Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1770/19.8T8VCT.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
REQUISITOS
MELHORIA NA APLICAÇÃO DO DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO NÃO ACEITE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela Relatora):

O recurso é manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito, nos termos do art. 49.º, n.º 2 do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, quando esteja em causa uma questão de direito autónoma e que, por ser amplamente controversa na doutrina e na jurisprudência, com relevante aplicação prática, apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto, de tal forma que se imponha o seu melhor esclarecimento pela instância superior, com vista a propiciar um contributo qualificado no seu tratamento e aplicação a título imediato e em casos idênticos futuros.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

A arguida Congregação de Nossa Senhora da Caridade de … veio interpor recurso de impugnação judicial da decisão do Instituto de Segurança Social, I.P. que lhe aplicou a sanção de admoestação pela prática da contra-ordenação p.p. nos arts. 12.º, n.º. 2, als. b) e d) da Portaria n.º 67/2012, de 12 de Março, e 39.º-E, al. b) do DL n.º 64/2007, de 14 de Março (não dispor do número mínimo de enfermeiros e do número mínimo de ajudantes de acção directa, estes para reforço nocturno).

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou o recurso improcedente e manteve a decisão recorrida.

Inconformada, veio a arguida interpor recurso de tal sentença, invocando a necessidade de melhoria da aplicação do direito, ao abrigo do disposto no art. 49.º, n.º 2 do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, com os seguintes fundamentos:

«A Sentença proferida a 03/07/2019 pelo tribunal “a quo” decide sobre a impugnação judicial interposta pela Recorrente da decisão da autoridade administrativa que condenou a Recorrente numa pena de admoestação.
A Sentença de que aqui se recorre manteve a decisão condenatória da autoridade administrativa, condenando a Recorrente numa pena de admoestação.
A condenação nesta pena resultou da consideração do tribunal recorrido de dois factos dados como provados, i.e., de que a Recorrente tem uma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) e de que no dia 24/11/2016 tinha a funcionar esta ERPI com falta de 2 enfermeiros e 5 ajudantes de ação direta com vista ao reforço do período noturno, tendo, por isso, violado o artigo 12º, nº 2, alíneas b) e d) da Portaria nº 67/2012, de 12 de Março e o artigo 39º-G, nº 1 do DL nº 64/2007, de 14 de Março, na versão republicada em anexo ao DL nº 33/2914, de 04 de Março.
Ora, a Recorrente não se conforma com este entendimento, uma vez que na Portaria nº 67/2012 o legislador é omisso quanto à definição do período noturno, sendo omisso quanto à delimitação da hora de início e da hora de termo desse período.
A determinação do período noturno fundamental para uma melhoria na aplicação da presente norma ou até mesmo para uma correta aplicação da mesma, na medida em que o equacionamento da integração ou não dos factos no tipo contraordenacional encontra-se dependente do preenchimento do conceito em apreço.

Se não vejamos,

Se for considerado período noturno o período correspondente ao jantar e ao deitar dos utentes da ERPI, nesses períodos a Recorrente assegura o número de ajudantes de ação direta exigidos por lei, não se verificando, por essa via, a violação do artigo 12º, nº 2, alínea d) da Portaria nº 67/2012, uma vez que à hora do jantar, entre as 18h30m e as 20h00 dispõe de 8 a 10 ajudantes de ação direta.
Além disso, o artigo 12º, nº 1, alínea b) da Portaria nº 67/2012 indica que a ERPI também deve ter um enfermeiro por cada 40 residentes.
A Recorrente, à data dos factos, tinha 150 residentes, devendo ter 3,75 enfermeiros, por isso não sendo possível o arredondamento quando se tratam de pessoas, a Recorrente tinha uma ratio de três, pelo que de acordo com a interpretação que a Recorrente fez da lei esta cumpria o mínimo recomendado.
Não obstante, a situação acabou por ser resolvida com a contratação de mais um funcionário.
No que respeita aos auxiliares de ação direta, é a própria lei, no artigo 12º, nº 4, que prevê a possibilidade de adaptabilidade destes ratios às características de cada ERPI.
Estas duas questões não apreciadas pelo Tribunal “a quo” e essenciais para uma melhor aplicação do direito, dado que a da sua ponderação poderá considerar-se a não integração dos factos no tipo de ilícito.
Como deverá este regime de adaptabilidade ser integrado face aos ratios previstos no artigo 12º, nº 2 da Portaria nº 67/2012?
Por conseguinte, tal situação é fundamento de recurso, nos termos do artigo 49º, nº 2 da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro.
Acresce que, o tribunal “a quo” não se pronunciou sobre questões que se devia pronunciar e alegadas pela Recorrente na impugnação judicial, nomeadamente, no que respeita ao preenchimento do conceito de período noturno, bem como no que concerne ao regime de adaptabilidade do número de profissionais afetos às atividades de acordo com as características de cada ERPI, previsto no artigo 12º, nº 4 da Portaria nº 67/2012 e adotado pela Recorrente.
(Cfr. artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 14º, 16º, 17º, 18º, 19º, 21º, 22º, 24º, 26º, 30º, 31º, 32º, 33º da impugnação judicial)

Termos em que, a sentença padece de uma nulidade nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP, por omissão de pronúncia, aplicável subsidiariamente por remissão do artigo 60º da Lei nº 107/2009, para o RGCO e por remissão do artigo 41º, nº 1 do RGCO para a lei processual penal.

Do mesmo modo, o relatório da sentença não contém a indicação sumária das conclusões contidas na contestação, nos termos do artigo 374º, nº 1, alínea d) do CPP e contém um lapso do ponto de vista do ilícito contraordenacional, remetendo para o artigo 39º-G, nº 1 do DL nº 64/2007, quando o mesmo apenas refere os limites mínimo e máximo das coimas, verificando-se nos termos dos artigos 118º, nº 2 e 123º do CPP uma irregularidade.

Adicionalmente, a sentença não contém todas as menções previstas no artigo 374º, nº 2 do CPP, i.e, não procedeu à indicação e exame crítico das provas, nomeadamente, a prova testemunhal apresentada pela Recorrente em sede de audiência de julgamento (ou indicação fundamentada dos motivos pelos quais não atendeu à prova apresentada); não logrou mencionar quais os factos não dados como provados; não mencionou factos provados suficientes de molde a preencher o tipo de ilícito pelo qual fora condenada e não fundamentou a sua decisão sobre os factos provados, fazendo uma mera remissão para o teor do auto de notícia,
O que configura uma nulidade da sentença por não conter todas as menções previstas no artigo 374º, nº 2 do CPP, tal como exigido pelo artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP.
Finalmente, estabelece o artigo 410º, nº 2 do CPP que, “(…) mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum (…)”,
Ora, a Recorrente foi condenada por, à data dos factos, na ERPI faltarem dois enfermeiros e cinco ajudantes de ação direta, sendo tal facto dado como provado.
Contudo, daí não é possível concluir que a Recorrente não tenha cumprido os mínimos legais previstos no artigo 12º, nº 2, alíneas b) e c) da Portaria nº 67/2012, na medida em que não consta nos factos provados quantos enfermeiros e quantas auxiliares de ação direta a Recorrente tinha de dispor na ERPI, bem como não consta como provado quantos enfermeiros e quantas auxiliares de ação direta a Recorrente, à data dos factos, dispunha na ERPI.
Nem consta dos factos provados qual é o período noturno e qual o número de auxiliares que dispõe no período noturno, pelo que salvo melhor opinião os factos provados são insuficientes para a decisão condenatória por não ter o número mínimo de enfermeiros e auxiliares previstos na lei.

Assim,
Só sendo dado como provado estes factos é que daí se poderia concluir pela prática da contraordenação, motivo pelo qual a matéria dada como provada é insuficiente para fundamentar a decisão, padecendo a decisão de um vício pela insuficiente base factual que a fundamente, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP.
Afigurando-se o presente recurso indispensável para uma melhor aplicação do direito, porquanto não pode a Recorrente ser condenada numa admoestação que tempestivamente impugnou, sob pena de ver preteridas as suas garantias de defesa, de contraprova, ficando sem saber o período noturno em que poderá ter de estar obrigada a reforçar o número mínimo de auxiliares.
Nestes termos, e nos melhores de direito, requer-se a V.as Ex.as a admissão do presente recurso, nos termos e com os fundamentos descritos nas alegações que se juntam.

Devem ainda as nulidades invocadas serem consideradas procedentes, com as inerentes consequências legais.»

Formulou as seguintes conclusões:

«I. A Sentença de que aqui se recorre decidiu pela manutenção da decisão administrativa, condenado a Recorrente numa pena de admoestação.
II. Os factos dados como provados pela Sentença são insuficientes para fundamentar a decisão de condenar a Recorrente por estar ter violado o artigo 12º, nº 2, alíneas b) e d) do CPP, na medida em que só é possível concluir que a Recorrente não tinha pessoal com categoria suficiente para os serviços desenvolvidos, caso constasse nos factos dados como provados qual o número de enfermeiros e de ajudantes de ação direta existentes na ERPI à data dos factos, bem como qual o número exigido por lei, o que não aconteceu, não sendo suficiente dar como provado que estavam em falta dois enfermeiros e cinco ajudantes de ação direta.
III. A lei, no artigo 12º, nº 2, alínea b) da Portaria nº 67/2012, refere que a ERPI deve ter um enfermeiro por cada 40 residentes, como à data dos factos a ERPI tinha 150 residentes, a ratio de enfermeiros de que devia dispor era de 3,75, não esclarecendo a lei como se deve proceder quando o resultado não dá um número inteiro.
IV. Por isso, não sendo humanamente possível fazer o arredondamento a Requerente dispunha de 3 enfermeiros na ERPI, sendo certo que para estar adstrita ao dever de ter quatro enfermeiros o número de residentes teria de ser superior, i.e., correspondendo a 160 residentes.
V. A lei exige que as ERPI tenham um ajudante de ação direta por cada vinte residentes com vista ao reforço do período noturno (artigo 12º, nº 3, alínea d) da Portaria nº 67/2012).
VI. Logo, também não é possível concluir que a Recorrente à data dos factos violou esta disposição se a decisão não deu como provado qual o período noturno para efeitos de aplicação da lei.
VII. Caso seja considerado período noturno os períodos correspondentes ao jantar e deitar (que é bem diferente num lar de idosos em relação a uma moradia familiar), a Recorrente dispunha de oito a dez ajudantes de ação direta nesses períodos.
VIII. Portanto, só sendo dado como provado estes factos é que daí se poderia concluir pela prática da contraordenação, motivo pelo qual a matéria dada como provada é insuficiente para fundamentar a decisão, padecendo a decisão de um vício pela insuficiente base factual que a fundamente, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP.
IX. Confrontar Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo nº 288/09.1GBMTJ.L1-5.
X. A sentença padece de uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.
XI. A sentença não responde à matéria alegada pela Recorrente na impugnação judicial, nem fundamenta a decisão de não se pronunciar sobre a mesma, considerando-a “irrelevante”.
XII. Tal irrelevância devia ser justificada, o que não acontece.
XIII. A Sentença devia pronunciar-se sobre as questões levantadas pela Recorrente tal como exigido pela lei, considerando-se que a apreciação do seu conteúdo é relevante para a decisão final da causa, i.e., para a condenação ou absolvição da Recorrente.
XIV. A Sentença não se pronuncia acerca da questão do período noturno e não considera o regime da adaptabilidade alegado pela Recorrente, previsto pelo legislador no artigo 12º, nº 4 da Portaria nº 67/2012.
XV. A Recorrente alegou a adoção do regime da adaptabilidade que permite a alteração dos ratios previstos, nomeadamente, no artigo 12º, nº 2 do mesmo diploma legal.
XVI. Para o efeito, a Recorrente alegou factos demonstrativos da adoção deste regime da ERPI (conforme os artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 14º, 16º, 17º, 18º, 19º, 21º, 22º, 24º, 26º, 30º, 31º, 32º, 33º da impugnação judicial), e em nenhum lugar a sentença se pronuncia fundamentadamente sobre os mesmos.
XVII. A verificar-se a correta aplicação deste regime pela Recorrente, esta não teria praticado qualquer contraordenação, o que conduziria à sua absolvição,
XVIII. O que atesta a imprescindibilidade de a Sentença se pronunciar sobre esta questão, sendo uma questão jurídica de extrema importância para a IPSS para estes adotarem o seu quadro de pessoal às exigências legais.
XIX. A título de exemplo, conforme alegado na impugnação judicial, a Recorrente ao jantar e ao deitar dos residentes, a considerar-se como integrante do período noturno numa ERPI, dispunha do número de ajudantes de ação direta exigidos pela lei, perfazendo o total de oito.
XX. Além disso, a Recorrente alegou a implementação de um conjunto de sistemas que auxiliam na satisfação das necessidades dos utentes, nomeadamente, o sistema de campainhas em cada quarto; o sistema de rondas obrigatórias e o sistema de horário concentrado, o que fez ao abrigo do regime da adaptabilidade.
XXI. Este regime encontra-se previsto na lei, sendo necessário integrá-lo face à exigência de integração de um ratio mínimo de pessoal na ERPI.
XXII. A Sentença não faz menção a todos os elementos exigidos pelo artigo 374º, nº 2 do CPP, padecendo de falta de fundamentação dos factos dados como provados, fazendo uma mera remissão para o teor do auto de notícia, sendo nula nos termos dos artigos 379º, nº 1, alínea a) do CPP.
XXIII. Em conformidade com a jurisprudência que vem sendo perfilhada, como é exemplo o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/01/2011, processo nº 1670/07.4TAFUN-A.L1-5.
XXIV. “(…) Não existe completa indicação das provas quando, constando dos autos várias dezenas de documentos, o tribunal se limita a remeter para todos eles, sem especificar que concretos documentos relevaram e para que pontos de facto concretos, quando existem nos autos documentos que se contrariam mutuamente em aspectos relevantes.”
XXV. A sentença é omissa quanto aos factos dados como não provados, nem se pronunciou acerca da prova testemunhal produzida em audiência nos termos dos artigos 374º, nº 2 do CPP, o que consubstancia uma nulidade da sentença, por falta de fundamentação e menção, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a) do CPP.
XXVI. A Sentença do tribunal “a quo” encontra-se inquinada por duas irregularidades, nos termos dos artigos 374º, nº 1, alínea d), 118º, nº 2 3 123º do CPP, uma vez que o relatório não integra a indicação sumária das conclusões contidas na impugnação judicial e contém um lapso ao nível da norma que prevê o ilícito contraordenacional pelo qual a Recorrente de encontrada acusada, remetendo para o artigo 39º-G, nº 1 do DL nº 64/2007, quando o mesmo apenas refere os limites mínimo e máximo das coimas.
XXVII. Por tudo o acima exposto, deverão V.as Ex.as reapreciar a matéria de direito, subsumindo-a nas normas legais, doutrina e jurisprudência aplicáveis, e, por via disso, declarar a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, revogando-a.
XXVIII. Normas jurídicas violadas artigo 374º, 379º e 410º, nº 2, al. a) do C.P.P., artigo 12º, nºs. 2 e 4 da Portaria 67/2012.»
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua inadmissibilidade, por não se verificarem os requisitos para tanto, e, ainda que assim não se entenda, pela sua improcedência.
Tendo os autos subido a este Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir em conferência.

2. Objecto do recurso

De acordo com o art. 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 50.º, n.º 4, do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim, as questões a decidir, por ordem de precedência lógica, são as seguintes:

- verificação de vícios a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal;
- verificação de nulidades da sentença a que se refere o art. 379.º do Código de Processo Penal;
- definição do conceito de período nocturno e concretização do regime de adaptabilidade para efeitos de aplicação do n. 2, al. d), e do n.º 4, respectivamente, da Portaria n.º 67/2012.
Previamente, importa apreciar a admissibilidade do recurso nos termos do n.º 2 do art. 49.º do mencionado regime processual, uma vez que o mesmo não é admissível nos termos gerais constantes do n.º 1, em virtude de à Recorrente ter sido aplicada apenas a sanção de admoestação.

3. Fundamentação de facto

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa foram fixados na decisão recorrida nos seguintes termos:

1 – A arguida é uma IPSS que tem uma estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI).
2 – No dia 24/11/2016, a arguida tinha a funcionar aquela ERPI, com falta de 2 enfermeiros e 5 ajudantes de acção directa, estes com vista ao reforço nocturno.
3 – A arguida regularizou posteriormente a situação no que se refere aos enfermeiros.

4. Apreciação da questão prévia da admissibilidade do recurso

Como se disse, importa apreciar a admissibilidade do recurso nos termos do n.º 2 do art. 49.º do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, uma vez que o mesmo não é admissível nos termos gerais constantes do n.º 1, em virtude de ter sido aplicada à arguida apenas a sanção de admoestação.
Diz-se naquela norma que, “para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.”
Acrescenta o art. 50.º que, nestes casos, o requerimento segue junto ao recurso, antecedendo-o (n.º 2), e que a decisão sobre o requerimento constitui questão prévia, que é resolvida por despacho fundamentado do tribunal, equivalendo o seu indeferimento à retirada do recurso (n.º 3).
Importa, assim, que este tribunal profira essa decisão, isto é, sobre o requerimento da arguida a requerer a aceitação do recurso com base no disposto no art. 49.º, n.º 2, mais precisamente por tal se afigurar «manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito».
Como explica Abílio Neto (Código de Processo do Trabalho Anotado, Lisboa, Janeiro 2010, p. 357), “[o] recurso da decisão pode assumir-se como “manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito” quando, por ex., verse uma questão que seja objecto de soluções desencontradas por parte da doutrina, ou de relevante incidência prática, ou quando seja objecto de tratamento diversificado pela jurisprudência. De todo o modo, trata-se de um conceito aberto, cuja aplicação em concreto dependerá, em larga escala, do discurso argumentativo utilizado.”
Nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Processo do Trabalho, Coimbra, 2010, pp. 169-170), “[o] n.º 2 atribui à Relação poderes de uniformização que, no âmbito do processo penal, pertence em exclusivo ao Supremo Tribunal de Justiça.
Trata-se de uma fórmula destinada a tutelar interesses de ordem pública, da estabilidade da aplicação da lei ou da igualdade dos cidadãos que poderiam ser afectados nos casos em que a decisão não satisfizesse alguma das condições referidas no n.º 1.”

Ainda, de acordo com o que refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Univ. Cat. Editora, 2011, p. 303), pode assentar-se em que a «melhoria da aplicação do direito» supõe que:

a) a questão jurídica seja relevante para a decisão da causa;
b) seja questão necessitada de esclarecimento; e
c) seja questão que permita o isolamento de uma ou mais regras gerais aplicáveis a outros casos similares.

A jurisprudência, por seu turno, vem sendo constante no sentido sintetizado no sumário do Acórdão da Relação do Porto de 11 de Abril de 2019, proferido no processo n.º 1714/18.4T8AVR.P1 (disponível em www.dgsi.pt), a saber:

“I - A manifesta necessidade “à melhoria da aplicação do direito” prevista no n.º 2, do art.º 49.º da Lei 100/2009, só se verifica quando na decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, não se destinando, pois, a corrigir eventuais erros de julgamento.
II - A “melhoria da aplicação do direito” pressupõe que se esteja perante uma questão “que seja manifestamente complexa, de difícil resolução, na doutrina e na jurisprudência, e cuja subsunção jurídica imponha um importante e detalhado exercício de exegese, com o objetivo de se vir a obter um consenso quanto à provável interpretação das normas à mesma aplicáveis”.”

Trata-se, pois, de uma possibilidade extraordinária de recurso que só em circunstâncias excepcionais deve ser admitida e que não pode ser utilizada como meio de colmatar a impossibilidade legal de recurso em razão do valor da coima aplicada ou da não aplicação de coima, sob pena de se transformar em regra.
Na verdade, a lei exige para aceitação do recurso que o mesmo seja manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito (ou à promoção da uniformidade da jurisprudência), não bastando que seja conveniente ou sequer necessário.
Assim, julga-se que está pressuposto que esteja em causa uma questão de direito autónoma e que, por ser amplamente controversa na doutrina e na jurisprudência, com relevante aplicação prática, apresente uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto, de tal forma que se imponha o seu melhor esclarecimento pela instância superior, com vista a propiciar um contributo qualificado no seu tratamento e aplicação a título imediato e em casos idênticos futuros.
Retornando ao caso em apreço, constata-se que a Recorrente sustenta que o recurso é manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito no que se refere à definição do conceito de período nocturno e à concretização do regime de adaptabilidade para efeitos de aplicação do n.º 2, al. d), e do n.º 4, respectivamente, da Portaria n.º 67/2012, de 12 de Março, questões que o tribunal recorrido nem sequer tratou, visto só interessarem à valoração da falta de 5 ajudantes de acção directa com vista ao reforço nocturno e se ter entendido que a verificação da contra-ordenação se basta com a mera prova da falta de 2 enfermeiros.
Por outro lado, para além de arguir a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º do Código de Processo Penal, a Recorrente invoca a verificação de vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do mesmo diploma, designadamente a insuficiência da matéria de facto provada para conhecimento daquelas questões, que, efectivamente, imporiam que se soubesse o número de ajudantes de acção directa a prestarem serviço nos períodos susceptíveis de serem considerados nocturnos, nos termos alegados, e, por outro lado, as características da estrutura residencial explorada pela Recorrente susceptíveis de autorizar um regime de adaptabilidade, nos termos também alegados.
Ora, assim sendo, em 1.º lugar, nem estão em causa questões jurídicas que o tribunal recorrido tenha apreciado em termos que pudessem ser considerados seriamente duvidosos à luz de controvérsia relevante na doutrina e na jurisprudência, que justificasse uma reapreciação que representasse um contributo para uma discussão que aproveitasse a casos similares futuros, nem tal reapreciação seria decisiva para o caso em análise, visto que se trata de questões que se consideraram prejudicadas pela suficiência da demais factualidade para a verificação da infracção.
Não se pode falar de melhor esclarecimento pela instância superior do que não foi sequer tratado, mal ou bem, pela primeira instância, e muito menos se pode afirmar que tal esclarecimento é manifestamente necessário, se não é determinante para a solução do caso sub judice, nem, por outro lado, é identificada qualquer controvérsia séria e com relevo prático na doutrina e na jurisprudência.
Em 2.º lugar, e ainda mais decisiva, é a circunstância de que a aceitação do recurso conduziria, afinal, ao não conhecimento também pelo tribunal superior das invocadas questões atinentes à definição do conceito de período nocturno e concretização do regime de adaptabilidade para efeitos de aplicação do n.º 2, al. d), e do n.º 4, respectivamente, da Portaria n.º 67/2012, pois estando tal conhecimento necessariamente dependente da procedência das questões prévias respeitantes à verificação de vícios a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, designadamente a insuficiência da matéria de facto, e de nulidades da sentença a que se refere o art. 379.º do mesmo diploma, designadamente por omissão de pronúncia, a consequência seria o reenvio do processo ao tribunal recorrido para novo julgamento e nova sentença (arts. 379.º, n.ºs 2 e 3 e 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Ou seja, aceitar-se-ia um recurso em atenção a questões jurídicas que, não só não foram conhecidas pelo tribunal a quo, como também não o seriam pelo tribunal ad quem, o que nada tem a ver com a ratio do art. 49.º, n.º 2 do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, caindo no âmbito das finalidades do recurso «normal», no caso legalmente inadmissível.

Em face do exposto, improcede totalmente a pretensão da Recorrente.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em não aceitar o recurso da arguida.
Custas pela arguida, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Guimarães, 19 de Novembro de 2019

Alda Martins
Vera Sottomayor