Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
309/16.1T8VRL.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
REGISTO PREDIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
EFEITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O principal escopo do registo predial é dar a conhecer a terceiros – eventuais adquirentes – a situação do bem, garantindo a segurança e a genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam, o que significa que o registo assegura, em princípio, que a pessoa que se encontra nele inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes (enquanto constar do registo que o direito ainda não foi alienado ou sujeito a alguma oneração).

II- A escritura de justificação notarial tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que, ou não possam ser provados pela forma original, ou cuja eficácia se desencadeia legalmente, sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão.

III- Impugnada judicialmente a escritura de justificação notarial, impende sobre o justificante o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito, nos termos do art. 343º, nº 1, do Código Civil, sem que possa beneficiar da presunção registal emergente do artigo 7º do Código do Registo Predial.

IV- Impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, o qual deverá ser objecto de cancelamento, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede apenas no pressuposto da existência do direito registado
Decisão Texto Integral:
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H. F., melhor identificada nos autos, intentou a presente acção declarativa com processo comum contra MARIA, também melhor identificada nos autos, pedindo que a Ré seja:

a) Condenada a reconhecer a Autora como proprietária e legítima possuidora do prédio urbano melhor identificado nos artigos 1.º e 2.º da P.I.;
b) Condenada a reconhecer a Autora como proprietária do caminho de consortes melhor identificado nos artigos 19.º e 20.º da PI;
c) Condenada a reconhecer que o caminho utilizado pela Autora para aceder às traseiras do seu prédio, ao contador da água e ao depósito das botijas de gás, é um caminho de consortes;
d) Condenada a demolir o muro que edificou na entrada do caminho sub judice e a retirar os materiais provenientes da demolição, bem como a abster-se da prática de quaisquer atos de apropriação do mesmo em proveito exclusivo, mantendo-o livre e desobstruído na sua totalidade;
e) Condenada em sanção pecuniária compulsória, no valor de € 250,00, por cada dia de atraso no cumprimento do ordenado ou por cada vez que venha a violar aquela imposição; e
f) Serem declaradas falsas e, por via disso, nulas, as declarações prestadas pela Ré na escritura de justificação junta, com todas as consequências legais;
g) Ser ordenado o cancelamento das inscrições resultantes da Ap. 03 de 2006/04/14 feita a favor da Ré no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …, bem como ordenada a correção da área constante da descrição, por forma a que esta reproduza com exatidão o prédio melhor identificado nos artigos 8.º e 9.º da Petição Inicial.
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Alega para tanto e em síntese que é dona e legítima possuidora de um prédio urbano, sito na Rua …, da União das Freguesias de …, concelho de Vila Real, composto de habitação com dois pisos, com 76 m2 de superfície coberta e 25 m2 de logradouro.
Que a nascente do seu prédio encontra-se um outro prédio urbano, composto de habitação com rés-do-chão e primeiro andar, em pedra coberta a telha, para palheiro, com 60 m2 de superfície coberta e 110 m2 de logradouro, propriedade da ré, que foi, anteriormente e até ao ano de 1989, propriedade dos pais de ambos as partes.

No ano de 1999, a Autora, a Ré e os demais herdeiros fizeram partilhas verbais, tendo aquele prédio, à data composto por um armazém com 60m2 de superfície coberta, sido adjudicado à Ré.
Como o dito prédio não tinha logradouro, foi ainda acordado e aceite por todos os herdeiros que a Ré ficasse com a área descoberta existente entre o armazém edificado e o caminho. No entanto, foi expressamente estipulado entre todos os herdeiros que a Ré se obrigaria a respeitar a existência de um caminho de consortes aí sempre existente.
No ano de 2010, a Ré resolveu, unilateralmente e sem o consentimento dos demais consortes, tapar por completo a entrada daquele caminho de consortes.
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A Ré contestou a ação, arguindo a excepção de ilegitimidade da Autora e impugnando a matéria de facto relativamente ao invocado caminho de consortes.

Concluiu pugnando pela improcedência da acção e pela condenação da Autora como litigante de má-fé.
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Proferiu-se despacho que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade activa.
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A autora deduziu incidente de intervenção principal provocada passiva de F. F. e E. M., o qual foi admitido.
Os intervenientes, regularmente citados, não deduziram contestação.
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Tramitados regularmente os autos, foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo supra exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:

A) Condenar os Réus a reconhecerem que a Autora H. F. titula o direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito nos arts. 1.º) e 2.º) da petição inicial;
B) Declarar a ineficácia da escritura pública de justificação notarial outorgada pela Ré MARIA em 21 de Abril de 2004, no Cartório Notarial;
C) Decretar o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré MARIA decorrente da ap. 3 de 2006/04/17, com referência ao prédio sito na Freguesia de … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …;
D) Absolver os Réus do demais peticionado;
E) Condenar Ré MARIA e a Autora H. F. no pagamento das custas processuais em função do respectivo decaimento, fixando-se a quota-parte da Ré em 9/10 e a da Autora em 1/10;
F) Absolver a Autora H. F. do pedido de condenação como litigante de má-fé…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a ré Maria interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

1- Não pode a ora Recorrente conformar-se de maneira alguma com a decisão do Tribunal "à quo", quando decidiu:

• "Declarar a ineficácia da escritura pública de justificação notarial outorgada pela Ré MARIA em 21 de Abril de 2004, no Cartório Notarial;"
• "Decretar o cancelamento do registo de aquisição a favor da Ré MARIA decorrente da ap.3 de 2006/04/17, com referência ao prédio sito na freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n." ...;"
2- Provado está que a Apelante é dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo ..1 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., com a área coberta de 60m2 e 170 m2 de logradouro.
3- Tal prédio veio à sua posse por doação feita ainda em vida de seu Pai, António por volta do ano de 1985.
4- Porque o prédio doado à Apelante, à data da doação (1985), era um simples palheiro, esta reconstruiu o velho palheiro e legalizou-o a nível registral.
5- Lançou mão de uma escritura de justificação, escritura onde o ora Apelado L. E., consta como declarante.
6- Nessa escritura levada a cabo em 2004, declara-se que a Apelante é dona e legítima possuidora do referido prédio e que tal prédio veio à sua posse por contrato verbal de doação ainda no estado de solteira feita por António e esposa (sua mãe).
7 - Tudo o que naquela escritura se declara corresponde à verdade. Não tendo sido contraditado por nenhuma testemunha do processo.
8- A Apelante, porque teve necessidade de recorrer a crédito hipotecário em 2004, apenas "legaliza" a situação do prédio que já estava na sua posse desde 1985.
9- A usucapião da Apelante/justificante é pois a causa originária da aquisição do imóvel, pois, através de doação que lhe é feita pelo seu Pai, a Apelante sucedeu nos direitos de seu Pai como proprietária.
10- A Apelante tem o prédio registado a seu favor, presunção constante no artigo nº 7° do C.R.P.
11- A Apelante pretendeu através do registo dar a conhecer a terceiros a situação do imóvel garantindo a sua segurança. O registo garante a permanência do direito, registo que nunca foi posto em causa nem impugnado.
A Apelante adquiriu de modo legítimo a propriedade do seu prédio.
12- O direito de propriedade do falecido Pai da Apelante nunca foi colocado em causa, tendo sido reconhecido por todos. Todas as testemunhas afirmaram que todos os prédios pertenciam ao Pai da Apelante, e foi este que ainda em vida doou o respectivo prédio à Apelante.
13-A Apelante esta na posse do prédio desde 1985, ainda no estado de solteira. Tendo procedido ao seu registo em 2004, é a única e exclusiva proprietária do mesmo, tendo a seu favor a presunção estatuída no artigo 7° do C.R.P, que se invoca e não foi ilidida.
14- O direito de propriedade é eterno, imutável e perpétuo.
15- A posse e propriedade da Apelante sobre o prédio foi sempre legitimada.
16- Ora, perante os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento não poderá haver duvida de que a posse da Apelante é, não só legitimada como de boa fé e a escritura por esta celebrada no ano de 2004 espelha a verdade dos factos; existindo clara contradição entre a prova produzida em audiência e a douta Sentença posta em crise.
17 - O entendimento pacífico da jurisprudência do STJ, é que, "a simples existência do registo a favor da autora é condição bastante e suficiente para a procedência da reivindicação do imóvel sobre que versa o registo não sendo exigível a alegação e prova dos requisitos de que depende a usucapião." (vd. Acórdão de 30/11/2009 do processo nº 2172/06.1 TBGRD.Cl.S1 e Acórdão de 30/09/2010 do processo nº 748/06.6TBPNF.Pl.Sl. e vd. Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 3/12/2013 do processo nº 194/09.0TBPBL.C1 ao referir: "VIII - Por isso, nos termos da norma do artigo 350.° nº 1 do Código Civil, compete àqueles que se arrogam proprietários, provar que o detentor não é possuidor. Podendo, assim, adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa - é atribuída a propriedade ao possuidor, não propriamente porque o possuidor conseguiu provar que era proprietário, mas antes porque não foi provado que ele não o era ... "
Por tudo o que supra se expôs, deve o Douto Acórdão que vier a ser proferido revogar a douta Sentença posta em crise…”.
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Pelos recorridos foram apresentadas contra-alegações nas quais pugnam pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se deve ser considerada válida a escritura de justificação notarial levada a cabo pela ré Maria - e a respectiva inscrição do direito nela titulada no registo predial.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

1. Há mais de vinte e cinco anos, os pais da Autora declararam doar à mesma uma parcela de terreno sita na Rua …, lugar de ...,
2. Na sequência do indicado em 1), foi construído um prédio urbano na sobredita parcela, composto de habitação com dois pisos, com 76 m2 de superfície coberta e 25 m2 de logradouro, actualmente inscrito na matriz da União de Freguesias de ... e ... sob o artigo 1299.
3. Há mais de 20 anos que a Autora H. F. habita no prédio descrito em 2), dormindo no mesmo, aí confeccionando e tomando as refeições, recebendo os seus familiares e amigos, à vista de toda a gente, com a convicção de não lesar qualquer direito alheio e de exercer um direito próprio.
4. Quando a Autora construiu o prédio urbano referido em 2), os seus pais declararam que a mesma poderia aceder à traseira da sua casa por uma faixa de terreno que, no sentido Norte – Sul, tem cerca de 7 metros de comprimento e 1,18 metros de largura em toda a sua extensão e, virando depois à direita, no sentido Nascente – Poente, uma extensão de cerca de pelo menos 15 metros de comprimento e uma largura variável de 2,10 metros a 1,50 metros de largura.
5. É pela sobredita faixa de terreno “caminho” que os funcionários da Água E Resíduos X acedem ao contador da água existente na traseira do prédio enunciado em 2), para procederem à leitura do respectivo consumo.
6. O depósito de gás canalizado que serve a casa referenciada em 2) situa-se, igualmente, na traseira da mesma.
7. Assim, o funcionário da empresa que substitui as botijas de gás canalizado para a antedita casa, acede ao depósito das mesmas pela faixa de terreno indicada em 4), inexistindo qualquer outro acesso.
8. Em data não concretamente apurada, a Autora, a Ré e os demais irmãos fizeram “partilhas verbais do acervo hereditário” dos seus pais, declarando acordar, designadamente, a “adjudicação” à Ré do prédio inscrito à data na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..1.
9. No dia 21 de Abril de 2004, no Cartório Notarial, foi lavrada uma escritura pública de Justificação outorgada por MARIA, na qual a mencionada outorgante declarou, designadamente, que “(…) é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, de um prédio urbano, composto de construção de rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta de sessenta metros quadrados e logradouro com a área de cento e dez metros quadrados, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de Vila Real (…) inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..1 (…) Que a mesma está na posse deste imóvel em nome próprio há mais de vinte anos, tendo a referida posse tido o seu início por contrato verbal de doação, ainda no estado de solteira, feita por António e esposa L. V. (…) doação essa não reduzida a escritura pública que ocorreu entre os interessados pelo ano de mil novecentos e setenta e nove”.
10. Pela ap. 3 de 2006/04/17, afigura-se registada a aquisição a favor de MARIA do prédio mencionado em 9) por usucapião, sito na Freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...
11. No ano de 2009, a Ré Maria construiu uma casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar no prédio referenciado em 9), o qual se apresenta actualmente inscrito na matriz da União de Freguesias de ... e ... sob o artigo ..., proveniente do artigo ..1 da matriz da freguesia de ....
12. O prédio enunciado em 2) confronta a Nascente com o prédio urbano citado em 11).
13. O prédio indicado em 11) confronta a Nascente com caminho público, apresentando nesta área de confinância um muro.
14. Em 2009, no sobredito muro, a Ré colocou um portão de acesso à casa referida em 11) e à faixa de terreno descrita em 4).
15. A Ré Maria tem mantido o portão citado em 14) fechado à chave. 16. Nos dias 23 de Março de 2015 e 6 de Abril de 2015, o técnico que fornece botijas de gás à Autora não conseguiu aceder à faixa de terreno enunciada em 5) na sequência do portão referido em 14) se apresentar fechado à chave.
17. O referenciado em 14) e 15) impede a Autora de aceder ao contador de consumo de água e ao depósito das botijas de gás citados em 6) e 7).
18. Desde o ano de 1999, a Ré Maria tem a “posse” do prédio descrito em 8), à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que exerce um direito de propriedade”.

E foram dados como não provados os seguintes:

19. No circunstancialismo referenciado em 8), a Autora, a Ré e o irmão das mesmas, F. F., declararam acordar a utilização comum da faixa de terreno indicada 6).
20. Na sequência do mencionado em 19), há mais de 25 anos, a Autora, a Ré Maria e o Réu F. F. têm utilizado a faixa de terreno enunciada em 4), à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que utilizam um “caminho de consortes” e de que exercem um direito de propriedade. 21. No ano de 1979, por “contrato verbal”, António e esposa L. V. declararam doar a MARIA a parcela de terreno citada em 4) e 7).
22. O indicado em 8) verificou-se há cerca de 25 anos.
23. O descrito em 18) ocorre há cerca de 25 anos”.
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Da “eficácia” da escritura de justificação notarial:

Insurge-se a ré contra a procedência dos pedidos formulados pela A. nas alíneas f) e g) – relacionados com a ineficácia da escritura pública de justificação notarial outorgada pela Ré Maria e com o cancelamento do registo de aquisição do prédio objecto daquela escritura, por usucapião –, sustentando existir “clara contradição entre a prova produzida em audiência e a (…) sentença posta em crise” (sem pôr no entanto em causa a matéria de facto dada como provada).
Ou seja, considera a recorrente (nomeadamente nas conclusões 2ª, 3ª, 4ª, 7ª e 8ª) que foi provada em audiência matéria de facto por si alegada - que descreve -, sem impugnar, no entanto, a decisão proferida sobre a matéria de facto (provada e não provada), recorrendo, como lhe impunha o artº 640º do CPC, à impugnação daquela matéria de facto – pressuposto para que a mesma pudesse ser alterada nos termos consignados no artº 662º do CPC.
Significa isso que a recorrente se conforma com a matéria de facto assente, sendo também com base nela que este tribunal deverá apreciar as demais questões (jurídicas) por ela colocadas na presente apelação (artº 663º nº6 do CPC).
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Ora, à luz da matéria de facto provada – e não provada – nada temos a objectar à decisão recorrida, que fez, em nosso entender, uma correta subsunção jurídica dos factos aos institutos jurídicos aplicáveis.

Estava em causa nos autos a apreciação da validade/eficácia da escritura de justificação notarial levada a cabo pela ré Maria, no dia 21 de Abril de 2004, no Cartório Notarial, na qual a mesma declarou, perante o sr. notário, que “(…) é dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, de um prédio urbano, composto de construção de rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta de sessenta metros quadrados e logradouro com a área de cento e dez metros quadrados, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de Vila Real (…) inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..1 (…). Que a mesma está na posse deste imóvel em nome próprio há mais de vinte anos, tendo a referida posse tido o seu início por contrato verbal de doação, ainda no estado de solteira, feita por António e esposa L. V. (…), doação essa não reduzida a escritura pública, que ocorreu entre os interessados pelo ano de mil novecentos e setenta e nove”.

Ora, a A. impugna os factos vertidos naquela escritura, apodando as declarações ali prestadas de falsas e, por via disso, solicita a sua nulidade, o que faz no pedido formulado na alínea f), pedindo ainda que seja ordenado o cancelamento das inscrições resultantes da Ap. 03 de 2006/04/14 feita a favor da Ré no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial com base nessa escritura.
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Começamos por dizer que o principal escopo do registo predial é dar a conhecer a terceiros – eventuais adquirentes – a situação do bem, garantindo a segurança e a genuinidade das relações jurídicas que sobre ele incidam, o que significa que o registo assegura, em princípio, que a pessoa que se encontra nele inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes (enquanto constar do registo que o direito ainda não foi alienado ou sujeito a alguma oneração).

É de referir, no entanto, que ao aludir-se ao registo predial tem-se em vista, primacialmente, o acto de inscrição predial, o qual tem por objecto factos jurídicos e não situações jurídicas: os factos são inscritos no registo predial a fim de dar a conhecer aos interessados a situação jurídica dos bens.

Por outro lado, porque a prova da aquisição originária, mormente a da usucapião, é muitas vezes extremamente difícil de conseguir – a denominada prova diabólica -, a lei estabelece presunções legais do direito de propriedade, sendo uma delas a que resulta do art. 7.º do CRP ao estabelecer que “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

O registo predial está, deste modo, indelevelmente ligado à fé pública registal que se implementa com a atribuição de valor presuntivo à respectiva inscrição: ou seja, quem beneficia da inscrição registal de um facto aquisitivo presume-se titular do respectivo direito. Dito de outro modo, quem tem a seu favor a presunção registal escusa de provar o facto respectivo, de harmonia com a regra do efeito presuntivo do registo predial que promana do citado art. 7.º do CRP, sendo embora o valor de tal presunção iuris tantum, ou seja elidível mediante prova em contrário.

Como bem refere Carvalho Fernandes (em “Lições de Direitos Reais”, 1997, pág. 119) “As presunções derivadas do referido art. 7.º do CRP são, assim, de dupla ordem: 1.ª presunção – o direito pertence a quem está inscrito como seu titular; 2.ª presunção – o direito existe tal como o registo o revela”.

Ou então, como salienta Paulo Videira Henriques (em “Terceiros para efeitos do artigo 5.º do Código do Registo Predial”, Boletim da Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra, 2003, págs. 399/400) “Por um lado, presume-se que o direito pertence a quem está inscrito como seu titular; este sujeito não precisa de se preocupar com a prova dos factos demonstrativos da existência, validade e eficácia do seu direito sobre o imóvel. Por outro lado, presume-se que o direito existe tal como o registo o revela; o beneficiário da presunção não carece de provar os factos pertinentes à qualificação, existência e amplitude do direito registado. Trata-se de presunções iuris tantum com um grande alcance prático: quem quiser demonstrar o contrário é que tem o ónus da prova; o que, ressalvado o caso de haver posse mais antiga, será difícil, visto estas presunções estarem associadas a documentos autênticos”.
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É nestas noções de Registo Predial e da presunção derivada do registo que encontra acolhimento a problemática da eficácia da Escritura de justificação notarial e um dos princípios primordiais do registo predial - que sobreleva no caso em apreço -, que é o do trato sucessivo, contemplado no art. 34.º do Código do Registo Predial.

Assim, e aderindo ao que consta da decisão recorrida “Em convergência com o plasmado no art.º 92.º do Código do Notariado, a justificação notarial é legalmente admitida para fins de registo predial:

a) para obter a primeira inscrição, ou seja, para estabelecimento do trato sucessivo relativamente a prédios ainda não descritos ou, quando objecto já de descrição, sobre eles não incida inscrição de aquisição ou equivalente;
b) para reatamento do trato sucessivo, quando a sequência das aquisições derivadas (transmissões intermédias) se não interrompe desde o proprietário inscrito até ao actual proprietário (justificante), acontecendo porém que, relativamente a alguma ou algumas dessas transmissões, os interessados não dispõem do respectivo documento que as permita comprovar, apesar de terem sido tituladas de conformidade com a lei (ou porque o documento se extraviou ou foi destruído num incêndio ou por outro qualquer motivo atendível, designadamente porque não foi possível localizar o cartório onde ele foi lavrado);
c) para estabelecimento de novo trato sucessivo, contemplando então aquelas situações em que se verifique uma quebra na cadeia das aquisições derivadas por abandono do proprietário (quer o inscrito quer outro subsequente a ele), tornando por isso necessário que o justificante invoque a posse conducente à usucapião, enquanto causa originária da aquisição…”.

Relativamente á primeira inscrição – a que está em causa nos autos - , a justificação consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, ser titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, devendo, quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, ser mencionadas expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.

Como observa Borges de Araújo (Prática Notarial, 2001, pág. 339) “na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer. O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis”.
E de facto, a escritura de justificação notarial, enquanto um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, encontra acolhimento legal no art. 116.º, n.º 1, do CRP, bem como nos arts. 89.º, 96.º, n.º 1, e 101.º do Código do Notariado.

Como refere José Alberto Vieira (em “Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007”, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, págs. 21 a 42) “quando o interessado pretende promover o registo de qualquer um destes factos (v.g., usucapião) está obrigado a providenciar um título escrito para ele (art. 43.º, n.º 1, do CRP). Ora, dentro dos meios dispostos pela ordem jurídica portuguesa para este efeito, das três uma: Recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar; Promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial; Instaura processo de justificação registal, nos termos do Código do Registo Predial”

Concretamente, segundo o mesmo autor (op. cit., pág. 37) a escritura de justificação notarial “tem por escopo providenciar aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão”.
A justificação notarial associa-se, assim, à dinâmica do registo predial, mormente à prova documental do facto jurídico a registar, imprescindível para o registo (art. 43.º, n.º 1, do CRP).

Trata-se, como se disse, de uma solução pensada para resolver problemas de falta de título, por extravio ou destruição do mesmo, ou para permitir a inscrição com base numa aquisição originária da propriedade, por usucapião ou acessão.
Reduzida a escritura pública, ela constitui um documento autêntico que faz prova plena do facto jurídico que titula (artºs 363.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1 CC).
Mas também, como é por demais sabido, embora se trate de um documento autêntico, a sua força probatória plena só abrange os factos que ali se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como os factos que nesse documento são atestados com base nas percecões da entidade documentadora; não faz prova plena das declarações prestadas pelos outorgantes, as quais são livremente impugnáveis pela parte contrária, cabendo então aos respectivos declarantes o ónus da sua prova (artº 371º do CC).
Ou seja, como qualquer outro acto jurídico, também a escritura de justificação notarial é passível de ser impugnada judicialmente, por parte de quem tenha legitimidade para tal, tendo-se discutido na jurisprudência, nessa eventualidade, se os justificantes, cuja aquisição é contestada, beneficiariam ou não da presunção de titularidade do direito de propriedade prevista no art. 7.º do CRP.

E na sequência dessa problemática, o STJ uniformizou jurisprudência (através do AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 63, de 31-03-2008), no sentido de que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116.º, n.º 1 do CRP e 89.º e 101.º do CN, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7.º do CRP”.
Esta jurisprudência permanece actual e tem sido acompanhada em vários arestos do STJ, designadamente, nos de 27-01-2010, 07-04-2011, 13-09-2011 e 19-02-2013, entre muitos outros (todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Ou seja, em face da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal, o titular inscrito com base em facto aquisitivo (v.g., situação de usucapião), titulado por escritura de justificação notarial cuja declaração seja contestada pelo eventual interessado, tem o encargo probatório de demonstrar a aquisição e validade do seu direito, não beneficiando da presunção de titularidade registal emergente do art. 7.º do CRP.

Defende-se que, consubstanciando a impugnação da escritura de justificação notarial uma acção de simples apreciação negativa (prevista no art. 10.º, n.ºs 2 e 3, al. a), do actual CPC), deve salientar-se a regra probatória civilística, vertida no n.º 1 do art. 343.º do CC, segundo a qual: “Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga”.
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No caso em análise, tendo a A. impugnado os factos declarados pela ré na escritura de justificação notarial que serviu de base ao registo do direito inscrito, era sobre ela que impendia o ónus de provar os factos necessários à demonstração do seu direito – de que havia adquirido o direito sobre o prédio confinante ao da A., por usucapião.

Efetivamente, arrogava-se a ré, na aludida escritura de justificação notarial, ser proprietária do prédio confinante com o da A. (nomeadamente da faixa de terreno situada por detrás da casa da mesma, o aludido caminho de consortes), cabendo-lhe, consequentemente, o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito de propriedade invocado nessa escritura de justificação notarial, isto é, a doação do prédio feita por António e esposa L. V., no ano de 1979, e os actos de posse subjacente à aludida doação, em termos de ter adquirido o mesmo por usucapião, o que naufragou, desde logo, por falta de prova da data em que alegadamente terá iniciado a posse sobre o aludido prédio.

De facto, apenas se provou a ocorrência, em data não concretamente apurada, de partilhas verbais do prédio indicado, o que contradita de forma manifesta o invocado na escritura de justificação.

Ou seja, à data da outorga da escritura de justificação, em 21 de Abril de 2004, ainda não tinham ocorrido os vinte anos da posse do prédio, alegados naquela escritura, porquanto se provou que a mesma apenas se iniciou no ano de 1999 (facto provado em 18).

Deveria pois a ré provar as características da posse imprescindíveis à verificação da usucapião, sendo certo que a lei intima os justificantes a, logo na respectiva escritura, indicarem “as circunstâncias de facto que determinam o início da posse”, bem como as que “consubstanciam e caracterizam a posse” – art. 89.º, n.º 2, do CN –, não sendo suficiente a menção de conceitos jurídicos abstractos para atribuir à posse as qualidades para usucapir, devendo aludir-se às circunstâncias e aos actos materiais caracterizadores daquela posse e aos factos concretos que permitam ilustrar as características da mesma (cfr. Neste sentido Mouteira Guerreiro, Temas de Registos e de Notariado, 2010, págs. 117/118).

Como muito bem resume o Ac do STJ de 09/07/2015 (também disponível em www.dgsi.pt) “As ações reais não se podem fundar, por norma e exclusivamente, na invocação de um título de aquisição derivada, uma vez que as formas de aquisição derivada não geram, por si só, o direito de propriedade, sendo apenas translativas dele, operando a sua modificação subjectiva; O registo predial, cujo objeto são factos jurídicos, tem por escopo principal dar a conhecer aos interessados a situação jurídica do bem, garantindo a segurança e genuidade das relações jurídicas que sobre ele incidam, assegurando que, em regra, a pessoa que se encontra inscrita adquiriu validamente esse direito e com esse direito permanecerá para os seus futuros adquirentes; A escritura de justificação notarial, documento autêntico, constitui um dos modos necessários para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, permitindo aos interessados titular factos jurídicos relativos a imóveis que não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de forma escrita, como a usucapião ou a acessão; Impugnada judicialmente a escritura de justificação notarial, impende sobre o justificante, na qualidade de réu, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito, nos termos do art. 343º, nº 1, do Código Civil, sem que possa beneficiar da presunção registal emergente do artigo 7º do Código do Registo Predial; Em caso de invocação de aquisição por usucapião, o justificante tem de provar as características da posse imprescindíveis à verificação daquele modo de aquisição originária do direito de propriedade, devendo indicar, logo na escritura, as circunstâncias de facto que determinam o seu início e que consubstanciam e caracterizam essa posse, não sendo suficiente a mera alusão a conceitos jurídicos abstratos para atribuir à posse as qualidades para usucapir; Na falta dessa prova, e mesmo que não se possa concluir pela falsidade das declarações vertidas na escritura de justificação, a ação de impugnação deverá proceder, atendendo à insuficiência probatória de factos que permitam suportar a usucapião (ou outro modo de aquisição originária), devendo, a final, ser declarada não a nulidade, mas sim a ineficácia da escritura de justificação notarial.".

Concluindo: A justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo nos termos previstos no artº 116.º, n.º 1, do CRP consiste, efectivamente, numa declaração, feita pelo interessado, em que este se afirma, com exclusão de outem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e aludindo aos motivos que o impossibilitam de comprovar aquele direito pelos meios normais e, quando for alegada a usucapião, devem ser mencionados expressamente os factos que determinaram o início da posse, bem como os que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião (artº 89.º, n.ºs 1 e 2, do CN).
Ora, fazendo a escritura de justificação notarial prova plena da declaração efectuada perante o oficial público, não a faz, porém, da verdade dessa declaração (arts. 371.º, n.º 1, e 372.º, n.º 1, do CC).
Por isso, perante a impugnação judicial do teor das declarações escrituradas (que a A. apoda de falsas), competia à ré provar o conteúdo substantivo dos factos ali vertidos, agora em sede de julgamento, conforme exigência do artº 343.º, n.º 1, do CC, o que não logrou alcançar.

Decorrendo da procedência da impugnação judicial da justificação notarial a conclusão da desconformidade das declarações formalizadas na escritura pública à luz da realidade constatável, forçoso é concluir que aquela escritura, embora não possa ser apodada de falsa no seu conteúdo declaratório, é probatoriamente insuficiente para a demonstração dos eventos que ali se afirmaram e que suportavam a usucapião.

A consequência dessa falta de demonstração dos factos anunciados, ou seja, o vício que inquina a sobredita escritura de justificação notarial reconduz-se – não à sua nulidade – mas apenas á sua ineficácia, (vd. artigos 70.º e 71.º, do Código do Notariado), como bem se fez notar na decisão recorrida – de que estamos perante um erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que o tribunal deve corrigir, oficiosamente, declarando a ineficácia da escritura de justificação notarial, como permitido pelo art.º 5.º, do Código de Processo Civil (vd. Acórdão Uniformizador de jurisprudência do STJ nº 3/01, de 23-1-01, publicado no Diário da República, 1ª Série A, de 9-2-01).
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Do cancelamento do registo de aquisição do prédio a favor da Ré:

Insurge-se finalmente a recorrente contra a decisão proferida, na parte em que atendeu ao pedido formulado pela A, de cancelamento do registo da aquisição do prédio objecto da escritura a favor da ré, sustentando que tal registo lhe confere a presunção da titularidade do direito decorrente do artº 7º do CRP.

Ora, como bem se refere na decisão recorrida, “Em convergência com o plasmado no art.º 8.º do Código de Registo Predial, a impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respectivo registo.
E que ao abrigo do consignado no art.º 13.º do referido diploma, os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa, nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado (…).

In casu, atesta-se que o registo predial a favor da Ré referenciado em 10) se estriba na predita escritura de justificação, a qual é linearmente ineficaz nos termos sobreditos, pelo que se impõe o cristalino cancelamento da respectiva inscrição, em convergência com o plasmado nos arts. 8.º e 13.º, do Código de Registo Predial (…)”.

Sempre acrescentaremos ainda, que como acima deixamos dito, foi fixada Jurisprudência pelo STJ (AUJ n.º 1/2008) no sentido de que “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial”.

Efetivamente, a impugnação desses factos, traduzida na alegação da sua não verificação ou da sua não correspondência com a realidade, não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e a sua eficácia prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial, que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção.

Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede apenas no pressuposto da existência do direito registado.
Ou seja, a escritura de justificação notarial, com as declarações que nela foram exaradas, apenas vale para efeito de descrição do prédio na conservatória do registo predial, se não vier a ser impugnada — artigo 101.º do Código do Notariado.
Como o registo foi feito com base em tal escritura de justificação, aqui impugnada, e precisamente porque o foi, não pode ele constituir qualquer presunção de que o direito existe, já que é este mesmo direito cuja existência se pretende apurar nesta acção.
O princípio da boa fé registral não pode, só por si, justificar a solução oposta, sobretudo porque a escritura de justificação é um meio de suprir a falta de um título para registo.

Acresce que, não estando a acção sujeita a qualquer prazo de caducidade (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Junho de 1994, in Colectânea dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, II, 2.º, p. 140), é totalmente indiferente que já tenha ou não sido lavrado o registo com base na escritura de justificação.
Se o registo já se encontrar lavrado (como é o caso), o autor impugnante apenas terá de pedir o seu cancelamento - artigo 8.º, n.º 1, do CRP.
O que tudo permite concluir, como se concluiu, que o direito de propriedade afirmado na escritura de justificação notarial e, com base nela, levado ao registo, passou a ser incerto com a impugnação apresentada, daí decorrendo que a ré não possa beneficiar da aludida presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial.
Improcedem, assim, na totalidade, as conclusões de recurso da recorrente.
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Decisão:

Pelo exposto, Julga-se improcedente a Apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) pela recorrente.
Guimarães, 7.6.2018

Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues