Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3220/16.2T8VCT-A.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: PROCESSO EXECUTIVO
PENHORA
CRÉDITOS SALARIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Os créditos salariais, cumulados num montante único, não perdem o carácter de prestação periódica e a garantia de impenhorabilidade, total ou parcial, prevista no artigo 738.º do Código de Processo Civil.

II - A letra do artigo 738.º, n.º 1 do Código de Processo Civil ao empregar a locução “prestações periódicas”, quer tanto mais significar prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, do que o seu carácter fracionado. O que é decisivo é a função da prestação e não a sua periodicidade.

III - Sendo o executado titular de um crédito num processo de insolvência, emergente de salários em atraso, a este crédito aplica-se o regime do artigo 738º, do Código de Processo Civil, por um lado por corresponder a uma prestação periódica, por outro lado por ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada indispensável para uma existência minimamente condigna.
Decisão Texto Integral:
I – Relatório

Inconformado com a decisão que considerou impenhoráveis a totalidade dos vencimentos que não ultrapassem por cada mês o salário mínimo nacional, devendo apenas o remanescente ser colocado à ordem da execução veio a exequente GRANITOS X, LDA, interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

A) Na situação em apreço, a decisão é nula, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea b), c) e d) ou seja, padece de fundamentação de facto e de direito, bem como, é obscura.
B) Pois, impõe, o artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o art.º 154º e o art.º 607º ambos do CPC, que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
C) Em conformidade, na fundamentação deve o Juiz indicar as ilações tiradas e especificar os demais fundamentos que foram decisivos para formar a sua convicção.
D) Porém, da decisão que ora se recorre não consta a identificação das partes, o objecto de litígio, ou a descrição da situação factual em apreço, nos presentes autos de execução.
E) Sendo que, da decisão apenas consta transcrito “ipsis verbis” o dispositivo do artigo 738º do CPC, citações de Jurisprudência Portuguesa, e a decisão em si. Em nenhuma parte da decisão é feita qualquer ilação, análise critica da situação, e especificação dos fundamentos, que leve à conclusão que a sentença precede. Não se consegue perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica se formou a convicção do Tribunal “a quo”.
F) Resulta, deste modo, uma clara ausência de fundamentação, que não permite o exercício esclarecido do direito ao recurso e nem assegura a transparência e a reflexão decisória, para convencer e não apenas impor.
G) Mais, verifica-se que o Meretíssimo Juiz “a quo” não se pronunciou sobre as questões alegadas e suscitadas nos requerimentos datados de 12/06/2019 com a referência 32704158 e de 16/09/2019 com a referência 33395305, apresentados pela Exequente/Apelante.
H) Pois, suscitou e fundamentou, a aqui Apelante/Exequente nos presentes autos de execução por meio dos teores dos requerimentos apresentados e em supra identificados, que o disposto no art.º 738º do CPC – impenhorabilidade das penhoras – não se aplica à situação em apreço. Assim como, arguiu a aqui Exequente, a nulidade – artigo 195º do CPC - por manifesta e clara violação das normas prescritas do Código de Processo Civil, que regem a penhora de créditos, assim como, a extemporaneidade de qualquer resposta/oposição à penhora de créditos realizada nos presentes autos de execução, porquanto, por inércia dos executados/Apelados, precludiu, o direito de os mesmos se oporem à penhora de créditos.
I) Porém, não consta da Decisão que ora se recorre, do Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, qualquer referência, análise critica, ou apreciação às questões suscitadas pela Exequente nos requerimentos que apresentou.
J) Nesse sentido, deveria o Douto tribunal pronunciar-se pela procedência ou não procedência da questão da extemporaneidade de resposta/oposição à penhora de créditos, assim como, pela verificação ou não da violação das normas do código de processo civil que regem a penhora de créditos.
K) Não se pronunciando, sobre as questões aí suscitadas, é nula, a Decisão, ao abrigo do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, que se invoca para os devidos efeitos legais.
L) Bem como, o Tribunal “a quo” fez uma errada aplicação das normas jurídicas – 4º; 139º n.º 3; 293º a 295º; 732º; 738º; 773º a 779º; 784º; 785º todos do CPC - à situação fáctica – tramitação processual dos autos executivos - que se traz à douta apreciação de V.ªs Exªs.
M) Posto que, nos presentes autos de execução, como já foi referido em supra, foram penhorados os créditos detidos pelo executado J. S., no âmbito da insolvência n.º 621/17.2T8OAZ, que após rateio, perfazem o montante total de €31.975,34 (trinta e um mil, novecentos e setenta e cinco euros e trinta e quatro cêntimos). E, os créditos detidos pelo executado A. S., no âmbito do mesmo processo de insolvência, que após rateio, perfazem o montante total de € 19.787,70 (dezanove mil, setecentos e oitenta e sete euros, e setenta cêntimos), nos termos do artigo 773º do CPC.
N) Recaindo, desse modo ao Devedor – aqui o Administrador de Insolvência da Massa Insolvente da sociedade “Y – Mármores e Granitos, Lda.” - a obrigação estipulada no artigo 773º, n.º 2, do CPC, tendo, o mesmo prestado tais declarações à Sra. Agente de Execução, que esta devidamente juntou aos presentes autos de execução no dia 24/05/2018.
O) Porém, após a homologação judicial do rateio, o Sr. AI não cumpriu o disposto no artigo 777º, n.º 1, do CPC, a que estava obrigado, ou seja, a depositar a respectiva importância em instituição de crédito à ordem do agente de execução e a apresentar o documento do depósito ao agente de execução, que funciona como seu depositário.
P) Mais, foram os Executados A. S. e J. S. notificados após penhora pela Sra. Agente de Execução, no dia 24/05/2018, mediante os registos RA532497735PT e RA532497470PT, por si recepcionados no dia 04/06/2018, aos quais foi devidamente anexado o auto de penhora.
Q) Pelo que, a Exma. Sra. Agente de Execução, notificou os Executados para os termos do disposto nos artigos 784º e 785º do Código Processo Civil (CPC), bem como, comunicou a cominação, no caso de revelia.
R) Ora, de acordo com o n.º 2, do artigo 785º do CPC, o incidente de oposição à penhora segue os termos dos artigos 293º a 295º, aplicando-se ainda, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 732º todos do CPC.
S) Em suma, a não apresentação do incidente de oposição de penhora, pelos fundamentos elencados nos artigos 784º e 785º, tem os efeitos cominatórios previstos no artigo 732º, n.º 3, ou seja, à falta de oposição de penhora é aplicável o disposto no artigo 567º e no artigo 568º do CPC.
T) Na situação em apreço, não foi apresentado pelos Executados incidente de oposição de penhora ao referido crédito, apesar de estarem devidamente notificados para tanto.
U) Precludiu, desse modo, por inércia dos executados, o direito de os mesmos se oporem à penhora dos créditos. Pelo que, qualquer oposição/manifestação nos presentes autos de execução quanto à matéria substantiva e processual contra a penhora dos créditos, efectivada, é extemporânea, por não ter sido apresentada no momento facultado para o efeito.
V) Motivo pelo qual, impunha-se decisão diversa, no sentido de dar cumprimento às normas processuais civis e suas cominações, e consequentemente, determinar nos termos do n.º 1, do artigo 777º do CPC, o depósito da totalidade dos créditos penhorados.
X) Acresce que, na situação em apreço, nos presentes autos de execução, não estamos perante uma situação de diligências penhora de salários ou qualquer outra prestação periódica indicada no artigo 738º do CPC.
Z) Dado que, estamos perante a penhora de direitos de crédito na sua totalidade, a que alude o artigo 773º do CPC. As quantias aqui penhoradas, não se enquadram na situação de serem qualificadas como prestações periódicas, nem podem ser subsumíveis àquela parcela de rendimento mensal (periódica) considerada necessária para assegurar a dignidade e/ou subsistência dos executados.
AA) Em suma, como não estamos perante a penhora de prestações periódicas, não se encontra preenchido, tal requisito, pelo que, não deve ser aplicada a aludida impenhorabilidade aos créditos penhorados.
AB) Por tudo quanto ficou exposto, sem prejuízo das nulidades invocadas, o Tribunal a quo só poderia e deveria ter julgado totalmente improcedente o peticionado pelo Sr. Administrador de Insolvência e Executados, por não lhes ser legalmente permitido vir agora aos autos requerer a aludida impenhorabilidade. E, ordenar o depósito da totalidade dos créditos efectivamente penhorados em cumprimento do disposto no artigo 777º do CPC.
AC) Deste modo, deve ser revogada a decisão do Douto Tribunal “a quo” a qual decidiu considerar impenhoráveis a totalidade dos vencimentos que não ultrapassem por cada mês o salário mínimo nacional, devendo apenas o remanescente ser colocado à ordem da presente execução” e em consequência, ser substituída por outra que ordene o depósito da totalidade dos créditos efectivamente penhorados em cumprimento do disposto no artigo 777º do CPC.
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Os Recorridos apresentaram contra alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber:

- se ocorre a nulidade da decisão;
- qual a natureza do crédito reconhecido no âmbito do processo de insolvência e o montante que se deve considerar penhorado na execução.
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III – Fundamentação

Os factos a considerar são os que resultam do relatório supra.
A primeira questão a apreciar é a da nulidade da sentença.
Considera a Recorrente que a decisão enferma de falta de fundamentação, é obscura e não se pronunciou sobre todas as questões suscitadas, sendo por isso nula. Concretiza que da decisão não consta a identificação das partes, o objeto de litígio, ou a descrição da situação factual em apreço nos autos de execução; a decisão não faz qualquer ilação, análise crítica da situação, e especificação dos fundamentos, que leve à conclusão que a sentença precede; não se consegue perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica se formou a convicção do Tribunal “a quo”; por fim, o tribunal não se pronunciou sobre a questão da extemporaneidade de resposta/oposição à penhora de créditos, assim como, pela verificação ou não da violação das normas do código de processo civil que regem a penhora de créditos.

Vejamos.

Antes de mais, quanto aos vícios apontados à estrutura da decisão, há a salientar que em causa está um despacho e não uma sentença.
No processo civil, o termo “sentença” designa o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa - artigo 152.º, nº2 do Código de Processo Civil -, sendo "despacho" a designação reservada para as outras decisões ou atos praticados no processo pelo juiz.
Se é certo que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, também é verdade que só em relação à sentença é exigível a identificação das partes, do objeto do litígio, a decisão sobre a matéria de facto e apreciação de direito (artigo 607.º, n.ºs 2 a 6, do Código de Processo Civil).
Apresenta-se de meridiana clareza que esta estruturação formal não é aplicável aos despachos.
Não é de boa prática, sempre que é proferido um despacho, que se proceda à descrição do litígio, com um relato fastidioso de todas as incidências processuais ocorridas até então, sem efetivo relevo para a resolução da concreta questão a decidir.
As reformas legislativas no âmbito do processo civil têm apostado precisamente na simplificação dos atos, objetivo que deve ser prosseguido na prática judiciária, em que o despacho deve conter apenas aquilo que seja necessário à compreensão do que será objeto de apreciação.

Ora, no presente caso, como bem se evidencia na decisão recorrida, tratava-se de dar resposta a uma solicitação provinda de um outro tribunal, onde corria um processo de insolvência, implicando que se decidisse quanto ao montante a penhorar em relação aos créditos reconhecidos no âmbito do referido processo de insolvência, resposta que foi precedida da audição dos interessados.
A questão em apreciação e sua tramitação não configuram um incidente que apresente a estrutura de uma causa, razão pela qual a decisão proferida revestiu a forma de simples despacho, que se bastando com os requisitos externos previstos no artigo 153.º não obedece à estrutura e formalidades do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil.
Avancemos, agora, para a questão de saber se o despacho padece de falta de fundamentação e omissão de pronúncia.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al.b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
A sentença é, ainda, nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
O Prof. Castro Mendes, após a análise dos vícios da sentença, conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia” (1).
Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (2).
Quanto ao vício de falta de fundamentação, ensina o Prof. Alberto dos Reis, que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas” (3), conformemente a nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando há “ausência total de fundamentos de direito e de facto”, sendo certo que “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Para que a sentença esteja eivada deste vício de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
Tendo presentes estas noções, é manifesto que a decisão recorrida não enferma da nulidade que lhe é apontada, visto que nela se mostram devidamente especificados os fundamentos quer de facto quer de direito em que assenta.
Analisada a decisão sindicanda, após a identificação da concreta questão a apreciar - créditos laborais e o apuramento do montante que efetivamente se deve considerar penhorado - fundamentou-se juridicamente e com citação das normas legais e jurisprudência pertinente a impenhorabilidade do vencimento que não ultrapasse por cada mês o salário mínimo nacional.
Na sua fundamentação, o Senhor Juiz explicita claramente os fundamentos da impenhorabilidade do crédito.
A fundamentação do despacho é clara e precisa.
Não padece de qualquer deficiência, muito menos de falta absoluta de fundamentação.
Do mesmo modo que está longe de ser ininteligível.
Uma decisão é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado. A obscuridade de uma sentença é a imperfeição desta que se traduz na sua ininteligibilidade; a ambiguidade tem lugar quando à decisão, no passo considerado, podem razoavelmente atribuir-se dois ou mais sentidos diferentes (4) Só existe obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido exato não pode alcançar-se. A ambiguidade só releva se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo.
Em suma, a decisão é ininteligível quando não se sabe o que o juiz quis dizer.
Salvo o devido respeito, da simples leitura da decisão fica-se a saber muito bem o que o juiz quis dizer.
Tenha-se em conta que o haver-se decidido bem ou mal, de forma correta ou incorreta, em sentido contrário ao preconizado pelo Recorrente, é coisa totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade da decisão.
Quanto à falta de pronúncia sobre a extemporaneidade de resposta/oposição à penhora de créditos, e à verificação ou não da violação das normas do código de processo civil que regem a penhora de créditos.
O vício em causa prende-se com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no artigo 608.º, nº2 do Código de Processo Civil: "O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras".
Se o juiz deixa de conhecer questão submetida à sua apreciação e que não se mostra prejudicada pela solução dada a outras, peca por omissão; ao invés, se conhece de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação nem constitui questão que deva conhecer ex officio, o vício reconduz-se ao excesso de pronúncia.
O despacho proferido na execução foi-o na sequência do pedido de esclarecimentos de um outro tribunal a propósito de um pedido de penhora.
O tribunal a quo em respeito ao princípio do contraditório, antes de decidir, ouviu os interessados.
Em face da natureza e oportunidade da questão a apreciar, está bom de ver que não houve qualquer omissão de pronúncia, na medida em que a decisão em si "consome" as questões suscitadas pelo Recorrente.
Considerou o tribunal a quo, e aqui não está em apreciação a bondade de tal entendimento, que em causa estavam créditos laborais.
Os créditos pecuniários auferidos pelo executado integram os bens penhoráveis, encontrando-se sujeitos ao regime geral da penhora de direitos constante dos artigos 773.º e ss. Contudo, tendo em vista a proteção de interesses vitais do executado, os arts. 738.º e 739.º do Código de Processo Civil vêm estabelecer limites a tal penhorabilidade, dispondo que são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou qualquer outra regalia social, seguro indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, e que esta impenhorabilidade tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional (5).
O cumprimento destas normas, que têm aliás conformação constitucional, não está dependente da pronúncia ou do silêncio do executado.
Não é pela circunstância de o executado não ter deduzido oposição à execução ou à penhora que o tribunal está legitimado a proceder à penhora de um crédito que a lei considera impenhorável.
A natureza imperativa das disposições legais em causa é incompatível com tal entendimento.
Donde, forçoso se mostra concluir que o conhecimento sobre as questões agora suscitadas se mostra prejudicado pela solução dada à questão da impenhorabilidade do crédito.
Pelo exposto, não ocorrem as invocadas nulidades da decisão.
A segunda questão a apreciar prende-se com o montante que se deve considerar penhorado na execução em relação aos créditos laborais reconhecidos no âmbito do processo de insolvência.
A identificação da questão decidenda põe em evidência que a sua solução pressupõe a natureza salarial do crédito.
O Recorrente defende que é indiferente a natureza do crédito, isto é, a sua proveniência, atendo-se ao entendimento de que o que foi penhorado foi um crédito detido pelos executados no âmbito da insolvência n.º 621/17.2T8OAZ, a que se aplica o regime dos artigos 773.º e seguintes do Código Processo Civil. Acrescenta que não estando em causa a penhora de prestações periódicas, não deve ser aplicado o regime da impenhorabilidade dos créditos salariais.
Não tem, todavia, razão.
Não oferece contestação tratar-se de créditos laborais, provenientes de salários em atraso.
A questão da impenhorabilidade suscitada no recurso centra-se na natureza não periódica do crédito.

Vejamos.

Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda (artigo 735.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Este princípio geral de afetação da globalidade do património do devedor ao ressarcimento das suas obrigações, sofre algumas limitações, desde logo, decorrentes de interesses vitais do executado, que o sistema entende deverem sobrepor-se aos do credor exequente (6).
Estas limitações podem resultar numa impenhorabilidade absoluta e total, numa impenhorabilidade relativa, ou numa impenhorabilidade parcial.
O artigo 738.º do Código de Processo Civil vem dispor sobre os bens que são parcialmente penhoráveis e tem agora a redação que lhe foi dada pela Lei 114/2017 de 29 de Dezembro, Lei do Orçamento do Estado de 2018, que no seu artigo 289.º vem alterar este preceito, acrescentando-lhe o n.º 8.
Decorre deste preceito, para o que a economia do caso interessa, que são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado; que esta impenhorabilidade tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional e que a impenhorabilidade se estende aos rendimentos das pessoas singulares que exercem as atividades previstas no art.º 151.º do IRS.
A letra do artigo 738.º, n.º 1 do Código de Processo Civil ao empregar a locução “prestações periódicas”, quer tanto mais significar prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, do que o seu carácter fracionado.
Trata-se de prestações em princípio destinadas a proporcionar a satisfação das necessidades do executado.
O que é decisivo é a função da prestação e não a sua periodicidade, cabendo no objeto do nº1 do artigo 738.º, não só os rendimentos periódicos, mas ainda os rendimentos não periódicos, como pagamentos de prestações de serviços titulados em “recibos verdes” ou rendimentos de direito de autor, ainda que sejam recebidos espaçada ou irregularmente (7).
Com efeito, só a função da prestação e já não o modo do seu percebimento tornará aceitável o sacrifício do direito do credor, sacrifício só válido se necessário à garantia do direito à existência com um mínimo de dignidade do devedor.
Evidencia-se que as situações de impenhorabilidade devem ser consideradas excecionais, quer por poderem originar um enfraquecimento das obrigações civis, quer por serem possíveis fontes de injustiça relativa, e que ainda mais excecionais terão de ser os casos em que a garantia da dignidade humana impõe a consagração de uma impenhorabilidade. (8)

Dito isto, cremos laborar em erro o Recorrente ao considerar que os créditos em causa, não obstante emergentes do contrato de trabalho, porque cumulados num montante único, perderam o carácter de prestação periódica.
O montante total dos créditos de que os executados são titulares no processo de insolvência refere-se a salários em atraso. Como alertam os Recorridos, não tem cabimento legal ou moral, a solução de que nos casos em que ao trabalhador não é pago o salário no fim do mês, este fica sem a sua subsistência nesse ou nesses meses, endivida-se ou recorre a terceiros, e quando viesse a receber os salários em dívida, o seu direito houvesse de perder a natureza periódica e, consequentemente, a natureza de impenhorável.
Como se afigura de linear clareza, o pagamento de determinado montante correspondente a salários em atraso não retira o caracter de periodicidade da prestação.
São os rendimentos provenientes do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência do individuo, sendo com os mesmos que cada um suporta as despesas correntes do seu quotidiano.
São esses rendimentos, traduzidos no seu montante líquido mensal, que balizam a impenhorabilidade parcial fixada no artigo 738º, n.º 1 do Código de Processo Civil e, tratando-se do salário mínimo nacional, a sua impenhorabilidade total, por se entender que tal quantia corresponderá ao montante considerado indispensável a uma subsistência digna do respetivo titular (9).
A quantia penhorada aqui objeto de questionamento enquadra-se nesta situação, por um lado por corresponder a uma prestação periódica, por outro lado por ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada indispensável para uma existência minimamente condigna.
Resultando daqui que ao crédito penhorado na insolvência se haja de aplicar o disposto no artigo 738.º, do Código de Processo Civil.
Só assim se alcança o justo equilíbrio entre os interesses em conflito e se respeita a unidade do sistema, o que é imposto pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica.
Nos termos expostos, aplicando-se ao crédito penhorado na insolvência o disposto no artigo 738.º, do Código de Processo Civil, consideram-se impenhoráveis a totalidade dos salários dos executados que não ultrapassem por cada mês o salário mínimo nacional, devendo apenas o remanescente ser colocado à ordem da execução.

Improcede, assim, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - Os créditos salariais, cumulados num montante único, não perdem o carácter de prestação periódica e a garantia de impenhorabilidade, total ou parcial, prevista no artigo 738.º do Código de Processo Civil.
II - A letra do artigo 738.º, n.º 1 do Código de Processo Civil ao empregar a locução “prestações periódicas”, quer tanto mais significar prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado, do que o seu carácter fracionado. O que é decisivo é a função da prestação e não a sua periodicidade.
III - Sendo o executado titular de um crédito num processo de insolvência, emergente de salários em atraso, a este crédito aplica-se o regime do artigo 738º, do Código de Processo Civil, por um lado por corresponder a uma prestação periódica, por outro lado por ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada indispensável para uma existência minimamente condigna.
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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo Recorrente (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
Guimarães, 19 de Março de 2020

Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º - Adj. - Des. Alexandra Viana Lopes



1. In “Direito Processual Civil”, Vol. III, pag. 308.
2. In “Manual de Processo Civil", pag. 686.
3. In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, págs. 139 e 140.
4. Neste sentido, o acórdão do STJ de 22/01/2019, disponível em www.dgsi.pt..
5. Neste sentido, acórdão da Relação de Coimbra de 13/11/2019, disponível em www.dgsi.pt.
6. Neste sentido, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 5ª edição, pag. 218.
7. Rui Pinto, “A Ação Executiva”, AAFDL Editora, 2018, pag. 490-491.
8. Assim se considerou no acórdão do STJ de 20/03/2018, no que foi seguido pelo acórdão da Relação de Coimbra de 11/12/2018, ambos disponíveis em www.dgsi.pt: "(…) as situações de impenhorabilidade (por exemplo, de dois terços dos vencimentos ou das prestações em causa) devem já ser consideradas em geral absolutamente excepcionais, quer por poderem originar um 'amolecimento ósseo' das obrigações civis, quer por serem possíveis fontes de flagrante injustiça relativa (basta, para o concluir, ter presente que, perante um critério abstracto de impenhorabilidade, uma eventualmente idêntica situação financeira do credor não pode ser considerada), e que ainda mais excepcionais terão de ser os casos em que a garantia da dignidade humana, como valor no qual se funda a República Portuguesa, inscrito logo no 'pórtico' da Lei Fundamental, impõe a consagração de uma impenhorabilidade".
9. Acórdão do STJ de 20/03/2018, disponível em www.dgsi.pt.