Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
182/20.5T8CBT.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação quando se verifica uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção.
II - Por seu turno, o facto jurídico que serve de sustentação à defesa envolve essencialmente a matéria de exceção, tratando-se, pois, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal.
III - Formulando o autor o pedido de declaração de ineficácia de um contrato, não é admissível reconvenção na qual o réu pede que o autor lhe pague uma indemnização por danos causados pela propositura da ação, uma vez que aquela não se funda (nem sequer parcialmente) na mesma causa de pedir.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Comunidade Local dos Baldios de ... veio propor contra Sociedade Agrícola Solar de ..., Unipessoal, Lda, ação declarativa de condenação com processo comum, pedindo seja declarado ineficaz o contrato de arrendamento celebrado entre as partes em relação a dois prédios rústicos devendo a Ré restituir os prédios livres de pessoas e coisas, abstendo-se de os usar, desocupando-os.
A Ré Sociedade Agrícola Solar de ... Unipessoal, Lda. Contestou e deduziu reconvenção em que pede a condenação da Autora no pagamento da quantia que venha a ser determinada em sede de execução de sentença.
Para tanto, alegou que, no âmbito do projeto de 600.000,00€ veio a ser deferido um apoio à Ré de 290.000,00€, tendo parte desse projeto sido concretizado tendo a seu cargo 50 hectares de terreno para produção de vinho verde. Estas vinhas precisam de constante acompanhamento, sob pena de se perder tal ativo, sendo que o decurso do tempo pode ter já causado danos irreparáveis, perdendo-se o investimento já feito, bem como os apoios a que ainda tinha direito.
Alegou ainda que a atuação da Autora, na pessoa do Presidente do Conselho Diretivo, causa prejuízos que não podem ser ainda quantificados e que acrescem aos já existentes, como os que incidem sobre as próprias vinhas decorrentes da ausência de tratamento necessário para a sua boa saúde e ainda os prejuízos resultantes da quebra de produção.
E concluiu referindo que os valores não são suscetíveis ainda de quantificação, mas que serão imputados à Autora e ainda a todos os que secundaram a presente ação.
Em sede de réplica, a Autora pronunciou-se no sentido de não ser admitido o pedido reconvencional, por não se verificar qualquer conexão com os pedidos/causa de pedir da Autora, e por não se descortinar qual a causa de pedir do pedido invocado pela Ré, nem os alegados prejuízos.
Na sequência da notificação para se pronunciar quanto à matéria de exceção invocada na réplica, nomeadamente quanto à eventual ineptidão do pedido reconvencional, a Ré alegou que se verifica a conexão entre o pedido/causa de pedir da Autora e o pedido reconvencional, esclarecendo que o pedido reconvencional prende-se com a apreciação da validade do contrato de arrendamento dado que na providência cautelar a Ré foi condenada a abster-se de praticar atos que impeçam ou dificultem a posse, tendo, por via dessa restituição, visto prejudicada a concretização dos projetos.
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No despacho saneador julgou-se o pedido de reconvenção inadmissível, por não se verificar nenhuma das conexões previstas no artigo 266º do CPC e, por outro lado, por se verificar falta e ininteligibilidade da causa de pedir, que gera a ineptidão do pedido reconvencional.
Consequentemente, absolveu-se a Autora da instância reconvencional.
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Inconformada com a decisão que julgou inadmissível o pedido reconvencional, dela apelou a Ré Sociedade Agrícola Solar de ..., Unipessoal, Lda, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

A. Por despacho saneador, veio a Mma. Juíza a quo julgar não admissível o pedido reconvencional formulado pela Recorrente, absolvendo, consequentemente, a Recorrida da instância reconvencional, com fundamento na não verificação dos pressupostos substantivos da reconvenção.
B. Nomeadamente, por não vislumbrar, no caso concreto, nenhuma das conexões previstas no artigo 266.º, n.º 2 do CPC.
C. Com o devido respeito por opinião distinta, no caso concreto, verifica-se a conexão elencada na alínea a) do n.º 2 do referido preceito, dado o pedido reconvencional emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção, ou seja, a alegada ineficácia do contrato de arrendamento que tem como objecto os prédios rústicos, que a Recorrente afecta à prossecução da sua actividade comercial, e as consequências nocivas que a eventual declaração de ineficácia do contrato de arredamento irá representar para a Recorrente.
D. Ao que acresce, o facto de a Recorrente se encontrar impedida de cultivar, de acordo com aquelas que seriam as suas necessidades de produção, em virtude do decretamento da providência cautelar decretada, em apenso à presente acção principal, cujos efeitos já se fazem sentir, o que dizer caso venha a ser declarada a ineficácia do referido contrato e das consequências dessa decisão, sem que a Recorrente veja ressarcidos os danos por si sofridos.
E. Por outro lado, a Mma. Juiz considerou inepto o pedido reconvencional, com fundamento na intangibilidade da causa de pedir, nos termos do artigo 186º, n.º 2, alínea a) do CPC.
F. Sucede, porém, que a Recorrida, na qualidade de Autora, apresentou réplica na qual contestou a reconvenção, tendo interpretado convenientemente a reconvenção, o que resulta claro da leitura dos artigos 4.º e 5.º do seu articulado, onde discorre que mesmo que, a final, a presente acção venha a ser julgada improcedente, ainda assim, a Recorrente “não poderia peticionar os prejuízos eventualmente sofridos decorrentes da presente acção, uma vez que as vinhas se encontram no lugar para continuarem a ser por ela tratadas.
G. Por outro lado,
Se, a final, for julgada procedente pela A., os prejuízos sofridos terão de ser imputados, a quem outorgou o contrato de arrendamento em nome da Autora, sem poderes, ou seja, o anterior Presidente do Conselho Directivo”.
H. Não restam dúvidas que a Recorrida compreendeu que a causa de pedir da reconvenção se prende com os danos que a ineficácia do contrato de arredamento que serve de motivação ao pedido da Recorrida, na acção principal.
I. No limite, verificou-se a insuficiência ou imprecisão quanto à matéria de facto alegada, e neste caso há lugar ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 590º, n.º 4 do CPC, o que, in casu, não sucedeu.
J. Consequentemente, para efeitos do caso concreto, dispõe o artigo 186º, n.º 3 do CPC que se a Recorrida, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, a arguição não é julgada procedente quando, ouvida a Recorrente, se verificar que a Recorrida interpretou convenientemente a petição inicial (leia-se, a reconvenção).
K. Deste modo, verificando-se que a Recorrida/Reconvinda interpretou convenientemente a causa de pedir do pedido reconvencional, considera-se sanada a ineptidão da reconvenção.
Pugna a Recorrente pela revogação da decisão na parte referente à não admissibilidade do pedido reconvencional, determinando-se a sua admissibilidade, por verificação dos pressupostos processuais e substantivos.
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A Recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir são as seguintes:

- se o pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação;
- se a parte contrária interpretou convenientemente a causa de pedir do pedido reconvencional.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

As incidências fáctico-processuais relevantes são as que constam do relatório.
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Da admissibilidade da reconvenção: saber se o pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação.

A reconvenção tem sido definida como uma ação cruzada ou contra-ação, facultativa, para cuja admissibilidade a lei exige requisitos processuais e requisitos substantivos.
O caso convoca a apreciação dos requisitos substantivos, dada a verificação incontestada dos pressupostos de índole processual.
Ao nível substantivo, para que a reconvenção seja admissível torna-se indispensável uma conexão objetiva entre as duas ações, ou seja, um nexo entre os objetos da causa inicial e da causa reconvencional.

A norma que define os planos em que se deve situar a conexão entre o pedido do autor e o pedido reconvencional é o nº2, do artigo 266º, do Código de Processo Civil, e os fatores de conexão são os seguintes:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”

O Recorrente faz assentar a admissibilidade da reconvenção na alegação de que o seu pedido emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação.

Vejamos se lhe assiste razão.

Dizer-se que o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação tem o sentido de que deve verificar-se uma identidade, total ou parcial, de ambas as causas de pedir, a da ação e da reconvenção (1).
Como afirma Mariana França Gouveia, a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra-pretensões”. Esclarecendo, ainda, que “os factos alegados devem ser selecionados através das normas jurídicas alegadas, assim se determinando quais são os principais. Estabelecidos estes, se um deles for principal para a ação e para a reconvenção, haverá identidade de causa de pedir e, logo, estará preenchido o requisito do artigo 274.º, n.º 2, al. a)”. E concretiza a seguinte conclusão “se o autor e o réu alegam o mesmo contrato como facto constitutivo das suas pretensões, verificada esta coincidência, entende-se que a causa de pedir da acção e da reconvenção é a mesma” (2).
Por seu turno, o facto jurídico que serve de sustentação à defesa envolve essencialmente a matéria de exceção, tratando-se, pois, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor fazendo nascer uma questão prejudicial relativamente à causa principal. A este propósito refere Miguel Mesquita que “ao admitir os pedidos reconvencionais alicerçados numa relação de prejudicialidade-dependência, o legislador visa promover, para além da óbvia economia processual, a harmonia entre decisões” (3).
Neste contexto, escreve-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 17.03.2020 “entende-se não ser suficiente que o réu alegue qualquer facto do qual possa extrair um efeito jurídico através da reconvenção, pois é necessário que o facto alegado produza o efeito útil defensivo, que seja capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor” (4).
No caso, como bem se evidencia na decisão recorrida e se reafirma nas contra-alegações, a Ré em reconvenção peticiona a condenação da Autora numa quantia em dinheiro, porém não se vislumbra qual o fundamento desse pedido, o qual não assenta nem no facto jurídico que serve de fundamento à ação nem de fundamento à defesa.
Concretizando.
O fundamento da ação consiste na ineficácia do contrato de arrendamento por não terem sido observadas as formalidades legais.
A defesa apresentada pela Ré consiste, inversamente, na validade do contrato de arrendamento, por ter obedecido a todos os requisitos de forma.
Ora, não vem alegada qualquer factualidade que permita concluir que o pedido tem na base o fundamento da ação (ineficácia do contrato de arrendamento), pois nada se refere quanto ao facto de os prejuízos resultarem da ineficácia do contrato, imputável culposamente à Autora. Na verdade, a Re não descreve as razões jurídicas resultantes da ineficácia do contrato que a levam a entender que tem direito à indemnização solicitada.
Assim, formulando o autor o pedido de declaração de ineficácia de um contrato, não é admissível reconvenção na qual o réu pede que o autor lhe pague uma indemnização por danos causados pela propositura da ação, uma vez que aquela não se funda (nem sequer parcialmente) na mesma causa de pedir.
Por outro lado, o pedido de indemnização civil também não pode ter na base a defesa da Ré no sentido da validade do contrato de arrendamento. A Ré não alega que os danos sofridos advêm de o contrato de arrendamento ser válido, nem tal seria compreensível (atendendo ao próprio teor da sentença homologatória proferida no procedimento cautelar apenso a estes autos).
A parte não pode invocar a validade de um contrato e, em simultâneo, exigir uma indemnização pelos danos resultantes da ineficácia do contrato. Ou o contrato é válido ou é ineficaz; as duas situações, a título principal, e invocadas pela mesma parte são incompatíveis.
Assentando a defesa na validade do contrato, um pedido de indemnização pelos danos resultantes de uma eventual procedência da ação, teria imperativamente de ser deduzido de forma subsidiária, sob pena de se verificar uma contradição com a própria defesa apresentada.
Ademais, a este propósito sempre se dirá, na esteira do acórdão da Relação do Porto de 22.10.2019 (5), que só o fundamento factual/jurídico da ação e da defesa podem conduzir à reconvenção, em consequência lógica, a causa de pedir, quer da ação, quer da reconvenção, tem de existir à data da propositura da ação. Por isso mesmo, da forma concreta como o autor articula os factos da presente ação não se podia deduzir o concreto pedido reconvencional, pois não nos encontramos perante idêntica causa de pedir; de forma idêntica, está também vedada a dedução de pedido reconvencional se a defesa invoca que o Autor promove alegação atentatória do seu bom nome, com efeitos junto das entidades de crédito.
Tem a jurisprudência entendido que os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a propositura de uma ação devem integrar pedido de indemnização com base em litigância de má fé, sem excluir a possibilidade de dedução de ação própria (6).
Donde, o pedido reconvencional nos termos formulados, não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa.
Se a parte contrária interpretou convenientemente a causa de pedir do pedido reconvencional.
Apesar de se mostrar prejudicado o conhecimento desta questão, sempre se dirá que não obstante a menção em sede de recurso de que o pedido de indemnização formulado em reconvenção tem por base as consequências nocivas que a eventual declaração de ineficácia do contrato de arredamento irá representar para a Recorrente, a verdade é que o quadro factual atinente não vem descrito, sequer a conduta ilícita ou culposa imputável à Autora. Apenas se entrevê no articulado (artigo 83º) a referência à imputação dos danos a todos aqueles que “secundaram a presente ação”, o que parece apontar no sentido da responsabilização pela instauração da ação. E, como bem se refere na decisão impugnada, não sendo alegados os factos essenciais nucleares, não há que fazer convite ao aperfeiçoamento.
Dito de outro modo, verifica-se a falta e ininteligibilidade da causa de pedir.
Não afasta a ininteligibilidade o argumento aduzido pela Recorrente no sentido de que a parte contrária interpretou convenientemente a causa de pedir do pedido reconvencional. Tal assim não é. Basta para tanto atentar no diferente conteúdo da resposta à reconvenção e das contra-alegações, demonstrativo da sua incompreensão, sendo que nestas a recorrida conclui inovadoramente que o pedido reconvencional se prende, afinal, com os prejuízos decorrentes da decisão na providência cautelar (que terminou com transação celebrada pelas partes).
Secunda-se, pois, o entendimento sufragado na decisão recorrida de que o pedido de reconvenção não é admissível, por, por um lado, não se verificar nenhuma das conexões previstas no artigo 266º do CPC e, por outro, por se verificar falta e ininteligibilidade da causa de pedir, que gera a ineptidão do pedido reconvencional.
Nestes termos, a apelação terá de improceder, com a manutenção da decisão recorrida.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Guimarães, 15 de Junho de 2022

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes



1. Neste sentido, Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pag. 146.
2. In A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pags. 269/270.
3. In Reconvenção e Excepção no Processo Civil, pag. 162.
4. Disponível em www.dgsi.pt.
5. Disponível em www.dgsi.pt.
6. Neste sentido, o acórdão do STJ de 22.05.2003, disponível em www.dgsi.pt e o acórdão da da Relação do Porto de 16.10.86, CJ.IV/236.