Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2164/18.8JAPRT.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE HOMÍCIDIO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- A atenuação especial funciona como uma verdadeira «válvula de escape» do sistema, destinando-se apenas àqueles casos que, pelo seu caráter excecional, apresentem uma gravidade tão diminuída que não coube na previsão do legislador quando fixou os limites normais da respetiva moldura legal; já que para os casos «normais», «vulgares» ou «comuns», «lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.»
II- No caso em apreço, não constitui fundamento bastante para atenuar especialmente a pena aplicada pela prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, o facto de o arguido se ter apresentado voluntariamente às autoridades, contando o que se passou, sem o que o crime (ocorrido cerca de 10 anos antes) nunca seria descoberto, colaborando com a justiça ao longo de todo o processo; ao que acresce a ausência de antecedentes criminais e a sua boa inserção familiar, social e profissional.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum coletivo nº 2164/18.8JAPRT do Juízo Central Criminal ..., J..., do Tribunal Judicial ..., foi submetido a julgamento o arguido AA.

O acórdão, proferido e depositado em 6 de dezembro de 2022, tem o seguinte dispositivo:

«Por todo o exposto, acordam as Juízes que compõem este Tribunal Colectivo em:
- condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º, com referência ao disposto pelo n.º 3 do artigo 14.º, ambos do Código Penal, na pena de 8 anos e 10 meses de prisão;
- condenar o arguido ao pagamento das custas do processo (taxa de justiça e encargos) por força dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal em conjugação com o artigo 8.º, número 9, e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), fixando-se a taxa de justiça em 3 UC;
- julgar o pedido de indemnização parcialmente procedente, por provado, e, em consequência, condenar o demandado ao pagamento da quantia de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros), para ressarcimento dos danos morais causados com a sua actuação, acrescida dos juros vencidos desde esta decisão até integral pagamento;
- custas por demandante e demandado, na proporção do decaimento (sem prejuízo da dispensa de pagamento de que beneficiem).»
*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:
«A)
Quanto à decisão sobre a matéria de facto
1ª - Deu-se por provado, no ponto 2 da decisão sobre a matéria de facto, que o arguido quis experimentar a arma que a vítima lhe queria vender, mas o que resultou provado foi que o arguido aceitou experimentar a arma, o que é diferente de querer.
2ª - Querer é uma manifestação de vontade e de iniciativa própria, ao passo que aceitar é admitir algo que é proposto ou oferecido; esta última traz, assim, subjacente, o pressuposto de que a iniciativa não partiu do recorrente, mas antes que lhe foi apresentada por outra pessoa.
3ª – Conforme resulta das declarações prestadas pelo recorrente, transcritas no corpo das presentes alegações, prestadas na primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, a 19/09/2022, conforme acta de fls…, ficheiro áudio 20220919144605_6042041_2870533, minuto 00:03:40 ao minuto 00:04:15 e nas declarações, igualmente supra transcritas, prestadas em igual sessão, constantes do mesmo ficheiro áudio, minuto 00:20:25 ao minuto 00:21:03, conclui-se, e nada mais nos autos há que o possa contrariar, que a vítima, certo dia, propôs vender a arma ao recorrente, que não estava interessado em adquirir; e conclui-se, também, que a vítima, passados uns dias, surgiu novamente, já com munições, convidando o recorrente para experimentar a arma.
4ª - Assim sendo, nada existindo nos autos (conforme refere a própria motivação), que infirme ou contrarie as declarações do arguido quanto a essa circunstância, mal andou o tribunal a quo, ao dar como provado que o arguido quis experimentar a arma, já que o que resultou provado foi que o arguido/recorrente aceitou experimentar a arma, impondo-se, por isso, que o ponto 2. da fundamentação de facto da sentença seja alterado para “O arguido aceitou experimentar a sobredita arma”.
5ª – No que respeita ao ponto 5. da decisão quanto à matéria de facto, encontra-se, salvo o devido respeito, incompleto, dado que o circunstancialismo descrito pelo recorrente evidencia outro pormenor: a vítima, após efectuar o primeiro disparo, e antes de passar a arma ao arguido, abriu a arma e remuniciou-a, fechando-a e entregando-a posteriormente ao arguido/recorrente.
6ª - Isto mesmo resulta do que foi relatado, pelo recorrente, em audiência de discussão e julgamento, transcrito no corpo das presentes alegações, e presentes no ficheiro áudio 20220919144605_6042041_2870533, minuto 00:19:15 ao minuto 00:20:20: o recorrente assistiu à abertura da arma, feita pela vítima, viu igualmente a arma ser remuniciada, igualmente pela vítima, que, após, a fechou e a entregou ao recorrente.
7ª - A formulação deste ponto, tal como se encontra no acórdão em crise, não evidencia este aspecto essencial, que foi relatado pelo recorrente, e que foi imprescindível para que o recorrente formasse a convicção de que a arma estava em segurança, ou seja, que não efectuaria qualquer disparo;
8ª – Por isso, ao constatar que a arma disparou e atingiu a vítima, o recorrente ficou supreendido, tal como notou a Meritíssima Juiz, na audiência de julgamento; porque não estava à espera que a arma disparasse, pois esta tinha sido, momentos antes, aberta e municiada pela vítima.
9ª – Face ao relatado pelo recorrente ao tribunal e inexistindo nos autos prova que contrarie ou infirme esse relato, impõe-se, quanto ao ponto 5. da fundamentação de facto, a sua alteração para  “Após, o arguido constatou que BB abriu a arma, remuniciou-a, fechou-a, tendo entregue depois ao arguido para que experimentasse”.
10ª – Relativamente ao ponto 8 da decisão quanto à matéria de facto, e analisando a respectiva motivação, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que o douto tribunal a quo confunde três acções distintas: levantar a arma, apontar a arma e efectuar o disparo, reduzindo estes três comportamentos a um só, quando são comportamentos diferentes, desígnios diferentes, com consequências jurídicas diferentes.
11ª - O recorrente o que relatou ao tribunal foi que pretendia pregar um susto ao amigo, apontando-lhe a arma, mas o tribunal a quo, sabe-se lá como, entendeu que o recorrente o que pretendia fazer era, não apontar a arma, mas sim disparar na direcção da vítima. No entanto, as regras da experiência, da lógica e do senso comum o que ditam é que um susto não se prega com um disparo de caçadeira de canos serrados, a menos de 10 metros; prega-se apontando a referida arma (que se sabia, ou se confiava, em segurança). Ou dito de outra forma: basta apontar uma caçadeira para atingir o desígnio de assustar a pessoa a quem se aponta a arma.
12ª – Para além disso, não há qualquer fundamento para a conclusão, do tribunal de primeira instância, de que o recorrente, para assustar a vítima, quis disparar a arma. A motivação refere que o contexto e, sobretudo, o gesto que se lhe seguiu dão a resposta (sendo “gesto” o disparo). Ora, o gesto não poderá ser o sobretudo, pois, com isso, relativiza-se o contexto e a ser assim (ou a permitir que seja assim) os tribunais perderão o seu sentido de ser: se os tribunais se focarem, sobretudo, no gesto, todo e qualquer acto que apresente um resultado tipo será, necessariamente, crime; E bem sabemos que assim não é. A realidade encerra múltiplas circunstâncias, as quais têm relevância penal e, como tal, têm de ser consideradas e valoradas pelos tribunais.
13ª – Há pois que atender ao contexto (tão ou mais importante que o gesto que se lhe seguiu) e que foi referido pelo recorrente, transcrito no corpo das presentes alegações, na primeira sessão de audiência de discussão e julgamento, a 19/09/2022, conforme acta de fls…, ficheiro áudio 20220919144605_6042041_2870533, minuto 00:10:43 ao minuto 00:16:18, minuto 00:25:00 até ao minuto 00:25:48, e do qual resulta que o que o recorrente pensou foi em assustar o amigo, apontando-lhe a arma, no entanto ao levantar a arma ela disparou, tendo-o apanhado de surpresa.
14ª - Em bom rigor, o recorrente, embora quisesse apontar a arma ao amigo para o assustar (o que é diferente de querer disparar) nem sequer chegou a apontar a arma na direcção da vítima, porque ao levantar a arma, ela disparou.
15ª - Não se entende a insistência do tribunal de primeira instância relativamente à forma de assustar a vítima – para assustar o recorrente não teria que disparar a arma, bastar-lhe-ia apontar. E é isto mesmo que é ditado pelas regras elementares de experiência, lógica e senso comum: para alguém se assustar bastará ver uma arma a si apontada; não é necessário realizar qualquer disparo.
16ª - Recapitulemos: o recorrente pensou em pregar um susto ao amigo, apontando-lhe a arma (e não através de um disparo); ao levantar a arma verificou, com supresa, que a mesma disparou; é apenas isto que resulta das declarações prestadas pelo arguido/recorrente na audiência de julgamento.
Tudo o resto é, salvo o devido respeito, fantasioso. E isto porque as declarações do recorrente não são contrariadas, nem infirmadas por qualquer outra prova produzida em audiência de julgamento, nem são, tão pouco, contrariadas pelas regras de experiência, da lógica ou do senso comum (que, pelo contrário e uma vez mais, até as reforçam).
17ª - Haverá, pois, que proceder à alteração do ponto 8. dos factos provados para os seguintes termos “Nesse momento, a menos de 10 metros, o arguido levantou a arma, julgando que a patilha de segurança estava activada, tendo verificado depois, e com surpresa, que a mesma estava pronta a disparar” e, à eliminação dos pontos I) e J) dos factos não provados.
18ª – Relativamente aos pontos 16. a 22. da fundamentação de facto e à respectiva motivação, o arguido/recorrente, contrariamente ao aí referido, não admitiu ter ponderado usar a arma em BB. O que o recorrente admitiu foi que ponderou apontar a arma à vítima e, assim, pregar-lhe um susto. Ouvindo, de fio a pavio, as declarações prestadas pelo recorrente, não há um único momento em que este tenha admitido ter ponderado disparar a arma.
19ª – No entanto, o tribunal a quo tomou um conceito por outro (apontar e disparar), inquinando todo o raciocínio que fez a partir daí; prova disso é o segmento que consta da motivação “por tudo isto é evidente (…) que não se tratou de um disparo acidental (não querido); pois que o arguido pensou em disparar e executou, de seguida, a acção representada”. O “tudo isto” a que a motivação se refere é, somente, a conclusão, errada, de que o arguido quis disparar. Mas, conforme referimos, o arguido não quis disparar; o arguido apenas ponderou apontar a arma à vítima, para assim a assustar.
20ª - Assim, não pode ser aquela a premissa para a conclusão, feita pelo tribunal de primeira instância, “não se tratou de um disparo acidental, pois que o arguido pensou em disparar e disparou”.
21ª - Relativamente às circunstâncias do facto, o recorrente sempre relatou, desde que se denunciou às autoridades, que o disparo que infelizmente se verificou não foi por si querido, porque a experiência que tinha era a de, que após aberta e remuniciada, a arma accionaria a patilha de segurança, não realizando qualquer disparo (ainda que premido o gatilho) sem antes ser destravada. E isto mesmo foi comprovado pelo inspector da Polícia Judiciária, conforme resulta a fls. 174 e 175 dos autos.
22ª - O recorrente, enquanto caçador, foi possuidor de uma arma caçadeira, mas o perfeito conhecimento que adquiriu sobre o manuseamento de armas circunscreve-se, somente, à arma que em tempos possuiu (e que se encontra identificada nos autos), dessa forma, falece a conclusão presente no ponto 17: O recorrente tinha perfeito conhecimento, somente, sobre o manuseamento da caçadeira de que, em tempos, foi possuidor;
23ª – O acórdão proferido dá ainda como provado que o recorrente sabia que a arma que a vítima lhe queria vender, por ter sido modificada, exigia cuidados especiais no seu manuseamento. No entanto, e em bom rigor, todas as armas exigem cuidados especiais no seu manuseamento, não só as modificadas. Por outro lado, o disparo que se verificou deveu-se ao facto de a arma não estar em segurança (quando tudo apontava para que estivesse, já que tinha sido antes aberta e remuniciada);
24ª - O tribunal a quo dá como provado que aquela arma, por ter sido modificada, exigia cuidados especiais no manuseamento, mas o recorrente (a quem o tribunal reconhece conhecimentos sobre todas as armas caçadeiras), nas declarações que prestou, e que se encontram transcritas no corpo das presentes alegações, referiu que os canos serrados não interfeririam com a patilha de segurança, já que esta se localiza noutra zona da arma, conclusão que o próprio tribunal a quo, na audiência de julgamento, reconhece, com naturalidade, lógica e sentido.
25ª - Inexiste, pois, qualquer base (seja factual, seja de lógica, de experiência ou senso comum) para a conclusão inserta no ponto 18. dos factos dados como assentes;
26ª - Relativamente ao ponto 19., e no seguimento do que se vem dizendo, o recorrente, por ter sido caçador e possuidor de uma determinada arma, a experiência que tinha era a de que, após aberta e remuniciada, era accionada a patilha de segurança o que impederia o disparo.
27ª - Não se trata aqui de saber se o recorrente tinha ou não a obrigação de verificar, antes, se a arma estava ou não em segurança, o que se trata aqui é saber que experiência é que adquiriu enquanto caçador. Ora, foi essa experiência que criou no recorrente a convicção, e com a qual baseou a sua actuação, relativamente à abertura da arma e ao accionamento da patilha de segurança.
28ª - As declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento e transcritas no corpo das presentes alegações, e o exame à arma de fls. 174 e 175 comprovam, relativamente à arma que em tempos foi do recorrente, “sempre que a mesma é aberta o sistema de segurança acciona-se automaticamente. Por isso, para fazer fogo é necessário empurrar, para a frente, a patilha que se encontra no topo da base dos canos”.
29ª – O recorrente o que relatou ao tribunal foi que a arma que a vítima lhe queria vender, à semelhança da arma que o arguido em tempos possuiu, estaria em segurança, pois tinha acabado de ser aberta, à sua frente, ou seja, não efectuaria qualquer disparo, ainda que premido o gatilho. Ademais, o recorrente não viu a vítima a destravar a arma o que também contribuiu para a convicção, que o recorrente formou, de que a arma não efectuaria qualquer disparo.
30ª – Também o exame à arma de fls. 174 e 175 e o depoimento da testemunha CC, inspector da Polícia Judiciária, demonstram que, no caso da arma que pertenceu ao arguido, a patilha de segurança activa-se quando a arma é aberta; o que significa que, para disparar, tem de se empurrar (destravar) a patilha.
31ª - Assim, por ter sido caçador, e em tempos possuidor de uma arma, a experiência que o recorrente tinha era a de que, após ser aberta, a arma, para disparar, teria que ser destravada. Por esse motivo, quando levantou a arma, na direcção da vítima (com o fito de lhe pregar um susto), o recorrente estava convicto de que a arma não dispararia porque tinha sido aberta e depois fechada (logo, com a patilha de segurança activa); não tinha visto a vítima (que foi quem abriu a arma e a fechou) a destravá-la.
32ª – Em suma, o recorrente não previu, claro está, que a arma dispararia. Logo não previu, nem quis, a morte da vítima.
33ª – A decisão do tribunal de primeira instância relativamente aos factos dos pontos 19. a 22 é desprovida de prova que confirme ou sustente a factualidade aí dada como assente – muito pelo contrário, a prova produzida só reforça o que desde sempre foi alegado pelo recorrente.
34ª - O recorrente não tinha como ter “perfeito conhecimento” sobre manuseamento de armas – tem apenas conhecimento sobre o manuseamento da arma que em tempos teve – que se encontra devidamente identificada nos autos (contrariamente à arma do crime);
35ª - O recorrente não tinha como saber que a arma, por ter sido modificada, exigia cuidados especiais no seu manuseamento – aliás, o recorrente afirmou ao tribunal que o facto de ter os canos serrados não afetaria a patilha de segurança;
36ª - O recorrente não tinha de verificar a arma antes de a utilizar – uma vez mais, a experiência que ele tinha era a de que após aberta a arma ficaria em segurança.
37ª - O recorrente ao ver a vítima a abrir a arma, formou a convicação de que esta estaria em segurança. Criou a expectativa de que a arma estaria segura, com base na legítima experiência que tinha tido como caçador. Ao levantar a arma, com o objectivo concreto de pregar um susto ao amigo, verificou o recorrente, depois e com surpresa, que a arma estava pronta a disparar.
38ª – Nunca quis concretizar qualquer disparo, ainda que tenha premido o gatilho: o recorrente só premiu o gatilho porque estava convicto que a arma estava em segurança e que, por isso, nunca efectuaria qualquer disparo.
39ª - Dessa forma, não houve qualquer conduta livre, esclarecida, consciente ou voluntária por parte do recorrente.
40ª – Impõem-se, por isso, a eliminação dos pontos 17., 18., 20. e 22. dos factos dados como assentes e a alteração da decisão quanto à matéria de facto constante dos pontos 19. e 21., nos seguintes termos: 19. Por ter sido caçador, a experiência que tinha no manuseamento da sua arma, era a de que após aberta e remuniciada, a arma accionava automaticamente a patilha de segurança, não realizando qualquer disparo, ainda que premido o gatilho, sem antes ser destravada; 21. Ao levantar a arma na direcção de BB, estava concivto que a arma não efectuaria qualquer disparo, ainda que premido o gatilho, porque a mesma estaria em segurança após ter sido remuniciada.

B)
Quanto à matéria de Direito
41ª - Concluiu o tribunal de primeira instância que actuação do recorrente foi dolosa (na modalidade de dolo eventual) uma vez que, no seu entender, o recorrente representou a morte da vítima como possível e conformou-se com a mesma.
42ª - No entanto, tendo presente a impugnação à decisão quanto à matéria de facto e na sua procedência, cairá por terra a decisão proferida quanto à matéria de direito (que dela depende), isto é, ficando demonstrado que o recorrente não representou como possível o disparo da arma (o que lhe adveio da experiência que tinha, enquanto caçador, relativamente ao sistema de segurança da arma) a actuação do recorrente não poderá ser tida como dolosa, mas sim como negligente – já que, nos termos do artigo 15º do Código Penal, “Age com negligência quem (…) não chegar sequer a representar a possibilidade de realizaçao do facto”.
43ª - Admitir-se-á que, enquanto caçador e em tempos detentor de licença, o recorrente deveria saber, ou era-lhe exigido saber, que, não obstante o sistema de segurança da arma, não deveria apontar a arma a ninguém. No entanto, a inobservância desta regra não cairá no domínio do dolo, mas sim da negligência: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz”.
44ª - A decisão de querer pregar um susto a outra pessoa (porque convicto que a arma não dispararia) traduziu-se na violação de um dever de cuidado que a que o recorrente (como qualquer pessoa) estava obrigado. Aquela convicção foi essencial para que o recorrente tomasse a decisão de levantar a arma e sem ela, o recorrente não teria levantado a caçadeira.
45ª – Ou seja, o recorrente, não obstante conhecedor (como qualquer pessoa) do perigo de levantar a arma e premir o gatilho (isto é, o facto ilícito) nem sequer admitiu que o disparo ocorreria (ou seja, que o preenchimento do tipo se verificaria).
46ª - Da impugnação à matéria de facto resulta que o arguido não previu a morte da vítima; Logo não poderia com ela conformar-se (elemento essencial para o dolo, ainda que eventual). O desígnio que relatou ao tribunal não foi realizar o de efectuar o dísparo, mas sim “apenas” o de apontar a arma à vítima, só porque julgava ter a arma travada – convicção que se traduz no elemento essencial para qualificar a actuação do recorrente como negligente e não dolosa.
47ª - Ao decidir como decidiu, qualificando a actuação do recorrente como dolosa, mal andou o tribunal a quo, violando, dessa forma, o disposto no artigo 15º do Código Penal, impondo-se, por isso, a alteração da decisão quanto à matéria de direito que, condenando o recorrente como autor do crime que lhe fora imputado, o faça a título de negligência.
48ª - Sem prescindir, ainda que não se entenda pela actuação negligente do recorrente, e ainda que improceda a impugnação à matéria de facto, o que não se concebe, nem se concede, sempre se dirá que mal andou o tribunal a quo quando, na escolha e determinação da medida da pena, não considerou a actuação do recorrente como factor atenuante da pena a aplicar.
49ª - O presente processo apresenta características peculiares, sendo raro apresentar-se aos tribunais um caso de alguém que se denuncia perante as autoridades, como autor de um crime de homicídio, dez ou onze anos depois dos factos, de forma inteiramente voluntária, sem haver qualquer indício de ter sido ele o autor do crime, ou sequer, indício que efectivamente teria existido um crime – note-se que, à parte da participação do desaparecimento, feita em 2009, mais nenhuma diligência foi feita ou promovida relativamente ao desaparecimento da vítima.
50ª - Sem a intervenção do recorrente, o crime ocorrido nunca seria descoberto. Não obstante, o recorrente apresentou-se voluntariamente às autoridades, contou e esclareceu o que se passou, ciente de que responderia criminalmente por tais factos.
51ª - A iniciativa, intervenção e colaboração do recorrente, não só em 2018, mas ao longo de todo o processo, foram essenciais e imprescindíveis para a descoberta da verdade. E, apesar de saber que, com isso, com a sua autoincriminação, havia a séria possibilidade de ser privado da sua liberdade, o recorrente não deixou de participar o crime, colaborar com as diligências de inquérito e de prestar depoimento na audiência de julgamento.
52ª - Apesar de ter considerado para efeitos de diminuição das exigências de prevenção geral e especial, o tribunal a quo errou, salvo o devido respeito, ao não considerar aquelas particulariedades para efeitos de atenuação especial da pena. Com efeito, determina o artigo 72º do Código Penal, que o tribunal atenua especialmente a pena quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
53ª – Apesar do carácter excepcional do mecanismo, não poderemos descurar os contornos do presente processo: o arguido/recorrente apresentou-se a denunciar um crime por si cometido, crime esse que não seria descoberto sem a sua colaboração.
54ª - A isto acresce a inexistência de antecedentes criminais, a boa inserção familar, social e profissional do recorrente e, finalmente, o tempo decorrido desde os factos denunciados, sem qualquer reparo à conduta do recorrente, circunstâncias que, no nosso entender, diminuem, as necessidades de prevenção.
55ª - A moldura penal fixada para o crime de homicídio, 8 a 16 anos, e ainda que se pondere o mínimo legal, não foi pensado e fixado para casos como o presente, que apresenta contornos únicos já explanados e que exigem que a pena a aplicar ao recorrente seja, por motivos de justiça, diferente daquelas que se aplicam à generalidade dos crimes perseguidos pelo sistema penal, para os quais está prevista a moldura penal ínsita no artigo 131º e as demais circunstâncias previstas no artigo 71º, ambos do Código Penal.
56ª - Os tribunais não poderão tratar, da mesma forma, o autor de um crime que é denunciado por outrém e o autor de um crime que se entrega voluntáriamente às autoridades; não poderão tratar, da mesma forma e seguindo os mesmos critérios, um crime cometido há um ano ou dois e um crime que já tem mais de uma década; Para os primeiros (que representam a generalidade dos processos-crime) servirão os critérios enunciados no artigo 71º do Código Penal, cabendo ao julgador, perante os contornos do caso concreto, avaliar as necessidades de prevenção geral e especial; Para os segundos, que assumem caractér excepcional (como o presente) servirá o instituto, também ele excepcional, da atenuação especial da pena.
57ª – Se não se aplicar, ao presente caso, o instituto da atenuação especial da pena, este aplicar-se-á, então, em que casos?
58ª - Em suma, atendendo às circunstâncias que diminuem, de forma acentuada, a culpa do agente e a necessidade da pena, deverá a pena a aplicar ao recorrente ser especialmente atenuada, reduzindo-se a um quinto o limite mínimo e a um terço o limite máximo da pena de prisão, só assim se fazendo justiça.»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.

A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na 1ª instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e concluindo da seguinte forma:

«1º- O recorrente interpôs recurso impugnando a matéria de facto, nos termos do previsto no art.º 412.º/3 e 4 do CPP, por entender que não foi feita prova dos “factos provados” nos pontos 2, 5, 8, 16 a 22 e que a factualidade constante das alíneas I) e J) dos “factos não provados”, devem ser dadas como provadas, dando, assim, uma “outra leitura da prova”, descontextualizando as suas declarações das demais provas produzidas, atacando a convicção do julgador, sem demonstrar que o julgador violou o princípio da livre convicção da prova, na sua avaliação e ponderação.
2º- Todavia, na impugnação da matéria de facto, o que releva é a avaliação e ponderação que o Tribunal “a quo” faz das provas produzidas, segundo o princípio da livre convicção, de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, nos termos do previsto no art.º 127.º do CPP.
3º- O recorrente não aponta qualquer violação das regras da produção e valoração da prova que ponha em causa, de forma sustentada, a fundamentação do Tribunal “a quo” sobre a matéria de facto; a motivação do acórdão é coerente, lógica e inteiramente permitida pela intervenção das regras da experiência, pelo que não existe qualquer fundamento para alterar a matéria de facto apurada e constate dos pontos 2, 5, 8, 16 a 22 dos “factos provados”, bem como a factualidade constante das alíneas I) e J) dos “factos não provados”,
4º- Acresce que, da factualidade provada nos pontos 2, 5 e 8 resulta que, o recorrente empunhou a arma modificada, a cerca de 10 metros da vítima que, se encontrava de costas para o recorrente, sendo de todo impossível à vítima se assustar, pois, estava de costa para o arguido e não visualizou o recorrente manusear a arma, quando este a apontou à cabeça e deflagrou o tiro. 
5º- Em face das regras da experiência comum e critérios de normalidade, não se vislumbra de que forma fosse possível à vítima ser assustada, nos termos alegados pelo recorrente, pelo que não há, violação de qualquer norma ou princípio probatório no acórdão recorrido, nem se mostra possível alterar a matéria de facto das alíneas I) e J) e dar as mesmas como provadas.
 6º- O Tribunal “a quo” deu como provados os factos constantes dos pontos 16 a 22, formando a sua convicção, pela conjugação e concatenação de toda a prova produzida nos autos, apreciada com o respeito pelos critérios da normalidade e as regras de experiência comum e sopesando as declarações, parcialmente confessórias do arguido, os depoimentos das testemunhas, que conjugou com os dados objectivos extraídos da prova documental e pericial, ante a sua idoneidade e força probatória.
7º- Em termos de prova o Tribunal “a quo” valorou o auto de notícia do crime e relatório de inspecção judiciária, de fls. 43 e ss., o auto de reconstituição de fls. 72 a 76, o termo de verificação de óbito de fls. 80, a informação de fls. 165 e 166, a diligência de fls.174 e 175, e o relatório de ocorrência de fls. 204; no que concerne à prova pericial, foi tido em conta o relatório de exame pericial com registo fotográfico de fls. 89 a 106, o relatório pericial de identificação genética individual, de fls. 186 a188 e o relatório de autópsia médico-legal com registo fotográfico, de fls. 179 a 185.
8º- No exame crítico da prova, o Tribunal “a quo” convenceu-se de que o disparo do recorrente não era acidental, uma vez que  é possível inferir que o mesmo representou como possível o resultado e que se se conformou com essa representação, sendo tal versão do recorrente contrariada pela dinâmica descrita, apreciada, quer em si, quer à luz das regras da lógica, da experiência e senso comum, daí ter o julgador dado como não provada a versão da defesa, designadamente, as alíneas I) e J) e por provados os pontos 16 a 22.
9º- Esta convicção baseou-se nas declarações do recorrente, da sua comprovada experiência no manuseamento de armas, do teor do auto de reconstituição de fls.72 a 76, do teor do relatório de autópsia (a presença dos chumbos e uma bucha na cabeça da vítima) e do comum conhecimento do alcance normal de uma caçadeira (70 m de distância); o julgador deu como provado que o recorrente efectuou um disparado na direção de BB, pois levantou a arma, apontou-a e disparou na direcção da vítima, que se encontrava a cerca de 10 metros (isto é, a uma distancia curta).
10º- O Tribunal “a quo” mais se convenceu-se (e bem) que, o recorrente não actuou, em erro sobre as circunstâncias do facto, por força da dinâmica do evento, do relato do recorrente, da sua experiência como caçador e manuseamento de armas, do modo de funcionamento da arma de calibre 12 com que habitualmente, caçava semelhante à que experimentou no local dos factos, mas que tinha os canos serrados, do facto de não ter logrado perceber se a arma modificada estava travada ou não, pelo que sabia, necessariamente que, a arma carecia de cuidados especiais de manuseamento e que o comportamento da arma pode ser imprevisível, depois de modificada.
11º- O Ministério Público concluiu que, exame crítico da prova, efectuado pelo Tribunal “a quo, no acórdão recorrido, é motivado, claro, lógico, objectivo e apreensível, pelo que nada mais há a acrescentar, em face da correcta ponderação e a capacidade crítica, plasmada no dito aresto, pelo que em face do exposto falecem todos os fundamentos invocados no recurso interposto, termos em que deve o mesmo improceder, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra.
12º- O Recorrente entende que não se provou o dolo eventual que lhe foi imputado, pois não representou como possível o disparo da arma, tendo actuodo com negligência; por via disso defende que a decisão de direito está mal fundamentada, atacando o tratamento subsuntivo, ao nível do elemento subjectivo, quanto à actuação do arguido, procurando suporte para uma diversa qualificação jurídico-criminal da sua conduta.
13º- O recorrente foi condenado por homicídio na pessoa de BB, com base nos factos descritos nos pontos 1 a 22 da decisão sobre a matéria de facto (tal como constam do acórdão recorrido), tendo o Tribunal “a quo” concluído que, em face da factualidade apurada, o recorrente actuou com dolo eventual.
14º- No essencial, ficou provado que, em data não concretamente apurada do verão de 2008, a vítima BB, propôs vender ao arguido uma caçadeira de dois canos sobrepostos, que se encontravam serrados (ponto 1) e que, o Recorrente, sendo caçador e conhecedor de armas, quis experimentar a sobredita arma para averiguar se apresentava condições de funcionamento. (ponto 2).
15º-Mais se provou que o recorrente foi caçador e, em tempos, foi possuidor de uma arma caçadeira de calibre 12, de dois canos sobrepostos e como tal, tinha perfeito conhecimento sobre o manuseamento de armas caçadeiras, tendo conhecimento que a arma que vítima lhe queria vender, encontrando-se com os canos serrados, tinha sido modificada, e que, por isso exigia cuidados especiais no seu manuseamento. (pontos 16, 17 e 18).
16º- Por via disso, o recorrente sabia que tinha de verificar a arma em questão antes de a utilizar e, sobretudo, tinha de verificar se estava ou não travada antes de disparar; o que não fez; mais sabia que, em circunstância alguma, deveria experimentar a arma, apontando-a e disparando-a contra o corpo de outra pessoa. (pontos 16, 17 e 18);
17º- O recorrente ao apontar a arma na direcção da vítima, sabendo que a mesma estava municiada e, ao premir o gatilho e disparar, nas circunstâncias apuradas, sabia que podia atingi-lo e causar-lhe a morte, possibilidade com a qual se conformou, tendo actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei (pontos 19, 20, 21 e 22).
 18º- Assim, é inequívoco que a matéria de facto apurada (os elementos objectivos do tipo) revela que, o recorrente se conformou com a possibilidade de o seu comportamento de forte temeridade e elevado risco - disparos de arma de fogo a cerca de 10 metros da vitima - poder determinar consequências para a vida de BB, uma vez que é da experiência das coisas que, um tiro de arma de fogo pode matar ou ferir com maior ou menor gravidade. (ponto 21).
19º- Especificamente, o recorrente, empunhando uma arma de fogo, efectuou voluntariamente um disparo, vindo o projéctil disparado a atingir a vítima que se encontrava de costas, a cerca de 10 metros de distância e, ao empunhar a arma de canos cerrados, estruturalmente modificadas, sabia que se encontrava municiada, ao premir o gatilho e disparar, teve consciência que os disparos que efectuava, atendendo ao local onde se encontra e à distância onde se encontrava a vítima que que atingiu, eram susceptíveis de lhes causar a morte, e prefigurou tal possibilidade, aceitando a verificação de tal resultado, caso viesse a acontecer.
20º- Estes factos integram os elementos do dolo eventual: o recorrente representou (isto é, «teve consciência») a realização do facto a como consequência possível da conduta, e actuou conformando-se com a realização do facto (art.º 14.º/3 do CP) o que afasta, logo neste momento essencial, a negligência como forma «tipicamente cunhada» de aparecimento do crime (cfr, Figueiredo Dias, op. cit., pág. 630 ss, desig. 631), pelo que, deve o recurso interposto, ser declardo improcedente nesta parte.
21º- Por fim, o Recorrente não concorda com a medida concreta da pena, por entender que o Tribunal “a quo” não considerou que a sua confissão perante a autoridade policial, 10 a 11 anos depois dos factos e, no seu entendimento, esta atitude rara, de colaboração com a justiça no decurso de todo o processo, deve funcionar, como factor atenuante especial a aplicar, nos termos do previsto no art.º 72.º do CP (vide conclusões 48º a 58º).
22º-No que toca à determinação da medida da pena concretamente a aplicar ao arguido, ela foi feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo certo que a culpa constitui o fator máximo superior da pena, ou seja, o limite máximo da pena adequado à culpa não pode ser ultrapassado, nos termos do disposto no art.º 71.º/1, do CP.
23º- No caso concreto o Tribunal “a quo” teve em conta a gravidade objetiva dos factos decorre do modo de execução do mesmo e das suas consequências as lesões causadas à vítima (com uma caçadeira de canos cerrados municiada, dirigido contra a cabeça da vítima, que se encontrava, desprotegida, de costas; claramente em posição de desigualdade relativamente ao seu agressor, desferiu um tiro) e  o facto do arguido representou a possibilidade dos factos que preenchem o tipo do crime de homicídio e conformou-se com o mesmo, tendo actuado com dolo eventual, o que por ser a forma menos intensa do dolo, mitigou a culpa e as exigências de prevenção geral; teve em conta a muito acentuada ilicitude dos actos praticados, por força do modo de execução; o elevado grau de censurabilidade da conduta do arguido, revelada pelas circunstâncias em que a morte da vitima foi causada e pela motivação que lhe esteve subjacente, o facto do arguidos encontrar integrado familiar e socialmente, tendo tido um percurso laboral regular, com hábitos de trabalho; desde a prática dos factos em análise, não lhe é conhecida a prática de outros factos ilícitos.
24º- O Tribunal “a quo“ valorou a confissão parcial dos factos, pelo arguido, na parte do disparo da arma contra BB, causando-lhe a morte, e na parte da ocultação do corpo e, ainda, considerou que a confissão do recorrente teve inegável relevância para a descoberta da verdade; não obstante, não conferiu credibilidade a versão do recorrente quanto ao disparo acidental.
25º- O Tribunal “a quo” considerou que o comportamento do recorrente diminuiu, acentuadamente, as exigências de prevenção especial e geral, por ter participado o crime às autoridades policias, até então desconhecido, de forma voluntária, todavia, entendemos que o recorrente não confessou de foram livre, integral e sem reservas, e não pode funcionar, no caso em apreço, como circunstâncias atenuativas especiais, por não se verificar os pressupostos que pudessem levar à atenuação especial da pena, tal como previstos se mostram no art.º 73.º, do CP.
26º- O art.º 72.º/1 do CP determina que o tribunal deve atenuar especialmente a pena, nos termos indicados no art.º 73.º do CP, quando existirem circunstâncias que diminuam acentuadamente a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Já o art.º 72.º/2 enuncia exemplificativamente vários pressupostos da atenuação especial, estando, porém, todos subordinados à cláusula da acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena.
27º- Isto é, não há diminuição da ilicitude ou da culpa, que fundamente uma atenuação especial da pena, se o recorrente não confessou os factos de forma livre, integral e sem reservas, num quadro em que só a sua intervenção processual permitiu a descoberta e investigação.
28º- O Tribunal “a quo” considerou (e bem) ser adequada a aplicação ao Recorrente, considerando a moldura penal do crime de homicídio, na forma consumada (art.º 131.º/1 do C. Penal) – a pena de prisão de 8 anos a 16 anos-, da pena única em 8 anos a 10 meses de prisão, tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial e dentro do limite da culpa, sendo que esta fica mais próxima do limite mínimo do que do limite médio da pena.
29º- O Acórdão recorrido encontra-se corretamente fundamentado quanto à determinação da medida concreta da pena fixada, por se manifestar justa, proporcional e adequada à gravidade da conduta do recorrente e à medida da sua culpa, não merecendo, assim, qualquer reparo ou censura, não ocorrendo por isso qualquer violação do previsto nos arts.º 40.º e 71.º do CP.
30º- O Acórdão recorrido não viola e/ou mal interpreta os artºs 40.º/1 e 2, 70.º, 71.º/1 e 2, 72º, 73.º, 131.º, todos do CP, 127.º do CPP conforme defende o recorrente.»

A assistente DD também se pronunciou, referindo apenas que «a sentença ora em crise é, a todos os títulos de aplaudir, seja pela sua estruturação, seja pela sua clareza, não merecendo qualquer censura jurídica. Pelo que, atendendo a tal circunstância não se vislumbra necessidade de qualquer alegação».
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso, por o acórdão recorrido se encontrar fundamentado de facto e de direito, sem violação de qualquer norma jurídica, o que justifica com a citação de abundante jurisprudência.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].
*
1. Questões a decidir:

A. Impugnação da matéria de facto por errada apreciação e valoração da prova; violação do princípio in dubio pro reo; e respetivas consequências ao nível da subsunção jurídica.
B. Atenuação especial da pena.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes do acórdão recorrido.
«Discutida a causa resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. Em data não concretamente apurada do verão de 2008, BB, com alcunha de “EE”, à data, toxicodependente, propôs vender ao arguido uma caçadeira de dois canos sobrepostos, que se encontravam serrados.
2. Sendo caçador e conhecedor de armas, o arguido quis experimentar a sobredita arma para averiguar se apresentava condições de funcionamento.
3. No circunstancialismo descrito em 1., BB conseguiu arranjar munições para a dita arma e, para o efeito descrito em 2., dirigiu-se, com o arguido, a um pinhal, junto da Avenida ..., em ..., na estrada que liga ... a ....
4. Nessa ocasião, para experimentar e demonstrar a eficácia da arma, BB municiou-a e efectuou um disparo em direcção de uma pinha.
5. Após, BB, passou a arma, carregada, para o arguido, para que a experimentasse.
6. Entretanto, pousou um pássaro, à frente nuns carvalhos.
7. BB começou a correr, nessa direcção, dando as costas ao arguido, ao mesmo tempo que lhe dizia “está ali um, está ali um”, incentivando-o a disparar.
8. Nesse momento, a menos de 10 metros, o arguido apontou-lhe a arma, com o dedo no gatilho, e disparou, atingindo-o na cabeça.
9. Como consequência directa e necessária, BB sofreu, no crânio e na mandíbula, múltiplas fracturas cominutivas com perda da normal configuração.
10. No interior da cabeça da vítima, inserida numa amálgama de terra e raízes, encontrava-se uma “bucha de plástico”, compatível com constituinte de munição de arma de fogo de cano comprido (espingarda) e ainda cento e setenta e oito elementos metálicos de forma arredondada compatíveis com projectéis de arma de fogo de cano comprido (“grãos de chumbo”).
11. Em consequência directa e necessária das lesões traumáticas cranianas descritas em 9. resultou a morte, imediata, de BB.
12. Após ter efectuado o disparo, o arguido abandonou a vítima naquele local, pegou na arma dirigiu-se ao rio e deitou-a à água.
13. No dia seguinte, o arguido voltou ao local onde tinha abandonado o corpo de BB e enterrou-o.
14. Munido de um albião, ferramenta de dois lados que possui uma picareta e machado de cabo comprido, escavou um buraco, no pinhal, a cerca de 10 metros do local onde se encontrava o corpo, arrastou-o e colocou-o naquela cova, em decúbito dorsal, colocando por cima um plástico, transparente, entalando as pontas por de baixo do corpo.
15. Após, cobriu a cova, com cerca de um ou dois metros de terra, ficando o corpo enterrado com cerca de palmo a palmo e meio de terra.
16. O arguido foi caçador e, em tempos, foi possuidor de uma arma caçadeira de calibre 12, de dois canos sobrepostos.
17. Como tal, tinha perfeito conhecimento sobre o manuseamento de armas caçadeiras.
18. Sabia que a arma que BB lhe queria vender, encontrando-se com os canos serrados, tinha sido modificada, e que, por isso exigia cuidados especiais no seu manuseamento.
19. Por ter sido caçador e ter experiência no manuseamento de armas, sabia que tinha de verificar a arma em questão antes de a utilizar e, sobretudo, tinha de verificar se estava ou não travada antes de disparar; o que não fez.
20. Sabia, ainda, que, em circunstância alguma, deveria experimentar a arma, apontando-a e disparando-a contra o corpo de outra pessoa.
21. Ao apontar a referida arma na direcção de BB, sabendo que se encontrava municiada e ao premir o gatilho e disparar, conforme supra descrito, sabia que podia atingi-lo e causar-lhe a morte, possibilidade com a qual se conformou.
22. O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
23. O arguido confessou, em parte, os factos supra elencados.
Provou-se ainda que:
24. Em 30 de Novembro de 1973, em Pousada ..., ..., nasceu BB, filho de FF e de DD.
25. A morte de BB, nas circunstâncias, supra, descritas, trouxe a DD dor, tristeza, angústia e saudade que lhe causaram depressão.
26. Existiam entrem mãe e filho laços de afecto, carinho e amor.
27. Durante cerca de uma década, DD acalentou a esperança que o filho se encontrasse bem e regressasse a casa, sofrendo, diariamente, pelo desconhecimento do seu paradeiro.
28. Foi com choque que recebeu a notícia da sua morte, nas circunstâncias supra descritas.

Mais se provou que:

29. O arguido, AA, nasceu no agregado familiar dos pais, com uma fratria de doze, e de deficitária condição sócio-económica.
30. A vivência familiar ficou marcada pelo alcoolismo do pai e pela violência perpetrada sobre a cônjuge. 
31. Frequentou o ensino regular até ao 6.º ano de escolaridade.
32. Completado o 6.º ano, com treze anos, abandonou o percurso escolar.
33. Com dezasseis anos, passou a trabalhar na indústria têxtil.
34. Com dezanove anos registou consumos de haxixe.
35. Com vinte e cinco anos, em contexto de namoro, nasceu um filho, com o qual não manteve relação.
36. Na mesma altura, iniciou consumos de heroína.
37. Há cerca de dezasseis anos, iniciou uma união de facto com a actual companheira.
38. Integraram o agregado familiar os dois filhos da companheira, à data, com 12 e 3 anos, com os quais estabeleceu laços de afecto.
39. Ao longo dos anos, AA tornou-se mais reservado e introspectivo, reduzindo as suas relações sociais e familiares ao mínimo.
40. Trabalhou no ramo da construção civil.
41. Há cerca de 4 ou 5 anos, trabalha na “T..., Instalações Elétricas”.
42. É referenciado como um bom trabalhador.
43. O arguido aufere uma retribuição mensal de cerca de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
44. Mantém acompanhamento psiquiátrico, depois de uma tentativa de suicídio.
45. Ofereceu resistência em expressar uma reflexão crítica, ainda que em abstracto, quanto aos factos imputados.
46. No meio social, não se reflectiu impacto ao nível da sua inserção, nem se registaram indicadores de rejeição ou sentimentos de animosidade.

Com relevo e interesse para a discussão da causa, não se provou que:

A) o evento descrito em 11. tivesse ocorrido em data não apurada do verão de 2006 ou 2007.  
B) No contexto descrito em 3., BB municiou a arma com dois cartuchos.
C) No contexto descrito em 4., a arma não disparou.
D) Após, BB tirou o cartucho deflagrado e introduziu um novo, e fechou a arma.
E) O arguido pegou na arma, mas ficou durante uns instantes a conversar com BB sobre se a arma funcionava ou não, sendo que este tentava convencer o arguido a comprá-la.
F) Os carvalhos referidos em 6. estavam a cerca de 20 metros.
G) O pássaro voou logo que BB começou a fazer barulho, ficando o arguido a cerca de seis metros daquele, que se encontrava de costas.
H) O arguido, irritado, disse a BB que “agora merecias que eu experimentasse a arma em ti”.
I) O arguido julgava que a arma que lhe foi entregue por BB tinha a patilha de segurança activada, estando, por isso, convencido, com base na sua experiência como caçador, que para lograr o disparo teria acionar a patilha da arma.
J) Por isso, ao apontar a arma à vítima estava convicto que a mesma estaria em segurança, tendo verificado depois, e com surpresa, que a mesma estava pronta a disparar.
K) Nos momentos em que decorreu o evento, BB foi tomado de um sentimento de total pânico e temor absolutos, teve consciência plena, que a sua vida ia terminar.
L) Essa compreensão, angustiou-o profundamente.

Motivação
O Tribunal formou convicção, quanto à factualidade apurada e não apurada, apreciando as declarações, parcialmente confessórias, prestadas pelo arguido, relevando-as à luz dos elementos objectivos carreados pela investigação ao longo do seu decurso, desde logo, à luz dos dados extraídos da prova documental (ante a sua idoneidade e força probatória bastante, por não impugnada na sua genuinidade/veracidade); - maxime, o auto de notícia do crime e relatório de inspecção judiciária, de fls. 43 e ss., a informação base de dados, de fls. 55, 61 a 79, 77 e 78, o auto de reconstituição de fls. 72 a 76, o termo de consentimento de fls. 79, o termo de verificação de óbito de fls. 80, a informação de fls. 165 e 166 e o relatório de ocorrência de fls. 204, -, ainda relevando-as com os dados extraídos da prova pericial (ante a sua plena força probatória); máxime, o relatório de exame pericial com registo fotográfico de fls. 89 a 106, o relatório pericial de identificação genética individual, de fls. 186 a188, e o relatório de autópsia médico-legal com registo fotográfico de fls. 179 a 185, tudo se concatenando, numa perspectiva também filtrada pelas regras da lógica, experiência e normalidade do acontecer, com as declarações da assistente e os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento; desde logo, dos inspectores da PJ, titulares da investigação, GG e HH, da assistente, DD, mãe da vítima, e das testemunhas II, JJ e KK, irmãos da vítima, conforme se passa a concretizar.
Em primeiro plano, far-se-á uma abordagem cronológica dos meios de prova, para, em segundo plano, se passar a uma abordagem conjugada e crítica à luz das regras da lógica, senso e experiência comum.
Assim, o Tribunal contou com as declarações de AA, confessórias, essencialmente, na parte do disparo com a dita arma contra BB, causando-lhe a morte, e na parte da ocultação do corpo. Quanto ao demais, o arguido defendeu-se, dizendo que se tratou de um acidente no manuseamento da arma, e não de uma actuação propositada.
Falou de modo fluído e consonante, sintónico e aparentemente impermeável.
Frisou, todavia, que tem falta de memória e que vai a consultas de psiquiatria.
Nesse registo, AA relatou ao Tribunal, em síntese, a sucessão de factos ou eventos que segue.
Num dia, que, concretamente, já não sabe situar no tempo, tinha o seu enteado 4 anos (agora tem 20 anos), a vítima, que era seu amigo, apareceu-lhe em casa para lhe vender uma arma caçadeira, de canos sobrepostos, serrados (modificada).
Aceitou experimentá-la, se aquele arranjasse as munições, o que aconteceu, dias depois, deslocando-se ambos ao pinhal, junto à via rápida, para o efeito. Nesse contexto, o BB disparou em primeiro lugar e depois passou-lhe a arma carregada. Estiveram, ali, um pouco à espera de um pássaro para testar a arma, considerando que tinha sido caçador.
Algum tempo volvido, pousou um pássaro, à frente, nuns carvalhos; altura em que o BB começou a correr na direcção da ave e a dizer “está ali um, está ali um”. Ficou ali a olhar para aquele disparate do amigo a correr para o pássaro, que fugiu, e pensou que ia pregar-lhe um susto. Ocorreu-lhe dizer que ia experimentar a arma nele, mas não disse.
Levantou a arma, apontou-lha e disparou na direcção dele, conforme descreveu no auto de reconstituição de fls. 72 a 76. Estariam, na altura do disparo, a menos de 10 metros.
Foi um acidente, foi tudo muito rápido. Não pensou que a arma disparasse, pensou que estivesse em segurança. Pensou que a arma estivesse travada porque quando se carrega (municia) a patilha de segurança acciona automaticamente. Confiou nisso.
O BB caiu morto, atingido na cabeça.
Deixou-o lá e foi ao rio deitar “as armas”, ou melhor, a arma. No dia seguinte voltou ali, escondeu-o, enterrando-o. Com um albião que levou de casa, abriu um buraco onde deitou o corpo, cobrindo-o com um plástico para os animais não o detectarem e para proteger o corpo, porque o buraco não era profundo. E cobriu-o de terra. Não se recorda como, ou onde, arranjou o plástico.
Foi caçador durante 10 anos, tirou a carta de caça em 1986. Caducou em 2000. Nesse período, entre 86 e 98, cerca de dois anos antes da carta caducar caçava regularmente, com uma caçadeira calibre 12 como a que experimentou. Tratava-se de uma espingarda, calibre 12, marca ...”, com o livrete ...59, examinada e fotografada nos autos a fls. 174 e 175. Para a disparar tem que pôr a patilha “em fogo”, porque se estiver travada o gatilho não se mexe. Só com o dedo no gatilho não se consegue perceber se está travada ou não, nem ninguém se arrisca a isso.
Todavia, não pode dizer se a arma que utilizou na vítima tinha as mesmas características.
O sucedido sempre o atormentou. Tinha pesadelos e, em 2018, decidiu ligar à PSP. Quando os inspectores vieram ao seu encontro, mostrou-lhes o sítio onde tinha escondido o corpo da vítima.
Frequenta consultas de psiquiatria, mas não sabe se padece de alguma doença, porque a médica que o assiste não lhe diz. E, em síntese, mais não disse.
Findas as declarações prestadas, ouviu-se a assistente, DD, mãe da vítima BB, que confirmou que o filho era toxicodependente, que tinha deixado o trabalho como padeiro e que, por isso, o marido o tinha expulsado de casa. Não obstante, vinha vê-la todos os dias, também para lhe pedir dinheiro.
De modo firme e resoluto, declarou que a última vez que viu o filho BB foi no dia 21 de Junho de 2008; pois foi o dia em que saiu de casa por se ter desentendido com o marido que reagiu, com violência, à presença do filho. Zangada e triste, foi viver com o filho II.
Quando confrontada com as declarações prestadas, perante a polícia, em sede de inquérito (fls. 190 e 191), na medida em que a defesa consentiu na sua leitura, conforme da acta consta, não confirmou, aliás, rejeitou, veementemente, o segmento em que se diz que esperaram três anos para participar o desaparecimento. Esclareceu que foi um dos filhos que o reportou à polícia e que só por alguma confusão poderia ter ficado a constar que esperaram tanto tempo. Os outros irmãos andaram sempre à procura dele, até pelo .... Recebiam informações de que estava nalgum sítio e lá iam eles ver se o encontravam.
Referiu que sentia saudades do filho, e que estava sempre preocupada e a pensar nele. Até lhe tirava o sono de tristeza e inquietação. Ainda hoje se sente assim, pensa na morte que o BB teve, fica zangada e não dorme.
Seguiu-se o depoimento do inspector da PJ, CC, autor do relatório de fls. 194 e ss., e do exame à arma de fls. 174 e 175, que confirmou. Nesta parte, esclareceu que, no caso da arma que pertenceu ao arguido, a patilha de segurança activa-se quando a arma é aberta. O que significa que, para disparar, tem de se empurrar (destravar) a patilha que fica no topo da base dos canos.
Já noutra sessão, ouviu-se a inspectora da PJ, HH que estava de prevenção na brigada quando o arguido se apresentou junto da PSP.
Deslocou-se ao pinhal junto à ..., a caminho de ..., onde encontrou AA, que lhes assinalou o local onde enterrara BB. Apresentava-se lúcido e coerente, verbalizando o seu arrependimento.   
Mediante a sua descrição, procederam à reconstituição do facto no auto de fls. 72 e ss., que confirmou. E, com a colaboração do INML, procederam a buscas, até terem encontrado o corpo, precisamente, no sítio que apontava o arguido, conforme registam o relatório fotográfico e respectivos registos fotográficos de fls. 89 e ss.
Recolheram-no e fizeram o contacto com a família, para colheita de amostras.
Enviados os restos mortais e as amostras para análise obtiveram-se os resultados vertidos nos relatórios periciais (autópsia) de fls. 179 e ss e de identificação genética individual de fls. 136, confirmando-se quer a causa da morte adiantada pelo arguido (múltiplas fracturas do crânio e mandíbula, com perda da normal configuração compatíveis com trauma causado por arma de fogo), quer a identidade da vítima BB.   
Finalmente, foram ouvidos os irmãos da vítima, II, JJ e KK que depuseram de modo coerente, consonante e sério.
Do primeiro obteve-se a confirmação da situação pessoal de BB (era solteiro, não tinha filhos e era toxicodependente, o que lhe valia uma relação muito complicada com o pai).
Referiu que, quando o irmão desapareceu, pensaram que pudesse ter ido para o estrangeiro para se afastar dos seus problemas. Procuraram-no por todo o lado e jamais perspectivaram que estivesse morto; sobretudo, a mãe que ficou muito chocada e triste com a notícia.
Com a mesma resolução e assertividade da mãe, explicou que participaram o desaparecimento em 2009, tendo esperado algum tempo na esperança que regressasse, mas não os três anos “que se disse no processo”. Isto porque, o irmão BB, em Maio de 2008, visitou a sobrinha que nascera em Janeiro daquele ano. Nessa altura, já a mãe tinha saído de casa e vivia com eles. Referiu, incisivamente, que o viu uma última vez em ... no final desse Maio. 
JJ descreveu, corroborando o depoimento do irmão II, a situação pessoal de BB, bem como, a data da participação do desaparecimento à GNR; o que só não ocorrera antes porque estavam na esperança que aparecesse.
Também confirmou que a mãe esteve sempre “em baixo”, desde que o irmão desapareceu. Com a notícia da sua morte ficou mais angustiada e ainda mais triste.
No mesmo sentido, KK, que até estava com a mãe quando recebeu a visita da PJ, confirmou que a viu muito triste, muito abalada, teve de receber apoio porque perdeu o interesse “pelas coisas”. Ainda hoje, embora mais recuperada, fala no assunto.
Olhada, na sua globalidade, a prova produzida e apreciada, criticamente, à luz da lógica e das regras da experiência comum, retiraram-se as conclusões que seguem.
Ante as declarações de AA, na parte confessória, ante as constatações dos inspectores com base nas diligências efectuadas no terreno e ante os resultados dos exames periciais que se seguiram, todos, supra, elencados, dúvidas não subsistem de que BB morreu, efectivamente, no dito pinhal, na sequência de um trauma crânio-encefálico e mandibular produzido por um disparo de arma efectuado pelo arguido, que, para o efeito, apontou a arma na sua direcção e o alvejou.
No que concerne ao tempo em que ocorreu o evento, embora o arguido, em sede de audiência de julgamento, tenha apontado para um hiato de cerca de 20 anos, a verdade é que as suas declarações resultaram, nesta parte, claramente infirmadas, pelos demais elementos de prova documental, por declarações e testemunhal produzidas nos autos.
Desde logo, no auto de notícia de 4 de Agosto de 2018 refere-se a participação de uma morte, por ferimento de bala, há cerca de 10 anos. Dito de outro modo, em Agosto de 2008; o que vem de encontro às declarações da assistente e aos depoimentos das testemunhas, JJ e II, supra referidos, que situam o desaparecimento de BB entre Maio e Junho de 2008.
Na verdade, pese embora a natural proximidade aos interesses da causa e a natural perda da memória exacta do tempo, até porque, entretanto, decorreu uma década, sendo normais algumas imprecisões quanto à localização temporal do evento, a assistente e as duas testemunhas foram peremptórias e assertivas ao localizar o desaparecimento da vítima, por referência a eventos familiares marcantes; o abandono do lar conjugal por parte de DD e/ou o nascimento da filha de II.
À luz das regras da normalidade, os eventos importantes são, efectivamente, marcos capazes de auxiliar à contextualização de outros factos, fixando-os como memórias fiáveis, tal como se considerou ser o caso de DD e dos filhos, II e JJ.
Não se olvida que, em sede de inquérito, a assistente declarou que fizeram a participação do desaparecimento de BB três anos depois de deixarem de o ver e/ou de ter qualquer notícia; o que localizaria em 2006 o seu sumiço, contradizendo as declarações prestadas em audiência.
Todavia, o Tribunal ficou convencido de que aquela declaração proferida em sede de inquérito se terá devido a manifesto lapso ou confusão momentâneos. É perfeitamente compreensível que a declarante, recentemente confrontada com a notícia do óbito do filho, estivesse naturalmente transtornada e menos capaz de um depoimento consentâneo. Veja-se que, nas mesmas declarações, refere que a última vez que teria estado com o filho teria sido há cerca de 10 anos; no dia 22 de Junho; o que aponta para Junho de 2009 (considerando que foi inquirida em Julho de 2019). Como tal, não poderiam ter decorrido três anos até à participação do depoimento que se sabe, por confronto com o respectivo registo de fls. 67, ocorreu em 8 de Junho de 2009.
Afigura-se, com o devido respeito por entendimento contrário, que terá havido manifesto lapso, involuntário, na indicação do dito contexto temporal; que se superou considerando o auto de notícia e os depoimentos de II e JJ, nos moldes já, supra, apresentados, fixando-se o evento, pelo menos, no Verão de 2008, o que levou, por contraditória, à demonstração de que ocorreu no ano de 2006 ou 2007.            
No que respeita ao contexto e dinâmica, envolventes, considerou-se, necessariamente, a confissão do arguido que desvenda, com interesse, algumas dessas circunstâncias; designadamente, o negócio subjacente, o tipo e características da arma e a experiência como caçador (nesta parte, corroborado pela informação de fls. 165 v.º), e, finalmente, o teste de disparo efectuado, descrevendo a intervenção de cada um dos intervenientes, conforme apurada, que é consentânea no contexto global da acção, nada existindo nos autos que a infirme, ou contrarie.
Todavia, porque a dinâmica descrita, apreciada, quer em si, quer à luz das regras da lógica, da experiência e senso comum, contrariam a alegada versão acidental do disparo, apontando, antes, no sentido de uma representação do resultado como possível e de uma actuação em conformidade com essa representação, o Tribunal deu por provados os respectivos factos e, correspondentemente, não provada a versão da contestação.
Veja-se com mais detalhe.
O próprio arguido admitiu, em audiência de julgamento, que ponderou usar a arma em BB, quando disse que ficou a “olhar para aquele disparate do amigo a correr para o pássaro, que fugiu, e pensou que ia pregar-lhe um susto”.
Embora não tenha respondido à questão, directa, que lhe foi colocada pelo Tribunal, de saber de que modo o ia assustar, a resposta, considerado o contexto e, sobretudo, o gesto que se lhe seguiu, surge, concludentemente, à evidência. Ia disparar na sua direcção.
Aliás, o próprio arguido até declarou ao Tribunal que lhe ocorreu anunciar ao amigo que ia usar a arma nele; mas, segundo diz, acabou por não o fazer.
Mas se não lho anunciou, sabe-se que o pensou e sabe-se, ademais, que, de seguida, o executou; pois que também confessa que, ali, no momento, levantou a arma, apontou-a a BB e disparou na direcção dele, tal como já sinalizara aquando da reconstituição lavrada em auto de fls. 72 a 76, apontando uma distância entre eles, na altura do disparo, inferior a 10 metros.
Sabe-se, da experiência dos anos, que uma arma caçadeira tem, normalmente, um alcance de cerca de 70 metros.
O próprio arguido, experiente no manuseamento de armas, o confirma.
E por tudo isto, é evidente, com o devido respeito por entendimento em contrário, que não se tratou de um disparo acidental (não querido); pois que o arguido pensou em disparar e executou, de seguida, a acção representada, atingindo o amigo pelas costas. Mais; tratou-se, claramente, de um disparo a curta distância; o que se desvenda, não só das declarações de AA, como também do resultado da autópsia médico-legal referida que revela a presença, não só dos chumbos, mas de uma bucha na cabeça do visado. Bucha esta que, num disparo a dezenas de metros, se dispersaria.
Destarte, conclui-se que não se tratou de um disparo acidental; pois que o arguido pensou em disparar e disparou.
 Importa, então, saber se essa acção assentou no errado convencimento de que a arma estava travada e na confiança nessa representação. Dito de outro modo, importa saber se os indícios e sinais recolhidos nos autos apontam, com inegável segurança e certeza, no sentido de que o arguido agiu, como sustenta, em erro sobre as circunstâncias do facto. 
No circunstancialismo presente, como se disse, a descrição da dinâmica do evento advém, necessariamente, do relato do arguido, que declara, em seu exclusivo interesse, que foi BB que disparou, em primeiro lugar, e lhe entregou a arma; levando-o assim a pensar que estaria travada.
Este convencimento, segundo disse, adveio-lhe do facto de que o sistema de segurança da arma é accionado quando a arma é aberta, pelo que, quando BB a abriu para carregar, a caçadeira ficara em segurança.
Sabe-se, perante o exame à arma de fls. 174, a qual, segundo a informação da PSP de fls. 165 vº, pertenceu ao arguido (por ambos possuírem força probatória, suficiente, por natureza), que, no que respeita à ..., de dois canos sobrepostos, calibre 12, sempre que a arma é aberta o sistema de segurança acciona-se automaticamente. Por isso, para fazer fogo é necessário empurrar, para a frente, a patilha que se encontra no topo da base dos canos.
Porém, quanto às características da arma usada no pinhal, apenas se sabe, pelo arguido, que se tratava de uma arma caçadeira, calibre 12, de dois canos serrados; ou seja, tratava-se de uma arma modificada. Quando perguntado pelas demais características, o arguido nada adiantou; dizendo não o saber.
Mas o que não podia ignorar, por ser consabido e, sobretudo, por ser caçador, é que uma arma modificada apela a cuidados especiais de manuseamento; pois o funcionamento pode ter sido alterado. Assim como o comportamento da arma, depois de modificada, pode ser imprevisível.  
Como se disse, fazendo fé no próprio, sabe-se que AA tem uma experiência de 10 anos como caçador, encartado, caçando regularmente com uma caçadeira calibre 12; como aquela que experimentou no pinhal.
Efectivamente, a conjugação da informação da PSP de fls. 165v.º, com o exame e registo fotográfico de fls. 174 e 175, já referidos, que são documentos idóneos, por natureza, não impugnados, demonstram que foi titular da dita ..., pelo menos, entre 7 de Agosto de 1986 (data de aquisição) e 6 de Setembro de 1989 (data de transmissão).
Quando confrontado com as características da sua antiga arma e à pergunta de saber se só com o dedo no gatilho se consegue perceber se a arma está travada ou não, AA refere que não, acrescentando que ninguém se arriscaria a isso. Acrescentar-se-ia, numa perspectiva de lógica e senso comum, ninguém se arriscaria a fazê-lo, muito menos contra outro ser humano.
O que, também, logicamente, revela que; em termos abstractos, um caçador, ou utilizador de uma arma verifica sempre se a arma está travada e; em termos concretos, o arguido tinha presente esse procedimento. Afinal, “ninguém se arriscaria” a disparar sem saber; sobretudo, uma arma modificada. O que é o mesmo que dizer que, ao não o fazer, com toda a sua experiência, o arguido tinha, pelo menos, de representar, como possível, atingir BB e causar-lhe a morte. Ao disparar sobre as costas do amigo, como disparou, uma arma modificada, a curta distância, teve, pelo menos, de se conformar com o resultado previsto.
Nessa medida, à questão de saber se os indícios recolhidos corroboram, inequivocamente, a versão do erro, a resposta foi negativa, por resultar, ao contrário, demonstrado que o arguido representou o resultado como consequência possível da sua conduta e actuou indiferentemente a tal representação, que conduziu à indemonstração, por contraditória, da versão do acidente/erro.
A relação de parentesco entre a vítima e DD resultam demonstrados da pesquisa às bases de identificação civil juntas aos autos (fls. 15 vº), que, não impugnada, apresenta relevo probatório suficiente para o efeito.
Os laços de proximidade e danos não patrimoniais demonstrados foram revelados, de modo coerente, adequado e sério, pela assistente e pelos filhos, nos moldes supra expostos, que são consentâneos com o que resulta da normalidade do acontecer.
Os antecedentes criminais são revelados pelo crc junto aos autos, sob a ref.ª ...10, de 5 de Dezembro de 2022, por ser documento, por natureza, com idoneidade e eficácia probatória extrínseca e intrínseca plena.
Os factos relativos à situação sócio-familiar e laboral extraem-se do relatório social junto aos autos sob a ref.ª ...39, de 15 de Setembro de 2022, que, por, não impugnado, apresenta eficácia probatória bastante.
Nesta parte, também se relevaram as declarações de AA que confirmou, de modo coerente e consentâneo, aqueles dados, inclusive, o facto de, há um par de anos, vir beneficiando de tratamento médico-psiquiátrico. Embora tenha evitado falar no seu diagnóstico (optando por dizer que não o conhece porque o médico não lho revela; o que se tem por altamente improvável e, por isso, inverosímil), o seu discurso, sempre orientado espácio-temporalmente, coerente e, sobretudo, sempre tendo em vista os seus próprios interesses, não denotou, em nenhum momento, qualquer fragilidade cognitiva e/ou volitiva; o que é, aliás, perfeitamente congruente com a sua integral inserção familiar, social e laboral.
Conforme se retira do relatório social, fundado na consulta do relatório médico disponibilizado, foi após a apresentação às autoridades policiais que o arguido apresentou um quadro de mal-estar pessoal, com ansiedade e inquietação, a gerar perturbação emocional, o que se afigura como provável até pela pressão exercida pelo contacto com o sistema judicial. Sobretudo, pelo facto de, ao longo das sucessivas fases processuais, o arguido ter visto contrariada a sua versão dos factos desenhando-se no horizonte consequências mais gravosas do que aquelas que, eventualmente, perspectivou. De todo o modo, trata-se de quadro que está a ser devidamente acompanhado, e que não se revela ter interferido no seu juízo crítico, que se apresentou intocado.
A factualidade não apurada foi como tal considerada ante a falta e/ou insuficiência e/ou inidoneidade da prova produzida para demonstração dos demais factos relativos à dinâmica da acção, e ainda ante as contradições geradas com a factualidade apurada, nos moldes que supra já constam, quanto à localização temporal do evento e à actuação negligente e/ou em erro.»
***

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

. Impugnação da matéria de facto por errada apreciação e valoração da prova; violação do princípio in dubio pro reo; e respetivas consequências ao nível da subsunção jurídica.

O recorrente começa por argumentar não se ter feito prova da factualidade descrita nos pontos 2, 5, 8, e 16 a 22 dos Factos Provados, que foi por isso erradamente dada como provada; e que, por outro lado, a factualidade constante das alíneas I) e J) dos Factos Não Provados deveria ter sido considerada provada. Para o que faz uma impugnação ampla, alargada à análise do que se pode, ou não, extrair da prova produzida em audiência.
O recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova e busca de uma nova convicção, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido. Limitando-se o Tribunal da Relação a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente, sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação que lhe é imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
A decisão do recurso sobre a matéria de facto tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova produzida através de declarações do arguido, assistente e depoimentos de testemunhas, face à ausência de contacto direto com esses intervenientes, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.
Posto isto, e dentro dos limites que a lei estabelece para a apreciação do recurso da matéria de facto, vejamos se o Tribunal coletivo a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida em audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.
No recurso não se discute a autoria pelo arguido do disparo da arma de fogo contra o corpo de BB, que foi causa direta e necessária da sua morte; nem tão pouco a posterior ocultação do corpo. A grande divergência reporta-se a saber se tal se ficou a dever a mero acidente/erro no manuseamento da arma, como defende o recorrente, ou a atuação com representação prévia do resultado morte como consequência possível da conduta e conformação com o mesmo, como consta da matéria fática considerada apurada.
Estamos, pois, no domínio da prova de elementos da vida interior, das intenções, insuscetíveis de direta apreensão, só possíveis de captar através das ações objetivas praticadas pelo agente, analisadas à luz de presunções de normalidade e regras da experiência.
Ouvida a reprodução áudio das declarações prestadas em audiência pelo arguido/recorrente e feita a sua conjugação com o relatório de exame pericial com o registo fotográfico de fls. 89 a 106, o relatório pericial de identificação genética individual, de fls. 186 a188, e o relatório de autópsia médico-legal com registo fotográfico de fls. 179 a 185,  não há dúvidas de que nas circunstâncias de tempo e local em causa nos autos, o arguido apontou a arma na direção de BB e o alvejou, causando a sua morte, na sequência de um trauma crânio-encefálico e mandibular produzido por aquele disparo.
Por sua vez, é o próprio arguido a admitir, nas suas declarações, que antes do disparo fatal, e quando a vítima começou a correr para um pássaro, que fugiu, o que o arguido percecionou como «um disparate», pensou usar a arma contra ele e «pregar-lhe um susto», tendo-lhe então até ocorrido anunciar ao BB que ia usar a arma nele, mas acabou por não o fazer.
Sabe-se também, por declarações do próprio arguido, que logo de seguida ele, efetivamente, levantou a arma, apontou-a a BB e disparou na direção dele. Altura em que se encontravam a distância inferior a 10 metros, como resulta da reconstituição lavrada em auto de fls. 72 a 76 (feita com base na descrição do arguido).
É igualmente o arguido a informar que foi caçador durante 10 anos, tendo tirado a carta de caça em 1986; que caducou em 2000. E que entre 1986 e 1998, cerca de dois anos antes da carta caducar, caçava regularmente, com uma caçadeira calibre 12, marca ...”, com o livrete ...59, a qual foi examinada e fotografada nos autos a fls. 174 e 175. Mais informou o arguido que para a disparar tem que se pôr a patilha “em fogo”, porque se estiver travada o gatilho não se mexe; e que só com o dedo no gatilho não se consegue perceber se está travada ou não, nem ninguém se arrisca a isso.
Soube também o arguido caraterizar a arma com que disparou o tiro fatal contra a vítima, que afirmou ser uma caçadeira, de canos sobrepostos, serrados, modificada; não podendo afirmar que essa arma tinha as mesmas características da sua.
Sabia também confessadamente o arguido que uma arma caçadeira tem, normalmente, um alcance de cerca de 70 metros.
Neste contexto factual objetivo, não nos merecem objeções as ilações dele retiradas pelo Tribunal coletivo a quo, que através da sua ponderação à luz das regras da experiência e normalidade que enuncia, explica na motivação:
«… não se tratou de um disparo acidental (não querido); pois que o arguido pensou em disparar e executou, de seguida, a acção representada, atingindo o amigo pelas costas. Mais; tratou-se, claramente, de um disparo a curta distância; o que se desvenda, não só das declarações de AA, como também do resultado da autópsia médico-legal referida que revela a presença, não só dos chumbos, mas de uma bucha na cabeça do visado. Bucha esta que, num disparo a dezenas de metros, se dispersaria.
Destarte, conclui-se que não se tratou de um disparo acidental; pois que o arguido pensou em disparar e disparou.
 Importa, então, saber se essa acção assentou no errado convencimento de que a arma estava travada e na confiança nessa representação. Dito de outro modo, importa saber se os indícios e sinais recolhidos nos autos apontam, com inegável segurança e certeza, no sentido de que o arguido agiu, como sustenta, em erro sobre as circunstâncias do facto. 
No circunstancialismo presente, como se disse, a descrição da dinâmica do evento advém, necessariamente, do relato do arguido, que declara, em seu exclusivo interesse, que foi BB que disparou, em primeiro lugar, e lhe entregou a arma; levando-o assim a pensar que estaria travada.
Este convencimento, segundo disse, adveio-lhe do facto de que o sistema de segurança da arma é accionado quando a arma é aberta, pelo que, quando BB a abriu para carregar, a caçadeira ficara em segurança.
Sabe-se, perante o exame à arma de fls. 174, a qual, segundo a informação da PSP de fls. 165 vº, pertenceu ao arguido (por ambos possuírem força probatória, suficiente, por natureza), que, no que respeita à ..., de dois canos sobrepostos, calibre 12, sempre que a arma é aberta o sistema de segurança acciona-se automaticamente. Por isso, para fazer fogo é necessário empurrar, para a frente, a patilha que se encontra no topo da base dos canos.
Porém, quanto às características da arma usada no pinhal, apenas se sabe, pelo arguido, que se tratava de uma arma caçadeira, calibre 12, de dois canos serrados; ou seja, tratava-se de uma arma modificada. Quando perguntado pelas demais características, o arguido nada adiantou; dizendo não o saber.
Mas o que não podia ignorar, por ser consabido e, sobretudo, por ser caçador, é que uma arma modificada apela a cuidados especiais de manuseamento; pois o funcionamento pode ter sido alterado. Assim como o comportamento da arma, depois de modificada, pode ser imprevisível.  
Como se disse, fazendo fé no próprio, sabe-se que AA tem uma experiência de 10 anos como caçador, encartado, caçando regularmente com uma caçadeira calibre 12; como aquela que experimentou no pinhal.
Efectivamente, a conjugação da informação da PSP de fls. 165v.º, com o exame e registo fotográfico de fls. 174 e 175, já referidos, que são documentos idóneos, por natureza, não impugnados, demonstram que foi titular da dita ..., pelo menos, entre 7 de Agosto de 1986 (data de aquisição) e 6 de Setembro de 1989 (data de transmissão).
Quando confrontado com as características da sua antiga arma e à pergunta de saber se só com o dedo no gatilho se consegue perceber se a arma está travada ou não, AA refere que não, acrescentando que ninguém se arriscaria a isso. Acrescentar-se-ia, numa perspectiva de lógica e senso comum, ninguém se arriscaria a fazê-lo, muito menos contra outro ser humano.
O que, também, logicamente, revela que; em termos abstractos, um caçador, ou utilizador de uma arma verifica sempre se a arma está travada e; em termos concretos, o arguido tinha presente esse procedimento. Afinal, “ninguém se arriscaria” a disparar sem saber; sobretudo, uma arma modificada. O que é o mesmo que dizer que, ao não o fazer, com toda a sua experiência, o arguido tinha, pelo menos, de representar, como possível, atingir BB e causar-lhe a morte. Ao disparar sobre as costas do amigo, como disparou, uma arma modificada, a curta distância, teve, pelo menos, de se conformar com o resultado previsto.
Nessa medida, à questão de saber se os indícios recolhidos corroboram, inequivocamente, a versão do erro, a resposta foi negativa, por resultar, ao contrário, demonstrado que o arguido representou o resultado como consequência possível da sua conduta e actuou indiferentemente a tal representação, que conduziu à indemonstração, por contraditória, da versão do acidente/erro.»
Assim, e contrariamente ao pretendido pelo recorrente, são irrelevantes como prova as suas declarações quando proclama a tese do disparo acidental, já que os factos objetivos em que se concretiza a sua atuação, conjugados com presunções de normalidade e regras da experiência dizem precisamente o contrário, revelando a dinâmica dos acontecimentos e a sua intenção, nos termos plasmados nos impugnados pontos 2, 5, 8, 16 a 22 dos Factos Provados.
Perante o que carece de relevância a argumentação recursória, apoiada na atribuição de um significado muito pessoal e subjetivo de palavras usadas nos factos provados e em excertos descontextualizados das declarações do arguido.
É o que acontece, designadamente, com a forma verbal «aceitou» do ponto 2 dos Factos Provados, contra a qual se insurge o recorrente, alegando que deve ser substituída por «quis», por só esse sentido comportar a prova produzida.

Ora, a matéria facto de tal ponto 2 é a seguinte:

«2. Sendo caçador e conhecedor de armas, o arguido quis experimentar a sobredita arma para averiguar se apresentava condições de funcionamento.» (Negrito nosso)
O Tribunal justifica a prova de tal facto com as declarações do arguido, a propósito do que se pode ler na motivação: «Num dia, que, concretamente, já não sabe situar no tempo, tinha o seu enteado 4 anos (agora tem 20 anos), a vítima, que era seu amigo, apareceu-lhe em casa para lhe vender uma arma caçadeira, de canos sobrepostos, serrados (modificada).
Aceitou experimentá-la, se aquele arranjasse as munições, o que aconteceu, dias depois, deslocando-se ambos ao pinhal, junto à via rápida, para o efeito.» (Negrito nosso)
Neste circunstancialismo, é manifesto que «aceitar» experimentar a arma que a vítima lhe queria vender pressupõe necessariamente que o arguido quis experimentá-la, ou não teria acompanhado BB ao lugar dos factos, para esse efeito.
Quanto ao ponto 5 dos factos provados, onde se pode ler: «Após, BB, passou a arma, carregada, para o arguido, para que a experimentasse.»; pretende o recorrente que seja completado de modo a dele constar que, após efetuar o primeiro disparo, e antes de passar a arma ao arguido, o BB «abriu a arma e municiou-a, fechando-a e entregando-a posteriormente ao recorrente.»
Com tal pretendendo que fique consignado que a vítima municiou a arma duas vezes e, em consequência disso e por via disso, o arguido convenceu-se que a dita arma estava em segurança.
Contudo, reportando-se os factos a uma arma caçadeira modificada, o recorrente, como caçador e antigo e com experiência no manuseamento de armas, não podia desconhecer que tendo a arma sido modificada, o funcionamento de todos os seus componentes (incluindo o da patilha de segurança) não se apresentava a priori previsível, pois podiam ter ficado afetados pelas modificações nela efetuadas.
Por sua vez, tendo essa arma desaparecido, não sendo por isso suscetível de exame direto, não é possível afirmar que a patilha de segurança da arma usada estava a funcionar. Neste mesmo sentido vai o depoimento do Inspetor da Polícia Judiciária GG [autor do autor do relatório (de fls. 194 e ss.) e do exame à arma (fls.174 e 175)]
Nada tendo também o arguido esclarecido em audiência quanto às características da arma modificada em termos da patilha de segurança.
Pelo que a introdução como provada da factualidade que se pretende acrescentar ao ponto 5 mostra-se irrelevante, pois dela nunca poderia resultar que o arguido se tivesse convencido que arma estava em segurança.
De todo o modo, o que se retira com segurança da prova produzida em audiência é tão só que a arma foi municiada pela vítima, que depois de deflagrar um tiro numa pinha passou a arma para as mãos do recorrente, que a quis experimentar num pássaro, tal como se encontra consignado nos pontos 4 e 5 dos Factos Provados.
Inexistindo elementos probatórios que permitam garantir a ocorrência de um segundo municiamento da arma pela vítima, antes de a passar ao arguido, como explica o Tribunal a quo na motivação, que por referência à cronologia dos acontecimentos relatados pelo arguido, consignou: «Aceitou experimentá-la, se aquele arranjasse as munições, o que aconteceu, dias depois, deslocando-se ambos ao pinhal, junto à via rápida, para o efeito. Nesse contexto, o BB disparou em primeiro lugar e depois passou-lhe a arma carregada.»
Quanto ao ponto 8 dos factos provados, também impugnado, tem a seguinte redação:
«8. Nesse momento, a menos de 10 metros, o arguido apontou-lhe a arma, com o dedo no gatilho, e disparou, atingindo-o na cabeça.»
A prova desta matéria fática resulta das próprias declarações do arguido, conjugadas com o auto de notícia do crime e relatório de inspeção judiciária, de fls. 43 e ss.; informação base de dados, de fls. 55, 61 a 79, 77 e 78; auto de reconstituição de fls. 72 a 76; termo de consentimento de fls. 79; termo de verificação de óbito de fls. 80; informação de fls. 165 e 166; relatório de ocorrência de fls. 204; relatório de exame pericial com registo fotográfico de fls. 89 a 106; relatório pericial de identificação genética individual, de fls. 186 a188; e relatório de autópsia médico-legal com registo fotográfico de fls. 179 a 185.
A tal contrapõe o recorrente apenas uma outra interpretação das suas próprias declarações, com base em excertos descontextualizados delas retirados, dizendo que “apenas” tinha a intenção de “assustar” a vítima.
Contudo, esta versão alternativa dos factos não apresenta sequer um mínimo de racionalidade lógica, pois se o BB estava de costas para o arguido, apontar-lhe a arma e fazer o gesto de disparar não era atuação adequada a assustá-lo, já que ele tal não poderia visualizar, precisamente pela posição em que se encontrava.
E que no momento em que o arguido apontou e disparou a arma em direção ao BB, este se encontrava de costas, decorre das próprias declarações do arguido, como é enfatizado na motivação e se comprova na respetiva reprodução áudio.
Nenhuma razão válida e relevante existindo para a alteração deste ponto da matéria de facto.
Está, pois, devidamente justificada a prova dos factos impugnados pelo recorrente, bem como a inclusão como não provada da matéria descrita nas alíneas I) e J), por prova do contrário.
Decorrendo de todo o raciocínio exposto na motivação factual do acórdão recorrido, que o Tribunal coletivo a quo optou por uma solução plausível segundo as regras da experiência comum, suportada pelas provas que invoca na fundamentação; sendo essa sua decisão inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
A argumentação e prova indicadas pelo recorrente não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Não competindo ao tribunal de recurso proceder a um novo julgamento, mas somente decidir da existência de eventuais erros do julgamento que foi realizado na 1ª instância. E, neste caso, como já se viu, o Tribunal a quo organizou uma motivação da sua convicção em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
*
Resta fazer uma alusão à alegada violação do princípio in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – que surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado. Tendo esse non liquet de ser resolvido sempre a favor do arguido, sob pena de preterição do referido princípio da presunção de inocência.
Nesta perspetiva, o princípio do in dubio pro reo constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto.
No caso dos autos, da leitura do acórdão recorrido resulta de forma muito clara que o Tribunal coletivo a quo considerou provados os factos (designadamente os que foram impugnados pelo recorrente) para além de qualquer dúvida razoável sobre qualquer deles, sem dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, que se apresenta perfeitamente plausível segundo as provas produzidas e regras da experiência
Não decorrendo do acórdão a existência ou confronto do Tribunal com qualquer dúvida insanável sobre factos, motivo pelo qual não houve nem há dúvida para ser valorada a favor do arguido.
*
Fica prejudicada a questão do afastamento do dolo eventual e consideração da atuação do arguido como negligente, posto que a argumentação recursória deste ponto parte da procedência da impugnação da matéria de facto, o que não ocorreu (cf., desde logo, a parte inicial da 42ª conclusão do recurso).
**
B. Atenuação especial da pena.

O recorrente sustenta, também, que a sua pena deveria ter sido especialmente atenuada, nos termos do artigo 72.º do Código Penal; argumentando com a sua apresentação voluntária às autoridades, contando o que se passou, sem o que o crime (ocorrido cerca de 10 anos antes) nunca seria descoberto; colaborando com a justiça ao longo de todo o processo; ao que acresce a ausência de antecedentes criminais e a sua boa inserção familiar, social e profissional.
Vejamos.
Ao crime de homicídio pelo qual o arguido foi condenado, previsto e punível pelo artigo 131.º do Código Penal, corresponde pena de prisão de oito a dezasseis anos.
Por sua vez, a atenuação especial da pena que o recorrente reclama está prevista no artigo 72.º, n.º 1 do Código Penal, e destina-se àqueles casos em que existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Sendo algumas dessas circunstâncias exemplificativamente enumeradas nas várias alíneas do n.º 2 da mesma disposição legal.
A atenuação especial funciona como uma verdadeira «válvula de escape» do sistema, destinando-se apenas àqueles casos que, pelo seu caráter excecional, apresentem uma gravidade tão diminuída que não coube na previsão do legislador quando fixou os limites normais da respetiva moldura legal; já que para os casos «normais», «vulgares» ou «comuns», «lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.»[2]
No caso em apreço, o recorrente apresenta como fundamento da reclamada atenuação especial a sua colaboração com a justiça, uma vez que se apresentou voluntariamente às autoridades de polícia, o que permitiu a investigação dos factos, até aí desconhecidos; os quais confessou parcialmente, com inegável relevância para a descoberta da verdade; ao que acresce a ausência de antecedentes criminais e a positiva integração familiar, social e profissional.
Circunstancialismo que efetivamente resulta dos autos e milita em termos gerais a favor do arguido, embora desde já se adiante que não tem potencialidade para diminuir a gravidade do facto, a culpa do agente ou as necessidades de prevenção, ao nível legal exigido para o funcionamento da atenuação especial da pena.
Não podemos olvidar, desde logo, que estamos perante um homicídio praticado com uma caçadeira de canos cerrados, municiada, através de disparo dirigido contra a cabeça da vítima; que se encontrava desprotegida, de costas, claramente em posição de desigualdade relativamente ao seu agressor; o que integra um modo de execução que agrava objetivamente a ilicitude do facto, situando-a acima da média. E, simultaneamente, revela uma preocupante e insuficiente interiorização pelo arguido do valor jurídico criminal supremo da vida humana, o que exaspera as necessidades de prevenção geral e necessidade de reposição da validade do comando violado; se bem que no caso mitigadas pela atuação com dolo eventual.
Por outro lado, o arguido não adotou qualquer atitude destinada a reparar as consequências da sua conduta criminosa, para além da já referida apresentação voluntária às autoridades, que permitiu a investigação dos factos, até aí desconhecidos; e da sua confissão parcial.
Neste contexto, não se vislumbram fatores que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da respetiva pena, não assumindo as circunstâncias que militam a favor do arguido a dimensão necessária e suficiente para que se possa considerar a possibilidade de uma atenuação especial nos termos do artigo 72.º do Código Penal.
Já se justificando, contudo, que a pena concreta se situe próximo do ponto mínimo da respetiva moldura legal do crime de homicídio.
Pelo que a pena encontrada pelo Tribunal a quo, de oito anos e dez meses de prisão, situada muito próximo daquele mínimo legal, surge como equilibrada e justa, sendo de manter.
Assim naufragando mais este ponto do recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 2 de maio de 2023
 (Revisto pela relatora)

Fátima Furtado (Relatora)
Armando Azevedo (1º Adjunto)
Cândida Martinho (2ª Adjunta)


[1] Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias § 454 e § 465.