocorrido até ao final do exercício.
12. Face a tais obrigações e à necessidade de a seguradora se acautelar, perante uma reclamação do lesado pela via judicial, percebe-se os vários valores/cenários/estimativas (entre valores mínimos e máximos) sobre os prejuízos provavelmente decorrentes do sinistro e passiveis de indemnização, constantes do relatório da P..
13. E PRECISAMENTE PORQUE OS VALORES CONSTANTES DE TAL RELATÓRIO ASSENTAVAM EM CENÁRIOS E ESTIMATIVAS SOBRE OS PREJUÍZOS PROVÁVEIS DECORRENTES DO SINISTRO OBJECTO DOS AUTOS, devido a todas as limitações que os peritos da P. enfrentaram e registaram no âmbito da perícia que realizaram na fase extra-judicial, em particular a falta de documentação contabilística que a Autora/recorrida não lhes forneceu - vide fls. 67, verso a 68, dos presentes autos - é QUE A AQUI RECORRENTE/RÉ, COM A SUA CONTESTAÇÃO REQUEREU, UMA PERÍCIA COLEGIAL À CONTABILIDADE DA AUTORA/RECORRIDA, para se apurar o valor dos danos/prejuízos aqui reclamados, em consequência do sinistro ocorrido no dia 01.06.2015.
14. O Primeiro Relatório produzido pelo Colégio de Peritos, já no âmbito dos presentes autos, veio a ser apresentado a Fls. 257 e sg.s dos autos, que apesar de indicar um valor de perda de existências na ordem de € 192.856,40, “os Srs. Peritos que o subscreveram, em esclarecimentos verbais, clarificaram que tal valor não estava fundado em elementos objectivos, certos, seguros e fiáveis.” – vide pág. 24 da douta sentença.
15. Os 3 Peritos chegaram, de forma unânime, a um resultado numérico mas com muitas ressalvas apostas, afirmando mesmo que, a probabilidade de os números analisados estarem certos ERA NULA e, assim, sem qualquer credibilidade/fiabilidade – vide relatórios de fls. 257 e sg.s e esclarecimentos constantes de fls. 335 e sg.s e, Sentença, pág. 24.
16. Conclusão que os 3 Peritos mantiveram em sede dos esclarecimentos que prestaram na sessão de julgamento do dia 02-10-2019, conforme passagens supra transcritas, nomeadamente: o Perito M. F. [passagem com inicio aos 00:28:09 minutos]; o Perito J. G. [passagem gravada com início aos 00:20:14 minutos]; o Perito A. O. [passagem gravada a partir dos 00:04:15 minutos].
17. Resulta destes esclarecimentos, que o Colégio de Peritos, mesmo com a convicção clara de estarem a “trabalhar” com números errados e que não correspondiam à realidade da A./Recorrida e, assim, sem qualquer fiabilidade – uma vez que não lhes foram apresentados pela A/Recorrida os inventários permanentes, nem as facturas dos períodos recentes anteriores ao incêndio – apontaram um número no seu relatório por entenderem que estavam obrigados a tal, perante a requisição do seu trabalho pelo tribunal: ou seja, mais um cenário e/ou estimativa.
18. Nessa mesma sessão de 2 de Outubro de 2019, já depois de os 3 Peritos que realizaram a perícia contabilística à A/Recorrida terem prestado os seus esclarecimentos, por despacho, o douto Tribunal requereu ao Legal Representante da Autora/Recorrida, que viesse apresentar o seu Inventário Permanente a partir de 2012 e, ainda, a contagem física das mercadorias fixas, documentos que o mesmo assegurou existir e que nunca lhe teria sido pedido por nenhum dos Peritos, aquando da realização da perícia à contabilidade: nem mesmo pelo Colégio de Peritos nomeado nos autos?!
19. No cumprimento do que foi ordenado pelo Tribunal a quo ao Legal Representante da Autora/Recorrida, no decurso do julgamento, esta veio juntar os seguintes documentos:
a) Uma Factura de venda de material à empresa T. Unipessoal, Lda
b) Uma listagem de movimentos de stocks entre 2012 a 2015
c) Os Balancetes de 2012 a 2015 – que os peritos já tinham;
d) Inventários de 2012 a 2014 - que os peritos já tinham;
e) Inventários de matérias-primas dos anos de 2012 a 2014 – que os peritos já tinham.
- vide doc.s constantes de fls. 361 a 476.
20. Em contrapartida, o Colégio de Peritos nomeado nos autos, tal como os peritos nomeados pela P., nunca conseguiu ter acesso aos seguintes documentos, que eram essenciais para apurar com maior exactidão e rigor os valores dos prejuízos aqui em causa, porque a Autora/Recorrida nunca os forneceu:
a) Balancetes de entradas e saídas de todos os artigos dos últimos 10 anos – fls. 261;
b) Inventário Permanente da A./recorrida de nenhum ano – vide relatório de fls. 484 e sg.s;
c) Nenhuma contagem física das mercadorias fixas realizada pela A./recorrida – vide relatório de fls. 484 e sg.s,
21. PERANTE OS NOVOS DOCUMENTOS QUE LHE FORAM FORNECIDOS, O COLÉGIO DE PERITOS ELABOROU O RELATÓRIO PERICIAL FINAL - JUNTO A FLS. 484 E SEG.S - DE ONDE SE EXTRAI, ENTRE OUTRAS, A CONCLUSÃO QUE O TRIBUNAL RECORRIDO FEZ NOTAR NA SUA FUNDAMENTAÇÃO, de que: “fica reforçada a nossa convicção de que as listagens de stock e inventários apresentados (tanto para mercadorias como para as matérias primas), não correspondem à realidade, nem é possível saber que stock existia em qualquer momento. Esta conclusão, resumo, é ainda mais reforçada pela nossa constatação de que tais listagens e inventários não foram auditados nos respectivos anos, mais não sendo do que meros documentos da autoria da própria empresa, X” – pág. 25 da sentença.
22. Da conjugação destas conclusões unânimes do Colégio de Peritos, a que chegaram pela análise à exaustão dos documentos da contabilidade da Autora/Recorrida, depois de terem tido acesso a todos os documentos, que constam do primeiro relatório e que lhes foram fornecidos posteriormente, já na pendência do julgamento, bem como dos esclarecimentos prestados em sede de julgamento, resulta sem qualquer margem para dúvidas que, a partir da análise da documentação contabilística, não foi e não é possível saber que stock existia em qualquer momento no armazém da Autora, em particular aquando do incêndio!
23. Como é que então, face a tal impossibilidade que o Tribunal a quo reconhece na fundamentação da sentença, dá como provado no Facto 26 que “as existências destruídas no incêndio tinham um valor não inferior a € 143.682,00”, a que os Peritos da P. chegaram por estimativa, atenta a insuficiente e pouco credível documentação contabilística, que lhes foi fornecida? Muito inferior e bastante incompleta, face àquela que posteriormente foi fornecida ao Colégio de Peritos, já na pendencia dos autos?
24. Não podia o tribunal à quo simplesmente ter feito “tábua rasa” de todos os documentos, como as facturas e elementos da contabilidade que a A. forneceu aos peritos que realizaram a perícia colegial, na pendência dos autos, e que nunca foram fornecidos aos peritos da P. e que, por tal razão, não foram considerados nos estudos que fizeram, para apurar os vários cenários sobre as existências consumidas pelo sinistro.
25. O VALOR “REPRISTINADO” NA SENTENÇA COMO SENDO O VALOR POSSÍVEL DE EXISTÊNCIAS/MERCADORIAS – Facto 26 – FOI ENCONTRADO PELA P. NUM CENÁRIO DE ESTUDO, ELABORADO SOMENTE COM BASE NAS IES´S DE 2008 A 2013 que, conforme esclareceu o Perito M. F., à instância da M. Juíza – vide passagem gravada dos 00: 31: 04 a 00: 32: 00 dos seus esclarecimentos – ASSENTA EM PREMISSAS ERRADAS: SENDO AS IES´S OS VALORES GLOBAIS INDICADOS PELA A./RECORRIDA, COMO NÃO EXISTE UM INVENTÁRIO PERMANENTE, NEM FACTURAS ACTUAIS QUE PUDESSEM CONFIRMAR TAIS VALORES, AS LISTAGENS/INVENTÁRIOS QUE ANALISARAM, E QUE NÃO FORAM SUBMETIDAS À AT, NÃO PASSAM, TODOS, DE DOCUMENTOS ELABORADOS PELA A./RECORRIDA, SEM QUALQUER FIABILIDADE/VERDADE.
26. Daí as conclusões do Colégio de Peritos no relatório final que subscreveram, de que “nem é possível saber que stock existia em qualquer momento. Esta conclusão, resumo, é ainda mais reforçada pela nossa constatação de que tais listagens e inventários não foram auditados nos respectivos anos, mais não sendo do que meros documentos da autoria da própria empresa, X” – cfr. sentença, pág. 25.
27. Para ultrapassar a impossibilidade de apurar o valor das mercadorias consumidas pelo incêndio, a partir da contabilidade da lesada, o Tribunal recorrido decide, então, para dar como provado o facto 26, recorrer ao relatório da P., também ele elaborado a partir de documentação contabilística insuficiente e sem credibilidade, como reconhecido e fundamentado pelo Colégio de Peritos.
28. Conclui-se, pois, que a Recorrida partiu já para a produção de prova com um considerável adianto, já que, se não conseguisse fazer prova dos danos que reclamava, o Tribunal recorrido aproveitaria, então, o relatório que a Recorrente juntou de forma transparente e que mandou realizar ainda em fase extrajudicial, no qual são indicados valores prováveis, assentes em estimativa ou cenários, face à insuficiência da documentação contabilística fornecida no âmbito da averiguação.
29. MAIS: esses valores indicados pela P., foram sempre indicados de forma CONDICIONADA, pela falta dos elementos contabilísticos que a Autora/Recorrida nunca lhes forneceu, conforme ampla e repetidamente fizeram consignar no dito relatório e que foi, também, constatado pelo insuspeito Colégio de Peritos.
30. Daí a amplitude de possíveis números/cenários que apresentaram: e que ao Tribunal recorrido só mereceu credibilidade, enquanto forte probabilidade, na parte do cenário mais favorável à Autora, que, por alguma razão que lhe era certamente desfavorável, escondeu informação e documentos na elaboração dessa peritagem – provavelmente, para os Peritos da P. não chegarem à mesma conclusão final do Colégio de Peritos!
31. O Tribunal à quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provado no Facto 26 que “As existências referidas em 17) e destruídas no incêndio tinham um valor não inferior a € 143.682,00”, porquanto este valor corresponde a uma estimativa a que os Peritos da P. chegaram sobre tal dano, baseados na parca documentação contabilística que há data lhes foi fornecida pela Autora/recorrida, manifestamente inferior à que passados tantos anos foi fornecida ao Colégio de Peritos.
32. Não foi produzida prova testemunhal, documental e/ou pericial que permitisse validar este ou qualquer outro valor, a partir da documentação contabilística fornecida pela Autora/Recorrida, porquanto, como o Colégio de Peritos concluiu, a partir desses elementos não é possível saber que stock existia em qualquer momento, face à insuficiência e falta de credibilidade/idoneidade da informação contida na documentação contabilística fornecida pela lesada e à omissão de entrega de documentação essencial para tal avaliação.
33. Não se podendo deixar de realçar que, face ao ónus da prova de fazer prova dos prejuízos decorrentes do sinistro, que incumbia sobre a lesada, nos termos do art.º 342º do C. Civil e Clªa 20º das Condições Gerais do Contrato de Seguro, era do seu interesse fornecer toda a documentação credível que fosse útil para ultrapassar a impossibilidade que o Colégio de Peritos, unanimemente, declarou de se apurar o valor das mercadorias existentes em stock.
34. Na conjunção do supra exposto, requer-se a V. Exa que o erro de julgamento de que enferma a sentença recorrida, na consideração do Facto 26 como provado, seja sanado, retirando-se aquela factualidade do elenco dos Factos Provados.
35. Consequentemente, do Facto Provado n.º 27 deve ser alterado, retirando-se a parte “ De entre as mercadorias referidas em 26)”, passando a ter a seguinte redacção, pugnando-se pela necessária alteração em sede do presente recurso:
27) Nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de 36.363,75€”.
36. Além do erro de julgamento que supra se apontou na convicção formada sobre o Facto Provado n.º 26, PARECE-NOS EXISTIR AQUI UMA CONTRADIÇÃO INSANÁVEL NO QUE RESPEITA AOS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA E PASSÍVEL DE INTEGRAR A NULIDADE PREVISTA NO ART.º 615º, N.º 1, AL.ª C) DO CPC, já que:
a) Como é que se pode concluir no Facto 26 que a mercadoria destruída pelo incêndio, que necessariamente compunha os escombros, tinha um valor não inferior a 143.682,00€,
b) Quando, afinal, nos escombros havia mercadoria no valor de 36.363,75€, como está provado no Facto 27?
37. Verificada a impossibilidade de se apurar, a partir da documentação contabilística, o valor das mercadorias existentes em stock na data do sinistro (02-06-2015), deve-se retirar dessa impossibilidade a absolvição da Recorrente indemnizar esse dano – atenta a impossibilidade de quantificação do dano indemnizável e da consequente liquidação da obrigação a cargo da seguradora, emergente do contrato de seguro, como decorre do art.º 790º, n.º1 do C. Civil e da Clªa. 19ª e 20ª do Contrato de Seguro.
38. Isto porque a impossibilidade de se determinar o valor do dano indemnizável pela via adequada, que é a contabilística, é unicamente imputável à Credora/Recorrida, atenta a sua falta de colaboração em fornecer a documentação contabilística necessária para o efeito, além de ser responsável pela total falta de credibilidade da documentação fornecida, como o próprio Tribunal recorrido bem notou na fundamentação da sentença, aderindo às conclusões nesta matéria do Colégio de Peritos.
39. Sem prescindir, quando assim não se julgar, o valor da indemnização pelo prejuízo decorrente das mercadorias destruídas pelo incêndio, terá de ser fixado, então, no valor das mercadorias que existiam nos escombros, no valor de 36.363,75€, como provado está no Facto 27: este valor foi considerado à data com base numa inventariação física realizada a seguir ao sinistro, com base num levantamento das existências no local que terá sido efectuado minuciosamente – pág. 27 da sentença, 24 do relatório da P..
40. Este é um valor que, mais do que uma “forte probabilidade”, aferida a partir de elementos contabilísticos insuficientes e sem credibilidade, foi aferido pela avaliação feita através da inventariação física das mercadorias que, tendo sido consumidas pelo fogo, não há dúvidas que existiam nos escombros: razão pela qual, em razão da sua credibilidade, o Tribunal recorrido o deu como provado no Facto 27, e que, na insuficiência de outros critérios, deverá então ser o único valor a atender na fixação da obrigação de indemnizar as mercadorias danificadas pelo fogo e que, necessariamente, teriam de integrar os escombros inventariados à data.
41. A Autora é uma sociedade comercial, que adopta a forma de sociedade anónima – como resulta desde logo da sua denominação social - que tem como objecto social “instalações eléctricas, instalações e sistemas integrados de áudio e vídeo profissional, de alarme e segurança e telecomunicações, aquecimento, ventilação, ar condicionado, refrigeração e comércio a retalho de instrumentos e artigos musicais, aparelhos de som, televisão e vídeo, edição e reprodução de gravações de som, produção, gestão e organização de espectáculos teatrais e musicais”. – Facto Provado n.º 10, provado pelo teor da certidão permanente junto a fls.27 e ss., pág. 19 da sentença.
42. Enquanto sociedade comercial sob a forma anónima, sujeita ao regime de contabilidade organizada, a Autora/recorrida é um sujeito passivo de IVA, como decorre a contrario do art.º 9º do CIVA (Código do IVA), onde se prevêem as situações passiveis de isenções deste tributo, nas quais não se insere a actividade comercial da Autora/recorrida, pelo que o IVA liquidado com a indemnização dos valores que constam dos factos provados 13, 15 e 16 ser-lhe-á reembolsado posteriormente.
43. A regra geral é que quem liquida IVA numa operação activa, adquire o direito a deduzir o imposto a montante: em termos práticos, isto significa que a Autora/Recorrida – enquanto sociedade anónima e sendo um sujeito passivo de IVA, suporta o IVA aquando da aquisição dos bens ou serviços (no caso, os que se encontram provados nos n.ºs 13, 15 e 16 da sentença), podendo posteriormente processara sua dedução (recuperação) aquando da entrega da Declaração Periódica de IVA, entrando em conta corrente com o imposto liquidado e pago pelos clientes.
44. Assim, o valor de IVA apurado nos Factos Provados 13, 15 e 16 da sentença recorrida, não pode ser considerado como um dano decorrente do sinistro, reportado a um encargo ou custo que a Recorrida terá de suportar, porquanto enquanto sociedade anónima e, como tal, sujeito passivo de IVA - tal entendimento, resulta não só da lei e prática fiscais, mas também do entendimento que tem vindo a ser sufragado pelos Tribunais, em particular a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, citando-se a título exemplificativo o Acórdão de 12/09/2013, Proc. 372/08.9TBBCL.G1.S1, in www.dgsi.pt.
45. Na indemnização a fixar a final, nomeadamente no que respeita aos valores dos prejuízos fixados nos n.ºs 13, 15 e 16, deverá atender-se aos valores sem IVA, respectivamente, nos montantes de €69.395,38 + €9.914,17+ €19.470,00, a que corresponde o valor global de €98.779,55, assim se devendo rectificar os valores já fixados pela sentença recorrida, que considerou o valor daquele imposto, como impõe a boa aplicação das regras fiscais e o entendimento do STJ supra invocado e ao qual se há-de atender em cumprimento do art.º 8º, n.º3 do C. Civil, segundo as quais o IVA, sendo um imposto passível de dedução, não pode ser considerado como um prejuízo decorrente do sinistro, passível de indemnização: critério seguido pelos peritos da P., na estimativa destes prejuízos/danos indemnizáveis, na consideração dos valores provados nos Factos 13, 15 e 16 sem o IVA - cfr. pág. 23 do relatório.
46. Não ficou provado que, em momento anterior à propositura da presente acção, a Autora/Recorrida tenha interpelado a Recorrente com vista à concreta liquidação dos danos que considerava resultantes do sinistro, nomeadamente, por aceitar os valores a que os Peritos da P. tinham chegado no âmbito da averiguação realizada, a seguir ao sinistro: no Facto n.º 20), apenas se provou a interpelação remetida pela Autora/Recorrida à aqui Recorrente, no sentido de pedir esclarecimentos quanto ao motivo da recusa do sinistro.
47. Os valores peticionados para indemnização de mercadorias (322.821,05€) e dos prejuízos provados nos n.ºs 13, 15 e 16 (no valor global de 121.498,85€) são manifestamente superiores aos que foram fixados naquela peritagem, quanto às mercadorias, bem como quanto aos restantes itens, porquanto nunca foi considerado pelos Peritos da P. o valor do IVA, pelas razões supra expostas.
48. No domínio da responsabilidade contratual, com é o caso, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se ocorrer a circunstância prevista no art. 805, nº3, do C.C.
49. E estando aqui em causa um crédito emergente da verificação do risco abrangido pelo contrato de seguro – objectivado na ocorrência do sinistro – tal crédito, principalmente na ausência de acordo das partes (Lesado/Segurado e Segurador) sobre a verificação de um sinistro coberto pela apólice e os danos daí decorrentes, tal crédito indemnizatório da Segurada/Autora só se torna líquido a partir da decisão condenatória que o fixar - em abono deste entendimento, cita-se o Acórdão do STJ de 27-04-2005, Proc. 05A689, in www.dgsi.pt sobre um caso análogo.
50. Por outro lado, o crédito indemnizatório da Credora/Segurada nunca podia ser liquidado à data do sinistro, porquanto, nos termos definidos no contrato por via das suas cláusulas cujo teor foi dado como assente nos autos, a liquidação dos prejuízos indemnizáveis é necessariamente concretizada em sede das peritagens subsequentes, como decorre da Clª. 22ª das Condições Gerais do Contrato.
51.Por fim, e descendo dos critérios gerais ao caso em apreço, como o Tribunal recorrido bem notou na fundamentação da pág. 26 da sentença, a Autora/Recorrida manteve desde a peritagem realizada pela P., até à perícia colegial ordenada nos autos, um comportamento de total falta de colaboração com os Peritos, ao não fornecer a documentação necessária para se chegar à valorização dos prejuízos decorrentes do sinistro, já que as “queixas de falta de elementos” do Colégio de Peritos “vieram ao encontro às observações que os peritos da ré também já havia feito”.
52. Ora, nos termos da Clª. 19ª, n.º1 alínea b) das Condições Gerais do Contrato, a Segurada/Recorrida estava obrigada a “fornecer à Y Portugal as provas solicitadas, bem como os relatórios ou outros documentos que possua ou venha a obter” e que sejam necessários para se determinar o valor dos prejuízos indemnizáveis, em caso de sinistro,
53. E de acordo com a “Clª. 20º- Ónus da Prova” recaía sobre a Segurada/Recorrida o ónus de provar a veracidade da reclamação apresentada, nomeadamente, quanto aos prejuízos decorrentes do sinistro, “podendo a Y Portugal exigir-lhe os meios de prova que estejam ao seu alcance”, sob pena de, caso tal dever de colaboração da Segurada/Recorrida não ser cumprido – como ocorreu no caso em apreço – a Seguradora/Recorrida poder declinar a sua responsabilidade, nos termos do n.º2 da mesma cláusula.
54. Face ao exposto, resultando dos autos que a Segurada/Recorrida não forneceu a documentação que tinha em seu poder e que era necessária à quantificação dos prejuízos decorrentes do sinistro, assim impossibilitando a liquidação do seu crédito indemnizatório em momento anterior à decisão final a proferir nestes autos, nos termos dos artºs 804º, nº 1, 805º, nºs 3, 806º, nºs 1 e 2, todos do C. Civil, e das Cláusulas Contratuais supra elencadas, a sentença recorrida deve ser revogada na parte em que condenou a Recorrente a pagar juros de mora desde a data do sinistro, sendo apenas devidos juros de mora contados desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória, no âmbito da qual o crédito indemnizatório emergente do incêndio objecto dos autos será certo, liquido e exigível, como bem se refere na jurisprudência supra citada.
55. Por requerimento junto aos autos via citius em 02/ 22/2020, a aqui Recorrente, para os fins próprios e legais, deu conhecimento da notificação de Agente de Execução por si recebida, nos termos do art.º 773º do CPC e no âmbito da execução que corre termos com o n.º 3704/20.8T8GMR, pelo Juízo de Execução de Guimarães - Juiz 2, de penhora do crédito "que o executado X-Sistemas Integrados, S.A., nif.........., detém ou venha a deter em consequência do P:1505/17.0T8GMR do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz4, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 96.073,82Euros." - cfr. notificação junta com o referido requerimento.
56. Tal notificação, seu teor e autenticidade, não foi impugnada e/ou objecto de qualquer reserva da Recorrida, Executada nos autos de onde emerge a penhora do crédito indemnizatório a fixar na presente acção, pelo que na decisão a proferir nestes autos deverá ser declarado penhorado o valor da condenação aqui fixada a final, até ao montante de 96.073,82€, para assim dar cumprimento à penhora ordenada nos termos e com os limites do art.º 773º do CPC, no âmbito da execução supra identificada, ficando assim a aqui Recorrente apenas obrigada a pagar à Recorrida o valor remanescente da condenação a fixar a final, após pagamento do valor penhorado e à ordem do Agente de Execução.
57. Sem prescindir, caso V. Exas julguem que tal declaração só poderá ser admitida quando sustentada pelo necessário suporte factual, requer-se que a Matéria de Facto Provada seja ampliada com o seguinte aditamento, sustentado pela prova documental idónea do mesmo - notificação de agente de Execução - junta com o requerimento a que se alude em 55: "O crédito indemnizatório da Autora que venha a ser fixado nestes autos, encontra-se penhorado até ao valor de 96.073,82€, no âmbito da execução contra ela movida e que corre termos com o n.º 3704/20.8T8GMR, pelos Juízos de Execução de Guimarães, Juiz 2".
Termos em que, com o sempre muito douto suprimento de V. Exas, o presente recurso deve ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida nos termos supra expostos e requeridos, assim se fazendo JUSTIÇA!».
*
A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
**

1.4. Questões a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são questões a decidir:
i) Nulidade da decisão recorrida por contradição dos «fundamentos da sentença» (conclusão 36ª);
ii) Erro no julgamento da matéria de facto, no que respeita aos pontos nºs 26 e 27 dos factos provados (conclusões 1ª a 35ª);
iii) Ampliação da matéria de facto provada através do aditamento de um ponto que mencione a penhora do crédito indemnizatório emergente dos presentes autos (conclusão 57ª);
iv) Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto preconizada pela Recorrente, saber se a acção deve ser julgada improcedente, o que envolve a resolução das seguintes questões:
a) Impossibilidade de apuramento, a partir da documentação contabilística, do valor das mercadorias existentes em stock na data do sinistro (02-06-2015) e respectivas repercussões;
b) Indevida consideração do IVA, para efeito dos valores indemnizatórios fixados na sentença recorrida;
c) Infundada condenação no pagamento de juros de mora a contar da data do incêndio, em vez de serem contados a partir do trânsito em julgado da sentença.
***

II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

1) Por escrito datado de 25 de Março de 2015, a autora e a ré acordaram na celebração do acordo de vontades junto a fls. 11 ss., cujo teor se dá por reproduzido, por via do qual a segunda assumiu a responsabilidade pelas “coberturas” e “riscos” ali mencionados, mediante o pagamento de um valor anual, que as partes denominaram de prémio.
2) O referido acordo teve por objecto um pavilhão para armazém e indústria de R/ch e 1º andar de um prédio constituído em propriedade horizontal, pavilhão esse sito na Zona Industrial …, Lote …, na freguesia ...., concelho de Guimarães, inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia .... sob o artigo … e descrito na competente Conservatória de Registo Predial sob o nº …, pertencente à ora autora.
3) Nas “condições particulares” subscritas no âmbito do acordo de vontades referido em 1) foi consignado, entre o demais, o seguinte:
a. Nº Apólice: …. - Em vigor desde as 00:00 horas de 19.03.2015 até às 24:00 horas de 18.03.2016. A apólice é automática e anualmente renovável, a partir de 19.03.2016.
b. Mediador “E. C., Ld.ª” (…) …..@gmail.com
c. Segurado X Sistemas Integrados, S.A., Av. … Guimarães, NIF ..........
d. Risco Seguro Atividade: Armazém de máquinas eléctricas e electrónicas, electrodomésticos (linha branca) e de instrumentos e aparelhos de precisão. Morada: ZN Industrial … Lote …. Localidade: …, Guimarães.
e. Características do risco seguro e descrição das proteções: Materiais construtivos (mais de 90% da estrutura é em betão, alvenaria ou em metal protegido; mais de 90% do remate é constituído por materiais incombustíveis; mais de 90% da cobertura é constituída por materiais incombustíveis; as divisórias interiores e os tectos falsos são em materiais incombustíveis ou inexistentes; (…); a superfície coberta onde se encontram os bens objecto de seguro tem menos de 1.000 metros quadrados; não se realizam actividades complementares (carpintaria, embalagem, produção ou armazenamento de plásticos, soldadura e pintura ou envernizamento) ou ocupam no seu conjunto menos de quinze por cento da área total do risco. Sem vigilância e Bombeiros Públicos a menos de 15 Km; o risco dispõe das seguintes protecções: Extintores; todas as entradas possuem portas metálicas ou de madeira com fechaduras de segurança adequadas e/ou grades fixas em ferro nas janelas ou outros locais de fácil acesso.
f. Bens e capitais seguros: imóvel - 200.000 euros; mercadorias fixas - 335.000 euros.
g. Outros valores: a faturação anual, conforme declarado pelo Tomador de Seguro, é de 25.000,00 euros, que servirá como base de cálculo para estabelecer o prémio de responsabilidade civil.
h. Coberturas, limites de indemnização e franquias: as coberturas, limites de indemnização e franquias aplicáveis ao presente contrato são as abaixo indicadas, tendo em conta, para cada uma das coberturas, o indicado no artigo 4º, conforme condições gerais.
i. Coberturas Capital Seguro Limite de Indemnização: Incêndio, queda de raio e explosão - 100% Imóvel/Mercadorias; (…) Danos por água - 100% Imóvel/Mercadorias
j. Fenómenos atmosféricos e riscos complementares - 100% Imóvel/Mercadorias; Quebra de vidros - 3.000 euros em primeiro risco; Quebra ou queda de antenas - 3.000 euros em primeiro risco; Quebra ou queda de painéis solares - 3.000 euros; Furto ou roubo - 335.000 euros; Riscos elétricos - 5.000 euros em primeiro risco; Fenómenos sísmicos - Imóvel - 100% Imóvel: Aluimentos de terras - 100% Imóvel/Mercadorias; Responsabilidade civil exploração - 100.000 euros;
k. Riscos Cobertos Franquias: (…) Danos por água 10% Mín. 75 euros; Fenómenos atmosféricos e riscos complementares 10% Mín. 75 euros; Quebra de vidros 200 euros; (…); Riscos elétricos 10% Mín. 75 euros.
l. Prémio anual da apólice: 654,29 € (a este montante acresce o valor correspondente aos encargos e encargos legais). Período: de 19.03.2015 a 18.03.2016; (…) Encargos 0,00€; Encargos Legais 84,41€.
m. Especificações: no local de risco estão armazenadas ferramentas próprias da atividade, bastidores, telas, retroprojetores, equipamentos de som e imagem.
4) No pavilhão, a autora armazenava equipamentos e materiais atinentes ao exercício de actividades compreendidas no seu objecto social, bem como equipamentos e objectos próprios da actividade, a saber: equipamentos de áudio e vídeo profissional, instrumentos musicais, discos, cassetes, produtos similares, aparelhos de rádio, televisão e vídeo, bem como outros sistemas de gravação e reprodução de som e imagem, bastidores, telas e retroprojectores.
5) Nos termos do artigo 4º das condições gerais, sob a epígrafe “Coberturas Incêndio, Queda de raio e explosão” – Âmbito da cobertura, foi consignado, entre o demais, o seguinte:
i. «Ficam cobertos por este contrato os danos causados aos bens seguros, em consequência de incêndio ou meios empregues para o combater, calor, fumo ou vapor resultantes imediatamente de incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás previstos.
ii. Para efeitos da garantia prevista nesta Cobertura entende-se por: 1. Incêndio: Combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios; 2. Queda de Raio e sua Ação Mecânica: Descarga atmosférica ocorrida entre a nuvem e o solo, consistindo em um ou mais impulsos de corrente que conferem ao fenómeno uma luminosidade característica (raio) e que provoque deformações mecânicas permanentes nos bens seguros. Não se consideram como queda de raio os efeitos diretos de corrente elétrica, em aparelhos, instalações elétricas e seus acessórios, nomeadamente sobretensão e sobreintensidade, incluindo os produzidos pela eletricidade atmosférica e curto-circuito, ainda que nos mesmos se produza um incêndio.
6) No ponto 4) da cláusula A.3. do artigo 4º das condições gerais ficou consignado o seguinte: «Em consequência de um sinistro indemnizável ao abrigo do presente contrato, ficam ainda garantidas as seguintes extensões de cobertura, até ao limite máximo de 10 (dez) por cento do capital seguro para o Imóvel, Conteúdo e/ou Mercadorias, conforme o que estiver contratado: “As despesas com a privação temporária de uso do local seguro, durante o período indispensável à reinstalação do Segurado, sem nunca poder exceder 12 (doze) meses, em consequência das obras de reparação dos danos resultantes de sinistro garantido pela apólice. São também garantidas as despesas documentalmente comprovadas, em que o Segurado tenha de incorrer com o transporte dos bens seguros não destruídos e com o respetivo arrendamento de imóvel similar ao danificado, deduzindo-se à indemnização o valor do arrendamento deste último, se for arrendado e o Segurado não for legalmente obrigado ao seu pagamento durante o período das obras. Ficam igualmente incluídas as despesas com a publicação em diários e em periódicos de anúncios a comunicar a mudança provisória de instalações. O montante máximo de indemnização ao abrigo desta cobertura é de 25.000,00 euros».
7) Sob a epígrafe “DEFINIÇÕES” (do artigo 2º), foi consignado nas condições gerais o seguinte: a) Imóvel: O conjunto de construções principais e obras anexas, constituídas por fundações, estruturas, acabamentos, coberturas, tetos, chaminés, galerias de serviço, instalações fixas, tais como as de aquecimento, ar condicionado, água, eletricidade e gás, as telefónicas, esgotos, prevenção contra incêndio e roubo e em geral tudo aquilo que constitui o edifício ou local designado nas condições particulares. Salvo convenção em contrário ficam incluídos os muros que delimitem o recinto onde se encontra o edifício e as obras seguras anexas, as torres de suporte de linhas elétricas, os estacionamentos e as instalações recreativas, desde que se encontrem situados no mesmo edifício ou recinto. Consideram-se ainda como fazendo parte do imóvel as obras civis onde assenta a maquinaria, as marquises e varandas, os terraços cobertos, os tetos falsos, papéis pintados e madeiras aderidas a solos, paredes e tetos, sempre que pertençam ao proprietário do edifício. Se o Tomador de Seguro segurar o edifício na qualidade de coproprietário, as garantias do Contrato aplicam-se, para além das partes de sua exclusiva propriedade, à proporção que lhe corresponda nas partes comuns, incluindo as antenas coletivas de rádio e televisão, caso se verifique insuficiente o seguro estabelecido por conta comum dos co-proprietários ou em caso de inexistência deste. Consideram-se também incluídos os pavimentos e estradas interiores do recinto quando o seu valor não supere vinte e cinco por cento do valor do edifício. Não se considera como fazendo parte do imóvel, o terreno, nem os custos de preparação ou modificação do mesmo. b) Benfeitorias: São obras realizadas pelo Segurado para modificar, melhorar e adaptar o imóvel por ele ocupado, de que não é proprietário, e que consistem em obras civis para assentar a maquinaria, marquises e varandas, terraços cobertos, tetos falsos, papéis pintados e madeiras aderidas a solos, paredes e tetos e bem assim como, outras melhorias e reformas efetuadas para adequar os imóveis, locais, anexos e terrenos à sua atividade. c) Conteúdos: O conjunto de bens móveis inseridos e utilizados tanto em indústrias como em escritórios, laboratórios, armazéns e secções anexas; máquinas tanto mecânicas, elétricas como eletrónicas e obras civis onde estas assentam e seus acessórios; instalações não fixas (elétricas, telefónicas, prevenção e extinção de incêndios e de roubo); reclames tanto interiores como exteriores; utensílios e ferramentas de trabalho desde que tenham utilização direta com a profissão ou atividade segura. Não se considera conteúdo: i. Aeronaves (…) ii. Embarcações (…) iii. Veículos terrestres a motor (…); iv. Bens e instalações localizados em cima, dentro e debaixo de água ("offshore"), incluindo cabos de telecomunicações submarinos. v. Bens situados dentro de minas subterrâneas, cavernas e túneis. vi. Plantas, relva e arbustos. No entanto, poder-se-á considerar parte do conteúdo e seguras contra o risco de incêndio, as plantas ornamentais que se encontrem no interior do imóvel seguro, ou quando dentro de recinto empresarial até ao limite de 30.000 Euros. vii. Água (exceto a que faça parte do Sistema de Combate a Incêndio). viii. Bens propriedade de terceiros enquanto à custódia, ao cuidado e controle do Tomador e / ou Segurado, exceto quando devidamente descritos e valorizados nas Condições Particulares. ix. Objetos artísticos, históricos, pedras e metais preciosos, salvo quando devidamente indicados e valorizado nas Condições Particulares. x. Coleções filatélicas e numismáticas ou quaisquer outros objetos de valor, peles, aparelhos de vídeo e som, salvo quando devidamente indicados e valorizado nas Condições Particulares. xi. Títulos públicos ou privados, cheques, dinheiro, valores e qualquer documento ou recibo representante de um valor ou garantia monetária, exceto quando contratada a respetiva Cobertura Especial e desde que devidamente discriminados e valorizados nas Condições Particulares do Contrato. c) Mercadorias e/ou Existências: i. Fixas: O conjunto de matérias-primas, produtos em processo de fabricação e acabados, conjuntamente com as embalagens e demais artigos publicitários ou de propaganda destinados à sua comercialização, assim como todas as matérias auxiliares, tanto próprias como de terceiros, que sejam necessárias como consequência da atividade segura; ii. Flutuantes: São as existências e/ou mercadorias, que adicionadas às quantidades fixas, definidas na Apólice com o mesmo conceito, constituem a soma segura até à qual fica coberto o risco destes bens. São estabelecidas em Condição Especial as regras que regulam estsa epígrafe. Não se consideram Existências e/ou Mercadorias: iii. Os arvoredos, as plantações e os animais vivos. iv. Bens propriedade de terceiros enquanto estiverem à custódia, ao cuidado e/ou controle do Tomador e / ou Segurado, exceto quando devidamente descritos e valorizados nas Condições Particulares.
8) Sob a epígrafe “Exclusões” (artigo 5º), foi consignado nas condições gerais o seguinte: «Não ficam garantidos, em caso algum, mesmo que se tenha verificado a ocorrência de qualquer sinistro garantido pelos riscos cobertos pelo presente contrato, os prejuízos que derivem, direta ou indiretamente, ou ocorram durante ou na sequência de: (…) f) Actos ou omissões dolosas ou má-fé do segurado, seus representantes (…). Entende—se por acto doloso, todo o acto intencional, praticado com o intuito de produzir dano ou com a representação de possibilidade desse resultado».
9) Sob a epígrafe Indemnizações - Determinação de Prejuízos (artigo 22º) foi consignado, nas condições gerais, o seguinte: «[e]m caso de sinistro, a avaliação dos bens seguros e dos respectivos prejuízos será feita entre o Segurado - ainda que o seguro produza efeitos a favor de terceiros - e a Y Portugal, observando-se, para o efeito, os critérios aplicáveis no Art. 9.º (Capital Seguro) para a determinação do capital seguro sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo anterior. 2. Se o capital seguro pelo presente contrato for, na data do sinistro, inferior ao valor dos bens seguros determinado nos termos do Art.º 9.º (Capital Seguro), o Segurado responderá pela parte proporcional dos prejuízos, como se fosse Segurador do excedente. Sendo, pelo contrário, tal quantia superior, o seguro só é válido até à concorrência do valor das coisas, igualmente determinado nos termos do referido no Art.º 9.º (Capital Seguro). 3. Segurando-se diversas coisas por quantias e verbas designadas separadamente, os preceitos do número anterior são aplicáveis a cada uma delas, como se fossem seguros distintos, salvo se se estipular diferentemente nas Condições Particulares».
10) Aquando do referido em 1), da certidão permanente da autora constava o seguinte “objecto”: “instalações eléctricas, instalações e sistemas integrados de áudio e vídeo profissional, de alarme e segurança e telecomunicações, aquecimento, ventilação, ar condicionado, refrigeração e comércio a retalho de instrumentos e artigos musicais, aparelhos de som, televisão e vídeo, edição e reprodução de gravações de som, produção, gestão e organização de espectáculos teatrais e musicais”.
11) Em 01.06.2015, cerca das 05h50, deflagrou um incêndio no pavilhão referido em 2).
12) O incêndio causou danos na estrutura do edifício ao nível das paredes, dos tectos, das divisões e vãos interiores e exteriores, no pavimento, nas janelas, portas, tornando-se necessário, para a sua reparação e reposição da situação anterior, trabalhos de limpeza, picagem, remoção e colocação de novo reboco, picagem e selagem de fendas, regularização com betonilha, remoção e colocação de novo tecto falso, aplicação de pintura, substituição das janelas exteriores, das portas interiores, aplicação e pintura de novas divisões de pladur.
13) O preço da intervenção para reabilitação dos danos causados na estrutura do edifício ascende à quantia de € 69.395,38, a que acresce ainda o IVA à taxa legal de 23%, o que perfaz o valor global de € 85.356,32.
14) A instalação eléctrica do pavilhão da autora ficou danificada, seja ao nível do rés-do-chão (armaduras de suporte das lâmpadas, lâmpadas, armaduras de emergência, calhas, tomadas, tubo de protecção mecânica, abraçadeiras, circuito trifásico para alimentar monta cargas, interruptores, comutador, cabos e quadro), seja ao nível do andar (armaduras de suporte das lâmpadas, lâmpadas, armaduras estanques, comutadores, bucins, caixas de derivação plexo legrand, tubos, tomadas, tubo de protecção mecânica, abraçadeiras, intercomunicador, instalação projecto ITED, quadro geral e quadro parcial Q.P.2.
15) A reparação e substituição do equipamento danificado e respectiva mão-de-obra ascendem a € 9.914,17, a que acresce o IVA à taxa legal de 23%, perfazendo o valor global de € 12.194,43.
16) A plataforma de carga existente no pavilhão sofreu danos em virtude do incêndio, não apresentando condições de ser reparada de modo a ficar a funcionar em segurança, ascendendo a sua substituição ao preço de € 19.470,00, a que acresce IVA à taxa legal de 23%, o que perfaz o valor global de € 23.948,10.
17) À data da deflagração do incêndio, a autora tinha armazenado/guardado no referido pavilhão mercadorias atinentes ao seu comércio, que foram destruídos pelas chamas e ou pelas manobras dirigidas ao seu combate.
18) A autora deu imediato conhecimento do sinistro ao mediador de seguros com quem contratara o seguro, através de participação preenchida em 1 de Junho de 2015, posteriormente enviada para a ré.
19) A ré declinou a responsabilidade numa carta datada de 17 de Novembro de 2015, com o seguinte teor: «Vimos por este meio apresentar a nossa posição referente ao processo de sinistro em assunto. Após análise da participação de sinistro que nos remeteu e do relatório de peritagem, não se verificaram os pressupostos para enquadramento na cobertura de incêndio, pelo que estamos a declinar o sinistro. Face ao exposto, procedemos na presente data ao encerramento do processo».
20) Na sequência do envio da carta referida em 19), após um pedido de esclarecimentos quanto aos motivos da recusa, a ré enviou à autora a carta junta a fls. 78, datada de 14 de Março de 2016, na qual refere, entre o demais, o seguinte: «(…) não foram cumpridos os pressupostos de incêndio que nos permitam acionar a cobertura da apólice. De facto, reapreciada a tomada de posição, verificamos que por lapso não foi transcrita na carta de tomada de posição a definição de incêndio que consta das condições gerais da apólice, a qual passamos de seguida a transcrever: “Para efeitos de garantia prevista nesta cobertura entende-se por 1. Incêndio: Combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios».
21) Quando novamente interpelada para esclarecer por que razão considerava este sinistro excluído da cobertura, a ré respondeu nos termos referidos no e-mail de fls. 80, datado de 4 de Maio de 2016, onde refere, entre o demais, o seguinte: «[r]elativamente ao sinistro em apreço, após reapreciação dos elementos recolhidos na regularização do mesmo e aos elementos que nos envia, informamos que iremos manter a posição anteriormente assumida. No entanto, mantemo-nos ao dispor para analisar documentação que nos envie e que faça prova de facto diferente daquele que indicamos na nossa tomada de posição. Quanto ao relatório de peritagem [que a autora lhe solicitara] informamos que o mesmo é um documento confidencial».
22) Não foram ainda realizados os trabalhos de reparação/substituição do pavilhão referido em 2) e 11).
23) O estado em que o referido pavilhão ficou na sequência do incêndio inviabiliza a sua utilização como armazém.
24) A autora mantém a actividade de escritório no local onde já a exercia antes do incêndio, na mesma cidade.
25) Se a autora arrendasse um pavilhão industrial com características para o armazenamento que fazia no pavilhão referido em 1), suportaria um custo não inferior a € 500,00/mês.
26) As existências referidas em 17) e destruídas no incêndio tinham um valor não inferior a € 143.682,00.
27) De entre as existências referidas em 26), nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de € 36.363,75.
28) As câmaras de vigilância do pavilhão não funcionavam, desde data não concretamente apurada.
29) No exercício da sua actividade, por vezes a ré socorre-se de produtos para remoção de tintas, vernizes e gorduras dos equipamentos».
*
2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:

«a) Que o incêndio tivesse sido provocado voluntariamente e por acção do homem.
b) Que a ré tenha alguma vez referido à ora autora que a razão da recusa de cobertura se devia ao facto de considerar que o incêndio não era acidental, antes fora provocado.
c) Que os bens armazenados no referido pavilhão que foram destruídos pelas chamas e ou pelas manobras dirigidas ao seu combate tivessem um valor de € 292.153,95.
d) Que 2/3 dos bens existentes nas instalações da autora pertencessem a duas outras sociedades.
e) Que o impacto visual causado pelos danos sofridos pelo edifício em virtude do sinistro tenha prejudicado e prejudique a imagem comercial da autora, repercutindo-se negativamente no seu negócio, causando um decréscimo nas vendas.
f) Que, desde a data do incêndio, a autora esteja a ocupar um outro espaço físico, situado na mesma zona industrial, suportado alguma renda por essa ocupação.
g) Que o custo do arrendamento de um pavilhão industrial com as características, área e localização do referido em 2) seja de € 2.500,00 por mês.
h) Que outros ocupantes do pavilhão referido em 2) tenham reclamado uma indemnização da ré.
i) Que algum dos pisos do pavilhão referido em 2) tenha sido excluído do seguro.
j) Que o incêndio tenha ocorrido em área distinta da área coberta referida em 2).
k) Que alguma área do pavilhão referido em 2) seja ocupada por área comum a outros proprietários ou condóminos.
l) Que o pavilhão referido em 2) tivesse no seu interior, à data do sinistro, bens pertencentes às sociedades “K – Importação e Distribuição de Instrumentos Musicais, Ld.ª” e X SGPS, S.A.
m) Que à data do incêndio, o pavilhão estivesse à venda e a ora autora estivesse em situação de insolvência».
**

2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Nulidade da sentença por contradição dos fundamentos

Na conclusão 36ª das suas alegações, a Recorrente alega existir «uma contradição insanável no que respeita aos fundamentos da sentença e passível de integrar a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, al.ª c) do CPC».

Dispõe o artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC que é nula a sentença quando «os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Se na fundamentação da sentença o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos.
No fundo, para se verificar esta nulidade é necessário que a fundamentação aponte num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se. Esta nulidade, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal. Se decide mal, o que existe é erro de julgamento e não oposição causadora de nulidade da sentença.
Por outro lado, quanto à obscuridade ou ambiguidade, nas palavras de Alberto dos Reis (2), «a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz».
Assim, de harmonia com estes ensinamentos, sintetizando, a decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.
E a decisão judicial só é ininteligível se um declaratário normal, nos termos dos artigos 236º, nº 1, e 238º, nº 1, ambos do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de se socorrer da fundamentação para a interpretar (3).

A Recorrente invoca a nulidade da sentença por contradição «no que respeita aos fundamentos da sentença» formulando uma pergunta:
«a) Como é que se pode concluir no Facto 26 que a mercadoria destruída pelo incêndio, que necessariamente compunha os escombros, tinha um valor não inferior a 143.682,00€,
b) Quando, afinal, nos escombros havia mercadoria no valor de 36.363,75€, como está provado no Facto 27?».
Liminarmente, não se descortina na argumentação da Recorrente qualquer motivo plausível para se considerar que «os fundamentos estejam oposição com a decisão», que é a hipótese prevista na primeira parte da alínea c) do nº 1, do artigo 615º do CPC. Percorrida toda a sentença, não se constata que a fundamentação aponte num certo sentido que seja contraditório com o que vem a decidir-se.
Depois, importa ter em conta que actualmente, como a sentença contém tanto a decisão sobre as questões de direito como a decisão sobre a matéria de facto, pode emergir da decisão da matéria de facto um vício semelhante ao referido no artigo 615º, nº 1, al. c), do CPC.
Porém, o regime e respectivas consequências não são inteiramente coincidentes, uma vez que a invocação dos vícios da decisão sobre a matéria de facto é feita nos termos do artigo 640º do CPC, não decorrendo necessariamente do reconhecimento dos mesmos a anulação da decisão. Isto porque em regra a Relação, em recurso, substitui-se ao tribunal recorrido (4), sendo que nas restantes situações rege o artigo 662º, nºs 2 e 3, do CPC.
Acresce que aquilo que se aponta na conclusão 36ª, mais do que uma contradição, é um erro de julgamento na decisão relativa à matéria de facto, quanto aos pontos 26 e 27.
Ora, o erro de julgamento da decisão sobre a matéria de facto não integra a causa de nulidade da sentença prevista na 1ª parte da alínea c) do artigo 615º do CPC. Tal como já se referiu atrás, esse vício tem um remédio processual específico, que é a impugnação da matéria de facto, a efectuar nos termos do artigo 640º, nº 1, do CPC.
Como a Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto quanto aos invocados pontos 26 e 27, é nesse âmbito que deve ser apreciado o alegado erro.

Resta a questão da eventual ambiguidade ou obscuridade resultante do confronto entre os pontos 26 e 27 dos factos provados.
O Tribunal a quo deu como demonstrado, no ponto nº 17, que «à data da deflagração do incêndio, a autora tinha armazenado/guardado no referido pavilhão mercadorias atinentes ao seu comércio, que foram destruídos pelas chamas e ou pelas manobras dirigidas ao seu combate». O ponto nº 26 versa precisamente sobre essas mercadorias que foram destruídas, seja pelas chamas ou pelas manobras de combate ao incêndio, referindo que «as existências referidas em 17) e destruídas no incêndio tinham um valor não inferior a € 143.682,00». Já no ponto nº 27 fez-se constar que «de entre as existências referidas em 26), nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de € 36.363,75».
Da simples leitura dos dois pontos de facto resulta a conclusão de que nos mesmos não consta a atribuição à mercadoria destruída de dois valores diferentes - € 143.682,00 e € 36.363,75. Pura e simplesmente, no ponto nº 26 refere-se qual o valor de toda a mercadoria destruída (€ 143.682,00), enquanto no ponto nº 27 apenas consta o valor da mercadoria que se conseguiu identificar nos escombros (€ 36.363,75). Mas isso não significa que a mercadoria que se conseguiu reconhecer nos escombros corresponda à totalidade da mercadoria destruída. O ponto nº 26 refere-se à totalidade enquanto no ponto nº 27, na tese do Tribunal a quo, consta apenas uma parte daquela globalidade: o primeiro versa sobre a totalidade e o segundo sobre uma realidade contida naquela mas de menor dimensão.
Como bem se enfatizou no despacho que admitiu o recurso, o Tribunal a quo considerou que havia «bens perdidos cuja identificação nos escombros não se logrou», salientando que «[a] circunstância de não se ter feito coincidir o apurado nos escombros com o dano é o que funda a restante alegação da recorrente quando aponta para o erro de julgamento. Efectivamente, não há nulidade alguma, antes sim uma divergência na valoração da prova: a recorrente entende que o tribunal não poderia considerar que o dano era superior ao que se conseguiu identificar nos escombros. Já o tribunal considerou que esse dano seria superior».
Termos em que improcede a arguição de nulidade da sentença com o aludido fundamento.
*

2.2.2. Impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.2.1. Em sede de recurso, a Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Conforme expressamente indicou nas conclusões 1ª, 31ª, 34ª e 35ª das suas alegações, a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos de facto nºs 26 e 27 dos factos provados.
Pretende que a matéria do ponto de facto nº 26 seja considerada não provada (conclusões 34ª) e que o ponto de facto nº 27 passe a ter a seguinte redacção:

«27) Nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de 36.363,75€» (conclusão 35ª).
*

2.2.2.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise dos relatórios periciais, dos esclarecimentos dos peritos prestados por escrito e dos documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação dos esclarecimentos verbais dos peritos J. G. (economista), A. O. (contabilista), M. F. (contabilista) e M. R. (bioquímico e professor da Universidade de …), das declarações de parte do legal representante da Autora – F. S. – e dos depoimentos das testemunhas A. E. (sócio da mediadora de seguros que exerce essa actividade relativamente aos seguros da Autora), F. F. (bombeiro que interveio no combate ao incêndio e que foi o primeiro a chegar ao local), R. S. (trabalhador da Autora desde há 25 anos, mas desde 2014 que está contratualmente ligado à empresa W), C. C. (trabalhadora da Autora no período de 2009 a 2014), A. J. (trabalhador da empresa que instalou o monta-cargas existente nas instalações da Autora; elaborou um relatório técnico sobre o estado do monta-cargas após o incêndio e elaborou o orçamento para a respectiva substituição), E. R. (prestou serviços do ramo da electricidade para a Autora - instalação eléctrica), P. P. (é funcionário da sociedade … – Sociedade de Construções J. S., Lda., e deslocou-se ao pavilhão em causa nos autos, juntamente com um engenheiro, com vista à elaboração do orçamento junto a fls. 34 verso e 35, para a Autora), A. F. (militar da GNR que, com outro colega, esteve no local onde se situa o armazém no dia do incêndio), C. N. (professor da Faculdade de Ciências da Universidade do …; elaborou o relatório técnico às causas do incêndio a pedido da empresa P.), F. N. (é engenheiro electrotécnico, trabalha para a P. há 21 anos e realizou, com outro colega, a averiguação solicitada pela Ré, sendo o co-autor do relatório da peritagem da P. junto com a contestação) e A. T. (trabalha para a Ré desde 1997, na área da análise e gestão de sinistros).
Procedeu-se ainda à audição das alegações orais das Exmas. Advogadas das partes, para melhor compreensão da interpretação que fizeram da prova produzida e das questões factuais objecto da impugnação.
*

2.2.2.3. Pontos de facto nºs 26 e 27 dos factos provados

Nestes pontos da matéria de facto, o Tribunal recorrido deu como provado que:

«26) As existências referidas em 17) e destruídas no incêndio tinham um valor não inferior a € 143.682,00.
27) De entre as existências referidas em 26), nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de € 36.363,75».
O essencial da argumentação da Recorrente dirige-se à impugnação do ponto nº 26, que entende dever ser considerado não provado, uma vez que a alteração preconizada relativamente ao ponto nº 27, traduzida na retirada da «parte “De entre as mercadorias referidas em 26)”» (v. conclusão 35ª), é uma consequência directa da requerida procedência da impugnação da decisão relativamente ao ponto de facto nº 26. Se o ponto nº 26 for considerado não provado, naturalmente que nenhuma referência pode constar do ponto nº 27 a um facto não demonstrado.
Daí que esteja essencialmente em causa a matéria do ponto nº 26, ou seja, a questão factual de saber se as existências que a Autora tinha armazenadas no seu pavilhão, destruídas no incêndio, tinham um valor não inferior a € 143.682,00.

Alega a Recorrente que o Tribunal recorrido, «para ultrapassar a impossibilidade de apurar o valor das mercadorias consumidas pelo incêndio, a partir da contabilidade da lesada», «decide, então, para dar como provado o facto 26, recorrer ao relatório da P., também ele elaborado a partir de documentação contabilística insuficiente e sem credibilidade, como reconhecido e fundamentado pelo Colégio de Peritos».
Sustenta que «esses valores indicados pela P., foram sempre indicados de forma CONDICIONADA, pela falta dos elementos contabilísticos que a Autora/Recorrida nunca lhes forneceu, conforme ampla e repetidamente fizeram consignar no dito relatório e que foi, também, constatado pelo insuspeito Colégio de Peritos».
Mais argumenta que «o próprio Tribunal recorrido reconhece na fundamentação da sentença que eram fundadas as queixas dos Peritos da Ré, sobre o facto de não terem sido fornecidos “pela autora, aos peritos da ré, os documentos necessários à quantificação das existências”, além de que as conclusões vertidas no seu relatório, sobre os cenários relativos a valores prováveis para o dano das existências/mercadorias, foram sustentados em documentação contabilística, que o Colégio de Peritos nomeado nos autos considerou insuficiente e pouco credível - pág. 25 e 26 da sentença recorrida».
*
O Tribunal recorrido motivou a decisão de dar como provado o ponto de facto nº 26 nos seguintes termos:

«O tribunal não ficou com dúvidas de que havia equipamentos e mercadorias armazenados no pavilhão, como se refere em 17) e em 4) – desde logo, por um lado é coerente com o seu objecto social – vd. Artigo 10º dos factos provados -, por outro, isso foi mencionado nas “especificações”.
Mais difícil foi quantificar [artigo 26)].
Concretizando, C. C., já referida (e que, como funcionária da autora, construía sistemas de áudio e vídeo, organizava arquivo, enviava e-mails e fazia também algum serviço externo) afirmou ter participado, por várias vezes, até 2014, na contagem do material, juntamente com 2 ou 3 colegas. Referiu também que era material de muita qualidade, entre colunas de som de grande dimensão, plasmas de grande dimensão, mesas de mistura, colunas para camuflagem, fones e microfones. No mesmo sentido, o já referido funcionário R. S. afirmou que entre Dezembro e Janeiro de cada ano faziam a contagem do material existente em stock, e que consistia, designadamente, em mecanismos de testes de leitura de amplificadores, máquinas eléctricas (vg., amplificadores de potência) e extensões eléctricas. A mencionada C. C. disse também que havia dois computadores (um para a emissão das guias, outro para testes), acrescentando que integrou a equipa que fez o inventário de 2014.
A mais destes depoimentos, é também de notar que aquele era o armazém da autora e que esta estava a laborar, empregando funcionários.
Ou seja, não há razões para não crer que houvesse material que ardeu.
Simplesmente, a concretização do valor das existências perdidas cabia à autora. E, neste ponto, foram muitíssimas as falhas.
Desde logo, não obstante o relatório apresentado a fls. 257 ss. Tenha adiantado que a perda real se situaria no valor de € 192.856,40, os Srs. Peritos que o subscreveram, em esclarecimentos verbais, clarificaram que tal valor não estava fundado em elementos objectivos, certos, seguros e fiáveis.
Na verdade, todos convergiram em afirmar que a probabilidade do inventário estar certo era quase nula (veja-se, aliás, essa referência expressa no relatório complementar, a fls. 335); que não lhes foram entregues pela autora os elementos pedidos, designadamente os balancetes com saídas anteriores a 2012, e que a sociedade não tinha inventário permanente. Naquele relatório optaram assim por operar uma desvalorização compreendida entre o 20% e o 50% relativamente ao stock que poderia existir (vd. Fls. 260 e 336). Sem quaisquer bases sólidas, portanto.
Na sequência desses esclarecimentos verbais, o representante legal da autora foi notificado para apresentar o inventário permanente – que, entretanto, afirmara ter -, e que, segundo os Srs. Peritos, era essencial à cabal clarificação das existências e seus valores.
Foi também decidido que tais elementos iriam ser fornecidos aos Srs. Peritos, para reapreciação das existências.
Foi, então, junta a documentação de fls. 361 a 476.
O novo relatório consta de fls. 484 ss.
No entanto, mais uma vez os Srs. Peritos afirmaram, entre o demais, que há artigos que constavam indevidamente da lista das existências; que “(…) se constata, mais uma vez, que não houve verificação de inventários na empresa em nenhum momento, reforçando, ainda mais, a nossa convicção de que os inventários fornecidos não correspondem à realidade”; que não houve conferência de mercadorias e matéria prima; que “faltam registos de saída de stock de um conjunto de bens facturados através de prestação de serviço”. E concluíram que “fica reforçada a nossa convicção de que as listagens de stock e inventários apresentados (tanto para mercadorias como para as matérias primas), não correspondem à realidade, nem é possível saber que stock existia em qualquer momento. Esta conclusão, resumo, é ainda mais reforçada pela nossa constatação de que tais listagens e inventários não foram auditados nos respectivos anos, mais não sendo do que meros documentos da autoria da própria empresa, X”.
Estas queixas de falta de elementos e as conclusões pouco conclusivas vieram de encontro às observações que os peritos da ré também já haviam feito.
Efectivamente, já em Junho/Julho/Agosto de 2015 se percebia que não estavam a ser fornecidos, pela autora, aos peritos da ré, os documentos necessários à quantificação das existências, como resulta dos documentos de fls. 67, verso, a 68.
No relatório junto a fls. 119 ss. (elaborado em fase pré judicial, a pedido da ré) refere-se, entre o demais, que “[n]o local não foi observada mercadoria/existências que justificassem as quantidades do inventário apresentado”; “(…) a P. solicitou a apresentação de facturas da mercadoria consumida no incêndio, que segundo informou o Sr. F. S., tratava-se de mercadoria recentemente adquirida para incorporação em obra em Maputo – Angola. A documentação apresentada não justifica a mercadoria em causa”; “Quanto ao R/C do armazém, onde se encontram as existências da X, verificamos a existência também de diverso material obsoleto e mercadoria passível de ser utilizada. Relativamente à mercadoria consumida, que seria a mais recentemente adquirida, não foram apresentados comprovativos de aquisição, conforme solicitado para identificação no inventário”; “A sociedade encontrava-se em grande dificuldade operacional, tendo gerado resultados negativos nos últimos dois anos e encontrando-se numa situação de falência técnica”; “contabilisticamente não há muitos sinais que possam indiciar a existência de monos, pois a sociedade parece ter sido capaz de adequar o seu stock ao seu nível de actividade. De referir que para fazê-lo, nomeadamente em 2014, vendeu mercadoria em média 22% abaixo do preço de custo”; “[…] sabemos que, com frequência, os valores das existências reais em stock e o valor contabilístico das mesmas podem ter importantes disparidades. Pelo que esta dúvida permanece. Assim, em suma, considerando as mencionadas limitações, admite-se como valor máximo de valorização das existências inventariadas 143.682 EUR”.
Atendeu-se a este valor máximo de valorização das existências inventariadas, para efeitos de prova do artigo 26), já que tal indicação procedeu de peritos contratados pela ré que não foram complacentes com a autora, como está bem evidenciado em todo o relatório de fls. 119 ss., e que, por conseguinte, não iriam avançar qualquer valor que pudesse de algum modo favorecê-la.
Note-se que os referidos peritos poderiam ter apenas admitido as existências de € 36.363,75 referidas no artigo 27), já que, como disseram no dito relatório, “o levantamento de existências no local terá sido efectuado minuciosamente”, confirmando-se a existência de mercadorias nesse valor (vd. Fls. 132, pág. 24 do relatório).
No entanto, foram mais longe do que isso, sendo razoável crer que o fizeram por não terem duvidado da existência de mais mercadoria.
O valor máximo que avançaram não será, seguramente, superior ao real, pois nisso não concederiam. Bem pelo contrário, será inferior.
Ora, tendo em conta que era à autora que cabia a prova deste dano; que o valor apontado no relatório de fls. 257 ss. não tem rigor bastante para a quantificação; que o colégio de peritos não conseguiu avançar mais na quantificação das existências atento o modo como está documentada a contabilidade e que os peritos da ré não tenderam a considerações que beneficiassem a autora, creio que é razoável afirmar que há muita probabilidade de as existências destruídas serem de valor não inferior a € 143.682,00. Daí o artigo 26) dos factos provados e a alínea c) dos factos não provados».
*
Revistos todos os meios de prova, concluímos que assiste integral e manifesta razão à Recorrente.
Por um lado, tal como correctamente se fez constar da sentença, «a concretização do valor das existências perdidas cabia à autora», em consonância com o disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil, uma vez que é um facto constitutivo do direito alegado na petição inicial. E se porventura se chegasse, após produção da prova, a uma situação de dúvida sobre a realidade desse facto, de harmonia com a regra do artigo 414º do CPC, tal dúvida seria resolvida contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja, a Autora, pelo que teria de ser dado como não provado. Isto porque «a dúvida do julgador sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto, pelo que resulta em desvantagem para a parte que tinha o ónus de o provar» (5).
Ora, se nos abstrairmos por agora do relatório elaborado pela P. (junto pela Ré com a contestação), facilmente chegamos à conclusão que os demais meios de prova produzidos não demonstram qual o valor das existências destruídas no incêndio, designadamente se tinham um valor não inferior a € 143.682,00 ou qualquer outro valor. O próprio Tribunal recorrido o constatou, ao afirmar: «E, neste ponto, foram muitíssimas as falhas».
Nenhuma testemunha afirmou qual seria o valor das existências destruídas (ou sequer quais eram essas concretas existências). Tendo sido produzida anteriormente prova pericial e prestados os esclarecimentos pelos peritos, seria expectável, perante o resultado daqueles meios de prova, que algumas testemunhas arroladas pela Autora fossem ouvidas sobre essa matéria, em especial sobre a existência de concretos bens constantes do inventário e respectivos valores. Sucede que as testemunhas não foram nem confrontadas com as listagens nem com concretos itens daquelas constantes. Por isso, nenhum elemento útil resulta de qualquer depoimento prestado por uma testemunha.
A conclusão da prova pericial produzida é inequívoca sobre a impossibilidade de saber quais os bens que se encontravam no armazém e o respectivo valor: «a probabilidade de o inventário estar certo é nula» e «[d]esta forma, fica reforçada a nossa convicção de que as listagens de stock e inventários apresentados (tanto para mercadorias como para as matérias primas), não correspondem à realidade, nem é possível saber que stock existia em qualquer momento. Esta conclusão, resumo, é ainda mais reforçada pela nossa constatação de que tais listagens e inventários não foram auditados nos respectivos anos, mais não sendo do que meros documentos da autoria da própria empresa, X» (v. relatório pericial complementar datado de 22.06.2020 e que deu efectiva entrada na secretaria do Tribunal em 07.07.2020). Os esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos na audiência final são ainda mais incisivos sobre a impossibilidade de apurar quais os bens existentes no armazém e o respectivo valor: por exemplo, o Perito M. F. (31:04) referiu que «este [inventário] não tem fiabilidade nenhuma», sendo que os demais confirmaram que essa fiabilidade seria “nula” ou de “zero”.
Também esse valor não resulta das declarações de parte do legal representante da Autora, que não são sequer invocadas na sentença para fundamentar a decisão sobre o ponto nº 26 e tanto a Recorrente como a Recorrida não citam qualquer passagem de tais declarações para sustentar a respectiva argumentação. Igual consideração deve ser feita relativamente aos demais (além do relatório da P.) documentos juntos aos autos.

Por outro lado, na ausência de outra prova, verifica-se que o Tribunal a quo socorreu-se de um relatório, designado de “relatório de vistoria”, elaborado pela empresa P., Lda., a solicitação da Ré.
No apontado relatório os técnicos da P., Lda., que tinham a incumbência de realizar uma “peritagem” (em rigor, uma averiguação), no sentido de apurar principalmente as circunstâncias em que ocorreu o incêndio, em especial a sua causa, e o valor dos danos susceptíveis de ressarcimento, mencionavam três valores: € 24.590,12, € 36.363,75 e € 143.682,00.
Indicaram o valor de € 24.590,12 como sendo aquele que, no seu entender, constituía o montante do efectivo prejuízo, pois apenas admitiram que no local existisse mercadoria valorizada no inventário em cerca de € 50.000,00 e consideraram que a sua valorização máxima seria de 48,84%, assim apontando o valor de € 24.590,12 (6) («Admitindo que no local existissem cerca de 50.000,00 € de mercadoria valorizada conforme inventário, incluindo a mercadoria consumida pelo incêndio, afectando tal mercadoria pela percentagem de valorização máxima de 48,84% teríamos o valor de 24.590,12 €»).
O valor de € 36.363,75 emergia da circunstância de um técnico de uma empresa – a N. –, que se deslocou ao armazém para averiguar, além do mais, o valor dos prejuízos causados pelo incêndio, ter identificado «a existência de mercadoria no valor de 36.363,75 €» («Pelo que observamos no local e dialogamos com o perito Sr. Eng. F. B. (N.), no local não foi observada mercadoria/existências que justificassem as quantidades do inventário apresentado. No local, o Sr. Eng. F. B. apenas identificou/confirmou a existência de mercadoria no valor de 36.363,75 € (doc. nº 85 a 112). O levantamento de existências no local terá sido efectuado minuciosamente»).
Finalmente, quanto ao terceiro valor, com base no «inventário de mercadorias valorizado ao preço de custo ponderado a 29/5/2015», tal como apresentado pela Autora (segurada), apontaram que «o valor máximo de valorização dessas existências inventariadas será de 143.682,00 €, ou seja, cerca de 48,84% do valor de inventário».
Foi este valor de € 143.682,00 que o Tribunal a quo julgou como sendo o valor das existências que ficaram destruídas. O juízo probatório foi alicerçado na seguinte consideração: como «os peritos da ré não tenderam a considerações que beneficiassem a autora, creio que é razoável afirmar que há muita probabilidade de as existências destruídas serem de valor não inferior a € 143.682,00». Motivou-se ainda tal juízo do seguinte modo: «Atendeu-se a este valor máximo de valorização das existências inventariadas, para efeitos de prova do artigo 26), já que tal indicação procedeu de peritos contratados pela ré que não foram complacentes com a autora, como está bem evidenciado em todo o relatório de fls. 119 ss., e que, por conseguinte, não iriam avançar qualquer valor que pudesse de algum modo favorecê-la».
A referida valoração do relatório, bem como o raciocínio que lhe subjaz, assenta num erro que a inquina.
Isto porque parte do princípio de que o inventário com base no qual se chegou à estimativa de € 143.682,00 (7) se encontra correcto, ou seja, que o stock de mercadorias e matérias-primas existente no armazém é aquele que a Autora indica no seu inventário.

Se mais não houvesse, o próprio relatório da P. enfatizava que:

a) «No local não foi observada mercadoria/existências que justificassem as quantidades do inventário apresentado»;
b) A análise foi feita com «os dados contabilísticos que nos foram disponibilizados»;
c) A «informação contabilística necessária para uma análise exaustiva não foi totalmente fornecida»;
d) «Sobretudo a incapacidade para nos facultar as faturas de aquisição da mercadoria em stock condiciona a análise efetuada, na medida em que não conseguimos aferir se o valor contabilístico dos stocks é coerente com essas mesmas faturas de aquisição. Por casos passados sabemos que, com frequência, os valores das existências reais em stock e o valor contabilístico das mesmas podem ter importantes disparidades. Pelo que essa dúvida permanece».

Aliás, além de indicar ser frequente a discrepância entre as existências reais em stock e os dados contabilísticos das mesmas, sublinhava a existência das «mencionadas limitações» e que permanecia uma situação de «dúvida».
Sucede que a realidade apurada nestes autos permite concluir que o inventário, com base no qual foi feita a referida estimativa do valor máximo das existências, seguramente não corresponde à realidade.

Neste processo foi realizada perícia, com base em mais elementos do que aqueles que tinham sido disponibilizados pela Autora aos técnicos da P., Lda., e as conclusões unânimes dos Srs. Peritos são inequívocas:

i) «a probabilidade de o inventário estar certo é nula»;
ii) «as listagens de stock e inventários apresentados (tanto para mercadorias como para as matérias primas), não correspondem à realidade, nem é possível saber que stock existia em qualquer momento».

Ora, se a estimativa foi elaborada com base num inventário que não corresponde à realidade, a única conclusão lógica só pode ser a de que a própria estimativa está errada. Se não se verifica a premissa – existência dos bens constantes do inventário – também não é lícito extrair a conclusão – que os bens têm aquele valor, pois esta é incompatível com aquela.
Se a própria prova pericial é susceptível de ser apreciada pelo juiz quanto à base de facto pressuposta na perícia, por maioria de razão o serão os pressupostos factuais que alicerçam um simples relatório elaborado por funcionários de uma empresa contratada por uma das partes para lhe fornecer informações que permitam tomar posição sobre um sinistro comunicado ao abrigo de um contrato de seguro. Em lado algum a Ré assumiu como bom aquele valor de € 143.682,00, o qual não foi encontrado no âmbito de uma perícia, as pessoas que elaboraram o relatório não intervieram na qualidade de “peritos”, não são “peritos da Ré”, mas sim trabalhadores de uma empresa contratada pela Ré, para averiguação de um sinistro, e as conclusões do seu relatório alicerçam-se nos pressupostos que aí mencionaram.

Mais: os Srs. Peritos expressamente apontaram uma extensa lista de exemplos de artigos vendidos, «registados na Refª “NS06”, [que] não movimentaram stock logo, os artigos não saíram do inventário, ficando nas listagens indevidamente». Mas além dessa demonstrada existência de bens que apesar de terem sido vendidos continuavam a figurar nas listagens como integrando o stock, já anteriormente os Srs. Peritos tinham apurado indícios que permitiam duvidar da fiabilidade das listagens das existências apresentadas pela Autora: no que respeita a “mercadorias”, verificaram «que não tiveram movimentos desde 01/janeiro/2012 (…) 728 linhas de artigos totalizando inicialmente 141.922,96 €»; quanto a “matérias-primas”, apuraram «que não tiveram movimentos desde 01/janeiro/2012 (…) 409 linhas de artigos totalizando inicialmente 36.219,30 €» (v. relatório pericial, inicial, de 26.04.2018). Na amostragem foram ainda encontrados artigos que permaneciam no inventário desde 2004 ou 2005, bem como outros que nunca sofreram qualquer alteração ou movimentação desde a sua aquisição. Todas estas situações foram objecto de esclarecimentos verbais por parte dos Peritos na audiência final, onde concluíram, tal como anteriormente, pela ausência de fiabilidade da listagem de existências (no seu entender, as listagens e inventários, nunca auditados, «mais não sendo do que meros documentos da autoria da própria empresa, X» - v. relatório complementar datado de 22.06.2020).
Mas voltemos às situações objectivas que atestam essa falta de fiabilidade. Os Peritos também directamente constataram, «mais uma vez, que não houve verificação de inventários na empresa em nenhum momento, reforçando, ainda mais, a nossa convicção de que os inventários fornecidos não correspondem à realidade» (8). Do mesmo modo, constataram que «a empresa não tem o sistema de inventário permanente registado na contabilidade», bem como que apenas tem «registos de movimentos de stocks, mas nenhuma verificação física dos inventários».

Portanto, face ao apontado circunstancialismo, entendemos que não foi feita prova de que as existências que a Autora tinha armazenadas no seu pavilhão, destruídas no incêndio, tinham um valor não inferior a € 143.682,00, pelo que o facto nº 26 deve ser eliminado dos factos provados. Em consequência, deve ser eliminada no ponto nº 27 a referência a tal facto.

Pelo exposto, julgando-se totalmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, determina-se a eliminação do ponto nº 26 dos factos provados, que será aditado à matéria de facto não provada como alínea n), e a supressão no ponto nº 27 da referência «De entre as mercadorias referidas em 26)», passando um e outro a ter a seguinte redacção:
- «n) Que as existências referidas em 17) e destruídas no incêndio tivessem um valor não inferior a € 143.682,00.».
- «27) Nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de € 36.363,75.».
*

2.2.2.4. Ampliação da matéria de facto
A Recorrente pretende «que a Matéria de Facto Provada seja ampliada com o seguinte aditamento, sustentado pela prova documental idónea do mesmo - notificação de agente de Execução - junta com o requerimento a que se alude em 55: "O crédito indemnizatório da Autora que venha a ser fixado nestes autos, encontra-se penhorado até ao valor de 96.073,82€, no âmbito da execução contra ela movida e que corre termos com o n.º 3704/20.8T8GMR, pelos Juízos de Execução de Guimarães, Juiz 2"».
Verifica-se que a Ré, por requerimento de 02.11.2020 (referência 36993548), deu conhecimento nos autos do facto de ter sido notificada por agente de execução, no âmbito do processo de execução que corre termos com o nº 3704/20.8T8GMR, no Juízo de Execução de Guimarães - Juiz 2, da penhora do crédito «que o executado X – Sistemas Integrados, S.A., NIF. ........., detém ou venha a deter em consequência do P:1505/17.0T8GMR do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 4, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 96.073,82 Euros». Porém, nenhuma pretensão a Ré deduziu nestes autos com base no documento junto (cópia da notificação).

O artigo 607º, nº 3, do CPC, impõe ao juiz que na sentença declare quais os factos que julga provados.
Se nos ativéssemos somente à redacção formal dessa norma, concluiríamos que todos os factos, desde que provados, deveriam constar da sentença.
Porém, em face do concreto objecto do processo (v. artigos 552º, nº 1, als. d) e e), e 572º, als. b) e c), 573º, nº 2, 583º, nº 1, 584º e 588º, nº 1, do CPC) e da delimitação das questões a resolver (artigo 608º do CPC), facilmente podemos concluir que uma tal interpretação deve considerar-se excluída.
Com efeito, na sentença apenas devem constar os factos relevantes para o exame e decisão da causa, o mesmo é dizer pertinentes para a resolução do concreto litígio, no sentido da sua integração jurídica.
Isto porque «a aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material» (9).
Portanto, apenas podem ser atendidos na sentença os factos que relevem para apreciação das questões que as partes tenham suscitado ou cujo conhecimento oficioso a lei impuser (v. a delimitação das questões a resolver feita no artigo 608º do CPC). Todavia, a selecção dos factos não deve ficar circunscrita à solução jurídica do caso preconizada pelo juiz do processo, antes devem ser recolhidos todos aqueles que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito.
Se um facto, ainda que provado, não relevar para a apreciação de uma questão a resolver, considerando as várias soluções plausíveis, não deve constar da sentença.

In casu, o facto que a Recorrente pretende que seja aditado à matéria de facto é irrelevante para a resolução das questões que as partes suscitaram no processo. Conste ou não do elenco dos factos provados, em nada interfere na procedência ou improcedência da acção ou da defesa.
Se assim é, não pode constar dos factos provados.
Trata-se da notificação feita à Ré da penhora do eventual crédito indemnizatório da Autora sobre aquela, cuja existência e valor se debatia nesta acção, e que aqui carecia de ser declarado, continuando ambos os aspectos a ser discutidos no âmbito do recurso.
Ao contrário do que aparentemente parece defender-se na motivação das alegações, a existência da aludida notificação da penhora em nada era susceptível de condicionar os termos da sentença ou, agora, a decisão do recurso. Aliás, a penhora em causa pressupõe que o crédito indemnizatório seja reconhecido e declarado nestes autos. Como é óbvio, dependendo a penhora da declaração do direito, o Tribunal não pode condenar a Ré a pagar à Autora um determinado montante deduzido do valor objecto de penhora. O efeito concretizador da penhora só se produz com a declaração do direito indemnizatório e não condiciona esta.
Por outro lado, também nenhuma pretensão foi formulada com base no documento junto em 02.11.2020, que consubstancia uma cópia da notificação da penhora. Daí que inexista qualquer questão a resolver a esse respeito e, em consequência, careça de justificação dar como provado um facto que não alicerça a resolução de qualquer questão.
Finalmente, se é que se pretendia isso, não incumbia à primeira instância declarar ou considerar penhorado o crédito discutido nestes autos, matéria que só à acção executiva respeita.

Termos em que se indefere o requerido aditamento à matéria de facto provada.
**

2.2.2. Reapreciação de Direito
A Autora demandou a Ré com base no contrato de seguro celebrado, invocando ter ocorrido um evento cujo risco está coberto pelo seguro e que a Ré está obrigada a realizar as prestações convencionadas, ou seja, a indemnizá-la por determinados montantes.
Nenhum dissídio existe entre as partes sobre a qualificação do contrato celebrado como sendo de seguro. Também não suscitam reparos as considerações feitas na sentença recorrida sobre a efectivação do risco coberto e o regime aplicável ao caso dos autos, designadamente que a Ré está obrigada a pagar o valor dos danos verificados.
A Recorrente apenas questionou, em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a quantificação do dano sofrido pela Recorrida no que respeita à mercadoria destruída no incêndio. Sem prejuízo das questões relativas ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e aos juros de mora sobre os valores apurados, a Recorrente aceita que sobre si recai a obrigação de indemnizar a Recorrida pelos seguintes danos:
a) Reabilitação da estrutura do edifício, cujo preço da intervenção ascende à quantia de € 69.395,38;
b) Reparação e substituição da instalação eléctrica, com um custo de € 9.914,17;
c) Substituição da plataforma de carga (elevador ou monta-cargas), pelo preço de € 19.470,00.

Resta agora apreciar as repercussões da modificação operada na decisão de facto e as restantes três questões identificadas em 1.4.
*

2.2.2.1. Conclusões 37ª a 40ª
A Recorrente começa por defender que se verifica uma «impossibilidade de se apurar, a partir da documentação contabilística, o valor das mercadorias existentes em stock na data do sinistro (02-06-2015) (10)».
No seu entender, «deve-se retirar dessa impossibilidade a absolvição da Recorrente indemnizar esse dano».
Salvo o devido respeito, apesar de tudo, está demonstrado, sob o ponto nº 27, que «nos escombros do incêndio havia mercadoria destruída no valor de € 36.363,75», pelo que nunca seria caso para absolver a Recorrente de indemnizar este dano.
O que se passa é que apenas esse dano, relativo a mercadoria destruída, resultou demonstrado e não um valor superior.
Por isso, em consonância com o estipulado nas condições particulares (v. a parte em que se refere “Mercadorias fixas – 335.000 Euros”) e nos artigos 2º, alínea c) (sob a epígrafe “Mercadorias e/ou Existências” (11)), e 4º, nº 1 (cobertura de “incêndio”), das condições gerais do contrato de seguro, a Ré está obrigada a pagar à Autora, a esse título, a quantia de € 36.363,75.
A esse valor acrescem os montantes atrás referidos de € 69.395,38 (reabilitação do edifício), € 9.914,17 (reparação da instalação eléctrica) e € 19.470,00 (substituição do monta-cargas).
*

2.2.2.2. Conclusões 41ª a 45ª –Se é devido o valor do IVA
Sustenta a Recorrente que «o valor de IVA apurado nos Factos Provados 13, 15 e 16 da sentença recorrida, não pode ser considerado como um dano decorrente do sinistro, reportado a um encargo ou custo que a Recorrida terá de suportar», porquanto «enquanto sociedade anónima e sendo um sujeito passivo de IVA, suporta o IVA aquando da aquisição dos bens ou serviços (…), podendo posteriormente processara sua dedução (recuperação) aquando da entrega da Declaração Periódica de IVA, entrando em conta corrente com o imposto liquidado e pago pelos clientes».
Por sua vez, a Recorrida contrapõe: «Para que a indemnização reconstitua verdadeiramente o status quo ante, ter-se-á de repercutir o que é necessário despender para conseguir, mediante a aquisição de algum bem ou a execução de tarefa, repor ou restaurar a esfera patrimonial lesada, sendo que neste caso o IVA integra o encargo global devido sem o qual a reposição ou restauração patrimonial não são atingidas». Além disso, «não se pode asseverar desde já que a autora venha a ter direito à dedução do IVA que pague àqueles que vierem reparar o edifício, estando tal dependente do concreto valor de faturação/volume de negócios da lesada e da interpretação que a administração tributária dê a tal despesa e consequentemente à existência ou não de um nexo direto e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução».
Quid juris?
Da celebração do contrato de seguro dos autos resulta para a Ré, enquanto seguradora, a obrigação de indemnizar a Autora, segurada, pelos danos que constituem a efectivação dos riscos cobertos.
Entre esses danos estão os enumerados nos pontos nºs 13 (danos causados na estrutura do edifício, no valor unitário de € 69.395,38), 15 (danificação da instalação eléctrica do edifício - € 9.914,17) e 16 (danificação do monta-cargas/elevador - € 19.470,00) dos factos provados.
Tendo a sentença condenado a Ré a pagar à Autora o valor desses danos acrescido de IVA, a questão suscitada consiste em saber se é devido o valor correspondente ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, ou seja, se integra o cômputo da indemnização pelo dano.
Não oferece dúvida que no direito civil a obrigação de indemnização visa reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (v. artigo 562º do Código Civil – CCiv.). Se a indemnização for em dinheiro, como sucede no caso dos autos, terá «como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos» - art. 566º, nº 2, do CCiv.
Em princípio, este é o regime aplicável aos seguros de danos (v. artigos 123º e segs., em especial o art. 128º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro – Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril), sendo precisamente essa a natureza do seguro dos autos.
O IVA é um imposto geral sobre o consumo e tem natureza indirecta, incidindo sobre as diversas fases do circuito económico. Em termos de incidência objectiva, na parte relevante para os autos, segundo o artigo 1º, nº 1, al. a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), estão sujeitas a este imposto «as transmissões de bens e as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal». No que respeita à sua incidência subjectiva, regulada principalmente no artigo 2º do CIVA, é sujeito passivo do imposto, em geral, a pessoa que opere o acto comercial como transmitente do bem ou prestador do serviço tributável.
O imposto torna-se exigível logo que verificado o facto gerador (arts. 7º e 8º do CIVA) (12) e é ao respectivo sujeito passivo que compete a obrigação de entregar na administração fiscal o montante do imposto exigível (art. 27º do CIVA).

No caso dos autos, tendo a Autora necessariamente que contratar uma terceira pessoa para realizar a reparação dos danos discriminados nos pontos nºs 13, 15 e 16 dos factos provados, quando for prestado o respectivo serviço ser-lhe-á exigido, por devido face ao disposto nos artigos 1º, nº 1, al. a), 7º, nº 1, al. b), 8º e 27º, todos do CIVA, o montante correspondente ao IVA.
Ora, se a Autora tem de entregar à pessoa que efectua a reparação, tanto a quantia correspondente à contrapartida devida pela prestação do serviço como o valor do IVA liquidado sobre aquela retribuição, é óbvio que a indemnização do respectivo dano engloba o montante daquele imposto. Trata-se de um valor que será necessariamente cobrado futuramente à Autora e esta tem de ter a disponibilidade financeira para o suportar, pelo que se integra ainda no conceito de dano decorrente do sinistro (v. artigo 128º do RJCS), indemnizável ao abrigo do contrato de seguro.
O dano não será reparado se a respectiva indemnização não integrar o custo total que a segurada, enquanto consumidora (na qualificação fiscal/tributária), terá que despender com a prestação do serviço (ou a aquisição do bem). E no custo total está integrada uma parcela, regra geral de 23% sobre a contrapartida devida pela prestação do serviço, correspondente ao imposto que será exigido pelo prestador do serviço à Autora.
Ao contrário do sustentado pela Recorrente, a questão coloca-se a montante da relação tributária, que se estabelece entre o prestador do serviço (ou o transmitente do bem) e a Autoridade Tributária e Aduaneira, logo no âmbito da relação jurídica civil, resultante do contrato de seguro, na medida em que a indemnização tem que contemplar o necessário para alcançar a reparação do dano, em termos de reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Assim, no âmbito da concretização da prestação devida pela seguradora, tem que ser considerado o valor global que a segurada irá despender com a reparação dos danos, o que necessariamente inclui o valor que lhe será exigido a título de IVA. Sem a atribuição desse valor global a reposição ou restauração patrimonial não são atingidas (13).
Quanto à questão de o montante que venha a ser pago a título de IVA ser em abstracto susceptível de dedução, além de se tratar de algo que só será passível de suscitar-se depois de efectuado o pagamento ao prestador do serviço, não é possível antever-se a possibilidade ou impossibilidade de dedutibilidade, atentas as regras a esse respeito constantes dos artigos 22º a 26º do CIVA. Neste momento, como bem sublinha a Recorrida nas suas contra-alegações, não pode dar-se por adquirido que a Autora terá direito à dedução do IVA que vier a pagar ao prestador do serviço, estando isso dependente, além do mais, da interpretação que a Autoridade Tributária e Aduaneira dê a tal despesa e consequentemente à existência ou não de um nexo directo e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução.

Termos em que improcede esta questão.
*

2.2.2.3. Conclusões 46ª a 54ª – Desde quando são devidos juros de mora
Na fundamentação da sentença considerou-se que «sobre as quantias acima indicadas vencer-se-ão juros de mora à taxa resultante da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (4%), contados desde a prolação da presente sentença até integral pagamento – nº 3 do art. 805º do CC». No dispositivo condenou-se a Ré a pagar à Autora a quantia correspondente ao valor dos danos «acrescida de juros à taxa civil, contados desde 02.06.2015 até integral pagamento».
A Recorrente sustenta que os juros de mora devem ser «contados desde a data do trânsito em julgado da decisão condenatória, no âmbito da qual o crédito indemnizatório emergente do incêndio objecto dos autos será certo, líquido e exigível». Argumenta, essencialmente, que «estando aqui em causa um crédito emergente da verificação do risco abrangido pelo contrato de seguro – objectivado na ocorrência do sinistro – tal crédito, principalmente na ausência de acordo das partes (Lesado/Segurado e Segurador) sobre a verificação de um sinistro coberto pela apólice e os danos daí decorrentes, tal crédito indemnizatório da Segurada/Autora só se torna líquido a partir da decisão condenatória que o fixar» e que, «por outro lado, o crédito indemnizatório da Credora/Segurada nunca podia ser liquidado à data do sinistro, porquanto, nos termos definidos no contrato por via das suas cláusulas cujo teor foi dado como assente nos autos, a liquidação dos prejuízos indemnizáveis é necessariamente concretizada em sede das peritagens subsequentes, como decorre da Clª. 22ª das Condições Gerais do Contrato».

O incêndio ocorreu no dia 01.06.2015 – e não em 02.06.2015 como consta em algumas peças processuais –, a acção foi proposta em 15.03.2017 e a sentença é de 15.11.2020.
A situação dos autos insere-se no âmbito da responsabilidade civil contratual, emergente do contrato de seguro celebrado entre as partes, e é no âmbito da mesma que tem de ser determinado o tempo da realização da prestação a cargo da seguradora e o momento da constituição em mora, sendo que são dois elementos interligados entre si.
Verificado um sinistro coberto pela apólice e accionada a cobertura do risco prevista no contrato, o segurado ou o beneficiário tem o direito à prestação nele prevista, ou seja, à indemnização dos danos contratualmente estabelecidos.
O regime do contrato de seguro tem a especificidade de «a verificação do sinistro dever ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento» - artigo 100º, nº 1, do RJCS. Além disso, devem ser prestadas «ao segurador todas as informações relevantes que este solicite relativas ao sinistro e às suas consequências» - nº 2 do mencionado artigo.
Em contrapartida, nos termos do nº 1 do artigo 102º do RJCS, «o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências», podendo ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro (nº 2).
No âmbito do direito civil, a regra fundamental sobre o momento da constituição em mora, no que respeita às obrigações puras, isto é, sem termo convencional, legal ou judicial, consta do nº 1 do artigo 805º, nº 1, do CCiv.: o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. As excepções, em que há mora independentemente de interpelação, estão previstas no nº 2 do mencionado artigo 805º.
Já no que respeita às obrigações com termo, o seu vencimento está à partida determinado, pelo que a mora decorre deste.
Atento o invocado pela Recorrente, ainda releva o disposto no nº 3 do artigo 805º do CCiv., na parte em que se estabelece: «se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor».

No caso dos autos, verifica-se que o sinistro foi participado à Ré (v. ponto nº 18), em conformidade com o estipulado na cláusula 19ª, nº 1, al. a), das condições gerais do contrato de seguro, e esta procedeu às investigações e averiguações que entendeu adequadas, através de duas empresas – a N. – Gabinete de Peritagens, Lda., e a P., Lda..
Sabe-se que em 12.06.2015 a N., Lda., solicitou os documentos referidos no documento nº 15 da petição inicial e que em 23.06.2015 a Autora remeteu à referida empresa os elementos mencionados no documento nº 16 da p.i.
Posteriormente, no período entre 23.06.2015 e 07.09.2015, ocorreram visitas às instalações da Autora e trocaram-se várias comunicações entre as partes e/ou seus representantes, com prestação de informações e envio de documentos, tal como se vê nos documentos nºs 17 a 24 da p.i.
Com especial relevo para decisão da questão ora em apreciação, verifica-se que os orçamentos referentes à reparação dos danos causados pelo incêndio no edifício, na instalação eléctrica e na plataforma de carga foram enviados à Ré em 10.08.2015, pelo que a sua liquidação ocorreu nessa data, aliás, em consonância com o que veio a ser objecto de condenação na sentença. Aliás, os valores respeitantes a esses danos foram aceites no relatório da P., Lda., de 18.09.2015.
Quanto às existências, a Ré reclamou e liquidou o respectivo valor em 23.06.2015, sendo que neste acórdão apenas se reconhece como fundado o valor de € 36.363,75, o qual já constava do relatório da P., Lda., de 18.09.2015, como sendo o valor das mercadorias identificadas/confirmadas no local pela N., Lda., após levantamento “efectuado minuciosamente” (o que significa que a prova da existência dessas mercadorias estava feita no momento em que uma empresa contratada pela Ré para averiguar as consequências do sinistro observa directamente, in loco, o facto; nesse momento, além da verificação do risco coberto, estava demonstrado aquele concreto dano, independentemente da circunstância de a segurada reclamar um dano mais extenso e de valor superior).
O último documento foi enviado pela Autora, através da sua mandatária, à P., Lda., em 07.09.2015, e respeitava à plataforma de carga (v. doc. nº 24 junto com a p.i.), esclarecendo a necessidade da sua substituição e não apenas de mera reparação.
Esta data de 07.09.2015 é importante na medida em que estando a segurada vinculada, nos termos da cláusula 19ª, nº 1, al. b), das condições gerais, a «fornecer à Y Portugal as provas solicitadas, bem como os relatórios ou outros documentos que possua ou venha a obter», era a partir desse momento que começava a correr o prazo de 30 dias de que a Ré dispunha para concluir as averiguações e efectuar o pagamento da indemnização.
Julgamos que essa é a única interpretação que pode ser retirada da cláusula 23ª, nºs 5 («A indemnização será paga logo que concluídas as investigações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à fixação do montante dos danos, sem prejuízo de pagamentos por conta, sempre que se reconheça que devam ter lugar») e 6 («As investigações e peritagens de sinistros, que não por furto ou roubo, serão concluídas num prazo nunca superior a 30 dias, a contar da data de receção da participação do Sinistro, na Y Portugal»), das condições gerais.
Também é esse o sentido que está conforme com o disposto no artigo 104º do RJCS, segundo o qual «a obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102º».
Portanto, a obrigação da Ré, de indemnizar a Autora, venceu-se no dia 07.10.2015. Nessa data estava obrigada a efectuar a prestação pecuniária correspondente à indemnização devida à Autora sem necessidade de qualquer interpelação suplementar, atenta a anterior participação do sinistro e reclamação dos danos sofridos, em conformidade com o disposto no artigo 805º, nº 2, al. a), do CCiv.
Não tendo pago a indemnização e optado por declinar a responsabilidade com o inexistente fundamento da não verificação do sinistro, a Ré constituiu-se em mora, respondendo pela indemnização correspondente aos juros, contabilizados à taxa legal, a contar do dia da constituição em mora, como decorre do disposto no artigo 806º, nºs 1 e 2, do CCiv.
Sustenta a Recorrente que se trata de um crédito ilíquido, mas sem razão.
Primeiro, como bem se salientou na sentença, «os danos relativamente aos quais a acção procede não ficaram dependentes de liquidação, todos tendo sido apurados nas diligências empreendidas pela ré no pós-sinistro (mesmo as existências liquidadas agora se reportam aos valores apurados então)».
Segundo, é absolutamente irrelevante, para o efeito, a consideração de que a seguradora declinou a sua responsabilidade (ou que os danos reclamados eram superiores aos verificados) e que, por isso, só com o trânsito em julgado da sentença, no âmbito da subsequente acção judicial, o crédito se torna líquido. Para além de não alicerçado nas concretas cláusulas que regem o contrato de seguro e de contrariar o disposto no artigo 104º do RJCS, a prevalência de um tal entendimento levaria a que dificilmente alguma seguradora pagasse extrajudicialmente uma indemnização no âmbito de um contrato de seguro como o dos autos, pois ser-lhe-ia sempre mais favorável esperar que o lesado intentasse acção judicial e, decorridos alguns anos (quantos mais melhor), fosse proferida sentença e esta transitasse em julgado. Em todo este período, que poderia de ser de muitos anos, ao segurado ou ao beneficiário nada seria devido, apenas com base na posição subjectiva assumida pela seguradora, que por regra declinaria a sua responsabilidade ou discordaria do valor dos danos reclamados, assim “transformando” o crédito em “ilíquido”.
Terceiro, argumenta a Recorrente que «não ficou provado que em momento anterior à propositura da presente acção, a Autora/Recorrida tenha interpelado a Recorrente, com vista à liquidação dos danos que considerava resultantes do sinistro, nomeadamente, por aceitar os valores a que os Peritos da P. tinham chegado no âmbito da averiguação realizada, a seguir ao sinistro».
Sobre este ponto importa reter que não só o sinistro foi participado como a Autora reclamou junto das empresas contratadas pela Ré para o efeito o valor da indemnização a que entendia ter direito.
Além de isso resultar da documentação junta com a petição inicial, emerge igualmente do próprio relatório da P., Lda., onde constam várias referências a tal reclamação, por exemplo na parte conclusiva do mesmo, onde se fez constar:
«Verbas 1 a 3 [reparação do edifício, substituição da plataforma de carga e reparação da instalação eléctrica]:
Os valores reclamados para a reparações a realizar no edifício e remoção de escombros são passíveis de aceitação tendo em conta os danos observados no local pelo que foram considerados.
Verba 9 [mercadorias fixas]:
É reclamado pelo Tomador o inventário de mercadorias valorizado ao preço de custo ponderado a 29/5/2015».
Quarto, quanto ao argumento da falta de colaboração da Autora, que efectivamente se verifica (v. motivação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença), o certo é que o mesmo não foi invocado pela Ré na carta em que tomou a sua posição sobre o sinistro e as respectivas consequências.
Nunca, antes da apresentação da contestação, a Ré comunicou à Autora que declinava a responsabilidade por falta de colaboração da Autora ou que a quantificação das consequências do sinistro não foi possível devido a um concreto comportamento da segurada.
Por isso, essa argumentação não conduz à conclusão de que o crédito era ilíquido.

Pelo exposto, os juros de mora, sobre a quantia global de € 157.862,60 (€ 85.356,32 + € 12.194,43 + € 23.948,10 + € 36.363,75), contam-se desde 07.10.2015.

Pelo exposto, procede parcialmente a apelação quanto a esta questão.
**

2.3. Sumário
1 – Apenas podem ser atendidos na sentença os factos que relevem para apreciação das questões que as partes tenham suscitado, atentos os pedidos e as excepções deduzidas, ou cujo conhecimento oficioso a lei impuser. Se um facto, ainda que provado, não relevar para a apreciação de uma questão a resolver, considerando as várias soluções plausíveis, não deve constar da sentença.
2 – A obrigação de indemnizar a cargo da seguradora engloba o valor do IVA que o segurado terá que suportar para reparar os bens danificados pelo incêndio cujo risco foi assumido no contrato de seguro.
3 – Os juros de mora contam-se desde a data em que se venceu a obrigação de indemnizar, emergente da responsabilidade civil contratual.
***

III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 157.862,60 (cento e cinquenta e sete mil, oitocentos e sessenta e dois euros e sessenta cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável aos juros civis, contados desde 07.10.2015 até integral pagamento, confirmando-se no mais a sentença recorrida.
Custas na proporção do decaimento.
*
*
Guimarães, 13.05.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)




1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 151.
3. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 735.
4. V. arts. 662º, nº 1, e 665º, nº 1, do CPC.
5. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 215.
6. Mas 48,84% de 50.000,00 não corresponde a 24.590,12.
7. V. o depoimento da testemunha F. N., que foi uma das pessoas que participou na averiguação da P., Lda., e assinou o respectivo relatório, que esclareceu no que se basearam para produzir a aludida estimativa sobre o valor máximo de valorização das existências constantes do inventárioem especial, aos 31:15 da gravação.
8. Já nos esclarecimentos prestados por escrito em 26.05.2019 os Srs. Peritos afirmavam: «porque a empresa X não tem registos de contagem e verificação física manual das existências. Logo a conferência não sendo feita, a probabilidade de o inventário estar certo é nula». Também nesse relatório consideravam «stock potencialmente inexistente».
9. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 704.
10. A data indicada constitui uma gralha, uma vez que o sinistro ocorreu no dia 01.06.2015.
11. As “mercadorias fixas” são aí definidas como «o conjunto de matérias-primas, produtos em processo de fabricação e acabados, conjuntamente com as embalagens e demais artigos publicitários ou de propaganda destinados à sua comercialização, assim como todas as matérias auxiliares, tanto próprias como de terceiros, que sejam necessárias como consequência da atividade segura».
12. Nos termos do art. 7º, nº 1, «o imposto é devido e torna-se exigível: a) Nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente; b) Nas prestações de serviços, no momento da sua realização». No artigo 8º regula-se a situação específica da exigibilidade do imposto no caso de obrigação de emitir factura.
13. Neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 15.05.2012, proferido no processo 1981/04.0YXLSB.L1-7, relatado por Luís Lameiras, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos de perto.