Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2765/18.4T8VCT.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - O caso julgado tem a vertente negativa de exceção, impedindo a repetição de uma causa idêntica quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a vertente positiva de autoridade de caso julgado, impondo a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.

II - O efeito positivo da autoridade de caso julgado assenta numa relação de prejudicialidade em que o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação.

Por força da autoridade de caso julgado, as questões comuns não podem ser decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível, não se exigindo a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

III - Existe uma relação de prejudicialidade entre a ação em que foi discutida e decidida, por sentença já transitada em julgado, a dinâmica do acidente de viação e a responsabilidade dos condutores dos veículos intervenientes, a qual correu termos entre o condutor de um veículo e a seguradora do outro veículo e a ação em que intervém como autora a seguradora que ficou sub-rogada nos direitos do condutor do veículo, por lhe ter pago indemnização no âmbito de seguro de acidente de serviço, e a seguradora do outro veículo que também interveio como ré na primeira ação, verificando-se a autoridade de caso julgado que impede que na segunda ação se discuta novamente a dinâmica do mesmo acidente e a responsabilidade dos mesmos condutores, devendo ser acatada a decisão que sobre essa matéria foi proferida na primeira ação.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

X – Companhia de Seguros, S.A. veio propor contra Y – Companhia de Seguros, S.A. ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum peticionando que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 280.694,80 €, acrescida dos juros de mora vincendos desde a data da entrada da ação até efetivo e integral pagamento.

Posteriormente, a A. veio ampliar o pedido, requerendo a condenação da R. a pagar-lhe, além do peticionado na p.i., a quantia de 35.927,91 €, acrescida de juros de mora.
Como fundamento do seu pedido alega, em síntese, que fez vários pagamentos a C. P. no âmbito do contrato de seguro, do ramo acidentes de serviço, celebrado com o Município ... (empregador do sinistrado).
A culpa pela produção do acidente, de viação e de trabalho, de que foi vítima C. P. recai única e exclusivamente sobre a condutora do veículo seguro na Ré. A proprietária do veículo ligeiro de passageiros matrícula RL havia transferido o risco emergente da circulação do mesmo para a Ré através do contrato de seguro, do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 9084 10001141000.
A A. entende assim que deve ser ressarcida pela R. das quantias despendidas com o trabalhador sinistrado, uma vez que ficou sub-rogada nos direitos do mesmo contra o responsável pela produção do acidente.
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Regularmente citada, a ré contestou a Ré, invocando a prescrição do direito invocado pela autora.
Impugnou ainda a versão do acidente trazida pela A. e pugnou pela improcedência da ação.
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Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho saneador e foi julgada improcedente a exceção de prescrição.
Definiu-se o objeto do processo e procedeu-se à seleção dos temas de prova.
A dinâmica do acidente não foi incluída nos temas de prova por o tribunal ter entendido que, em virtude de tal matéria já ter sido discutida no âmbito da ação nº 619/16.8, a mesma estava abrangida pela autoridade de caso julgado.
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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença que não analisou a dinâmica do acidente por considerar que se verifica a autoridade de caso julgado da ação nº 619/16.8 T8VCT, pelos fundamentos já invocados no despacho proferido na audiência prévia.

A sentença termina com o seguinte teor decisório:

“Pelo exposto, decide-se:
Julgar parcialmente procedente, por provada, a presente ação, condenando a R. a pagar à A. a quantia de 126.649,08 € (cento e vinte e seis mil, seiscentos e quarenta e nove euros e oito cêntimos), acrescida dos juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, desde a data da entrada da presente ação até efetivo e integral pagamento.”
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A ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I - Não existe autoridade de caso julgado da sentença proferida na ação de responsabilidade civil movida pelo credor primitivo, sinistrado, contra a devedora, seguradora daquela responsabilidade civil, aqui apelante, sobre a sentença proferida na ação de reembolso movida pelo credor novo, sub-rogado pelo dito credor primitivo, a aqui apelada, seguradora de acidentes de trabalho, contra a mesma devedora, aqui apelante.
II - Quer porque com a dita sub-rogação aquela devedora, aqui apelante, não pode ficar impedida de usar todos os meios de defesa que podia usar contra o dito credor primitivo, conforme previsto nos princípios gerais, mas sempre, ao menos, por analogia do previsto no artº 585º do CC.
III - Quer porque não existe identidade de sujeitos entre o dito credor primitivo, C. P., e a nova credora, a apelada X.
IV - Quer porque não existe identidade de pedidos entre os formulados pelo dito credor primitivo na respetiva ação, de indemnização dos concretos danos por ele ali invocados, e os formulados pelo novo credor, a apelada, de reembolso de determinadas despesas por ela suportadas (e, como tal, não peticionadas na ação primitiva).
V - A sentença recorrida fez, pois, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto no artº 585º do CC e no artº 581º/1, 2 e 3 do CPC, devendo, como tal, ser revogada e substituída por outra que mande discutir nos autos, como alegado e pedido pela apelante, a responsabilidade civil pela produção do acidente de viação alegadamente geradora da obrigação de indemnizar imputada àquela.
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A ré contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber se a sentença proferida no processo nº 619/16.8T8VCT do Juízo Central Cível de Viana do Castelo – J2 - tem autoridade de caso julgado.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1) A Autora é uma sociedade que se dedica à atividade seguradora.
2) No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com o Município ..., o contrato de seguro, do ramo acidentes em serviço, titulado pela apólice nº 010103008732901, nos termos do qual a Autora assumiu a cobertura de acidentes sofridos pelos trabalhadores incluídos nas folhas de férias.
3) Em abril de 2013, o segurado da Autora participou-lhe um acidente ocorrido cerca das 12h10m do dia 8 de abril de 2013, com o seu trabalhador C. P..
4) O acidente deu-se quando, na data e hora mencionadas, o referido trabalhador regressava do seu local de trabalho, sito no Cemitério de …, para a sua residência, sita na Rua …, Valença, para almoçar.
5) A Autora verificou que o aludido C. P. consta da folha de férias que o seu segurado lhe havia remetido.
6) Cerca das 12h10m do dia 8 de abril de 2014, ocorreu um acidente de viação na EN 1, junto ao Km 2.300, no sentido Valença/Monção, em que foram intervenientes o velocípede propriedade e, à data, tripulado pelo referido C. P. e o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula RL, propriedade da sociedade “Medicina Laboratorial Dr. …, S.A.” e, à data, conduzido por L. S..
7) A proprietária do veículo ligeiro de passageiros matrícula RL havia transferido o risco emergente da circulação do mesmo para a Ré através do contrato de seguro, do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 9084 10001141000.
8) Encontrou-se pendente ação declarativa de processo comum, que opôs o trabalhador sinistrado à ora Ré, que correu termos no Juízo Central Cível de Viana do Castelo – J2 – da Comarca de Viana Do Castelo, sob o nº 619/16.8T8VCT.
9) Por sentença transitada em julgado e considerada a repartição de responsabilidade pela produção do acidente entre os condutores (60% trabalhador sinistrado e 40% à condutora do RL), foi a ação julgada parcialmente procedente e, em consequência, a Ré condenada no pagamento de danos não patrimoniais e patrimoniais e, bem assim, da indemnização, a liquidar em execução de sentença, relativa a ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares, ajudas técnicas, adaptação do domicílio, local do trabalho ou veículo e ajuda de terceira pessoa.
10) Do embate resultaram lesões no trabalhador C. P., razão pela qual foi assistido no local por uma equipa de emergência do INEM.
11) Nessa sequência foi transportado para a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, E.P.E., para prestação dos cuidados de saúde de urgência.
12) Posteriormente, foi encaminhado para a Clínica …, onde efetuou vários exames e, nessa sequência, foi novamente transferido para a Unidade Local de Saúde do Alto Minho, E.P.E. no dia 9 de Abril de 2013, onde ficou internado até ao dia 15 de Abril de 2014.
13) E, nessa data, foi transferido para os Serviços Clínicos da Autora - Casa da Saúde da … para prestação de cuidados médicos e tratamentos adequados, designadamente de medicina física e de reabilitação.
14) E, posteriormente, em 22 de julho de 2013, transferido para as Residências … em Gaia para continuidade do programa de Medicina Física e de Reabilitação, na sequência do diagnóstico de mielopatia cervical pós-traumática e hematoma frontal e das sequelas de tetrapasia Adia D.
15) Em virtude do acidente, o trabalhador encontrou-se com incapacidade temporária absoluta para o trabalho no período de 09.04.2013 a 20.05.2015, data em que lhe foi atribuída alta com incapacidade permanente absoluta de 100%, na medida em que ficou afetado de uma tetraparesia.
16) Durante todo o tempo em que se encontrou em recuperação, o trabalhador necessitou, igualmente, de medicamentos e de produtos farmacêuticos.
17) De igual forma, atentas as sequelas resultantes do acidente, o trabalhador teve, ainda, necessidade de proceder à readaptação da sua habitação, designadamente alterando os acessos, o quarto, casa de banho, etc.
18) A Autora, honrando os compromissos por si assumidos no âmbito da apólice em causa, procedeu ao pagamento, até esta data, da quantia global de € 280.694,80, correspondente às seguintes importâncias parcelares:
- € 1.549,03, a título de despesas com ambulatório;
- € 120,00, a título de assistência vitalícia – alimentação/alojamento;
- € 112,32, a título de assistência vitalícia – honorários médicos/enfermeiros;
- € 4.759,14, a título de assistência vitalícia – medicamentos;
- € 4.764,20, a título de assistência vitalícia – próteses e ortóteses;
- € 852,32, a título de assistência vitalícia – ambulatório;
- € 130,43, a título de assistência vitalícia – EAD;
- € 89.100,35, a título de assistência vitalícia – internamentos;
- € 8.495,81, a título de assistência vitalícia – medicina física e de reabilitação;
- € 14.219,78, a título de assistência vitalícia – transporte de ambulância;
- € 49.402,81, a título de despesas com assistência médica;
- € 637,39, a título de despesas diversas;
- € 297,50, a título de despesas com EAD – Ecografia;
- € 73,04, a título de despesas com EAD – outros;
- € 35,00, a título de despesas com EAD – RX;
- € 25,00, a título de despesas com honorários médicos/enfermeiros;
- € 34.667,79, a título de despesas com internamentos;
- € 659,72, a título de despesas com intervenções cirúrgicas;
- € 20.075,53, a título de indemnização pelo período de ITA;
- € 6.096,30, a título de despesas com medicamentos;
- € 6.690,00, a título de despesas com medicina física e de reabilitação;
- € 3.974,50, a título de despesas com próteses e ortóteses;
- € 16.279,67, a título de despesas com a readaptação da habitação;
- € 3.029,50, a título de despesas com subsídios;
- € 13.603,50, a título de despesas com transportes de ambulância;
- € 1.044,17, a título de despesas com transportes, conforme consta do documento que se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente quanto à data de emissão, data de pagamento e entidade beneficiária.
19) Não obstante a sentença referida em 9), a aqui Autora mantém o acompanhamento médico e medicamentoso do trabalhador e, bem assim o pagamento de todos os valores relacionados com o mesmo, sem que a Ré tivesse transferido, para si, a descrita obrigação de acompanhamento.
20) Desde agosto de 2018 e com a assistência prestada a C. P., a A. procedeu ao pagamento de 35.927,91 € (525 € a título de despesas com ambulatório, 445 € a título de assistência vitalícia – próteses e ortóteses, 8,40 € a título de assistência vitalícia, 30.393,77 € com internamentos, 3.143,89 € de transporte de ambulância, 1.261,39 € a título de despesas diversas, 40 € com uma ecografia, 23,71 € de despesas com internamentos, 80,31 € de despesas com intervenções cirúrgicas e 6,44 € de despesas com medicamentos).
21) Por força da sentença referida em 9), a R. pagou a C. P. a quantia de € 30.000 pelos danos patrimoniais futuros.
22) C. P. recebeu da CGA a quantia de € 5.533,70, a título de subsídio por elevada incapacidade permanente.
23) A A. requereu a notificação judicial avulsa da R., com vista a acautelar uma eventual prescrição dos seus direitos e essa notificação efetivou-se no dia 17 de maio de 2018.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

O caso julgado é uma exceção dilatória (art 577º, al. i), do CPC), que pressupõe a repetição de uma causa depois de a causa anterior ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 580º, do CPC).
Repete-se uma ação quando se propõe ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, considerando-se que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, há identidade de pedido quando nas ações se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (art. 581º, do CPC).
Assim, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (art. 619º, do CPC).
Trata-se do efeito de caso julgado material: a definição dada à relação controvertida não pode ser alterada em qualquer nova ação pois o caso fica julgado e torna-se incontestável.
Esse efeito é ditado por razões de certeza ou segurança jurídica e de prestígio dos tribunais; a instabilidade jurídica seria verdadeiramente intolerável se não pudesse sequer confiar-se nos direitos que uma sentença reconheceu (Acórdão do STJ, de 26.2.2019 in www.dgsi.pt).
O caso julgado tem a vertente negativa de exceção e a vertente positiva de autoridade de caso julgado.
Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 26.2.2019 (in www.dgsi.pt) “a exceção implica sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cfr. art. 581º, nºs 1 a 4, do CPC). A autoridade do caso julgado não: exigir essa tríplice identidade equivaleria, como já se afirmou, a "matar" esta figura; "a autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva”.
A exceção de caso julgado tem um efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância (art. 576º nº 2 do CPC).
A autoridade de caso julgado "tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. (...)
Na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objetos dos dois processos e na exceção uma identidade entre esses objetos. Naquele caso, o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação; neste caso, o objeto processual da primeira ação é repetido na segunda.
Na exceção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.
Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objeto da segunda ação e o objeto definido na primeira ação, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”.
Dito de outro modo, o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objeto da segunda ação mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objeto da ação, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objeto da primeira decisão) (Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.6.2019 in www.dgsi.pt).
Como refere o Prof. Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina pág. 59) “a exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela exceção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida…”.
E, como referido no Acórdão do STJ de 30.4.2019 (in www.dgsi.pt) ”tem sido entendido por alguns, nomeadamente a maioria da jurisprudência, que a autoridade do caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida”.
E não se exige a aludida tríplice identidade mesmo quanto aos sujeitos.
Como se explanou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 5.1.2017, (in www.dgsi.pt) “em algumas situações, apesar de não haver identidade de sujeitos em ambas as ações, o caso julgado da primeira atinge reflexamente o terceiro.
Nessa medida, independentemente dos limites subjetivos do caso julgado, e muito embora a regra seja efetivamente a vinculação entre as partes (eficácia relativa), há casos em que a sentença se projeta na esfera jurídica de terceiros, vinculando-os. Daí que tanto a doutrina, como a jurisprudência, tenham vindo a acolher a distinção entre “eficácia direta” e “eficácia reflexa” do caso julgado. Neste contexto, assumem eficácia reflexa ou ultra partes, por exemplo as sentenças de anulação ou declarativas da nulidade de negócios, as proferidas em questões de estado, as formadas sobre uma relação jurídica que surge como fundamento de pretensões em ações posteriores.”
Para Teixeira de Sousa (in Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 588 e segs.), a eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi decidido entre todos os sujeitos com legitimidade processual, isto é, “ quando a ação decorreu entre todos os interessados diretos (quer ativos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores deve ser aceite por qualquer terceiro”.
Revertendo agora ao caso em apreço, vejamos então se se verifica ou não a autoridade de caso julgado.
Na ação que correu termos no Juízo Central Cível de Viana do Castelo – J2 – da Comarca de Viana do Castelo, sob o nº 619/16.8T8VCT foram partes o trabalhador sinistrado e a ora Ré.
Nessa ação foi proferida sentença transitada em julgado e considerada a repartição de responsabilidade pela produção do acidente entre os condutores (60% trabalhador sinistrado e 40% à condutora do RL).
Na ação nº 619/16.8T8VCT a ré surge na mesma qualidade em que intervém nestes autos, ou seja, enquanto seguradora do veículo de matrícula RL.
A dinâmica do acidente e a consequente responsabilidade na produção do mesmo foi objeto de decisão na ação nº 619/16.8T8VCT.
Como já acima se referiu, a autoridade de caso julgado não exige a verificação da tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
A dinâmica do acidente e a responsabilidade pela produção do mesmo que foi objeto de decisão na ação nº 619/16.8T8VCT constitui questão prejudicial desta ação, visto que é pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. Com efeito, o pedido formulado pela autora no sentido de ser reembolsada pelos valores que pagou ao trabalhador sinistrado no âmbito do contrato de seguro de acidentes de serviço depende de forma direta e necessária da responsabilidade do condutor do veículo RL segurado na ré.
Uma vez que esta questão prejudicial já foi apreciada na ação nº 619/16.8T8VCT tal questão não pode ser novamente discutida numa outra ação, sob pena de violação da autoridade do caso julgado. De outro modo, estariam irremediavelmente comprometidas as razões de certeza, segurança jurídica e prestígio dos tribunais que justificam a existência do caso julgado, na sua vertente positiva, de autoridade de caso julgado.
A ré chama à colação as regras da sub-rogação invocando que a autora se encontra sub-rogada nos direitos do trabalhador e que o art. 585º, do CC, aplicável por analogia, permite que o devedor, entenda-se a ré, oponha ao cessionário, no caso a autora, ainda que esta os ignorasse, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, ou seja, o trabalhador. Assim, conclui que pode novamente discutir o acidente.
Porém, no nosso entendimento, a norma invocada leva a conclusão inversa à pretendida pela ré.
A ré, como devedora, pode efetivamente opor à autora, como cessionária, todos os meios de defesa que poderia invocar contra o trabalhador sinistrado, entendido este como cedente. Sucede que a ré nunca poderia discutir novamente com o trabalhador sinistrado a dinâmica e responsabilidade na produção do acidente porque essa matéria já foi objeto de discussão entre ambos na ação nº 619/16.8T8VCT. E se não o pode fazer contra o trabalhador também não o pode fazer contra a autora que se encontra sub-rogada nos direitos do mesmo.
Logo, resta concluir que se verifica efetivamente uma situação de autoridade de caso julgado, pelo que improcede a apelação.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pela Ré.
Notifique.
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Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):

I - O caso julgado tem a vertente negativa de exceção, impedindo a repetição de uma causa idêntica quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a vertente positiva de autoridade de caso julgado, impondo a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.
II - O efeito positivo da autoridade de caso julgado assenta numa relação de prejudicialidade em que o objeto processual decidido na primeira ação surge como condição para apreciação do objeto processual da segunda ação.
Por força da autoridade de caso julgado, as questões comuns não podem ser decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda ação acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível, não se exigindo a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
III - Existe uma relação de prejudicialidade entre a ação em que foi discutida e decidida, por sentença já transitada em julgado, a dinâmica do acidente de viação e a responsabilidade dos condutores dos veículos intervenientes, a qual correu termos entre o condutor de um veículo e a seguradora do outro veículo e a ação em que intervém como autora a seguradora que ficou sub-rogada nos direitos do condutor do veículo, por lhe ter pago indemnização no âmbito de seguro de acidente de serviço, e a seguradora do outro veículo que também interveio como ré na primeira ação, verificando-se a autoridade de caso julgado que impede que na segunda ação se discuta novamente a dinâmica do mesmo acidente e a responsabilidade dos mesmos condutores, devendo ser acatada a decisão que sobre essa matéria foi proferida na primeira ação.
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Guimarães, 17 de dezembro de 2019

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos