Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
46/12.6DBRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ELEMENTOS DO CRIME
FALTA DE PROMOÇÃO DO M.º P.º
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO MEIOS DE PROVA
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPORCEDENTE
Sumário: I – A Constituição da República, no art. 219º, atribui ao Ministério Público, além do mais, a função de exercer a acção penal, que compreende toda a actividade dirigida a obter a punição do agente, a qual abarca a actuação de todas as pessoas que, cada uma na sua esfera de acção, cooperam para se obter aquele fim.
II – Como decorrência, a falta de promoção do processo pelo MP, nos termos do art. 48º do CPP, especificamente prevista na al. b) do art. 119º mesmo código, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento.
III – Em geral, havendo notícia de um crime de natureza pública, o MP tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes e recolher provas, cabendo-lhe, em exclusivo, legitimidade para tomar uma das posições previstas no art. 276º, nº1 do CPP, a de arquivar (nas modalidades previstas no artigo 277º do CPP) ou de acusar.
IV – Porém, no âmbito do processo penal tributário, o modelo imposto, em termos gerais, pelo CPP observa algumas especificidades na fase de inquérito, que decorrem da delegação da competência, legalmente presumida, aos órgãos da administração tributária para a prática de actos que, nos demais processos, o MP (apenas) pode atribuir aos órgãos de polícia criminal, embora, ainda assim, aquela competência seja (legalmente) delegada sem prejuízo de a direcção do inquérito por noticiado crime tributário caber sempre ao Ministério Público e de este Órgão, a todo o tempo, poder avocar o processo (cfr. arts. 40º e 41º do RGIT).
V – Desde logo, no que respeita à notícia do crime, ainda que adquirida por conhecimento próprio do MP, deve a mesma ser «sempre transmitida ao órgão da administração tributária com competência delegada para o inquérito» (art. 35º nºs 1 e 2 do RGIT), no mais curto prazo, devendo a respectiva denúncia conter, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243º do CPP (cf. nºs 5 e 6 do citado art. 35º). Depois, admite-se, até, que, ao abrigo de tal competência presuntivamente delegada, a instauração do inquérito seja também feita pelos órgãos da administração tributária, exigindo-se, apenas, a imediata comunicação dessa instauração ao MP (art. 40º nº 3 do RGIT).
VI – A opção do legislador ordinário ao imprimir a anotada especificidade ao processo penal tributário, sem contudo, retirar, naturalmente, a respectiva direcção e promoção ao Órgão constitucionalmente incumbido do exercício da acção penal, com o inerente poder da realização de outras diligências instrutórias, complementares ou não, não colide com qualquer outro princípio ou valor tutelado pela lei fundamental, pois o desvio ao regime geral é plenamente justificado pela especial natureza técnica das matérias em causa.
VII – Embora a Constituição da República Portuguesa o não consagre, explicitamente, tem sido consensualmente entendido que tem natureza constitucional implícita o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, quer na vertente de direito ao silêncio, quer na vertente da prerrogativa do arguido à não auto-incriminação.
VIII – Todavia, a nossa lei não acolhe uma concepção ampla do princípio, porquanto, ao dispor sobre o direito do arguido ao silêncio, o art. 61º, n.º1, d) do CPP, contempla apenas a faculdade de «Não responder a perguntas feitas», teor literal esse que inculca que o conteúdo do direito se restringe ao plano da “oralidade processual”, não abrangendo, por ex., o direito a recusar a entrega de dados que estejam em poder do arguido – tais como, inter alia, os documentos adquiridos com base em mandado, as recolhas de saliva, sangue e urina, bem como de tecidos corporais com vista a uma análise de ADN –, podendo, pois, assentar-se numa concepção do princípio nemo tenetur – conforme à Constituição, na interpretação que dela tem tido o próprio Tribunal Constitucional – que aponta para a ideia de que não é abrangido pela sua protecção o meio de prova que possa ser obtido, mesmo que com recurso a poderes coercivos, contanto que exista independentemente da vontade de parte do arguido e/ou da sua elaboração moral.
IX – Como tal, a colheita da panóplia de documentação feita no âmbito de uma inspecção tributária, ainda que concretizada também pelo cumprimento do dever de colaboração do obrigado tributário para com a autoridade tributária, não colide com a propalada prerrogativa do arguido à não auto-incriminação, constituindo, por isso, prova legal no processo penal.
X – Na decorrência desse entendimento, podem ser usados em processo penal os documentos validamente obtidos na fase administrativa inspectiva, ao abrigo do dever de cooperação, e os esclarecimentos prestados (sobre os mesmos e/ou neles apoiados) em depoimento do funcionário que procedeu a essa inspecção, sendo perfeitamente compreensível que este, como testemunha, para poder prestar um depoimento consistente, consulte os elementos de que a administração fiscal dispunha e obtidos no âmbito de uma actividade profissional que se concretiza, em geral, num elevado número de actos da mesma natureza, como sucede, correntemente, com outros intervenientes processuais.
XI – Sendo o nosso processo penal de estrutura basicamente acusatória, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), os factos essenciais descritos na acusação, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática (e também obrigatoriamente indicadas), definem e fixam o objecto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal, sob pena de violação desse estruturante modelo acusatório e do perigo de desvio do juiz do seu lugar de terceiro imparcial e supra-partes, a que também alude o art. 6º da CEDH.
XII – Contudo, trata-se de um sistema acusatório impuro ou mitigado uma vez que é integrado por um princípio da investigação (art. 340º nº 1 do CPP), de modo a proporcionar, nos limites do possível, a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, podendo o juiz, se suceder que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime imputado constem, desde logo, da acusação, intervir excepcionalmente na narrativa dos factos da acusação/pronúncia, reformulando-os ou mesmo acrescentando os factos novos que emergirem durante a discussão da causa, o mesmo podendo ocorrer com outras questões, uns e outras submetidos à disciplina do preceituado nos arts. 358º e 359º do CPP, que tratam da alteração dos factos e que possibilitam a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido e o processo justo.
XIII – Tal não ocorre quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes e sem implicações nos direitos de defesa do arguido.
XIV – O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos previstos no art. 410º, nº 2, al. a), que decorreria da violação dos princípios da investigação e da verdade material, face à detecção do imputado incumprimento, pelo tribunal a quo, do dever de apuramento dos factos necessários à decisão sobre a medida da pena, é um vício da decisão, não do julgamento, e, a verificar-se, reclamaria o reenvio o processo para novo julgamento, ainda que restrito a essa concreta questão, mas só relevaria se resultasse do texto da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a necessidade de produção de prova suplementar para tal efeito.
XV – Para o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal, no que concerne ao tipo subjectivo, exige-se o dolo – que pode abarcar qualquer das formas previstas no artigo 14º do C. Penal (directo, necessário e eventual) –, ou seja, o agente tem de representar os elementos do tipo, que se dirige à quebra da confiança depositada legalmente no detentor temporário da prestação tributária e imposta pelo dever de cooperação com a administração, mas, actualmente, para a violação da aludida fidúcia, já não é necessário que o contribuinte se aproprie – inverta o título da posse – da quantia retida ou deduzida, bastando que o mesmo, conhecendo o dever de entregar aquela quantia (efectivamente recebida ou retida) dentro de determinado prazo, não o cumpra.
XVI – Constituem elementos objectivos do tipo do crime de abuso de confiança fiscal previstos no art. 105º nº 1 do RGIT: a) a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária; b) que o agente a esteja legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei). Por outro lado, os requisitos aludidos no n° 4 daquele artigo configuram condições objectivas de punibilidade dos factos ilícitos típicos descritos em tal normativo.
XVII – Embora as disposições do C. Penal, por força do seu art. 8º, sejam, em geral, aplicáveis a factos puníveis nos termos de legislação de carácter especial, tal assim não será se a previsão desta contiver norma em contrário, que é o que sucede com a do art. 7º do RGIT sobre a responsabilidade penal das pessoas colectivas, que, não podendo deixar de ser vista como disposição em contrário, não sofreu qualquer alteração com a mais recente revisão daquele Código, pelo que, continua a ser plenamente aplicável no seu domínio material de aplicação. Por conseguinte, a responsabilidade penal de uma pessoa colectiva por uma infracção tributária emerge do cometimento desta por um seu órgão ou representante, em seu nome e no interesse colectivo e que a mesma não seja praticada contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum singular nº 46/12.6IDBRG da Instância Local, Secção Criminal de Guimarães, da Comarca de Braga, foram julgados e condenados por decisão proferida em 15/07/2016 e depositada na mesma data os arguidos E. M., L. V. e V..., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6º, 105º, nºs 1, 2 e 5 do RGIT, e a última ainda nos termos dos arts. 7º, cada um dos dois primeiros na pena de dezoito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de quatro anos sob a condição do pagamento no prazo de quatro anos das prestações tributárias referidas nos pontos 6) e 8) dos factos provados e demais acréscimos legais, nos termos dos artigos 50º, do C. Penal e 14º, nº 1 do RGIT, e e a terceira na pena de 500 dias de multa à taxa diária de € 20, respectivamente.

Inconformado, o arguido E. M. interpôs recurso, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«A) A Acusação não relata suficientemente todos os factos integradores da prática do crime previsto no art. 105.º, do RGIT.
B) Não consta da acusação que a decisão de não entrega dos impostos em causa tenha sido feita no interesse colectivo, neste caso, do V...e.
C) Não está alegado na Acusação que os Arguidos tenham agido no interesse colectivo ou em benefício da pessoa colectiva, ou indiciado que pelo menos os restantes directores tenham consentido na conduta dos Arguidos.
D) Pelo que os factos descritos na acusação não integram o tipo de crime previsto nos arts. 6.º, 7.º, e 105.º, do RGIT.
E)Daí que não podia o Recorrente ter sido condenado nos termos sentenciados.
DA FALTA DE ALEGAÇÃO DO DOLO DE APROPRIAÇÃO DE QUANTIA SUPERIOR A 7.500,00 €:
F) Na acusação não consta a descrição do dolo do crime de abuso de confiança, ou seja, que o Arguido previu e quis causar prejuízo ou ter benefício em valor superior a 7.500,00 €.
G) Não se encontrando descrito o elemento subjetivo do crime, o Recorrente deveria ter sido absolvido.
DA FALTA DE DESCRIÇÃO DOS FACTOS REFERENTES AO ELEMENTO OBJECTIVO DO TIPO:
H) O tipo legal de abuso de confiança fiscal, no caso do I.V.A., pressupõe que o agente não proceda à entrega ao Estada, no prazo legalmente fixado para o efeito, do montante de Imposto efectivamente recebido.
I) O facto de o Arguido ter efectivamente recebido as quantias de I.V.A. em causa antes do termos do prazo para a sua entrega à Autoridade Tributária, é uma elemento constitutivo do crime, que tem de constar da Acusação, por força do Princípio da Acusação, sob pena de esta improceder.
J) Por este facto, deveria o Recorrido ter sido absolvido.
K) Por outro lado, o tipo legal de abuso de confiança fiscal, pressupõe, nos seus próprios termos, um prazo de pagamento, ultrapassado o qual se acho o crime cometido.
L) Sucede que na Acusação, mais concretamente no Ponto 7, relativo à falta de pagamento de I.R.S., não consta em que data os arguidos deveriam entregar a prestação tributária em causa, não consta também que a prestação tributária tenha sido deduzida nos termos da Lei, ou sequer que os Arguidos estavam legalmente obrigados a entregar tais quantias ao Estado.
M) Assim sendo, a conduta descrita na Acusação é criminalmente atípica, pelo que o aqui Recorrente, também por aqui, deveria ter sido absolvido.
DA MEDIDA DA PENA APLICADA:
N) Sem prescindir, sempre se dirá ser excessiva a pena aplicada ao arguido.
O) A pena é desproporcional em relação aos factos dados como provados, além do mais há que considerar um conjunto de atenuantes que, salvo o devido respeito, não foram tidos em consideração pelo Mm.o Juiz a quo.
P) É uma pessoa idónea, respeitada e admirada no meio social onde vive e totalmente cumpridora das regras de conduta societárias.
Q) Profissionalmente, é uma pessoa absolutamente inserida.
R) Reconheceu a prática dos factos que lhe são imputados, apesar de não os considerar como tendo relevância criminal, e de não ter consciência de ter cometido qualquer crime.
S) Estes elementos não mereceram a devida importância.
T) Assim, a ter em consideração todos os factores de determinação da pena em termos de culpa e prevenção especial, bem como o regime de atenuação especial da pena, esta deveria ser manifestamente inferior.
U)A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 50.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal, e os arts. 6.º, 14.º, e 105.º do RGIT.».
Termina pedindo a sua absolvição e, caso assim não se entenda, a redução substancial da medida da pena aplicada.

O arguido L. V. também se insurgiu contra a decisão recorrida apresentado na sua motivação as seguintes conclusões:
«1ª Perante a factualidade provada e face à motivação da decisão e à sua fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica, verifica-se que na mesma foi feita uma errada ponderação dos factos dados como provados e não provados, concluindo-se (mal) pela condenação do recorrente;
2ª Não foram apurados factos concretos que permitam ao Tribunal concluir – como conclui – que o aqui recorrente teve uma participação ativa nos factos criminosos e que a gestão das obrigações tributárias do V.. foi fruto de uma decisão consciente de ambos os arguidos e, particularmente, do Recorrente;
3ª Face à prova produzida em sede de audiência, deveriam ser dados como não provados os factos constantes dos números 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 54 da Sentença em crise.
4ª O arguido E. M. reconheceu expressamente que a seleção dos pagamentos a ordenar lhe competia a si, incluindo o pagamento dos salários aos funcionários e jogadores de futebol profissional, não sendo suficiente para o efeito a qualidade de diretor, sendo que o Vice-Presidente P. P. assume que era com o Presidente que falava para pagar salários aos jogadores de futebol profissional;
5ª A decisão sobre a matéria de facto provada e não provada está indevidamente motivada, denotando-se a insuficiência de factos objetivos que permitam justificar os factos provados e não provados, nomeadamente quanto ao envolvimento do Recorrente na prática dos mesmos;
6ª Nenhuma prova foi produzida que permita concluir que o ora recorrente tivesse intervenção pessoal na decisão de pagar ou não pagar ao Estado os impostos em causa;
7ª Nenhuma prova foi produzida que concretize o domínio funcional do Recorrente em ordem a que o Tribunal tivesse podido concluir - como conclui erradamente – que o Recorrente praticava ou ordenava todos os atos relacionados com obrigações tributárias.
8ª Os documentos eram assinados indistintamente por qualquer um dos diretores (quem estava mais à mão) que assinavam os papéis que lhes punham à frente, motivo pelo que a aposição de assinaturas em documentos – neste contexto - não pode relevar para efeitos de afirmar que o arguido ordenava ou praticava atos relacionados com obrigações tributárias, tanto assim que – tal como com o recorrente - aparecem outros dirigentes a assinar documentos similares;
9ª Não pode o Tribunal dar como provado que o Recorrente era diretor financeiro do V.. sem que, em sede de prova, estejam nos autos as atas das reuniões de direção, o organigrama de gestão do clube ou o regulamento interno da direção aprovado, como é costume, na primeira reunião do órgão colegial;
10ª Não pode o Tribunal dar como provado quais as funções que concretamente o arguido desempenhava com base em declarações proferidas por diretor financeiro que exerceu essas funções em mandato interior, sem cuidar de saber se as competências se mantinham ou se foram alteradas;
11ª Não resulta de qualquer depoimento que o arguido tivesse, concretamente, quaisquer competências ao nível do cumprimento das obrigações do V..;
12ª Da matéria de facto dada como provada refere-se que o arguido teria competências para acompanhar a situação financeira do clube, fazendo uma avaliação precisa do seu estado, sem que, desses poderes de avaliação, haja qualquer facto do qual se possa concluir que há competência ao nível das ordens e seleções dos pagamentos a efetuar pelo V.., ou seja, ao nível do domínio funcional;
13ª O Recorrente não participava na obtenção de receitas de financiamento, sendo esta da competência exclusiva do Presidente, sendo que o Recorrente não participa na relação com as receitas televisivas, com as vendas de ativos, com a publicidade e marketing, pelo que não se deveria dar como provado que o recorrente tivesse participado na gestão das fontes de financiamento;
14ª Nada foi apurado quanto à conduta do Recorrente no sentido de ter, efetivamente, poder de decisão na gestão/administração do V..;
15ª Não pode o Tribunal concluir que do mero conhecimento da situação de incumprimento teve o recorrente uma participação ativa nessa mesma decisão de preterir a Fazenda Pública nos pagamentos.
16ª A prova produzida não contém qualquer referência, nem permite qualquer ilação, quanto ao comportamento do recorrente relativamente à decisão de o V.. não pagar os impostos em dívida.
17ª O recorrente foi condenado com base numa presunção judicial não fundamentada em factos que sustentem o raciocínio.
18ª O domínio dos factos referentes ao cumprimento das obrigações fiscais era exclusivamente do Presidente, conforme decorre da prova produzida.
19ª Os nossos Tribunais entendem que não se pode concluir, perante o facto de alguém figurar como diretor de uma associação e que, esse alguém, exerce, de facto, funções de gerência.
20ª Não tendo sido apurados quaisquer factos relativos à atuação do Recorrente não pode ser feito um juízo individualizado sobre a culpa.
21ª Não está preenchido o tipo legal de crime de abuso de confiança que pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efetiva de administração da pessoa coletiva.
22ª Não está suficientemente demonstrado nos autos que o Recorrente reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária.
23ª Pela mesma razão, a determinação da medida da pena, tal como foi feita, redunda em puro arbítrio.
24ª A sentença ofende os princípios basilares do nosso processo penal, pelo que se impõe a sua revogação e a absolvição do recorrente.».
Conclui dizendo que deverá revogar-se a sentença recorrida.

E a arguida V... apresentou recurso, que rematou com as seguintes conclusões:
«1ª Vem o presente recurso interposto da douta sentença que condenou o recorrente na pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º, 105, nº 1, 2 e 5, do RGIT (Lei 15/2001, de 5 de Junho);
2ª A aquisição da notícia do crime tributário pelos órgãos da administração tributária não substitui a aquisição da mesma notícia pelo Ministério Público, antes acresce a essa notícia, o que significa que quando adquirida a notícia por aqueles órgãos eles devem dar notícia ao Ministério Público, se a mesma ainda não tiver sido dada.
3ª Tal imposição justifica-se pela circunstância de estar constitucionalmente atribuído ao Ministério Público o exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade e a defesa da legalidade democrática (cfr. artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e a promoção do processo penal (cfr. artigo 48.º, do Código de Processo Penal), o que pressupõe e exige da sua parte o conhecimento de todos os factos ilícitos que devam ser investigados criminalmente.
4ª Nas “comunicações” feitas pela Autoridade Tributária ao Ministério Público, não se descrevem minimamente os factos que subjazem aos crimes a investigar no inquérito ou sequer, no caso do Proc. nº 46/12.6 IDBRG e 47/12.4 IDBRG qual o crime investigado, uma vez que as normas citadas dizem respeito ao Código do IVA, do IRS e as restantes referem-se a normas do RGIT que prevêem a prática de contra-ordenações.
5ª Quer isto dizer que nenhum facto foi comunicado ao Ministério Público e os que lhe foram comunicados não constituíam crime, pelo que o Ministério Público não só não estava obrigado a instaurar o inquérito, como estava impedido de o fazer, respeitando o princípio da legalidade, porque nenhuns indícios existiam da prática de um crime.
6ª Não tendo feito a administração tributária comunicado os factos que consubstanciavam crime e não tendo o Ministério Público indeferido a instauração do inquérito, cometeu-se a nulidade de falta de promoção do Ministério Público prevista no artº 119º al. b) do Código de Processo Penal que aqui expressamente se argui.
7ª Por outro lado, se o inquérito se iniciou relativamente a factos que, tendo sido “comunicados” não constituíam crime, foi realizado ainda inquérito relativamente a factos que nem sequer foram comunicados ao Ministério Público, uma vez que se comunicou ao Ministério Público que se iria abrir inquérito quanto a condutas referentes aos períodos tributários de Julho de 2011 relativamente à falta de pagamento de IRS (Proc. nº 46/12.6 IDBRG), Agosto de 2011 (Proc. nº 47/12.4 IDBRG) e Fevereiro de 2012 (Proc. nº 288/12.4 IDBRG) referentes à falta de pagamento de IVA, mas nada se comunicou relativamente aos factos investigados e pelos quais foi deduzida acusação e os arguidos condenados relativamente aos períodos tributários de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2011 referentes a IRS e Setembro e Outubro de 2011 e Janeiro de 2012 referentes a IVA.
8ª Quando foram feitas as comunicações ao Ministério Público já haviam transcorrido os prazos de pagamento dos períodos tributários de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2011 relativos a IRS e Setembro e Outubro de 2011 e Janeiro de 2012 relativos a IVA, pelo que já havia indícios do crime.
9ª O poder de promoção processual do Ministério Público não se esgota, ao contrário do que parece decorrer da decisão recorrida, na dedução de acusação, devendo ser o Ministério Público a ordenar a abertura do inquérito e a dirigi-lo.
10ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 48º e 119º al. b) do Código de Processo Penal no sentido de que apenas existe falta de promoção do MP no caso de não ser deduzida acusação pelo mesmo, é inconstitucional por violação do disposto no artº 219º do Código de Processo Penal.
11ª Não tendo a factualidade referente àqueles períodos tributários sido comunicada ao Ministério Público como fazendo parte do inquérito, existe falta de promoção do Ministério Público relativamente a tais factos, uma vez que relativamente a tais factos inexiste qualquer directiva do Ministério Público no sentido de os investigar, nem despacho dando início ao inquérito e essas funções incumbem ao Ministério Público e não ao órgão de polícia criminal e desconhecendo o Ministério Público que se estão a investigar determinados factos, por falta de comunicação da Autoridade Tributária, esta entidade não pode dirigir o que quer que seja – ainda que funcionalmente -, pelo que inexiste um inquérito dirigido pelo MP relativamente a tais factos e, por isso, também se poderá dizer com propriedade que foi cometida a nulidade insanável de falta de inquérito.
12ª Na verdade, a interpretação que se extraia do disposto no artº 40º nº3 do RGIT e dos artºs 55º nº1, 56º, 262º nº2 e 263º do Código de Processo Penal, no sentido de ser dispensável a comunicação por parte da Autoridade Tributária com competência delegada presumida, dos factos que subjazem ao inquérito de conhecimento superveniente à primitiva comunicação, deve ser julgada inconstitucional por violação do disposto no artº 219º nº1 da Constituição.
13ª Por outro lado, a interpretação que se extraia das mesmas normas no sentido de que a administração tributária pode iniciar um inquérito criminal sem que na comunicação prevista no artº 40º nº3 do RGIT enuncie os factos e as disposições legais que constituem e prevêem a prática do crime em investigação é da mesma sorte violadora do disposto no artº 219º da Constituição.
14ª Tendo em conta o supra exposto mal andou a sentença recorrida ao abraçar a tese defendida na decisão instrutória, devendo considerar-se que o processo se encontra afectado de nulidade insanável por falta de promoção do Ministério Público, quanto mais não seja, quanto aos factos que lhe não foram comunicados.
15ª Não se pode entender, ao contrário do que se defende na sentença recorrida que basta a norma do artº 41º nº2 do RGIT, sem qualquer despacho de subdelegação de poderes, para que se considere que os titulares dos órgãos e pelos funcionários e agentes dos respectivos serviços, podem praticar actos inquérito.
16ª Quando a lei diz que tais funcionários podem praticar actos de inquérito, tal competência tem, evidentemente, de ser delegada ou subdelegada expressamente, pois que assim não fosse e fosse de vingar a tese defendida na decisão recorrida, os funcionários da Autoridade Tributária teriam mais poderes que os seus superiores hierárquicos.
17ª Teria assim que existir um acto de subdelegação de poderes do Director de Finanças nos seus funcionários, no qual deviam constar expressamente quais as competências ou poderes subdelegados, o que não acontece.
18ª Por outro lado, se essa subdelegação existisse o órgão delegado ou subdelegado tinha que mencionar essa qualidade no uso da delegação ou subdelegação (art. 38º do CPA à altura em vigor), sob pena de nulidade.
19ª Não consta dos autos qualquer despacho de subdelegação de poderes do Director de Finanças Adjunto ao Chefe de Divisão de Inspecção Tributária L. M. ou na Técnica Economista R. L. ou no Inspector Tributário A. J., cujos nomes constam do relatório de inspecção tributária de fls. 83 e seguintes, 551 e seguintes e 621 e seguintes para a prática de actos de inquérito, nem tal subdelegação é referida em qualquer desses actos sucessivamente praticados.
20ª Temos, portanto, que os agentes da Autoridade Tributária que intervieram no inquérito, com excepção da instrutora nomeada, actuaram enquanto órgãos de polícia criminal, quando não estavam legitimados para o efeito, por um lado.
21ª E, mesmo que assim não fosse de entender, também quanto à instrutora nomeada, nenhum dos actos processuais por si realizados menciona a subdelegação de poderes, por outro lado.
22ª E não se diga que a falta do instrumento de subdelegação de poderes se trata de uma mera irregularidade, porquanto não se trata de uma auditoria, mas sim de um inquérito criminal, cujas regras estão bem definidas e encimadas por regras constitucionais.
23ª De facto, nem em concreto se sabe se os referidos agentes estão afectos, nos termos do artº 41º nº2 do RGIT, a serviços que têm as funções de investigação criminal, nem se pode entender que qualquer pessoa, desde que vinculada à Segurança Social por um contrato de trabalho, possa praticar actos de inquérito criminal.
24ª Nos termos do disposto no artº 42º nº3 do RGIT incumbe ao órgão da administração tributária competente, ou seja ao Director de Finanças (artº 41º nº1 al. c) do RGIT) emitir parecer fundamentado sobre a investigação destinado a remeter ao Ministério Público que no caso foi elaborado pela referida Instrutora, no entanto, o despacho de fls. 80 não lhe confere poderes para elaborar tal parecer fundamentado.
25ª É ao director de finanças que incumbe elaborar o parecer fundamentado e não meramente apor o seu visto, como parece decorrer da decisão recorrida.
26ª Por isso, os referidos funcionários não actuaram sob orientação ou dependência funcional do Ministério Público (que do inquérito se alheou), em contravenção ao disposto no artº 55º e 56º do Código de Processo Penal, mas antes do seu superior hierárquico que para tal não lhes havia conferido poderes.
27ª Os actos de inquérito nos presentes autos tendo sido realizados por quem não tinha competência para o efeito nem a invocou, estão feridos de inexistência jurídica, mas ainda que assim não se entenda sempre os actos de inquérito praticados por agentes da Autoridade Tributária devem ser considerados nulos por falta de promoção processual do Ministério Público, nos termos do disposto no artº 119º al. b) do Código de Processo Penal.
28ª A interpretação que se extraia do disposto nos artºs 40º nº2 e 41º nº1 al. b) e nº2 do RGIT e 62º da LGT no sentido de que os agentes da Autoridade Tributária podem praticar actos de inquérito, sem que exista delegação ou subdelegação expressa de poderes da entidade na qual foram delegados tais poderes através de despacho do Ministério Público ou presumida tal delegação, nos termos do disposto no artº 41º nº1 al. b) do RGIT, ou que podem praticar actos de inquérito sem invocar a qualidade de subdelegados, deve ser julgada inconstitucional, por violação do disposto nos artºs 32º nº1, 219º nº1 e 2 e 266º nº1 e 2 e 267º nº1 da Constituição.
28ª Errou, assim, da mesma sorte a sentença recorrida ao acolher a tese da decisão instrutória quanto a esta matéria, pelo que deveriam ter sido julgados inválidos tais actos processuais que desembocaram directamente na acusação do Ministério Público, devendo esta ser afectada, da mesma forma, nos termos do disposto no artº 122º nº1 do Código de Processo Penal e os actos processuais deles dependentes.
29ª Como bem se diz na sentença recorrida, foram realizadas 3 inspecções tributárias durante o inquérito. Tais acções inspectivas tinham como intuito confessado “de obter elementos de prova de crime de abuso de confiança fiscal, relativo a retenções na fonte de IRS efectuadas e não entregues no mês de Julho de 2011, de forma a instruir o processo de inquérito nº 46/2012.6 IDBRG” (cfr. fls. 85 dos autos) e “de obter elementos de prova de crime de abuso de confiança fiscal, relativo a retenções na fonte de IRS efectuadas e não entregues dos meses de Agosto a Dezembro de 2011 e IVA dos meses de Setembro e Outubro de 2011 e Janeiro e Fevereiro de 2012, de forma a instruir o processo de inquérito nº 288/2012.4 IDBRG” (cfr. fls. 552).
30ª Sucede que, no âmbito do inquérito, tal como em todas as fases do processo, todo o arguido tem direito ao silêncio e de não contribuir para a sua condenação, ao contrário do procedimento de inspecção tributária, pelo que, realizar três inspecções tributárias no decurso do inquérito é subverter as mais elementares regras do processo e obrigar o arguido, sob coacção, a contribuir para a sua condenação.
31ª De facto, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, o sujeito passivo do imposto está sujeito e obrigado a um rol de deveres que não se coadunam com os direitos do arguido, designadamente ao silêncio.
32ª Foi, pois, com todo o à vontade que os inspectores tributários circularam nas instalações do arguido, obtendo da parte dos funcionários, representantes legais toda a cooperação que lhes é exigida pela Lei Tributária, mas que, em nenhum momento se coadunam com os direitos conferidos aos arguidos, com o princípio da proporcionalidade e com os princípios inerentes aos meios de obtenção de prova e meios de prova em processo penal.
33ª A obtenção de documentos, cópias, acesso aos sistemas informáticos, correspondência e apreensão de documentos no âmbito do processo penal, estão devidamente reguladas e têm de obter despacho do Juiz de Instrução, que, por isso mesmo, é apelidado de Juiz das Liberdades, pelo que, não pode manter-se nos autos prova que, obtida no âmbito da inspecção tributária, não respeitou, nem respeita os princípios estruturantes do processo penal português.
34ª E não se diga, como afoitamente se diz na sentença recorrida que não está demonstrado que os arguidos tenham sido constrangidos de modo efectivo a colaborar, tendo em conta que sabendo da pendência do processo criminal, ainda assim não se negaram a colaborar. A colaboração do arguido em processo penal há-de ser livre e esclarecida e nunca seria livre com a cominação da prática de um crime se não se colaborasse.
35ª Em contrário dir-se-á que não resulta provado que o inspector tributário não tenha cumprido a lei e avisado expressamente os arguidos e funcionários do recorrente de que incorriam nas sanções legais (disciplinares, contra-ordenacionais e criminais) se não colaborassem e tanto basta para que se conclua que tal prova tem que ser julgada proibida.
36ª Na verdade, o cidadão comum não anda com um Código de Processo Penal debaixo do braço, não tem um advogado em casa, nem sabe se se pode ou não opor à realização de diligências.
37ª A actividade inspectiva é “facilitada” aos inspectores tributários, tendo em conta o dever de cooperação que é reforçado pela cominação do cometimento de um crime de recusa de cooperação, nos termos do artº 32º nº1 do RGCPIT.
38ª Vê-se, assim, o contribuinte numa camisa de sete varas, ou seja, ou coopera e vê-se na contingência de contribuir para a sua incriminação, ou não coopera e do mesmo modo comete um crime.
39ª Não se tratava nos autos de qualquer providência cautelar para salvaguardar prova do crime. Inexistia e, aliás, nunca foi invocada qualquer necessidade e/ou urgência na recolha de prova, pelo que tal inspecção tinha que ter autorização judicial.
40ª O direito à não auto-inculpação não deve ser postergado ou comprimido por qualquer outro dever do contribuinte, designadamente o de cooperação com a Administração Tributária. Fazê-lo seria defender que o arguido deve contribuir para a sua condenação e, no fundo, inverter o ónus da prova no âmbito do processo penal, manietando o arguido, tornando-o um objecto, conforme os interesses da investigação, violando frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana previsto no artº 1º da Constituição.
41ª A interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 125.º, do Código de Processo Penal, no sentido de que se podem admitir no processo penal como prova, os documentos obtidos por uma inspeção tributária a que se procedeu durante o inquérito, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, 59.º, n.º 4 e 63º nº1 e 3, da LGT, sem o prévio conhecimento ou decisão da autoridade judiciária competente, é inconstitucional por violação do disposto nos artºs 1º, 18º nº2, 20º nº4, 32º nº1 e 4, 34º nº1 e 2 e 219º nº1 da Constituição.
42ª E não se invoque que o direito do Estado em arrecadar impostos ou em exercer a acção penal permite que se contorne ou que se restrinja o direito ao silêncio e o direito do arguido a não se auto-incriminar, sob pena de regressarmos aos tempos do Tribunal do Santo Ofício em que todas as torturas eram aceitáveis e possíveis, desde que se obtivesse a confissão do arguido.
43ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 61º nº1 b), d), e), f) e h), 124º nº1, 125º, 126º nº1 als. a), d) e e) 3, e 4, 174º e 176º, 178º, 179º e 182º, 267º, 268º, 269º e 270º do Código de Processo Penal no sentido de que podem ser usadas como prova em processo criminal fiscal, documentos cedidos por funcionários de uma empresa ou pelos agentes do crime, seus directores a uma inspecção tributária, ao abrigo do dever de cooperação previsto nesse diploma legal e nos artºs 31º nº2 e 59º nº4 da LGT, obtidos a pedido dessa inspecção, quer pessoalmente, quer através de recolha desses documentos nas instalações, sem cumprir o ritualismo previsto no Código de Processo Penal para a apreensão de documentos e para uma busca, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito, do princípio da legalidade, da igualdade, do direito à integridade moral, à reserva da intimidade da vida privada, o princípio das garantias de defesa, o princípio da tutela jurisdicional dos actos instrutórios e de inquérito, inviolabilidade da correspondência e o princípio do processo equitativo (cfr. artºs 2º, 3º, 13º nº1, 25º nº1, 26º nº1, 32º nº1, 4 e 8 e 34º nº1 da Constituição da República Portuguesa e 6º nº1 da CEDH).
44ª Quer isto dizer que os documentos constantes dos autos principais decorrentes das inspecções tributárias e os documentos constantes dos anexos, maioritariamente constituídos por facturas e outros documentos fiscalmente relevantes não podem ser valorados como prova, nos termos do disposto no artº 126º nº2 al. a) do Código de Processo Penal.
45ª O inspector tributário que depôs nos presentes autos compareceu em Tribunal uma primeira vez em 13/4/16, referindo nada saber sobre os factos, tendo em conta que teria sido notificado nesse próprio dia, conforme a gravação da audiência.
46ª Interrompeu-se o seu depoimento e a audiência, em contravenção ao disposto nos artºs 326º nº2, 4 e 5 do Código de Processo Penal porque, alegadamente, não estava preparado para depôr, tendo-se apresentado na sessão seguinte a testemunha, agora, alegadamente, devidamente “preparado”.
47ª O recorrente arguiu a irregularidade de tal procedimento, no entanto a sentença recorrida atribuiu-lhe uma especial credibilidade, apesar de a interrupção da audiência de julgamento teve como único benefício para a testemunha, o poder “preparar-se” para depôr, o que terá sido querido pelo Tribunal.
48ª Ora, como é evidente o “segundo depoimento” do referido Inspector – para além demonstrar uma hostilidade patente para com os advogados dos arguidos, a que o Tribunal tentou pôr cobro sem sucesso, porque a testemunha respondeu àquilo que bem entendeu – já não foi sobre factos de que tinha conhecimento directo, nos termos do disposto no artº 128º do Código de Processo Penal, mas influenciado pelo que leu ou pelo que lhe foi dado a ler entre a 1ª sessão de julgamento e a segunda.
49ª Foi esta testemunha que, com as nuances supra referidas, e com outras que decorrem da gravação do seu depoimento, o Tribunal entendeu como merecedora de credibilidade e na qual se baseou, como decorre da sentença recorrida para condenar os arguidos.
50ª O depoimento em causa não podia, assim ser admitido e valorado como o foi pelo Tribunal, pelo que a sua valoração é irregular, nos termos do disposto no artº 123º e 128º do Código de Processo Penal, devendo tal irregularidade ser declarada e baixarem os autos à 1ª instância para prolação de sentença, sem contar com a valoração do referido depoimento.
51ªPor outro lado, o depoimento da testemunha que dirigiu as inspecções tributárias, na medida em que teve acesso, durante tais inspecções a documentos que, como suprta se disse, constituem prova ilegal, também não poderia ser valorado, porquanto o seu conhecimento dos factos advinha da inspecção tributária realizada e, em consequência, de meios de prova obtidos ilegalmente em face do processo penal.
52ª Deve, assim, o depoimento do inspector ser julgado nulo ou quando assim não se entenda proibida a sua valoração, nos termos do disposto nos artºs 126º nº2 al. d) e e) e 3 do Código de Processo Penal.
53ª A pessoa colectiva só comete o crime e é punida quando os seus representantes o forem, por um lado, e, por outro, apenas é punida quando estes representantes cometerem o crime “no interesse colectivo”, ou seja, da pessoa colectiva.
54ª Mas como diz Germano Marques da Silva Questão de importância teórica e prática muito grande é a que respeita aos administradores e representantes de facto. Entendemos que só há responsabilidade da pessoa colectiva quando os administradores e representantes agem com o consentimento dos administradores de direito.”
55ª É que, como nos diz Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, pag. 97 a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e entidades equiparadas está excluída verificando-se no caso de órgão colegial de direcção ou administração, a actuação do agente em posição de liderança contra a vontade expressa da maioria dos membros do órgão.
56ª Necessário, assim se torna para que a infracção penal seja imputável à pessoa colectiva que a decisão seja unânime entre os membros da sua liderança ou pelo menos que algum ou alguns deles ajam com o consentimento dos restantes, pelo que, não se dando como provado que, pelo menos os restantes directores tenham consentido na conduta dos arguidos, o recorrente deveria ter sido absolvido do crime pelo qual foi condenado.
57ª O dolo deve estender-se a todos os elementos do tipo, necessário se tornando, por isso, que o arguido represente e queira realizar o tipo de crime, prevendo e querendo preencher cada um dos seus elementos típicos.
58ª Na acusação não se descrevia o dolo do crime de abuso de confiança, ou seja que o arguido previu e quis causar prejuízo ou ter benefício em valor superior a 7.500 €, ou melhor dito, que o arguido previu e quis prejudicar o lesado ou obter benefício para si de valor superior a 7.500 €, tal como na sentença recorrida também não se deu como provado.
59ª Assim, não se tendo dado como assente o elemento subjectivo do crime, o recorrente deve ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.
60ª No ponto 8 da sentença recorrida, designadamente nas alíneas c) e d) deu-se como assente que relativamente ao IRS da categoria B foram retidos 453,52 € referentes a Setembro de 2011 e 1418,64 € referentes a Outubro de 2011 (artºs 7.3 e 7.4 da acusação).
61ª Por outro lado, consta da sentença recorrida – ponto 8 al. e) – que o recorrente reteve a quantia de 21.245,76 referentes a IRS da categoria A do período tributário de Novembro de 2011, sendo 18.477 € da categoria A e 2.768,76 € da categoria B, quando da acusação consta apenas a menção à quantia de 10.873,76 € (artº 7.5 da acusação).
62ª Também na al. g) se deu como provado que o recorrente reteve 16.780 € relativos à categoria A do IRS, quando na acusação – ponto 7.7 consta o valor de 15.727 €.
63ª Os valores constantes nas supra referidas alíneas do ponto 8. dos factos provados não foram comunicados ao recorrente – os constantes das als. c) e d) – ou foram-no por valores inferiores – como acontece com as als. e) e g) -, resultando incumprido o disposto no artº 358º nº1 do Código de Processo Penal, devendo, por isso, a douta sentença ser considerada nula, nesta parte, nos termos do disposto no artº 379º nº1 al. b) do Código de Processo Penal.
64ª Quanto à medida da pena na sentença recorrida apenas se ponderou que atendendo às circunstâncias que rodearam a prática do ilícito, o pagamento parcial da dívida, a ausência de antecedente criminais e, bem assim, o expectável ressarcimento total do prejuízo causado ao Estado (pois a arguida tem património suficiente para tanto) e aos factos provados quanto à situação económica e financeira da sociedade arguida, entende-se ser adequado e proporcional condenála em 500 (quinhentos) dias de multa à taxa diária de €20,00 (vinte euros).
65ª Ora, a actividade do recorrente, como é sabido, tem um impacto social enorme na cidade onde tem sede, designadamente promovendo o deporto para milhares de jovens.
66ª Por outro lado, como decorre dos factos dados como provados nº 43 a 53 o recorrente já pagou ao Estado mais de 600.000 € de impostos no âmbito do PEC aprovado.
67ª Da mesma sorte decorre dos autos que as dívidas em causa sempre estiveram garantidas por património imobiliário do recorrente em valor muitas vezes superior ao valor devido, pelo que o Estado nunca correu o risco de se ver não ressarcido de tais quantias.
68ª Por fim, o recorrente mudou de Direcção há cerca de 4 anos, tendo mantido os seus impostos em dia.
69ª Relativamente ao montante da multa e à situação económica do recorrente na sentença recorrida apenas se apurou qual o seu rendimento anual, que é bem diferente do seu estado financeiro, tendo em conta até o ponto 29 da matéria de facto assente.
70ª Com efeito, há que não esquecer que o recorrente recorreu a um PEC e a um PER, tendo em conta a sua situação económica dificil, pelo que neste aspecto não se apuraram dados suficientes para se concluir da situação económica do recorrente, pelo que nesta parte a douta sentença é nula por violação do disposto nos artºs 374º nº2, 375º nº1 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal.
71ª De qualquer das formas, a aplicação da pena de 500 (quinhentos) dias de multa, à taxa diária de € 20,00 (vinte euros), num valor total de 10.000 € não é proporcional, devendo ser reduzida quer no número de dias que deverá ser de 300 e a taxa diária de 10 €.
72ª A sentença recorrida violou ou fez errada interpretação das normas constantes da motivação e das conclusões, não podendo, pois, manter-se.».
Termina dizendo que deve ser absolvida.

A arguida/recorrente requereu a realização de audiência nos termos do disposto no art. 411º, nº 5 do CPP, tendo como base as conclusões apresentadas.
Os recursos foram regularmente admitidos nos termos do despacho proferido a fls. 1640.

O Ministério Público, junto da primeira instância, respondeu aos recursos pugnando pela sua improcedência, terminando com as seguintes conclusões:
1- A douta sentença recorrida apreciou correctamente a matéria de facto e de direito, não se mostrando violada qualquer norma legal, substantiva ou adjectiva, que impunha a sua alteração ou revogação.
2- No que concerne à escolha e determinação das medidas das penas, considerando-se, como bem se considerou na douta sentença, que a ilicitude dos factos se situa num grau elevado, que a culpa é elevada, assim como as necessidades de prevenção geral, terá de concluir-se que as penas aplicadas, respeitaram os pressupostos mencionados nos arts. 40º, 70º e 71º, do Código Penal, e são proporcionais e adequadas ao caso concreto.
3- Não foram violadas quaisquer normas ou princípios.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer quanto aos recursos apresentados pelos arguidos E. M. e L. V., dizendo, muito em suma, que os mesmos devem improceder por não se colher da decisão recorrida as falhas que ambos lhe imputam quer no que respeita aos elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual acabaram por ser condenados quer quanto à bondade da motivação feita pelo tribunal recorrido. Também no que concerne à excessividade da medida da pena questionada pelos recorrentes sustentou as proeminentes exigências de prevenção geral que estão subjacentes a este tipo de crime. Relativamente ao recurso apresentado pela V..., após elencar todas as questões suscitadas, relegou para as alegações orais, a produzir na audiência, a tomada de posição quanto ao mesmo.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
*
Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a audiência, com observância das formalidades legais, conforme se infere da respectiva acta.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 402º, 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, nos presentes recursos suscitam-se as seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:
1. Nulidades insanáveis:
1.1. – Falta de promoção do Ministério Público;
1.2. – Violação da prerrogativa à não auto-incriminação;
1.3. – Nulidade e proibição de valoração de meio de prova.
2. – Nulidade da sentença por não cumprimento do art. 358º do CPP.
3. – Insuficiência da matéria de facto quanto à situação económica.
4. – Erro de julgamento sobre a matéria de facto.
5. – O elemento subjectivo da infracção.
6. – A falta de descrição dos elementos objectivos do crime quanto ao IVA.
7. – A responsabilidade penal da arguida (pessoa colectiva).
8. – A medida das penas.
*
Importa apreciar tais questões e decidir. Para o conhecimento do objecto dos recursos são pertinentes os factos enunciados na decisão recorrida e a motivação da decisão sobre a matéria de facto.
– São os seguintes os factos enunciados na decisão recorrida (transcrição):
«A. FACTOS PROVADOS:
Da acusação:
Com relevância para a boa decisão da causa encontram-se provados os seguintes factos:
1)A pessoa colectiva arguida é sujeito passivo de IVA, tributável no regime normal de periodicidade mensal, pelo exercício da “actividade dos clubes desportivos” (CAE 93120), assim estando inscrita no serviço de finanças de Guimarães – 2, pelo que está obrigada a liquidar aquele imposto nas operações sujeitas ao mesmo.
2)A pessoa colectiva arguida é devedora de rendimento de trabalho dependente e dispõe e está obrigada a dispor de contabilidade organizada, pelo que está obrigada a deduzir/reter os montantes devidos a título de IRS pelos pagamentos que faça e que sejam enquadráveis em rendimentos de trabalho dependente e em rendimentos empresariais e profissionais.
3) O arguido E. M. foi Presidente da direcção da pessoa colectiva arguida entre 26 de Março de 2010 e 10 de Abril de 2012.
4) O arguido L. V. foi Vice-Presidente da direcção da pessoa colectiva arguida entre 26 de Março 2010 e Abril de 2012, competindo-lhe a gestão da área financeira.
5) Durantes esse período, os arguidos decidiram e/ou praticaram todos os actos inerentes à gestão financeira da sociedade arguida, nomeadamente praticando ou ordenando todos os actos relacionados com obrigações tributárias.
6) Entre Setembro de 2011 e Fevereiro de 2012, a sociedade arguida realizou operações tributáveis pelas quais liquidou e recebeu efectivamente, a título de IVA e em montante superior ao IVA pago por si, antes do respectivo termo do prazo de entrega à Administração Fiscal, as seguintes quantias:
- € 232.951,37, em Setembro de 2011;
- € 112.512,20, em Outubro de 2011;
- € 14.499,66, em Janeiro de 2012;
- € 181.651,76, em Fevereiro de 2012;
7)Apesar da pessoa colectiva arguida estar obrigada a entregar aqueles valores à Administração Fiscal até 10 de Novembro de 2011, 12 de Dezembro de 2011, 12 de Março de 2012 e 10 de Abril de 2012, respectivamente, os arguidos não o fizeram, em tais datas, nos 90 dias seguintes ou nos 30 dias seguintes após terem sido notificados para os efeitos do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT.
8) Entre Agosto de 2011 e Fevereiro de 2012, relativamente aos pagamentos enquadráveis em rendimentos de trabalho dependente (Categoria A) e rendimentos empresariais e profissionais (Categoria B), os arguidos deduziram, pelo menos, os seguintes montantes a título de retenção na fonte de IRS:
a) € 214.560,59, relativamente a rendimentos da Categoria A, vencidos em Julho de 2011 e pagos em Agosto de 2011 (€ 213.271,00) e a rendimentos da Categoria B, vencidos e pagos em Agosto de 2011 (€ 1.289,59);
b) € 227.754,24, relativamente a rendimentos da Categoria A, vencidos em Julho de 2011 e pagos em Agosto de 2011 (€ 217.166,00) e a rendimentos da Categoria B, vencidos e pagos em Setembro de 2011 (€ 10.588,24);
c) € 227.791,52, relativamente a rendimentos da Categoria A, vencidos em Setembro de 2011 e pagos em Outubro de 2011 (€ 227.328,00) e a rendimentos a Categoria B vencidos e pagos em Outubro de 2011 (€ 463,52).
d) € 210.265,64, relativamente a rendimentos da Categoria A, vencidos em Outubro e pagos em Novembro de 2011 (€ 208.874,00) e a rendimentos da Categoria B, vencidos e pagos em Novembro de 2011 (€ 1.418.64).
e) € 21.245,76, relativamente a rendimentos de Categoria A, vencidos em Novembro de 2011 e pagos em Dezembro (€ 18.477,00) e a rendimentos da Categoria B, vencidos e pagos em Dezembro (€ 2.768,76).
f) € 170.427,00, relativa a rendimentos da Categoria A, vencidos em Novembro de 2011 e pagos em Fevereiro de 2012.
g) € 16.780,00, relativamente a rendimentos da Categoria A, vencidos em Dezembro de 2011 e pagos em Janeiro de 2012.
9) Apesar da pessoa colectiva arguida estar obrigada a entregar estes valores à Administração Fiscal até ao dia do 20 mês seguinte ao do respectivo pagamento, os arguidos não o fizeram, em tais datas, nos 90 dias seguintes ou nos 30 dias seguintes após terem sido notificados para os efeitos do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT.
10) Os arguidos E. M. e L. V., apesar de saberem que a pessoa colectiva arguida que geriam estava legalmente obrigada à entrega daqueles montantes à Administração Fiscal, não o fizeram, o que previram e quiseram de acordo com resoluções tomadas em comum.
11) A pessoa colectiva arguida, apesar de saber que estava legalmente obrigada a entregar aqueles montantes, não o fez, o que previu e quis através dos outros arguidos, que agiram em seu nome e com a intenção comum de assim satisfazerem o seu interesse.
12)Os arguidos adoptaram estas condutas livre, deliberada e conscientemente, apesar de saberem que as mesmas eram proibidas e punidas por lei penal.
Da contestação do arguido V.S.C.:
13) Os salários devidos aos trabalhadores não foram pagos atempadamente por dificuldades financeiras.
14) Assim, alguns dos salários de Novembro e Dezembro de 2011 foram pagos muito depois de 20 de Dezembro de 2011 e 20 de Janeiro de 2012.
15) Alguns dos salários em causa foram pagos em prestações.
16)A actual Direcção do arguido, tendo tomado conhecimento da dívida pendente ao Fisco, encetou diligências junto das Finanças a fim de estabelecer planos prestacionais e liquidar o mais depressa possível e dentro das suas disponibilidades os débitos ao fisco.
17) As dívidas fiscais sempre estiveram garantidas por património do arguido em valor bastante superior ao necessário para pagar tais quantias.
18) O arguido deu entrada de um Processo Especial de Revitalização que correu seus termos no então 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães com o nº 3038/12.1TBGMR.
19) Relativamente às dívidas fiscais, está em curso o pagamento através de um Procedimento Extra-Judicial de Conciliação.
20)No âmbito desse processo o arguido encontra-se a pagar as dívidas fiscais que se discutem nos autos e outras.
21)Encontra-se em curso um plano de pagamento em 150 prestações, tendo o arguido pago o aí acordado.
Da contestação do arguido E. M.:
22) O não pagamento das quantias supra referidas deve-se ao facto das dificuldades financeiras então existentes, inexistindo fontes de financiamento usuais, como a Banca.
23)Razão por que restava o recurso às receitas extraordinárias, como a venda de jogadores.
24) Nesse sentido, em Outubro/Novembro de 2011, o arguido desenvolveu contactos com um grupo financeiro internacional, ligado a agentes de jogadores, tendo em vista um volumoso encaixe financeiro através da venda de direitos económicos de vários jogadores que permitiriam o saneamento financeiro do clube.
25)Tais negociações abortaram.
26) Não havia possibilidade de obter mais financiamento.
27) O ambiente interno do clube não proporcionava a obtenção de receitas, seja através da cotização seja por via de angariação de publicidade.
28) O arguido foi eleito Presidente da Direcção do V.. em Março de 2007 e enquanto se manteve em funções sempre teve a preocupação de cumprir as obrigações e compromissos decorrentes da sua actividade.
29) Quando assumiu as funções, já o V.. tinha um passivo de 10 milhões de euros.
30) Em 2012, não sendo possível obter financiamento, o clube recorreu a um Procedimento Especial de Conciliação a que se seguiu um Plano Especial de Revitalização, o qual tem permitido cumprir com as obrigações fiscais.
Da contestação do arguido L. V.:
31) O arguido está habilitado a exercer, e exerce de forma habitual, as funções de Técnico Oficial de Contas, Solicitador e gestor de empresas.
32) É ainda administrador de uma empresa denominada P., S.A. que se dedica à contabilidade.
33) Empregando a referida empresa diversos trabalhadores.
34) Sendo que a gestão desta empresa o ocupa diariamente, nela estando, como estava à data dos factos, de forma habitual.
35)É da gestão dessa empresa que resultam os rendimentos económicos do seu agregado.
36) Tal empresa, como o exercício da actividade de TOC e solicitador, ocupam bastante o arguido.
37) O arguido é casado, sendo pai de dois filhos.
38) Foi membro da direcção do V....
39) O V... é uma associação de referência no concelho de Guimarães, que tem actividade para além do futebol profissional, seja através de modalidades amadoras, seja através da formação de jovens atletas em diversas modalidades.
40) O V... celebrou com a Autoridade Tributária um plano de pagamentos, que compreende a dívida supra referida, que está no âmbito de um processo especial de revitalização.
41) A dívida negociada e enquadrada no âmbito do referido Processo Especial de Revitalização está a ser paga pelo V....
42)Sendo que a dívida fiscal está garantida através do vasto e suficiente património imobiliário do clube.
Mais se apurou:
43) Do IVA do mês de Setembro de 2011, no montante de € 237.570,92, encontrava-se por pagar, em Maio de 2016, o valor de € 155.296,29.
44) Do IVA do mês de Outubro de 2011, no montante de € 126.972,27, encontrava-se por pagar, em Maio de 2016, o valor de € 82.678,44.
45) Do IVA do mês de Janeiro de 2012, no montante de € 24.743,97, encontrava-se por pagar, em Maio de 2016, o valor de € 20.717,82.
46) Do IVA do mês de Fevereiro de 2012, no montante de € 200.333,16, encontrava-se por pagar, em Maio de 2016, o valor de € 141.791,00.
47) Do IRS relativo ao mês de Agosto de 2011, no montante de € 214.560,59, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o valor de € 100.122,53.
48) Do IRS relativo ao mês de Setembro de 2011, no montante de € 227.754,24, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o valor de € 107.053,28.
49) Do IRS relativo ao mês de Outubro de 2011, no montante de € 227.791,52, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o valor de € 143.597,10.
50) Do IRS relativo ao mês de Novembro de 2011, no montante de € 210.265,64, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o valor de € 133.635,65.
51)Do IRS relativo ao mês de Dezembro de 2011, no montante de € 10.873,76, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o valor de € 7.070,86.
52)Do IRS relativo ao mês de Janeiro de 2012, no montante de € 15.727,00, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o valor de € 7.070,86.
53) Do IRS relativo ao mês de Fevereiro de 2012, no montante de € 209.262,00, encontrava-se em dívida, em Maio de 2016, o montante de € 132.997,7
54) Os arguidos E. M. e L. V. foram renovando o seu propósito referido em 10), ao longo do período supra referido, por razões de dificuldades de ordem financeira que a arguida V.. atravessava, optando por manter esta última em actividade mediante o cumprimento das despesas correntes e pagamento de salários, na ideia de, logo que a situação melhorasse, regularizarem a dívida fiscal.
Da situação pessoal dos arguidos (para além dos factos provados quanto a este âmbito, alegados nas contestações):
55) O arguido E. M. é empresário no ramo da construção civil há cerca de 37 anos.
56)A empresa é familiar, sendo gerida pelos quatro irmãos.
57) O arguido declara com vencimento de gerente, o montante mensal de € 2.300,00.
58) Na declaração de IRS referente a rendimento de 2013, o arguido declarou, como rendimento obtido, o montante bruto de € 32.700,00, tendo ainda declarado como valor de alienação de partes sociais e outros valores mobiliários, o montante de € 1.911.000,00.
59) Na declaração de IRS referente a rendimento de 2014, o arguido declarou, como rendimento obtido, o montante bruto de € 33.600,00.
60) Na declaração de IRS referente a rendimento de 2015, o arguido declarou, como rendimento obtido, o montante bruto de € 33.600,00.
61) Não constam registados em nome do arguido quaisquer veículos ou bens imóveis.
62) A esposa é doméstica.
63) A casa onde o casal vive é arrendada, senda a renda mensal de € 500,00.
64) O arguido concluiu a 4ª classe.
65) Não são conhecidos ao arguido quaisquer antecedentes criminais.
66) O arguido L. V. é licenciado em Contabilidade.
67) Tem duas empresas, uma de contabilidade e outra de seguros.
68) O arguido aufere como vencimento declarado o salário mínimo nacional e remuneração em espécie, que ascendo, no total, a € 2.500,00.
69) Aufere ainda, como solicitador, uma remuneração média anual, na ordem de € 6.000,00.
70)A esposa trabalha numa das aludidas empresas, auferindo o vencimento mensal de € 2.500,00.
71) Na declaração de IRS referente a rendimento de 2012, o arguido declarou juntamente com a sua esposa, como rendimento de trabalhador dependente, o montante bruto de € 31.784,23 e como rendimento profissionais, o montante bruto de € 22.536,72.
72) Na declaração de IRS referente a rendimento de 2013, o arguido declarou juntamente com a sua esposa, como rendimento de trabalhador dependente, o montante bruto de € 19.818,80 e como rendimento de profissionais, o montante bruto de € 18.105,97.
73) Na declaração de IRS referente a rendimento de 2014, o arguido declarou juntamente com a sua esposa, como rendimento de trabalhador dependente, o montante bruto de € 16.160,00 e como rendimento de profissionais, o montante bruto de € 11.734,42.
74) Não constam registados em nome do arguido quaisquer veículos.
75) Consta registado em nome do arguido um prédio rústico, sob o artigo 223º, da freguesia de Selho (S. Jorge), com o valor patrimonial de € 1.000,00.
76) A casa onde o casal vive pertence a uma das aludidas empresas.
77) O arguido não tem filhos ao seu cargo mas cuida do seu pai e de um irmão.
78) Ao arguido não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais.
79) A arguida V.. na declaração modelo 22, referente ao IRC de 2013, declarou um rendimento de € 8.208.968,03.
80) A arguida V.. na declaração modelo 22, referente ao IRC de 2014, declarou um rendimento de € 4.843.783,53.
81) A arguida V.. na declaração modelo 22, referente ao IRC de 2015, declarou um rendimento de € 4.336.380,37.
82) Em nome da arguida V.. encontram-se registados prédios urbanos com o valor patrimonial global de € 32.897.443,00 e prédios rústicos, com o valor patrimonial global de € 3.100,00.
83) Encontram-se registados em nome da arguida V.. oito veículos.
84)Não são conhecidos à arguida quaisquer antecedentes criminais.
B. FACTOS NÃO PROVADOS:
Da acusação:
a) E. M. e L. V., em data anterior a Julho de 2011, decidiram que a pessoa colectiva arguida, doravante, deixaria de cumprir as suas obrigações fiscais.
Da contestação do arguido V.S.C.:
b)A arguida não reteve na fonte quaisquer quantias.
c)Não existia em caixa ou nas contas do arguido em cada um dos meses em causa, disponibilidade dos valores referentes aos salários líquidos dos trabalhadores e ainda aquele que constitui a “retenção” na fonte de “parte” do salário.
Da contestação do arguido E. S.:
d) O arguido recorreu à Banca onde contraiu um empréstimo de 3.5 milhões euros, que avalizou pessoalmente.
e) Na sua vida pessoal e profissional como empresário, sempre o arguido cumpriu com as suas obrigações perante o Estado.
Da contestação do arguido L. V.:
f) Ao longo da sua vida o arguido foi e é cumpridor das suas obrigações fiscais, sendo que sua empresa não regista dívidas à Autoridade Tributária, honrando pontualmente os seus compromissos.
g) O arguido é uma pessoa que ao longo da sua vida foi participando na vida associativa de diversas instituições do concelho de Guimarães a cuja gestão se dedicou de forma gratuita e abnegada.
h) Foi dirigente associativo do G. D. P..
i) Foi Presidente da Associação …, onde ainda exerce as funções de Presidente da Mesa da Assembleia Geral.
j) O V..., ao longo da sua história caracterizou-se e caracteriza-se por uma visão marcadamente presidencialista do exercício do poder, sendo os restantes dirigentes figuras secundárias e afastadas da gestão da associação.
k) O arguido é considerado pelos colegas de trabalho e é considerado pela comunidade em geral.
l) Sempre teve bom comportamento moral e social.
*
A demais matéria alegada nas contestações não é mencionada por ser meramente repetitiva, conclusiva ou sem interesse para a decisão da causa.
*
A Motivação da decisão sobre a matéria de facto (transcrição):
«O Tribunal formou a sua convicção apreciando de forma crítica o conjunto da prova produzida em audiência bem como a prova documental constante dos autos, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
O arguido E. M. iniciou as suas declarações admitindo desde logo que as quantias discriminadas na acusação são devidas, facto que sempre reconheceu, mesmo enquanto foi Presidente do V...
Esclareceu que as razões que levaram ao não pagamento das prestações tributárias em causa, prendem-se com dificuldades financeiras que o V.. atravessou, designadamente no que concerne à obtenção de financiamento. Tinha em vista a celebração de acordos dos quais resultariam o encaixe de vários milhões de euros, facto que acabou por não se concretizar.
As receitas que iam sendo geradas ao longo do período em causa foram canalizadas para pagamento das despesas correntes, designadamente água, luz, serviços de segurança e até para pagamento de alguns salários, o que foi decidido pela Direcção, pelo Director Geral e pelo gabinete de contabilidade.
Referiu ainda que a Direcção reunia-se de 15 em 15 dias e que todos os membros sabiam das dificuldades financeiras existentes, sendo disso mesmo informados pelo Director Geral.
A intenção era atrasar os pagamentos ao Estado com vista a permitir uma melhoria da situação, sendo certo que para a Direcção era impensável fechar as portas e terminar com as actividades desportivas.
Mais referiu que toda a documentação relevante tinha que ser necessariamente assinada por si e por, pelo menos, um Vice- Presidente.
Referiu que, na prática a gestão era feita pela contabilidade mas todos sabiam o que era devido.
Mais esclareceu que quando saiu da Direcção estavam quatro salários em atraso, respeitantes aos meses de Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro, tendo os salários do período anterior sido liquidados, ainda que com atraso.
Mais referiu que as receitas que se iam gerando ao longo do período em causa eram essencialmente provenientes dos jogos e transmissão dos mesmos, tendo mesmo havido antecipação do pagamento desses créditos.
O arguido L. V. exerceu o direito a não prestar declarações (artigo 61º, nº 1, alínea d) e 343º, nº 1, do CPP).
Igual direito exerceu Júlio Mendes enquanto legal representante do V.. (artigo 61º, nº 1, alínea d) e 343º, nº 1, do CPP).
P. P., que foi Vice-Presidente do V.. desde 2007 a 2012, responsável pelo pelouro da área do futebol, relatou, de modo que se nos afigurou objectivo e sincero, que à data dos factos em causa, tinha conhecimento da existência das dificuldades financeiras, apesar de que quem estava mais informado da real situação eram os arguidos E. M. e L. V. (Director Financeiro) e, naturalmente, o departamento de contabilidade.
Referiu-se aos salários em atraso, quer os respeitantes aos jogadores, quer os respeitantes aos funcionários.
Confirmou a realização das reuniões da Direcção, que ocorriam de 15 em 15 dias, durante as quais eram abordadas, entre outras, as questões financeiras do clube, admitindo saber que havia impostos em atraso, embora não sabendo concretizar de que tipo.
Relatou que todos os assuntos de relevo eram reportados à Direcção, durante as respectivas reuniões, nas quais eram abordadas questões relacionadas com o adiantamento de salários.
Mais confirmou que quando abandonou a Direcção do V.. (Abril de 2012), encontravam-se três salários em atraso.
A. O., que foi membro da Direcção do V.. entre 2007 e 2012, intitulando-se então como Director de Campo e do Património, referiu que os assuntos relacionados com a Tesouraria não lhe diziam respeito, embora soubesse da existência de salários em atraso, pois que eram frequentes as queixas que lhe eram dirigidas.
Referiu que as reuniões da Direcção eram quinzenais, nas quais eram abordados os assuntos financeiros do clube, embora, pessoalmente, não soubesse concretamente qual a gestão que era feita dos recursos financeiros.
Mais confirmou que durante o período em causa nos autos, o clube não deixou de manter-se em actividade, nem podia parar, pelo que o pagamento das despesas correntes, tais como segurança no estádio, luz, água e outras, eram assegurados.
Também confirmou que era necessário pagar aos jogadores (os quais são por natureza reivindicativos), ainda que com atraso.
A. R., inspector tributário, num registo claro e seguro, confirmou os valores não entregues a título de IVA, que são os correspondentes aos valores constantes das respectivas declarações periódicas. Mais concluiu, após ter analisado toda a documentação contabilística a que teve acesso, que o IVA em causa foi efectivamente recebido pela arguida V...
Esclareceu ainda de forma escorreita, aludindo ao tipo de rendimentos pagos pelo arguido V.. (rendimento de trabalho dependente e rendimentos profissionais), o modo como apurou o efectivo pagamento dos salários e demais rendimentos, o que foi feito com recurso a cada uma das declarações de retenção de IRS remetidas pela arguida, devidamente cotejadas com os pertinentes elementos contabilísticos que recolheu, do que resultou a conclusão que os salários foram pagos, em regra, no mês seguinte ao seu vencimento. Mais confirmou as conclusões exaradas no parecer de fls. 636/650, ponto 16, de que resulta que os valores aí expostos, correspondentes a retenções de IRS sobre rendimentos profissionais (Categoria B), foram efectivamente retidos no mês em que a arguida V.. procedeu ao seu pagamento.
Esclareceu ainda que o método usado para apurar o valor das efectivas retenções de IRS (não entregues) passou por apurar, em cada mês, os salários que foram efectivamente pagos na totalidade (independentemente da data do vencimento de cada um dos salários), conforme evidenciam os quadros do Anexo XI (fls. 5 a 16), do apenso denominado Anexo 3 e dos quais se alcança, em função de cada declaração de retenção, a identificação de cada titular de rendimento sujeito a IRS, o valor da retenção do IRS e a data exacta do pagamento do respectivo salário ou rendimento (Categoria B).
Mais confirmou a testemunha os valores das retenções de IRS durante o período em causa.
Finalmente, referiu a testemunha que a documentação contabilística que coligiu foi obtida com a colaboração livre da arguida V...
João Augusto Cardoso, amigo do arguido E. M. e ex-vice presidente do V.. no período de 2008 a 2010, incumbido de acompanhar a área financeira (Director Financeiro), num registo que se nos afigurou sincero e objectivo, referiu que quando entrou em funções, em 2008, a situação financeira do clube era razoável, tendo descrito o arguido E. M. como pessoa preocupada com o cumprimento atempado das obrigações.
Referiu que a partir de 2010 (altura em que a testemunha passou a ser Presidente da Assembleia Geral, funções que exerceu até 2012), a situação financeira do clube complicou-se, por falta de financiamento bancário e falta de patrocinadores. Apesar da existência de vários projectos com a finalidade de obter financiamento, os mesmos não tiveram sucesso.
Perante este cenário, foi clara a testemunha ao referir que na falta de fontes de financiamento, foi necessário fazer opções que passassem pela menor onerosidade para o clube e que consistiam em pagar os salários a jogadores e funcionários, preterindo outros compromissos financeiros que pudessem ser geridos mais à frente, assim mantendo a actividade do clube.
Mais esclareceu que enquanto foi Director Financeiro, as suas funções era acompanhar a situação financeira do clube, fazendo uma avaliação precisa do seu estado, designadamente fontes de financiamento e cumprimento das obrigações, o que tudo era reportado nas reuniões de Direcção onde os assuntos eram decididos.
J. L., que exerceu funções no V.. como Director Comercial entre 2008 a 2012, referiu que todos os assuntos de relevo, da sua área, eram reportados ao Presidente.
Referiu-se a testemunha às dificuldades financeiras do clube, relacionadas, entre o mais, com a dificuldade em angariar publicidade ou patrocinadores.
J. O., que exerceu funções como Director Desportivo do V.. entre 2010 a 2012, referiu que o arguido E. M. sempre procurou cumprir as suas obrigações; sabia que havia vencimentos em atraso, quer dos jogadores quer dos funcionários.
Referiu ainda que o arguido E. M. chegou a desabafar com a própria testemunha de que havia obrigações tributárias que não estavam a ser cumpridas.
J. P., amigo do arguido E. M., nada de concreto sabia sobre a gestão do V.., limitando-se a abonar a favor da personalidade daquele arguido.
J. A., Director Geral do V.. SAD, desde Outubro de 2015 e Director Executivo da Liga desde Abril de 2012, referiu que quando iniciou funções em Abril de 2012, juntamente com o actual Presidente do clube, Júlio Mendes, encetaram logo diligências junto da Administração Tributária e Segurança Social e outros credores, no sentido de obterem acordo para o PEC. De igual modo e com o mesmo fim, encetaram diligências junto do IAPMEI.
Referiu que estava em causa a continuidade da actividade desportiva, uma vez que não tendo as contribuições em dia, estavam impedidos de inscrever o clube na Liga.
Finalmente, alcançaram um acordo de pagamento em prestações que tem vindo a ser cumprido até à data, sendo certo que existiam garantias imobiliárias de montante suficiente para liquidar os créditos do Estado.
Mais se referiu a testemunha à enorme função social do V.. na região, desde logo pelo número de atletas que tem ao seu serviço e ainda em formação, espalhados por inúmeras modalidades desportivas, o que tudo movimenta famílias e o próprio comércio.
Fernanda Oliveira, esposa do arguido L. V., nada de relevante sabia sobre os factos, tendo apenas descrito a situação pessoal, familiar e profissional do seu marido, nos precisos termos dados como provados.
Da prova documental relevou-se a seguinte:
- auto de notícia (fls. 57), declaração periódica de IVA do mês de Agosto de 2011 (fls. 60/61); autos de notícia (fls. 72/73), informação de inspecção externa (fls. 86/89), cópia do auto de posse, do qual se alcança a qualidade dos arguidos E. M. e L. V., desde Março de 2010 (fls. 95/96); requerimento do V.. no sentido da autorização do pagamento em prestações do IRS do mês de Junho (fls. 97); despacho da Direcção de Finanças a autorizar o pagamento em prestação, ficando como garantia o prédio aí descrito, cujo valor patrimonial é suficiente para garantir todas as dívidas tributárias aqui em causa (fls. 99); auto de penhora do pavilhão gimnodesportivo (fls. 101); declaração do IAPMEI (fls. 103); declaração de retenção de IRS do período de Julho cujo limite de pagamento é 20-08-2011 (fls. 109); apuramento e processamento do imposto retido sobre o trabalho dependente do mês de Julho de 2011 (fls. 106/109); processamento de salários do trabalho dependente do mês de Julho (fls. 114/119); processamento de salários do trabalho independente do mês de Julho (fls. 121/123); cópia dos recibos adquiridos e pagos com menção do cálculo do imposto retido sobre o trabalho independente (fls. 124/150); pagamento de salários de trabalho dependente do mês de Julho (fls. 151/167); extractos das contas de meios financeiros líquidos, dos quais resulta que, pelo menos em Agosto de 2011, havia liquidez suficiente para entregar ao Estado as retenções de IRS efectuadas contabilisticamente sobre os salários de Julho (fls. 120 e 168/169); notificações efectuadas ao abrigo do artigo 105º, nº 4, do RGIT e respeitantes a todas as prestações tributárias aqui em causa (fls. 213, 214, 215, 216, 217, 237, 238, 239, 240, 252, 477, 484, 490, 495, 503, 506, 509, 512, 515); parecer de fls. 265), cópia da certidão da escritura de alteração dos Estatutos do V.. (fls. 319/337); autos de notícia (fls. 377, 378, 385); declaração periódica de IVA do mês de Setembro de 2011 (fls. 388/391); autos de notícias (fls. 394, 402, 403, 410, 417, 418, 425, 426, 433, 441); declaração periódica de IVA do mês de Outubro de 2011 (fls. 413/414); declaração periódica de IVA do mês de Janeiro de 2012 (fls. 436/439); declaração periódica de IVA do mês de Fevereiro de 2012 (fls. 444/445); cópia do auto de posse, datado de 10-04-2012 (fls. 523); informação da inspecção interna e respectivas conclusões, com remissão para os documentos aí referidos, sendo que as conclusões aí referidas foram confirmadas pelo seu subscritor (fls. 552/556); informação da Direcção de Finanças dando conta que da recolha dos pertinentes documentos contabilísticos, designadamente extractos contabilísticos das contas 63, 242 e 231, ou seja, extractos contabilísticos que demonstrem os lançamentos de processamento e pagamento de salários e remunerações a pagar, cópia dos mapas mensais de processamento de salários, cópia dos recibos de vencimento e cópia dos recibos/facturas relativas aos rendimentos de trabalho independente, foi concluído que os salários foram sendo pagos no mês ao do seu vencimento (fls. 588); informação da inspecção externa e respectivas conclusões, com remissão para os documentos aí referidos, sendo que as conclusões aí referidas foram confirmadas em sede audiência pelo seu subscritor (fls. 629/634); processo de evidência de trabalho, que remete para os anexos aí referidos e constantes do apenso denominado Anexo 3 (fls. 635); despacho da AT, comprovativo da participação da arguida V.. em Procedimento Extrajudicial de Conciliação referente às dívidas tributárias (fls. 707/708); acta final do PEC, com plano de pagamento em 150 prestações das dívidas tributária (711/714); informação da AT, segundo a qual, em Dezembro de 2014, a arguida V.. encontrava-se a pagar pontualmente as prestações a que se vinculou, no âmbito do pagamento das dívidas tributárias (fls. 878/908); documentos juntos pelo arguido E. M. que corroboram as suas declarações no que diz respeito ao passivo existente à data da tomada de posse e diligências encetadas no sentido de obter fontes de financiamento (fls. 1026/1040); informação prestada pela AT sobre o montante actualmente em dívida respeitante a cada uma das prestações tributárias em causa e, bem assim, informação sobre bens imóveis e móveis registados em nome dos arguidos (fls. 1190/1191); declarações de IRC e IRS dos arguidos, que nos permitiu dar como provados os rendimentos declarados por aqueles nos anos de 2012 em diante (fls. 1194/1281).
O valor de cada uma das prestações de IVA não entregues e dado como provado, resulta do facto de apenas termos considerado, para cada período em causa, o IVA efectivamente liquidado e recebido dos clientes até à data limite para a sua entrega nos cofres do Estado.
Para tanto, foram considerados os quadros constantes do Anexo XI, folhas 1 a 4, do apenso denominado Anexo 3, referentes aos meses de Setembro, Outubro, de 2011, Janeiro e Fevereiro de 2012, nos quais se encontram discriminadas as facturas emitidas nos respectivos períodos, com menção do montante do IVA liquidado e data do seu efectivo recebimento, com indicação da localização de cada um dos documentos que comprovam o recebimento efectivo do IVA, documentos esses que se encontram coligidos no referido apenso Anexo 3 e apenso Anexo 1. Conforme já referido, dos referidos quadros apenas foram considerados, para cada mês em causa, os valores de IVA efectivamente recebidos até ao respectivo termo do prazo para a sua entrega nos cofres do Estado.
Obtido o valor de IVA para cada mês e nos indicados termos, foi subtraído a cada um dos valores o IVA suportado e dedutível pela arguida V.. no respectivo período (cfr. declarações periódicas de fls. 388, 413, 436 e 444, dos meses de Setembro, Outubro de 2011, Janeiro e Fevereiro de 2012, respectivamente) assim se obtendo o valor final a entregar ao Estado e dado como provado.
No que diz respeito aos valores das retenções dados como provados:
- quanto aos salários de Julho de 2011 e pagos em Agosto de 2011, foi considerada a informação de fls. 88 que remete para fls. 151/167 e dos quais se alcança que os salários (Categoria A) que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls. 105 (Julho de 2011) foram efectivamente pagos em Agosto de 2011, tendo-se incluído, ainda, o valor de € 1.289,59, respeitantes a retenções efectuadas em Agosto de 2011 sobre os rendimentos (Categoria B) pagos nesse mesmo mês, conforme resulta de fls. 646 e confirmado pela testemunha A. R.;
- quanto aos salários de Agosto de 2011 e pagos em Setembro de 2011, foi considerada a informação condensada no quadro do Anexo XI, folhas 5/6, do apenso Anexo 3, do qual resulta que os salários que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls. 3 do Apenso Anexo 2 foram efectivamente pagos em Agosto de 2012 (note-se que o quadro em causa, para além de discriminar cada um dos titulares dos rendimentos sujeitos a retenção, indica o valor do respectivo salário, valor da retenção de IRS e data do seu efectivo pagamento, com remissão para os documentos que comprovam esse mesmo pagamento e constante do referido Apenso Anexo 3), ao valor daquelas retenções, somou-se, ainda, o valor de € 10.588,21, respeitante a retenções efectuadas em Setembro de 2011 sobre os rendimentos (Categoria B) pagos nesse mesmo mês (cfr. quadro do Anexo XI, folhas 8, do Apenso Anexo 3), conforme resulta de fls. 647 e confirmado pela testemunha A. R.;
- quanto aos salários de Setembro de 2011 e pagos em Outubro de 2011, foram considerados os documentos contabilísticos de fls. 3 a 42, do apenso denominado Anexo 2 e dos quais se alcança que os salários (Categoria A) que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls. 1 (Setembro de 2011) foram pagos, tendo-se incluído, ainda, o valor de € 1.418,64, respeitantes a retenções efectuadas em Novembro de 2011 sobre os rendimentos (Categoria B) pagos nesse mesmo mês, conforme resulta de fls. 646 e confirmado pela testemunha A. R.;
- quanto aos salários de Outubro de 2011 e pagos em Novembro de 2011, foi considerada a informação condensada no quadro do Anexo XI, folhas 9/10, do apenso Anexo 3, do qual resulta que os salários que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls.48 do Apenso Anexo 2 foram efectivamente pagos em Novembro de 2012 (note-se que o quadro em causa, para além de discriminar cada um dos titulares dos rendimentos sujeitos a retenção, indica o valor do respectivo salário, valor da retenção de IRS e data do seu efectivo pagamento, com remissão para os documentos que comprovam esse mesmo pagamento e constante do referido Apenso Anexo 3), ao valor daquelas retenções, somou-se, ainda, o valor de € 463,52, respeitante a retenções efectuadas em Outubro de 2011 sobre os rendimentos (Categoria B) pagos nesse mesmo mês (cfr. segundo quadro do Anexo XI, folhas 10, do Apenso Anexo 3), conforme resulta de fls. 647 e confirmado pela testemunha A. R.;
- quanto aos salários de Novembro de 2011 e pagos em Dezembro de 2012, foi considerada a informação condensada no quadro do Anexo XI, folhas 11/12, do apenso Anexo 3, do qual resulta que parte dos salários que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls. 86 do Apenso Anexo 2 foram efectivamente pagos em Dezembro de 2012 (note-se que o quadro em causa, para além de discriminar cada um dos titulares dos rendimentos sujeitos a retenção, indica o valor do respectivo salário, valor da retenção de IRS e data do seu efectivo pagamento – sendo que para esse período apenas se consideraram os salários efectivamente pagos no mês de Dezembro, razão por que o valor é diferente do constante da acusação -, com remissão para os documentos que comprovam esse mesmo pagamento e constante do referido Apenso Anexo 3), ao valor daquelas retenções, somou-se, ainda, o valor de € 1.418,64, respeitante a retenções efectuadas em Novembro de 2011 sobre os rendimentos (Categoria B) pagos nesse mesmo mês (cfr. segundo quadro do Anexo XI, folhas 12, do Apenso Anexo 3), conforme resulta de fls. 647 e confirmado pela testemunha A. R.;
- quanto aos salários de Novembro de 2011 e pagos em Fevereiro de 2012, foi considerada a informação condensada no quadro do Anexo XI, folhas 11/12, do apenso Anexo 3, do qual resulta que parte dos salários que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls. 86 do Apenso Anexo 2 foram efectivamente pagos em Fevereiro de 2012 (note-se que o quadro em causa, para além de discriminar cada um dos titulares dos rendimentos sujeitos a retenção, indica o valor do respectivo salário, valor da retenção de IRS e data do seu efectivo pagamento – sendo que para esse período apenas se consideraram os salários efectivamente pagos no mês de Fevereiro, razão por que o valor é diferente do constante da acusação -, com remissão para os documentos que comprovam esse mesmo pagamento e constante do referido Apenso Anexo 3).
- quanto aos salários de Dezembro de 2011 e pagos em Janeiro de 2012, foi considerada a informação condensada no quadro do Anexo XI, folhas 13/15, do apenso Anexo 3, do qual resulta que parte dos salários que deram origem à declaração de retenção de IRS de fls. 123 do Apenso Anexo 2 foram efectivamente pagos em Janeiro de 2012 (note-se que o quadro em causa, para além de discriminar cada um dos titulares dos rendimentos sujeitos a retenção, indica o valor do respectivo salário, valor da retenção de IRS e data do seu efectivo pagamento – sendo que para esse período apenas se consideraram os salários efectivamente pagos no mês de Fevereiro, razão por que o valor é diferente do constante da acusação -, com remissão para os documentos que comprovam esse mesmo pagamento e constantes do referido Apenso Anexo 3).
Assim, da conjugação da prova documental vinda de referir com o depoimento da testemunha A. R., verifica-se que, conforme resultou da prova testemunhal supra referida, os salários não eram atempadamente pagos, pelo que o método usado para apurar as retenções de IRS cuja entrega foi omitida foi precisamente o de identificar todos os colaboradores (jogadores e funcionários) e trabalhadores independentes, cujos salários e rendimentos foram contabilisticamente processados nos meses de Julho a Dezembro de 2011 (constantes das diversas declarações de retenções), e verificar, com recurso à extensa documentação contabilística constante dos apensos, o mês exacto em que tais rendimentos foram pagos e em que medida, assim se encontrando o momento até ao qual tais retenções deveriam ser pagas, ou seja, até ao dia 20 do mês seguinte aos efectivos pagamentos dos rendimentos sujeito a retenção de IRS.
Notar-se-á que resulta claramente dos quadros do Anexo XI, fls. 11 a 14, do Apenso denominado Anexo 3, que alguns dos salários vencidos em Novembro e Dezembro de 2011 só foram pagos em Fevereiro e Abril de 2012, assim se confirmando que alguns colaboradores da arguida V.. tinham vencimentos em atraso há pelo menos três meses, circunstância que, contudo, só sucede nos salários vencidos nos indicados meses.
Apesar das dificuldades financeiras da arguida V.. relatadas por todas as testemunhas e que, à data, até foram do conhecimento público, o certo é que não se poderá concluir, conforme foi alegado, que não havia liquidez suficiente para proceder ao pagamento das prestações tributárias em causa.
Com efeito, no que ao IVA diz respeito, sendo tal imposto efectivamente pago por terceiros e recebido pela arguida V.., é inequívoco que tais montantes estiveram disponíveis e, como tal, podiam e deviam ter sido entregues nos cofres do Estado.
Quanto às retenções de IRS, será de notar que, conforme já se referiu supra, pelo menos quanto aos salários de Julho de 2011, existiam meios financeiros líquidos suficientes para o pagamento das respectivas retenções de IRS devidas em Agosto de 2011, conforme extractos das contas, de fls. 120 e 168/169. Quanto aos demais meses, será de notar que, conforme se viu, o salário vencido era normalmente pago no mês seguinte, o que significa que havia liquidez suficiente para proceder ao pagamento das retenções de IRS que deviam ter sido realizadas no mês do efectivo vencimento dos salários e entregues até ao dia 20 do mês seguinte (mês em que, na verdade, eram pagos os rendimentos atrasados). Dito de outro modo, isto significa que a liquidez que se ia gerando ao longo do tempo e que poderia ter sido destinada ao cumprimento da obrigação de entregar as retenções virtuais de IRS realizadas no mês anterior (mês em que o salário, apesar de vencido e processado contabilisticamente, não foi pago), foi utilizada para fazer outros pagamentos, nomeadamente salários.
De qualquer forma, ficou bem patente da prova testemunhal produzida e referida supra, e mesmo das declarações do arguido E. M., que a liquidez que se ia gerando (receitas de jogos, adiantamentos de receitas provenientes de publicidade e direitos de transmissão) eram canalizados para cumprimento de outras obrigações, tais como o pagamento de despesas correntes (designadamente água, luz e segurança no estádio) e, principalmente, para pagamento de salários a jogadores e funcionários, pois que, conforme bem admitiram, a actividade do clube, atenta a sua relevância (inegável), não podia sem mais cessar.
Consigna-se que não existe contradição entre os valores apurados e referidos em 8) e 10) e os valores que se fez constar em 43) a 53), na medida em que aqueles primeiros dizem respeito ao valor de cada uma das prestações tributárias efectivamente recebidas/retidas, logo, com relevância criminal, e os segundos dizem respeito aos valores constantes das diversas declarações periódicas de IVA e de retenção de IRS remetidas pela arguida V.., que sempre são devidos, pelo menos no plano jurídico-tributário.
Quanto à imputada autoria dos factos, convenceu-se o tribunal de que ambos os arguidos, E. M. e L. V., tiveram participação activa nos factos, sendo a gestão das obrigações do V.. vinda de referir fruto de uma decisão consciente de ambos (pelo menos).
Com efeito, quanto ao arguido E. M., pese embora se tenha notado uma certa tentativa no sentido de fazer crer que a gestão dos recursos financeiros, designadamente no que concerne às prioridades de pagamentos, partia, na prática, da iniciativa do gabinete de contabilidade, não mereceu qualquer crédito, contrariando as mais elementares regras da experiência e da normalidade neste conspecto.
Com efeito, conforme resultou das suas declarações e das próprias testemunhas, toda a direcção sabia das dificuldades financeiras existentes e da de salários em atraso, assuntos que eram levados para as reuniões da Direcção, que decorriam de quinze em quinze dias, e onde naturalmente, eram tomadas decisões, entre as quais, a descoberta de soluções que permitissem debelar as dificuldades, designadamente a celebração de acordos que o próprio arguido E. M. referiu.
Aliás, não deixaremos de relembrar que, conforme bem referiu a testemunha, P. P., que foi Vice-Presidente do V.. desde 2007 a 2012, com o pelouro da área do futebol, quem estava mais informado da real situação financeira do clube eram os arguidos E. M. e L. V. e, naturalmente, o departamento de contabilidade, tendo ainda referido que nas reuniões da Direcção eram abordadas, entre outras, as questões financeiras do clube e assuntos relacionados com o adiantamento de salários a alguns funcionários.
Veja-se, ainda, o depoimento de J. A., que referiu que a partir de 2010 (altura em que a testemunha passou a ser Presidente da Assembleia Geral, funções que exerceu até 2012), a situação financeira do clube complicou-se, por falta de financiamento bancário e patrocinadores e que perante este cenário, foi ainda clara a testemunha, ao referir que na falta de fontes de financiamento, foi necessário fazer opções que passassem pela menor onerosidade para o clube e que consistiam em pagar os salários a jogadores e funcionários, preterindo outros compromissos financeiros que pudessem ser geridos mais à frente, sendo a única forma de manter o clube.
Estas decisões, naturalmente, tinham que ser tomadas no seio da Direcção e não no Gabinete de Contabilidade, o qual, obviamente, não podia passar de mero executor das políticas financeiras do clube, delineadas por quem tem poder decisório, a Direcção, de que faz parte o arguido E. M., como seu Presidente, e o arguido L. V., como Vice-Presidente e Director Financeiro, cujas funções, como se sabe, passa por acompanhar a situação financeira do clube, fazendo uma avaliação precisa do seu estado, designadamente fontes de financiamento e cumprimento das obrigações.
Aliás, quanto ao arguido E. M., atenta a sua qualidade de Presidente da Direcção e, bem assim a circunstância do V.. apenas se vincular com a assinatura do Presidente e de um Vice-Presidente (cfr. estatutos de fls. 319/337), aliado ao facto de o mesmo, inegavelmente, saber da situação financeira do clube, permite-nos concluir, com meridiana clareza, que aquele arguido teve intervenção directa nos factos provados, nomeadamente na tomada decisão de não entregar ao Estado as prestações tributárias em causa.
Mas a conclusão a que se chegou não resulta apenas do que já se disse e das regras da normalidade.
Com efeito, resultam dos autos inúmeros documentos com relevância contabilística que contrariam, de alguma forma, a imagem que se pretendeu passar em julgamento de que o arguido L. V. apenas aparecia às instalações do clube esporadicamente e ao final do dia, pouco se interessando com os assuntos do V.. e isso apesar de ser Director Financeiro, o que, nesta perspectiva, redundaria apenas num título honorífico, desprovido de qualquer competência.
Assim, veja-se, a título de exemplo, os seguintes documentos: letras de câmbio, sendo uma delas avalizada pelos arguidos E. M. e L. V. (fls. 81/84, 117, 166 do Anexo 2); autorizações de débito em conta assinadas pelos mesmos arguidos, para pagamento, designadamente, de salários (fls. 254, 255, 256, 257, 259, 260, 261, 262, 264, 381, 385, 387, 388 e 405 do apenso designado Anexo 2; autorizações de débito em conta, assinados por ambos o arguidos: Anexo I, fls. 3 a 12, 21 a 24, 26, 28, 30, 34, 36, 37, 38, 39, 40, anexo II, fls. 2, anexo III, fls. 2, anexo V, fls. 2, 4, 6 e 80.
Ora, assinando ambos os arguidos aquelas autorizações de débito para pagamento de salários, bem sabendo que o V.. era devedor ao Fisco, permite-nos concluir, segundo as regras da experiência e normalidade, que ambos agiam de comum acordo e conscientemente no sentido de deixarem de cumprir as obrigações tributárias, canalizando os recursos para outros compromissos, em execução de um plano que visava manter a actividade do clube, desiderato que era, em boa verdade, de todos os interessados, designadamente dos dirigentes.
Ademais, não se deixará de notar que o arguido L. V. é TOC (actualmente com a designação de contabilista certificado), pelo que não podia desconhecer o modo como actuava, as circunstâncias em que o fazia e respectivas implicações, nada havendo nos autos que nos permita suspeitar que o arguido actuava assim contra a sua vontade, tanto mais que existiam outros Vice-Presidentes que podiam apor a sua assinatura de modo a vincular o V...
Consigna-se que não existe contradição pelo facto de não termos dado como provado que os arguidos E. M. e L. V. tenham decidido em Julho de 2011, sem mais, deixar de cumprir as suas obrigações fiscais. Com efeito, conforme resultou da prova, supra referida, não houve uma decisão pura e simples de, doravante, os arguidos deixarem de cumprir as referidas obrigações. Na verdade, cremos que as dificuldades financeiras que o V.. atravessava, levaram a que, mês após mês, as obrigações fiscais não fossem cumpridas, apesar da expectativa da situação financeira melhorar. Com efeito, conforme referiu o arguido E. M., foram encetadas diligências no sentido de se obter outras fontes de financiamento que, esperançosamente, permitiriam liquidar as dívidas fiscais, o que, apesar de tudo, não veio a concretizar-se. Aliás, veja-se o pedido de autorização de pagamento em prestações da dívida fiscal que consta a fls. 97, que corrobora, de certo modo, o que acabamos de expor.
Tudo isto permite-nos concluir que a decisão de não cumprir as obrigações fiscais foi-se renovando ao longo do período em causa e foi determinada pela necessidade de manter a actividade desportiva e não o resultado de uma única decisão a produzir efeitos para o futuro.
No que concerne ao aspecto subjectivo, ponderou-se o iter criminis dos arguidos, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento, desde logo porque é facto conhecido de toda a comunidade a necessidade de cumprir as obrigações tributárias e do carácter ilícito do seu incumprimento, tanto mais que o arguido E. M. é empresário há mais de 30 anos e o arguido L. V., para além de empresário é também TOC, tendo ambos pleno conhecimento das obrigações fiscais e das consequências penais.
No que concerne às condições sociais e económicas dos arguidos, bem como a situação da sociedade arguida, valorou-se a documentação supra referida quanto a este aspecto, complementada pelas declarações dos respectivos arguidos.
Quanto à ausência de antecedentes criminais, valoraram-se os CRC juntos aos autos.
Os factos não provados e ainda não mencionados, resultaram da falência da prova ou da prova do seu contrário.»
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1. Nulidades insanáveis:
1.1. – A falta de promoção do Ministério Público.
A recorrente V.. nas conclusões de recurso 1ª a 28ª esgrime argumentação que, na sua óptica, evidenciaria que a decisão recorrida está afectada da nulidade a que alude a alínea b) do art. 119º do CPP.
A nossa lei processual penal consagra a regra de que um qualquer acto só sofre de nulidade quando a mesma “for expressamente cominada na lei” como tal (cfr. art. 118º nº 1). Desse princípio da tipicidade ou da legalidade em matéria de nulidades, resulta que a inobservância de trâmites processuais impostos que não seja expressamente acoimada na lei com tal vício constitui uma mera irregularidade (nº 2 do mesmo artigo).
E, entre as nulidades, a lei distingue as que são insanáveis e as que são dependentes de arguição. Quanto às primeiras, “que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento”, são apenas as que vêm previstas nas diversas alíneas do art. 119º e todas as demais “que como tal forem cominadas em outras disposições legais”.
A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 48º do mesmo código, que a recorrente expressamente invoca, especificamente prevista na al. b) daquele art. 119º, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento.
A Constituição da República, no art. 219º, atribui ao Ministério Público, além do mais, a função de exercer a acção penal, escrevendo Luís Osório, no comentário ao CPP, pág. 90 [citado pelo Sr. Dr. Vinício Ribeiro, Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, no comentário ao CPP, pág. 100] «que a acção penal compreende toda a actividade dirigida a obter a punição do réu; compreendendo nessa actividade a de todas as pessoas que, cada uma na sua esfera de acção, cooperam para se obter aquele fim».
Dispõe o art. 48º do CPP que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao MP, com as restrições dos arts. 49º a 52º, do mesmo diploma. O MP, titular da acção penal, promove-a, oficiosamente, (nos crimes públicos), mediante queixa (nos crimes semipúblicos) e constituição de assistente e dedução de acusação particular (nos crimes particulares).
Em geral, havendo notícia de um crime de natureza pública, participada por qualquer autoridade, o Ministério Público tem o poder-dever de determinar e dirigir o conjunto de diligências que visam investigar a existência desse crime e determinar os seus agentes e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262º, n.º 1, do CPP). Terminado o inquérito, cabe ao MP, em exclusivo, legitimidade para tomar uma das posições previstas no art. 276º, nº1 do CPP, a de arquivar (nas modalidades previstas no artigo 277º do CPP) ou de acusar.
Porém, no âmbito do processo penal tributário, o modelo imposto, em termos gerais, pelo Código de Processo Penal observa algumas especificidades na fase de inquérito, que decorrem da delegação da competência, legalmente presumida, aos órgãos da administração tributária para a prática de actos que, nos demais processos, o Ministério Público, ao qual compete o exercício da acção penal, (apenas) pode atribuir aos órgãos de polícia criminal. Ainda assim, aquela competência é (legalmente) delegada aos órgãos da administração tributária, mas sem prejuízo de a direcção do inquérito por noticiado crime tributário caber sempre ao Ministério Público, com as finalidades e nos termos do disposto no CPP, e de tal Órgão, a todo o tempo, poder avocar o processo (cfr. arts. 40º e 41º do RGIT).
Desde logo, no que respeita à notícia do crime, ainda que adquirida por conhecimento próprio do Ministério Público, deve a mesma ser «sempre transmitida ao órgão da administração tributária com competência delegada para o inquérito» (art. 35º nºs 1 e 2 do RGIT (1)). Com efeito, antes mesmo da instauração do inquérito, o órgão da administração tributária terá que adquirir a notícia do crime, ou seja, da eventual prática de um crime, devendo a respectiva denúncia conter, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do n.º 1 do artigo 243º do CPP e ser remetida, no mais curto prazo, ao órgão da administração tributária competente para o inquérito (cf. nºs 5 e 6 do citado art. 35º).
Depois, admite-se, até, que, ao abrigo de tal competência presuntivamente delegada, a instauração do inquérito seja também feita pelos órgãos da administração tributária, exigindo-se, apenas, a imediata comunicação dessa instauração ao Ministério Público (art. 40º nº 3 do RGIT).
A especial natureza técnica das matérias em causa justifica, plenamente, a opção do legislador ordinário ao imprimir a anotada especificidade ao processo penal tributário, com um desvio ao regime geral, sem contudo, retirar, naturalmente, a respectiva direcção e promoção ao Órgão constitucionalmente incumbido do exercício da acção penal, com o inerente poder da realização de outras diligências instrutórias, complementares ou não, e sem que tal opção colida com qualquer outro princípio ou valor tutelado pela lei fundamental.
Ora, no caso vertente, foi o órgão da administração tributária que procedeu à instauração do inquérito, tendo-a comunicado, como se lhe impunha, ao Ministério Público. É certo que o recorrente se insurge contra tal comunicação, dizendo que a mesma não descreve minimamente os factos que subjazem aos crimes a investigar no inquérito, o que redundaria numa total falta de comunicação, estando o MP impedido de instaurar inquérito. Mas, trata-se de um equívoco: como vimos, o órgão da administração tributária tinha competência para instaurar o inquérito, como fez, devendo, apenas, comunicar imediatamente essa instauração ao Ministério Público, como também fez. Nada mais lhe era exigido.
A recorrente também sustenta que inexiste qualquer despacho de subdelegação de poderes para legitimar a actuação dos funcionários e agentes dos respectivos serviços, pelos que os actos pelos mesmos praticados têm que ser considerados inexistentes. Porém, as questões organizativas do órgão da administração tributária competente constituem um problema interno do mesmo e uma minudência a que a lei não atribui qualquer relevância processual.
O que, realmente, interessa é que, a rematar as investigações, foi junto aos autos o parecer elaborado pelo órgão da administração tributária legalmente competente para o efeito, cujo director expediu o inquérito ao Ministério Público, para que este Órgão, na sequência, cumprisse – como cumpriu – a incumbência que, constitucionalmente lhe estava cometida: a promoção do processo, nos termos do artigo 48º do CPP.
Em tudo, pois, foram acatados os trâmites e as regras contidas nos citados normativos a que aludimos, pelo que não tem cabimento a invocação da nulidade aludida na alínea b) do art. 119º do CPP, ou a referência – aliás, meramente conclusiva e não concretizada – a uma hipotética inconstitucionalidade.

1. 2. A violação da prerrogativa à não auto-incriminação.
Neste âmbito, a recorrente invoca a realização de três inspecções tributárias das quais resultou a compilação da extensa documentação de natureza contabilística que se encontra junta aos autos, designadamente nos anexos, maioritariamente constituída por facturas e outros documentos fiscalmente relevantes que não podem ser valorados nos termos do disposto no art. 126º, nº 2, alínea a) do CPP, por terem sido violados direitos constitucionalmente consagrados como o direito ao silêncio e o direito à não auto-inculpação (pontos 29º a 44º das conclusões).
A questão suscitada pela recorrente encontra-se suficientemente debatida na sentença recorrida, com valiosos argumentos, com os quais estamos inteiramente de acordo, pelo que apenas se irão realçar alguns aspectos.
Embora a Constituição da República Portuguesa não consagre, explicitamente, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, quer na vertente de direito ao silêncio, quer na vertente de privilégio do arguido, contra uma auto-incriminação, tem sido consensualmente entendido que o princípio tem natureza constitucional implícita. Joana Sofia Martins Sant’Ana Bernardo na sua tese de Mestrado Forense 2012/2013, orientada pelo Professor Germano Marques da Silva, refere: «apenas a nível infraconstitucional, no Código de Processo Penal (CPP) encontramos a previsão expressa do princípio, “na variante de um abrangente e quase irrestrito direito ao silêncio”, mais concretamente no artigo 61, nº1, al. d), que dispõe que o arguido goza, em qualquer fase do processo penal, do direito de “não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar”, preceito complementado por outros que regulam o exercício do direito ao silêncio em atos processuais específicos, como os interrogatórios e a audiência de julgamento e estabelecem obrigações de informação sobre aquele direito integrante da posição do arguido como sujeito processual – arts. 58º, nº2, 132º, nº2, 141, nº4, al. a), 143º, nº2, 144º, nº1 e 343º, nº1 e 345º, nº1, todos do CPP.».
Como, a propósito, lembrou o Exmo. Desembargador desta Relação, Dr. Cruz Bucho (no artigo “Sobre a recolha de autógrafos do arguido: natureza, recusa, crime”, publicitado em 5 de Outubro de 2013), segundo «a lição cristalina da jurisprudência brasileira, “O Estado – que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem – também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios”». E o princípio não é sinónimo do direito ao silêncio: «O direito à não auto-incriminação não se esgota no direito ao silêncio. O direito ao silêncio não representa a única decorrência do princípio nemo tenetur se detegere no processo penal. Como bem sintetiza Fabienne Kéfer, “Le droit de ne pas s’auto-incriminer ne couvre pas que les paroles. Il vise tout type d’information, y compris les écrits”. Com efeito, as manifestações verbais não são as únicas formas em que se apresenta o princípio contra a auto-incriminação, pois, através de outras condutas, é possível produzir prova de caráter incriminatório, utilizável contra quem a produziu.». No mesmo estudo adianta-se: «Pode, assim, dizer-se que o princípio nemo tenetur se ipsum accusare abrange, no seu conteúdo potencial máximo, como corolários, o direito ao silêncio e o direito de não facultar meios de prova, nomeadamente documentos, v.g., correspondência pessoal, diários íntimos, isto é documentos sobre os quais não recai nenhum dever de apresentação ou entrega às autoridades judiciárias e que estão cobertos pela reserva da vida privada».
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), no seu acórdão de 3-05-2001 (2), concluiu que «(...) le droit de ne pas contribuer à sa propre incrimination présuppose que, dans une affaire pénale, l’accusation cherche à fonder son argumentation sans recourir à des éléments de preuve obtenus par la contrainte ou les pressions, au mépris de la volonté de l' ‘accusé’. En mettant celui-ci à l'abri d'une coercition abusive de la part des autorités, ces immunités concourent à éviter des erreurs judiciaires et à garantir le résultat voulu par l'article 6».
Todavia, a nossa lei não acolhe uma concepção ampla do princípio. Na verdade, ao dispor sobre o direito do arguido ao silêncio, o art. 61º, n.º1, d) do CPP, contempla apenas a faculdade de «Não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar». Esse teor literal inculca que o conteúdo do direito se restringe ao plano da “oralidade processual” ou, pelo menos, ao das declarações – assumindo-se que estas podem ser prestadas por via não apenas oral –, não abrangendo, por ex., o direito a recusar a entrega de elementos que estejam em poder do arguido.
E assim é não apenas entre nós. Nesse sentido, o TEDH, por acórdão de 17-12-1996 (3), entendeu que o direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao silêncio, e que esse direito «não abrange a utilização, em quaisquer procedimentos penais, de dados que possam ser obtidos do acusado recorrendo a poderes coercivos, contanto que tais dados existam independentemente da vontade do sujeito, tais como, inter alia, os documentos adquiridos com base em mandado, as recolhas de saliva, sangue e urina, bem como de tecidos corporais com vista a uma análise de A.D.N».
Por outro lado, o STJ, no Ac. de 5-01-2005 (4), sintetizou, assim, a doutrina sobre este tema: «(…) O privilégio contra a auto-incriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória. Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, possibilitando a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática e actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova, como é a reconstituição do facto. Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na proibição do artigo 356º, nº 7 do CPP.».
Esse pontificante aresto, no desenvolvimento dessa síntese, expendeu:
«(…) No que respeita a este ponto, os princípios estruturantes do processo penal e, especialmente, os atinentes ao conteúdo essencial do direito de defesa, não permitem a descaracterização indirecta, mediada por terceiros, do direitos do arguido a não responder a perguntas ou a não prestar declarações (artigo 61º, nº 1 e artigo 343º, nº 1 do CPP), enquanto tradução da garantia contra a auto-incriminação ("privilege against self-incrimination")¸ que significa que o acusado não pode ser constituído, contra a sua vontade, em fonte de prova contra si próprio, e que não pode ser compelido a testemunhar em seu desfavor.
O privilégio contra a auto-incriminação significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos (v. g., documentais) que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, sem que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória (cfr., v. g., acórdão de 3 de Maio de 2001, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso J. B. c. Suíça).
A possibilidade de colaboração co-determinante no processo, desde a fase de recolha da prova (aquisição da prova), até ao momento de administração relevante e contraditória (utilização) das provas encontra-se porém, na disponibilidade do arguido, que pode livremente colaborar na investigação e contribuir para aquisições probatórias substanciais autónomas das simples declarações que as proporcionam, e que, nessa medida, não podem ser eliminadas posteriormente pela invocação da garantia contra a auto-incriminação.
E, nesta medida, os termos da colaboração prestada pelo arguido e as consequências derivadas no plano da aquisição probatória, não devem ser postos em causa, caso venha a invocar em momento posterior o direito ao silêncio, salvo se, como se referiu, a vontade e a determinação tiver sido perturbada, constrangida ou condicionada de tal modo que a situação possa ser enquadrada nas proibições de prova do artigo 126º do CPP.
Mas os meios de prova derivados, na medida em que sejam autónomos (recte, em que ganhem autonomia como meios de prova), não se confundem com eventuais informações transmitidas pelo arguido e que tenham possibilitado a identificação e a correspondente aquisição probatória, ou a realização e a prática de actos processuais com formato e dimensão própria na enumeração dos meios de prova.
Sendo, porém, este o conteúdo do direito, estão situadas fora do seu círculo de protecção as contribuições probatórias, sequenciais e autónomas, que o arguido tenha disponibilizado ou permitido, ou que informações prestadas tenham permitido adquirir, desde que, como se salientou, a colaboração ou as informações não estejam inquinadas por vícios do consentimento ou da vontade, suposto que o arguido foi informado dos direitos que lhe assistem e que integram o seu estatuto processual, ou pela utilização de métodos proibidos.
Em tais circunstâncias, ou seja, se a contribuição do arguido para a aquisição probatória na fase processual de recolha estivesse afectada pela utilização de métodos proibidos, poderiam eventualmente ser discutidos os efeitos consequenciais - o chamado "efeito à distância", "Fernwirkung des Beweisverbot", ou, na formulação americana, "fruit of the poisonous tree".
No entanto, esta é questão que não importa desenvolver, porque não vem sequer problematizada. Com efeito, nem está referida a existência, ou a simples alegação, de algum modo ou intervenção impróprio que tenha condicionado a contribuição do arguido na reconstituição, nem, por outro lado, o processo penal parece acolher a extensão da exclusão probatória determinada pelo efeito de contaminação [cfr., sobre o sentido e extensão da exclusão ("exclusionary rule") da aquisição probatória pelo "efeito à distância", e as limitações que necessariamente comporta, o acórdão do Tribunal Constitucional, nº 198/2004, de 24/3/04, no DR, II Série, de 2/6/04].».
Também o Tribunal Constitucional, no Ac. 155/2007 ponderou: «Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supra citada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação.»
E, no seu Ac. nº 340/3013, o Tribunal Constitucional, de novo, salientou:
«O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.
Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.
Tal princípio intervém no processo penal sob duas formas distintas: preventivamente, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação e repressivamente, obrigando à desconsideração de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.
Mas tem sido também reconhecido que o direito à não autoincriminação não têm um caráter absoluto, podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias (v.g. a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade).».
Pode, pois, assentar-se numa concepção mais afinada que aponta para a ideia de que não é abrangido pela protecção do princípio nemo tenetur o meio de prova obtido independentemente da vontade de parte do arguido e/ou da sua elaboração moral, mesmo que advinda de determinada diligência de prova ou de prestações pessoais exigidas sob ameaça de sanção.
Assim sendo, os elementos probatórios a que a recorrente alude foram obtidos independentemente da vontade dos aqui arguidos, não tendo sido por eles elaborados para o efeito, e, como tal, não colhe a argumentação aduzida em redor da prerrogativa à não auto-incriminação, na acepção entre nós aceite e que é conforme à Constituição, na interpretação que dela tem tido o próprio Tribunal Constitucional.

1. 3. A nulidade e a proibição de valoração de meio de prova.
Defende a arguida/recorrente que a decisão recorrida atribuiu especial credibilidade ao depoimento prestado pelo inspector tributário, quando é certo que o mesmo, para além, de ter tido acesso e conhecimento directo de vária documentação no desempenho da sua actividade, a recolha da mesma é ilegal.
Este segmento do recurso prende-se directamente com a questão suscitada e anteriormente conhecida que se traduz no dever de colaboração do obrigado tributário para com a autoridade tributária por contraposição com o direito ao silêncio, presunção da inocência e direito à não auto-incriminação.
Ora, na decorrência do entendimento que se deixou expresso, a colheita da panóplia de documentação feita no âmbito das referidas três inspecções tributárias não colide com os propalados direitos dos arguidos, constituindo, por isso, prova legal.
Constata-se, assim, que o respectivo depoimento se fundamentou não só, nos documentos entretanto recolhidos, como noutros que já se encontravam na posse dos serviços de cujos quadros a testemunha faz parte e que teve acesso por via do exercício das respectivas funções.
Tem sido jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça que os documentos constantes do processo consideram-se produzidos em audiência independentemente da sua leitura, sendo irrelevante que as actas sejam omissas quanto aos que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. Os documentos juntos aos autos são provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo (cfr. art. 355º do CPP).
Tais “documentos”, no sentido de «objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto» (art. 362º do CC), ou «declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal» (art. 164º, nº 1, do CPP), valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, independentemente do seu exame em audiência, podendo-se, pois, concluir que os esclarecimentos obtidos através do depoimento prestado pelo inspector tributário, que incidiu apenas nessa documentação, não serviram para adquirir uma realidade diferente daquela que já se encontrava espelhada nos autos.
Considerada, como se disse, a legalidade da obtenção de todos os documentos por força das inspecções realizadas, os mencionados elementos constituem meios de prova, assumindo relevância jurídica livremente apreciada pelo Tribunal, que no caso até acabaram por ser explicitados/complementados por uma testemunha, tendo-se assegurado o princípio do contraditório, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos ou quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, assim como as provas que sobre eles incidam, de modo a que não seja proferida qualquer decisão surpresa contra o mesmo, por factos ou provas dos quais não teve oportunidade de se defender (5).
No sentido de que podem ser usados em processo penal documentos validamente obtidos na fase administrativa inspectiva ao abrigo do dever de cooperação e depoimentos de quem procedeu a essa inspecção se pronunciaram os acórdãos desta Relação proferidos em 29/1/2007 (proc. 1917/07-1) e 12/3/2012 (proc. 82/05.9IDBRG.G1) e da RP de 27/2/2013 (proc. 15048/09.1IDPRT.P1).
Mas, a recorrente também veio reiterar a alegação de uma outra circunstância que, em seu entender, impediria a valoração do depoimento do dito inspector tributário e que se prende com a interrupção do seu depoimento na sessão da audiência de julgamento verificada no dia 13/04/2016, com o fundamento de que o mesmo não se encontrava preparado para depor, pois, tinha sido notificado no próprio dia para comparecer em tribunal, tendo demonstrado “no segundo depoimento” uma hostilidade para com os advogados, não depondo sobre factos de que tinha conhecimento directo em violação do disposto nos arts. 123, 128º e 326º, nº 2, 4 e 5, do CPP.
Embora a recorrente aluda ao art. 326º do CPP, pensamos que este facto se ficou a dever a mero lapso, pois, o que, supostamente, estará em causa é a continuidade da audiência estabelecida no art. 328º do CPP.
Este preceito estabelece que:
«1 - A audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento.
2 - São admissíveis, na mesma audiência, as interrupções estritamente necessárias, em especial para alimentação e repouso dos participantes. Se a audiência não puder ser concluída no dia em que se tiver iniciado, é interrompida, para continuar no dia útil imediatamente posterior.
3 - O adiamento da audiência só é admissível, sem prejuízo dos demais casos previstos neste Código, quando, não sendo a simples interrupção bastante para remover o obstáculo:
(…) c) Surgir qualquer questão prejudicial, prévia ou incidental, cuja resolução seja essencial para a boa decisão da causa e que torne altamente inconveniente a continuação da audiência; ou
4 - Em caso de interrupção da audiência ou do seu adiamento, a audiência retoma-se a partir do último acto processual praticado na audiência interrompida ou adiada.
5 - A interrupção e o adiamento dependem sempre de despacho fundamentado do presidente que é notificado a todos os sujeitos processuais.».
Como escreve o Sr. Conselheiro Oliveira Mendes no CPP Comentado, pág. 1020, «o princípio aqui estabelecido da continuidade da audiência, sem interrupção ou adiamento até ao seu encerramento, como expressamente consta do nº1, visa atingir duas finalidades:
- A concentração, princípio essencial do processo penal, segundo o qual todos os termos e actos processuais, consoante as respectivas fases do processo, se devem desenvolver unitária e continuamente, concentradamente, no espaço e no tempo, o que significa relativamente à audiência, uma tramitação unitária, continuada e no menor espaço de tempo, em que toda a prova, oral e directamente produzida, seja apreciada o mais próximo possível dos factos, em conjunto e enquanto bem presente na memória do julgador;
- A celeridade, sem a qual a administração da justiça perde eficácia, valor este consagrado na constituição (artigo 20º, nº 5), através de que a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais deve ser legalmente assegurada, mediante procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, bem como da concessão do direito à decisão em prazo razoável (artigo 20º, nº 4), direito este também previsto no artigo 6, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.».
Não obstante a lei estabelecer o princípio de continuidade da audiência, sabe-se que o mesmo comporta excepções, como é o caso de interrupção e do adiamento. A primeira para alimentação dos intervenientes e a segunda para descanso. Para além destas situações outras ocorrem que dão lugar tanto à interrupção como ao seu adiamento destacando-se a situação a que alude o nº 3 do art. 331º do CPP.
Efectivamente, no apontado contexto, parece-nos despropositada a alusão a um suposto segundo depoimento da testemunha em causa, que, ao que tudo indica, não chegou a prestar qualquer depoimento no dia 13/04/2016. E também se não descortina o que se pretende com a menção a um putativo depoimento indirecto, porquanto tal inspector tributário depôs sobre factos cujo conhecimento adquiriu por ele próprio e não por lhe serem reportados por outras pessoas (cfr. art. 128º do CPP), mesmo considerando que este, enquanto testemunha, se poderá ter socorrido de elementos documentais validamente obtidos na fase administrativa inspectiva, que, incontroversamente, para avivar a sua memória, poderia ter consultado, tal como o poderia ter feito em relação a toda a documentação existente no processo. O que, aliás, também sempre imporia a interrupção da audiência.
No caso, era perfeitamente natural e compreensível que a testemunha, para poder prestar um depoimento consistente, consultasse elementos de que a administração fiscal dispunha e obtidos no âmbito de uma actividade profissional que se concretiza, em geral, num elevado número de actos da mesma natureza, como sucede, correntemente, com outros intervenientes processuais, como peritos médicos, agentes dos órgãos de polícia criminal e tantos outros. Necessidade que, aliada ao facto de a testemunha ter sido notificada no próprio dia, constituiria motivo suficiente para interromper a audiência.
Portanto, no caso em análise, temos como certo que bem andou o Sr. Juiz ao ter-se decidido pela interrupção da audiência, por ter constatado que a testemunha apenas tinha sido notificada no próprio dia e que a mesma declarou não estar em condições de poder depor sobre os factos por os não ter então bem presentes. Assim, encontra-se plenamente justificada a atitude assumida pelo Sr. Juiz, devidamente fundamentada, como se colhe da acta (cfr. fls. 1155), tanto mais que a audiência teria sempre que prosseguir num novo dia para inquirição das restantes testemunhas.
Também é irrelevante a sensibilidade expressa pela recorrente quanto à suposta hostilidade manifestada pela testemunha para com os senhores advogados, na medida em que não vem alegado que esse sentimento tenha tido qualquer repercussão na descoberta da verdade, independentemente do melhor ou pior uso dos poderes/deveres de disciplina que sobre o Senhor Juiz impendiam.
Quanto à valoração propriamente dita e inerente credibilidade do depoimento prestado pelo inspector tributário A. R., extrai-se linearmente da motivação da decisão recorrida que o mesmo se limitou a confirmar os valores não entregues a título de IVA, que são os correspondentes aos valores constantes das respectivas declarações periódicas, que o IVA em causa foi efectivamente recebido pela arguida V.., aludindo ao tipo de rendimentos por ela pagos (rendimento de trabalho dependente e rendimentos profissionais), o modo como apurou o efectivo pagamento dos salários e demais rendimentos, com recurso a cada uma das declarações de retenção de IRS remetidas pela arguida, devidamente cotejadas com os pertinentes elementos contabilísticos que recolheu, confirmando as conclusões exaradas no parecer de fls. 636/650, ponto 16, de que resulta que os valores aí expostos, correspondentes a retenções de IRS sobre rendimentos profissionais (Categoria B), foram efectivamente retidos no mês em que a arguida V.. procedeu ao seu pagamento. Esclareceu ainda que o método usado para apurar o valor das efectivas retenções de IRS (não entregues) passou por apurar, em cada mês, os salários que foram efectivamente pagos na totalidade (independentemente da data do vencimento de cada um dos salários), conforme evidenciam os quadros do Anexo XI (fls. 5 a 16), do apenso denominado Anexo 3 e dos quais se alcança, em função de cada declaração de retenção, a identificação de cada titular de rendimento sujeito a IRS, o valor da retenção do IRS e a data exacta do pagamento do respectivo salário ou rendimento (Categoria B). Confirmou os valores das retenções de IRS durante o período em causa.
Improcede, pois, a arguida nulidade.

2. A nulidade da sentença por não cumprimento do art. 358º do CPP.
A recorrente V.. também se insurgiu quanto à contemplação, no ponto 8 [alíneas c), d), e) e g)] dos factos provados, de valores diferentes dos que constavam na acusação, sem que se tivesse dado cumprimento ao disposto no art. 358º do CPP, dizendo que a sentença é nula nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, al. b), do CPP.
Nos termos desta norma é nula a sentença «Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».
Como é pacífico, os factos essenciais descritos na acusação, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática (e também obrigatoriamente indicadas), definem e fixam o objecto do processo, que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.
Sendo o nosso processo penal de estrutura basicamente acusatória, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº 5, da CRP), impende sobre o acusador a narração total dos factos que imputa ao arguido: é ao acusador, e só a ele, que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e do processo. Nessa tarefa, não pode o Ministério Público ser “ajudado” pelo julgador, sob pena de violação do modelo acusatório, estruturante do processo penal português, e do perigo de desvio do juiz do seu lugar de terceiro imparcial e supra-partes. É a esta imparcialidade que também alude o art. 6º da CEDH.
Contudo, trata-se de um sistema acusatório impuro ou mitigado uma vez que é integrado por um princípio da investigação (art. 340º nº1 do CPP), de modo a proporcionar, nos limites do possível, a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa. Assim, podendo suceder que nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime imputado constem, desde logo, da acusação, poderá o juiz intervir excepcionalmente na narrativa dos factos das acusações/pronúncias, reformulando-os ou mesmo acrescentando os factos novos que emergirem durante a discussão da causa, o mesmo podendo ocorrer com outras questões, uns e outras submetidos à disciplina do preceituado nos arts. 358º e 359º do CPP, que tratam da alteração dos factos e que possibilitam a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido e o processo justo.
Efectivamente, tanto a alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia como a substancial – «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» [art. 1º, al. f) do CPP] – redundam em incidentes ocorridos na marcha processual, na fase da audiência de discussão e julgamento, sendo conferida ao juiz a possibilidade de aditar, mesmo oficiosamente, novos factos só nessa fase conhecidos.
Nos casos de alteração não substancial dos factos, equiparada a alteração da qualificação jurídica (art. 358º, nº 3, do CPP), o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica ao arguido a alteração e concede-lhe, se o requerer, um prazo para preparação da sua defesa, no sentido de garantir que este não venha a ser condenado por factos distintos dos que figuram na acusação ou pronúncia, com os quais não pôde contar e dos quais não lhe foi permitido defender-se oportunamente, em respeito pelo princípio da vinculação temática consubstanciado na acusação.
Mas o que é o facto? E em que situação se deve considerar que há alteração de factos, relevante, para efeitos de ser exigido que se proceda à respectiva comunicação, nos termos do disposto no artigo 358º, nº 1, do CPP?
Alterar significa mudar, modificar, introduzir, neste âmbito, factos.
Não é, porém, toda e qualquer modificação de factos a que se proceda na sentença, em relação aos que vêm descritos na acusação ou na pronúncia, que integra uma alteração não substancial de factos, mas apenas aquela que apresente relevância para a decisão da causa e que tenha implicações nos direitos de defesa do arguido, designadamente, em função da estratégia de defesa delineada – cf. Ac. da RC de 28/09/2011 (proc. 47/09.1GATND.C1).
A posição que vem sendo maioritariamente acolhida na doutrina e na jurisprudência, é o de que, neste domínio, o facto deve ser entendido como um acontecimento histórico, um evento naturalístico, um «pedaço de vida» a ser analisado no processo. – cfr., entre outros, Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 2ª edição, pág. 93 e Ac. da RP de 06/10/2010 (proc. 403/04.1GAMCN-A.P1) e Ac. da RC de 11/09/2013 (proc. 339/11.0JALRA.C1).
O que a lei pretende é que o arguido «não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que não lhe foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.» (Cons. Oliveira Mendes, in ob. cit., pág. 1083).
E como tem sido entendido jurisprudencialmente, a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa. Na verdade, perfilha-se o entendimento firmado no acórdão da RC de 26/02/2003 (proc. 3840/2002), do qual se transcreve parte do respectivo sumário: «a alteração só se verifica quando tenha relevo para a decisão e só tem lugar quando se mostre que o arguido tem necessidade de alegar algo que antes não tenha previsto e alegado, isto é, de preparar nova defesa». Ou no acórdão da RP de 18/04/2007 (proc. 0711082), quando assinala que a comunicação prevista no art. 358º do CPP apenas tem lugar quando se tratar de uma alteração não substancial relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa.
Tal não ocorre quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes.
Como se disse, a arguição da nulidade suscitada no recurso, estriba-se na circunstância de terem sido acolhidos na sentença recorrida no ponto 8 [alíneas c), d), e) e g)] dos factos provados, de valores diferentes dos que constavam na acusação, tendo emergido nessa decisão sem que previamente tivesse sido feita qualquer comunicação de alteração, como decorre da acta de audiência de julgamento.
Porém, com o devido respeito, não se descortina nos valores considerados nas alíneas c) e d) a existência de qualquer diferença em relação aos que constavam da acusação (€ 227.791,52 e € 210.265,64, respectivamente), porquanto o Senhor Juiz se limitou a especificar duas das parcelas que integravam aqueles valores mas que na acusação apenas eram indicadas por remissão para o teor dos documentos.
Quanto às alíneas e) e g), existe, efectivamente, uma discrepância entre os valores que foram considerados na decisão recorrida e os que constavam da acusação/pronúncia: na alínea e) consignou-se o valor de 21.245,76 quando da acusação constava o valor de € 10.873,76 e na alínea g) o de € 16.780, quando da acusação se referia o de € 15.727.
Constatada a aludida divergência, registamos que, não obstante a acusação, no seu artigo 7, concretizar os montantes que os arguidos deduziram a título de retenção na fonte de IRS entre Agosto de 2011 e Fevereiro de 2012, relativamente aos pagamentos enquadráveis em rendimentos de trabalho dependente (Categoria A) e em rendimentos empresariais e profissionais (Categoria B), essa concretização remetia para a documentação que a comprovava.
Tendo assim sucedido, os valores, realmente, em causa sempre foram do conhecimento da recorrente e daí que não se possa afirmar, sem mais, que os valores afirmados na sentença pelo Sr. Juiz terão constituído surpresa para a arguida, pois os montantes estavam espelhados na documentação junta que suportavam essa afirmação, como acima se disse. Todos os montantes vertidos na acusação estavam devidamente suportados em documentação, que, aliás, como se acentua na decisão recorrida, foi livremente fornecida à administração fiscal, e um dos arguidos, inclusive, confessou os valores em dívida para com esta, nada de novo, tendo sido acrescentado.
Por outro lado, tendo sido a recorrente condenada como autora de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. pelos arts. 7º e 105º, nºs 1, 2 e 5 do RGIT, a alteração é irrelevante para o enquadramento jurídico da sua apurada conduta. Assim, pode-se considerar que a mencionada alteração não constitui uma divergência que transforme o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas, apenas, a um pequeno e concreto ponto, que não logra descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal (abstracta).
Assim, estamos em crer que, no apontado contexto, não se exigiria o cumprimento do comando a que alude a recorrente, pois que, pelas razões que se deixaram expressas, não se vislumbra a indispensabilidade da aludida comunicação.
Improcede, pois, a arguida nulidade.

3. Insuficiência da matéria de facto quanto à situação económica.
A recorrente invoca que a decisão recorrida é nula por violação do disposto nos arts. 374º, nº 2, 375º, nº 1 e 379º, nº 1, alínea a) do CPP, por não ter apurado dados suficientes sobre a sua situação económica, nomeadamente por não ter sido considerado que recorreu a um PEC e a um PER.
A questão colocada traduz-se na circunstância de o tribunal de 1ª instância ter determinado a medida da pena que impôs à recorrente com omissão de factualidade importante inerente às suas condições económicas e financeiras, sendo que estas assumem particular relevância no caso de imposição de pena de multa para a determinação da taxa aplicável, dada a amplitude prevista no art. 12º, nº 3 e 15º, nº 1 do RGIT.
Ao encerrar a produção da prova, fazendo-o sem se encontrar dotado de todos os elementos necessários à boa decisão, comete o tribunal a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d) do CPP.
Tal vício, a verificar-se, decorreria da violação dos princípios da investigação e da verdade material, face à detecção do incumprimento, pelo tribunal a quo, do dever de apuramento dos factos necessários à decisão sobre a pena de multa e seu quantitativo, ficando-se aquém do mínimo razoavelmente exigível, o que, em nossa opinião, traduziria o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos previstos no art. 410º, nº 2, al. a), a reclamar o reenvio o processo para novo julgamento, ainda que restrito a esta concreta questão e não a expressamente aduzida pela reclamante.
Com efeito, de acordo com o enunciado no art. 410º, nº 2, alínea a), do CPP, verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão, sendo que esta tanto pode ser insuficiente quando não permite a subsunção efectuada em termos de imputação de determinado crime, como quando não permite uma opção fundamentada entre penas não privativas e privativas da liberdade, entre pena de prisão efectiva e penas de substituição desta ou um juízo inteiramente fundamentado sobre o doseamento da pena, bem como no caso de imposição de pena de multa para a determinação da respectiva taxa.
Este vício só releva se resultar do texto da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois é um vício da decisão, não do julgamento, como enfatiza Maria João Antunes, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, página 121 [citada no Ac. da RL de 10-09-2013 (P. 58/12.0PJSNT.L1)].
Não tendo o Tribunal de 1ª instância procedido à indagação necessária das condições económicas e financeiras da arguida/recorrente, como podia e devia ter feito, a sentença enfermaria, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (6).
É certo que não se desconhece jurisprudência em sentido contrário como é o caso da posição sustentada pelo Conselheiro Simas Santos expressa no voto de vencido lavrado no Ac. do STJ de 29/04/2003, proc. nº 03P756, quando escreve «a meu ver impunha-se a anulação do acórdão e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (art. 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal. O reenvio tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida. Ora, no caso, trata-se de prova suplementar, ainda não produzida e em relação à qual o tribunal recorrido ainda não assumiu posição». Em idêntico sentido se pronunciou o acórdão da RL de 10-09-2013 (P. 58/12.0PJSNT.L1).
Por força do disposto no art. 71º, nº 2, do C. Penal, na determinação da medida da pena o tribunal está vinculado à apreciação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, deponham a favor do agente ou contra ele, aí se incluindo a situação económica e financeira (al. d)), a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e), e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (al. f).
Analisemos, então, se no caso concreto existe a falada insuficiência da matéria de facto quanto situação económica e financeira da recorrente, na vertente por si enunciada.
Na decisão recorrida deu-se com provado:
«A actual Direcção do arguido, tendo tomado conhecimento da dívida pendente ao Fisco, encetou diligências junto das Finanças a fim de estabelecer planos prestacionais e liquidar o mais depressa possível e dentro das suas disponibilidades os débitos ao fisco.
As dívidas fiscais sempre estiveram garantidas por património do arguido em valor bastante superior ao necessário para pagar tais quantias.
O arguido deu entrada de um Processo Especial de Revitalização que correu seus termos no então 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães com o nº 3038/12.1TBGMR.
Relativamente às dívidas fiscais, está em curso o pagamento através de um Procedimento Extra-Judicial de Conciliação e no âmbito desse processo o arguido encontra-se a pagar as dívidas fiscais que se discutem nos autos e outras.
Encontra-se em curso um plano de pagamento em 150 prestações, tendo o arguido pago o aí acordado.
A dívida fiscal está garantida através do vasto e suficiente património imobiliário do clube.».
Por outro lado outro lado considerou-se na decisão recorrida:
«Em conformidade com o disposto no artigo 71º nº 2 do Código Penal, atender-se-á a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, exemplificando aquele normativo alguns factores concretos que relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.
Acresce que nos termos do artigo 13º do RGIT, na medida da pena atender-se-á ainda ao prejuízo causado pelo crime.
No presente caso, é de realçar o seguinte:
- o dolo reveste a sua modalidade mais grave - dolo directo;
- a ilicitude é elevada.
- as dificuldades financeiras que rodearam a prática do ilícito e o desiderato pretendido – manutenção da actividade desportiva.
- as quantias deduzidas e não entregues são elevadas.
- o período de tempo em que decorreu o ilícito.
- o pagamento da dívida, ainda que parcial mas em medida relevante.
- o facto da sociedade arguida ter património suficiente para pagamento das prestações tributárias em causa, o que significa que o prejuízo causado (que existe) será naturalmente colmatado no futuro.
No que concerne às necessidades de prevenção geral no presente caso, há que reconhecer que as mesmas são elevadas em face da banalização da prática do crime em análise, demonstrada pelos elevados índices de criminalidade fiscal, sendo que os impostos são um meio prioritário na prossecução dos fins do Estado de Direito e uma obrigação para todos os cidadãos/contribuintes, cuja violação o legislador quis punir de forma severa e pedagógica.
Quanto às necessidades de prevenção especial, importa atentar no facto de todos os arguidos não terem antecedentes criminais (…).
No que concerne à sociedade arguida, a pena de multa a aplicar varia entre 240 e 1200 dias, correspondendo cada dia de multa a uma quantia entre € 5,00 e € 5.000,00, que o tribunal fixará em concreto em função da situação económica e financeira da arguida - artigos 105º nº1 e 5, 12º nº 3 e 15º, nº 1 do RGIT.
Assim, atendendo às circunstâncias que rodearam a prática do ilícito, o pagamento parcial da dívida, a ausência de antecedente criminais e, bem assim, o expectável ressarcimento total do prejuízo causado ao Estado (pois a arguida tem património suficiente para tanto) e aos factos provados quanto à situação económica e financeira da sociedade arguida, entende-se ser adequado e proporcional condená-la em 500 (quinhentos) dias de multa à taxa diária de €20,00 (vinte euros).».
Dos factos e considerações expendidas na sentença recorrida extrai-se linearmente que da mesma constam os elementos indispensáveis que levaram à aplicação da sanção à arguida/recorrente e respectivo quantitativo diário, não se constatando a existência de qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto, máxime a referente ao dito PER e PAC, contrariamente ao por si alegado.
Consequentemente, tem de se concluir que não há qualquer necessidade de produção de prova suplementar, pois, foram apurados todos os factos relevantes para a determinação da medida da sanção.
Improcede, assim, a invocada insuficiência da matéria de facto na vertente enunciada.

4. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias, pelo âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma, com a invocação de erro de julgamento.
A verdadeira pretensão recursiva do arguido/recorrente L. V., embora comece por aludir ao erro notório na apreciação da prova é a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, dizendo, que o Tribunal de 1ª Instância errou na apreciação que fez do depoimento confessório prestado pelo co-arguido E. M. – único e verdadeiro responsável –, conjugado com os depoimentos prestados pelas testemunhas A. O., P. P., J. C. e J. L., reais conhecedores dos factos, atentas as funções desempenhadas e que apresentaram uma versão dos factos incompatível com aquela que ficou a constar dos factos provados sobre os números 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 54, impondo assim, que estes sejam considerados como não provados, pugnando pela sua absolvição.
Vejamos, então, se a razão está do seu lado.
Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (7). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (8). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (9).
Nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que deveria ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso, dar o passo seguinte que consiste exactamente em esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência. Tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.
Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, não podemos olvidar que o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova, não estando inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, nem das declarações de uma única testemunha (10), desde que credíveis e coerentes, as quais, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória, se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias apresentadas se considerar verdadeira a contida naquelas declarações, em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (11).
Além disso, a prova não pressupõe uma certeza absoluta, nem, por outro lado, a mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (12). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (13).
E, como é evidente, é na audiência de discussão e julgamento que tais princípios assumem especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art. 374º nº 2, do CPP.
É segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles; o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma apreciação arbitrária, caprichosa ou discricionária da prova produzida.

Analisemos, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e (apenas) no corpo da motivação do recurso sobre os pontos da impugnação deduzida.
Em cumprimento do ónus de especificação, o recorrente remeteu para os depoimentos produzidos em audiência, indicando as respectivas, mas extensas passagens da gravação, dizendo que existiu um deficiente exame e valoração da prova produzida, com clara violação do disposto no art. 127º do CPP, em face dos depoimentos que indica, particularmente o que respeita à confissão do arguido E. M., de cujos depoimentos resultou que não tinha qualquer domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da sociedade.
Contudo, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Após exame do resultado da audição dos aludidos depoimentos, incluindo os segmentos não referenciados pelo recorrente, conjugada com os elementos documentais juntos aos autos, podemos, desde já, adiantar que a decisão impugnada não merece qualquer censura, pois procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.
Com efeito, esses meios de prova permitem, concluir, como o fez o tribunal recorrido, que, os arguidos E. M. e L. V. foram responsáveis pelas decisões e opções tomadas quanto não pagamento dos impostos devidos à administração tributária. Concretizando.
Apenas o arguido E. M. prestou declarações em audiência e, após discorrer sobre as dificuldades financeiras do clube, acabou por reconhecer que os valores em causa eram devidos, dizendo que tinha sido feito um acordo de pagamento que estava a ser cumprido. Aludiu às suas actividades paralelas, assumindo, que apenas no fim do dia ia ao clube, à semelhança do que sucedia com o arguido L. V., e que quem autorizava os pagamentos era a contabilidade.
Acrescentou que todos tinham conhecimento das dívidas e, confrontado com documentos juntos aos autos, onde constava a sua assinatura e a do arguido E. M., teve dificuldade em explicá-los, acabando por dizer que este arguido assinava aquilo que lhe apresentassem.
Ora, da audição deste depoimento retira-se que efectivamente o mesmo procurou excluir a responsabilidade do arguido L. V. e até a sua própria, remetendo sempre para a contabilidade, mas quem era o responsável máximo pela contabilidade era o arguido E. M. enquanto director financeiro e que, bem vistas as coisas, até tinha a profissão de TOC, possuindo conhecimentos técnicos e informação que não poderia desconhecer, bem como as implicações decorrentes da tomada de decisões.
Assim, não só pelo modo como o arguido E. M. prestou as suas declarações, aceitando que os valores eram devidos, embora enjeitando a sua própria responsabilidade, e essencialmente, porque pretendia ir mais além e falar pelo arguido E. M., isentando-o também de qualquer responsabilidade, ao mesmo tempo que não soube explicar que bens tinham sido dados de garantia à Administração Tributária e respectivos valores e a razão da assinatura daquele arguido em determinados documentos, o Sr. Juiz não valorizou acriticamente, e bem, as ditas afirmações, apodando-as de gratuitas, depois de sopesar os restantes meios de prova testemunhal e documental produzidos em audiência.
De facto, é totalmente incompreensível, à luz das regras da experiência e da normalidade da vida, que alguém que sempre esteve ligado aos negócios, como sucede com o arguido E. M., e quem tem a profissão de TOC, como sucede com o arguido L. V., se alheassem por completo da gestão de um clube e deixassem tal tarefa nas mãos da contabilidade.
A salientar esta conclusão, atentou-se no depoimento prestado pela testemunha P. P., ex-vice-presidente do clube entre 2007/2012, e responsável pelo pelouro da área do futebol, que espontaneamente asseverou que, apesar de ter conhecimento da existência das dificuldades financeiras, quem estava mais informado da real situação eram os arguidos E. M. e L. V..
A coadjuvar esta convicção sobre a realidade, já adquirida pelo teor do depoimento do próprio arguido E. M. e desta testemunha, não podemos deixar de ponderar o teor da documentação junta aos autos a que o Sr. Juiz também fez referência: letras de câmbio, sendo uma delas avalizada pelos arguidos E. M. e L. V. (fls. 81/84, 117, 166 do Anexo 2); autorizações de débito em conta assinadas pelos mesmos arguidos, para pagamento, designadamente, de salários (fls. 254, 255, 256, 257, 259, 260, 261, 262, 264, 381, 385, 387, 388 e 405 do apenso designado Anexo 2; autorizações de débito em conta, assinados por ambos o arguidos; Anexo I, fls. 3 a 12, 21 a 24, 26, 28, 30, 34, 36, 37, 38, 39, 40, anexo II, fls. 2, anexo III, fls. 2, anexo V, fls. 2, 4, 6 e 80. Tudo também permitindo que se retire a ilação expendida na sentença recorrida de que se ambos os arguidos assinavam aquelas autorizações de débito para pagamento de salários, bem sabendo que o clube era devedor ao Fisco, agiam de comum acordo no sentido de deixarem de cumprir as obrigações tributárias, canalizando os recursos para outros compromissos, em execução de um plano que visava manter a actividade do clube, desiderato que era, em boa verdade, de todos os interessados, designadamente dos dirigentes.
Assim, estribando-se o recorrente L. V. no seu direito ao silêncio, aliado à conjecturada imputação de responsabilidade à contabilidade, parece-nos despicienda, perante o exposto, a alusão a extensos e longos excertos que o recorrente E. M. verteu no corpo da sua motivação, tendente a demonstrar que as conclusões retiradas na sentença recorrida não são acertadas, designadamente quanto à periocidade das reuniões da Direcção e a quem eram apresentadas as queixas, pois, do resultado da audição de todos os depoimentos indicados nada resultou que infirmasse a conclusão de que o mesmo também foi responsável pela decisão de não pagamento dos valores em divida à administração fiscal.
Na verdade, a alegação de que não era responsável pelas decisões tomadas não tem qualquer apoio no conjunto dos elementos probatórios produzidos, como resulta, a contrario, do que já se disse, designadamente das considerações que já se deixaram expressas quanto à imputação da responsabilidade à contabilidade feita pelo arguido E. M., bem como pelas razões que constam da fundamentação da decisão recorrida.
Relativamente ao elemento subjectivo da infracção, mais uma vez se tem que fazer uso das regras da experiência comum. Na verdade, sendo o dolo um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, de um facto do foro psicológico – do agente, por isso, impossível de apreender directamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. Tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam.
No caso, em face dos apurados condicionalismos pessoais do recorrente, os particulares contornos da conduta deste têm um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos.
Assim, nestes autos, após o exame crítico de toda a prova produzida em audiência, designadamente de toda a documentação junta, tem que se considerar que os factos se passaram como se deram como assentes pelo Tribunal recorrido, em relação ao arguido L. V., porquanto, nesse sentido, há uma quantidade de indícios sérios, importantes, intensos e precisos ou exactos – e todos concordantes, quer dizer, coincidentes ou direccionados segundo um resultado comum e consequente – colhidos, em primeira linha e essencialmente, do teor da aludida documentação, dos quais se retira, sem margem para dúvidas, que o recorrente foi também responsável pelas decisões tomadas quanto ao não pagamento das dívidas à Administração Tributária.
Tudo isto para dizer, em suma, que – em nosso entendimento – contrário às regras da experiência seria que as coisas se não tivessem passado pelo modo como se considerou provado, pois só a essa luz elas são normal e razoavelmente inteligíveis e se compreende a lógica do seu encadeamento bem como da actuação e comportamentos do recorrente, podendo, pois, afirmar-se que, mormente quanto à prática pelo recorrente dos factos supra descritos (como por provados) e respectivos encadeamento e circunstancialismo de tempo e lugar, a convicção do Tribunal se fundou, e bem, no conjunto de elementos que concretizou.
É o que também resulta da motivação, acima transcrita, da decisão sobre os factos constantes da sentença recorrida, em que o Senhor Juiz indicou detalhada e cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos. Dito por outras palavras, o Senhor Juiz fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeu em detrimento de outros.
Ao recorrente assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à sua defesa. Porém, o mesmo limitou-se a alegar que não foi feita a prova dos factos em julgamento, contando a sua versão dos factos, sem apontar argumentos ou provas suficientemente válidas que imporiam uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal.
De facto, não basta pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
E, conforme já exposto, a este Tribunal de recurso também não sobreveio dúvida da prática pelo arguido/recorrente dos factos nos termos em que foram dados como provados. Consequentemente, também nós concluímos que foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou o recorrente quanto aos pontos referidos no recurso. Assim, perante a prova produzida, pensamos que não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelo julgador (com imediação (14)).
Por conseguinte, nenhuma censura merece a decisão recorrida, improcedendo na sua totalidade a impugnação da matéria de facto.

5. O elemento subjectivo da infracção.
Os recorrentes V... e E. M. sustentam que tanto na acusação como na sentença não se faz qualquer alusão ao elemento subjectivo da infracção, ou seja, que os mesmos tenham previsto e querido causar prejuízo ou obter benefício em valor superior a € 7.500, pugnando, assim, pela respectiva absolvição.
Quanto a este ponto do recurso, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto escreveu no seu douto parecer: «A objecção de alegada ausência de descrição do dolo de apropriação só pode admitir-se, salvo o devido respeito, na base de descuido jurídico porquanto, como é sabido, a vertente subjectiva do crime de abuso de confiança fiscal já não reclama o dolo de apropriação e, como, tal o lado subjectivo do ilícito não tem de compreender qualquer pensamento sobre a apropriação – a apropriação deixou de ser requisito do crime».
Também a decisão recorrida, à semelhança do que já havia sucedido na decisão instrutória, versou sobre o tema, exarando «No que concerne ao tipo subjectivo, o crime de abuso de confiança fiscal é doloso, ou seja, o agente tem de representar os elementos do tipo, designadamente, a violação da relação de confiança imposta pelo incumprimento do dever de cooperação com a Administração Tributária que a lei lhe impõe. Em todo o caso, e como já se referiu para a violação da aludida relação de confiança já não é necessário que o contribuinte se aproprie da quantia retida ou deduzida, bastando que o mesmo, conhecendo o dever de entregar aquela quantia (efectivamente recebida ou retida) dentro de determinado prazo, não o cumpra.
Assim, o elemento subjectivo esgota-se no dolo, que se dirige à quebra dessa confiança depositada legalmente no detentor temporário da prestação tributária e que pode abarcar qualquer uma das formas previstas no artigo 14º do Código Penal – directo, necessário e eventual.».
Em face do expendido, com que concordamos, não se vislumbra, perante a linear matéria fáctica arrumada nos itens 5 e 10 a 12, que a questão careça de outros desenvolvimentos suplementares.
Improcedem, também neste ponto, os recursos apresentados.

6. A falta de descrição dos elementos objectivos do crime quanto ao IVA.
O recorrente E. M., aludindo aos elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal referente ao IVA, invoca que a acusação é omissa quanto ao efectivo recebimento antes do termo prazo para a sua entrega à Autoridade Tributária, à ultrapassagem do prazo para o respectivo pagamento, à dedução da prestação nos termos da lei ou, sequer, à obrigação da sua entrega pelos arguidos, estando-se, por isso, perante uma conduta criminalmente atípica, o que imporia que o recorrente fosse absolvido.
Estatui o artigo 105º nº 1 do RGIT (na redacção introduzida pela Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro, aqui aplicável) que «Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias».
Dispõe ainda o respectivo nº 4 (na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29/12) que «Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.».
Por sua vez, o nº 7 do mesmo artigo prescreve que «Para efeitos do disposto nos números anteriores os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».
Assim, constituem elementos objectivos do tipo: a) a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária; b) que o agente a esteja legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei).
Por outro lado, os requisitos aludidos naquele n° 4 configuram condições objectivas de punibilidade dos factos ilícitos típicos descritos em tal normativo (15).
Constam da decisão recorrida as seguintes explanações, com que concordamos:
«No caso dos autos está em causa, para além do mais, a liquidação e não entrega ao Estado do IVA.
O IVA é um imposto que visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo, porém, a base tributável limitada ao valor crescente em cada fase.
O sujeito activo deste imposto é o Estado, ao passo que sujeitos passivos serão as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transacções de produtos em geral.
A sua orgânica faz intervir na recolha do imposto a generalidade dos operadores económicos, diluindo-se o seu peso por um maior número de operadores, desincentivando assim a evasão e a fraude, tornando eficaz o funcionamento do imposto com taxas relativamente elevadas.
O objectivo deste imposto é tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, repercutindo-se o mesmo no consumidor final.
(…) Dito de outro modo, o IVA opera pelo método do crédito de imposto, ou seja, o sujeito assume a qualidade de devedor ao Estado pelo valor do imposto que factura aos seus clientes, nos serviços prestados efectuados em determinado período (imposto liquidado ou imposto a favor do Estado) e, em contrapartida, é credor do Estado pelo IVA suportado no mesmo período (imposto suportado ou imposto a favor do sujeito passivo). Logo, o IVA a entregar ao Estado será a diferença entre aquele débito e aquele crédito.
Trata-se, desta forma, de um imposto instantâneo ou de obrigação única, que incide sobre actos ou factos isolados, isto é, sem carácter de continuidade, pelo que terá de ser ainda qualificado como um imposto indirecto no sentido de que logo que se verifica o elemento material – a transmissão do bem ou a prestação de serviço – surge o imposto, a obrigação de imposto, certa e exigível.
Esta é a regra que surge plasmada no artigo 7º do Código do IVA (aprovado pelo Decreto Lei n.º 394 B/84, de 26 de Dezembro), quando refere que o imposto é exigível e torna-se devido no momento em que os bens ou serviços objecto de operações tributáveis entram na disponibilidade do seu adquirente ou destinatário. Como se vê, tal momento coincide, nas transmissões de bens, com o momento em que os bens são postos à disposição dos seus adquirentes, que corresponde, regra geral, ao momento da sua entrega.
Nos termos dos artigos 27º e 41º do Código do IVA, os sujeitos passivos deste imposto devem entregar nos serviços do IVA a declaração periódica relativa às operações efectuadas no exercício das suas actividades no decurso do mês correspondente, com indicação do imposto devido e dos elementos que serviram de base ao cálculo (artigo 19º do mesmo diploma). Isto é: incumbe ao contribuinte enviar, mensalmente ou trimestralmente, consoante o regime, ao Serviço de administração do IVA, uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade desse mês precedente, já acompanhada do pagamento do montante do imposto respectivo (artigo 27º).
Ao contrário do que sucedia com o artigo 24º do RJIFNA, da tipificação do crime previsto no artigo 105º do RGIT resulta que se deixou de fazer alusão expressa ao acto de apropriação, logo, inversão do título da posse, pelo que o mesmo fica preenchido com a mera falta de entrega total ou parcial, à administração tributária, de prestação deduzida nos termos da lei a que o sujeito passivo estava obrigado a entregar ao credor tributário. Neste sentido, a inversão do título resulta da não entrega do imposto a que o agente se encontra adstrito, sendo este o elemento relevante para a determinação do momento da consumação (Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo in “Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados”, página 334, Coimbra Editora, 2002).
Como referem ainda Costa Andrade e Susana Aires de Sousa [in «As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto – Reflexões criticas a propósito da alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 17, n.º 1 p.54)] «nem sequer se exige – como acontecia na versão originária do RJIFNA – uma intenção de apropriação. Para se consumar o crime, basta, agora a mera violação do dever legal de entrega das prestações deduzidas ou retidas, que no entanto, não se confunde com qualquer intenção de apropriação (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 15-12-2010, publicado em www.dgsi.pt)
Conforme é dito neste último aresto: “Mas se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13). Sublinhe-se que a intenção de apropriação, actualmente não exigida, não é sobreponível ao recebimento das quantias.”
Julgamos que esse é também o entendimento plasmado nos Acórdãos do STJ, de 31-05-2006 e 23-04-2003, publicados em www.dgsi.pt quando referem que entre os dois tipos legais de crime de abuso de confiança fiscal, o previsto no artigo 24º do RJIFNA e o previsto no correspondente artigo 105º do RGIT, existe uma continuidade normativo-típica: do simples confronto entre os dois preceitos se alcança, desde logo, a identidade da pena (prisão até 3 anos), e que o escopo visado no tipo previsto no artigo 105º do RGIT continua a ser a punição do que, estando legalmente obrigado a entregar prestação tributária à administração fiscal, deixe de o fazer. No RJIFNA exigia-se a apropriação indevida por inversão do título da posse, com censurável animus rem sibi habendi; no RGIT basta-se a não entrega, mas subjacentemente, embora a tónica se tenha deslocado, na lei nova, para a simples não entrega, continua a estar presente a ideia de apropriação, pois que quem recebe das mãos de terceiro prestações tributárias, ficando investido na qualidade de seu depositário, e não as entrega, em via de regra é porque delas se apropriou, conferindo-lhes um destino não legal.
Se não há dúvidas quanto à estrutura do imposto, conforme descrita supra, já no que respeita às consequências do não pagamento do IVA, algumas divergências têm sido evidenciadas, nomeadamente quando está em causa o tipo de patologia dessas condutas por referência ao RGIT.
Isabel Marques da Silva considera que, pese embora o IVA liquidado seja exigível independentemente do seu recebimento, as consequências para a violação da obrigação de entrega da prestação tributária de IVA não recebido cingem-se à possibilidade de cobrança coerciva e ao dever de pagamento de juros. Escreve aquela autora, in “Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, 2010, págs. 257-266ullum Crimen…, págs. 262-263: “Está […] por demonstrar o modo como o nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias se poderá ter como aplicável ao IVA, uma vez que neste imposto a prestação tributária deduzida, a que foi objecto do exercício do direito à dedução, é precisamente a que não tem de ser entregue nos cofres do Estado. Pela nossa parte, não vemos, pois, como seja possível fazer caber a não entrega das prestações tributárias de IVA no nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias. O mesmo não se diga já do nº2 do mesmo preceito legal, que o Tribunal parece ignorar. Como dissemos já, o nº2 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias procede a uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerar subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. Mas apenas deste, como resulta expressamente do preceito. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo o que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto.” – citada no Acórdão da Relação de Guimarães, de 13-06-2011, publicado www.dgsi.pt).
Veja-se, ainda no sentido de que é necessário o efectivo recebimento do IVA por parte do sujeito passivo, para que a conduta seja penalmente relevante, o Acórdão da Relação de Évora, de 13-12-2009, publicado em www.dgsi.pt: “O crime de abuso de confiança fiscal constitui crime de dano, pelo que se tutela o arrecadamento das receitas fiscais do Estado, diminuídas pela não entrega atempada de prestações tributárias deduzidas nos termos da Lei, ou que foram recebidas pelo agente que tinha a obrigação legal de as liquidar. II - Para que o cometimento desse crime, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado (…)É necessário, portanto, como passo prévio da apropriação do imposto, o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado. Assim, a prova deste recebimento é indispensável, pelo menos de forma parcial, mas representativa, para daí se poder concluir que à não entrega do imposto corresponde a apropriação do mesmo” e ainda o já citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 15-12-2010: “ Em síntese, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.”
Conforme ainda é referido no Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-03-2012, em www.dgsi.pt, se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (caso do imposto do IVA). Cfr., ainda, neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 22-04-2013, publicado em www.dgsi.pt.
Seja como for, a questão levantada foi resolvida pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2015, que fixou jurisprudência, nos seguintes termos: “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 nº1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.”
Ademais, é pressuposto da incriminação que o IVA liquidado seja recebido dentro do prazo legal da sua entrega. Conforme é referido no Acórdão da Relação de Évora, de 25-03-2014, publicado em www.dgsi.pt. “III – Para o preenchimento desse crime de abuso de confiança, necessária é a prova no sentido de saber se o IVA liquidado foi realmente recebido. IV – O momento relevante para esse recebimento é, em concreto, a data até à qual a declaração periódica tivesse de ser apresentada.” Também neste preciso sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 18-03-2013, publicado no mesmo sítio.».
(…) Ora, a arguida, pessoa colectiva, é sujeito passivo de IVA, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º, alínea a) e 2º nº 1, alínea a), do CIVA, pelo que estava obrigada a entregar nos serviços de administração do IVA, e simultaneamente com as declarações de imposto respectivas, o montante de imposto exigível, apurados nos termos do citado código.
(…) Ora, atenta a factualidade provada, dúvidas não há que sobre os arguidos E. M. e L. V., enquanto Presidente e Vice-Presidente da sociedade arguida, respectivamente, e responsáveis pela gestão financeira desta, impendia a obrigação legal de fazer a entrega das quantias de IVA deduzidas nas operações comerciais que a sua representada levava a cabo com os seus clientes e sujeitas a tal tributação e, bem assim, a obrigação de proceder às retenções do IRS aquando do pagamento dos rendimentos e à elas sujeitos, entregando-as nos cofres do Estado.
As prestações de IVA dos meses em causa, todas de montantes superiores a € 7.500,00, foram efectivamente recebidas até à data limite da entrega das respectivas declarações e pagamento e não chegou aos cofres do Estado nos prazos legais de entrega, nem vindo esta a acontecer nos 90 dias seguintes.».
E, contrariamente ao alegado no recurso, independentemente de ligeiras nuances de forma, na substância, era já imputada nos artigos 4º e 5º da acusação a matéria factual que foi tida por provada nos pontos 6 e 7 da sentença, a qual sustenta tal ilação quanto aos seguintes aspectos: efectivo recebimento pela arguida, antes do termo do prazo para a sua entrega à Autoridade Tributária, dos valores referentes a IVA incidente sobre operações tributáveis que a mesma realizou entre Setembro de 2011 e Fevereiro de 2012; apesar de a arguida estar obrigada a entregar aqueles valores à Administração Fiscal até 10 de Novembro de 2011, 12 de Dezembro de 2011, 12 de Março de 2012 e 10 de Abril de 2012, respectivamente, os arguidos não o fizeram, em tais datas, nos 90 dias seguintes ou nos 30 dias seguintes após terem sido notificados para os efeitos do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT. Daí que se retire da factualidade assacada aos arguidos, e que, aliás, se provou, que a arguida incorreu na ultrapassagem do prazo para o pagamento de tais valores, sem que venha de qualquer modo aflorado o eventual direito da mesma à dedução de prestações de que fosse credora.
Não deparamos, pois, com condutas criminalmente atípicas, porquanto tal matéria contém todos os acima mencionados elementos objectivos e condições objectivas de punibilidade dos factos ilícitos típicos descritos no citado normativo (16).

7. A responsabilidade penal da arguida (pessoa colectiva).
A recorrente discorre abstracta e latamente sobre a responsabilidade penal das pessoas colectivas, à luz do disposto no C. Penal.
É certo que, embora as disposições do C. Penal, por força do seu art. 8º, sejam, em geral, aplicáveis a factos puníveis nos termos de legislação de carácter especial, tal assim não será se a previsão desta contiver norma em contrário: é o que sucede, indiscutivelmente, com a do art. 7º do RGIT, que não pode deixar de «ser vista como disposição em contrário, que poderia ter sido alterada ou revogada aquando da revisão do Código Penal, como foram algumas outras, mas não o foi, razão pela qual entendemos que o modelo de imputação previsto no RGIT para a responsabilidade das pessoas colectivas continua a ser plenamente aplicável no seu domínio material de aplicação, não tendo sofrido qualquer alteração com a mais recente revisão do Código Penal» (17).
Assim, nestes autos, a argumentação aduzida neste conspecto não é interessante e apenas deve ser ponderada a responsabilidade da recorrente nos termos estabelecidos naquele art. 7º do RGIT, que estatui:
«1. As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.
2. A responsabilidade das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.» (18).
Filipa Vasconcelos de Assunção (19) expõe:
«Na nossa opinião, actuar no interesse colectivo significa actuar tendo em vista o funcionamento e prossecução dos fins da sociedade, mesmo que da prática desse facto não advenha qualquer proveito lucrativo ou económico para a empresa. Assim, o acto é praticado no interesse colectivo quando a sua prática tem em vista a realização dos objectivos sociais da pessoa colectiva e não o benefício próprio do agente ou de terceiros externos à pessoa colectiva. De facto, o crime só será imputado à pessoa colectiva se o acto ilícito se assumir como o meio para realizar o interesse colectivo, isto é, se o agente decidir sacrificar o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora para prosseguir o interesse da sociedade.
Concluindo, o interesse colectivo é tudo aquilo que garante a organização e o funcionamento empresarial, tudo o que assegura o desenvolvimento da actividade e tudo o que importa ao objecto social e aos fins da colectividade. Pelo contrário, não são considerados factos praticados no interesse colectivo, as infracções ligadas à vida privada dos agentes singulares, as infracções cometidas no interesse particular dos sócios e as infracções praticadas contra o interesse da sociedade. Neste sentido, o interesse colectivo pode ser classificado como o interesse pessoal e social da pessoa colectiva e a infracção praticada no interesse colectivo pode ser entendida como aquela que visa produzir um benefício para a colectividade.
Esta exigência da actuação em nome e no interesse colectivo não representa um elemento constitutivo do crime, mas a razão da imputação do crime praticado pelo órgão ou representante à própria pessoa colectiva, na medida em que se presume que esta actuação corresponde à vontade da sociedade. Se o crime não for praticado em nome e no interesse colectivo, a pessoa colectiva não pode ser responsabilizada por ele, pois tal facto não constitui uma manifestação da vontade da sociedade. Assim, no artigo 11.º, n.º 6 do Código Penal exclui-se a responsabilidade das pessoas colectivas pelos crimes praticados contra ordens e instruções expressas de quem de direito, precisamente por estes actos não corresponderem à vontade da sociedade.»
Por conseguinte, a responsabilidade penal de uma pessoa colectiva por uma infracção tributária emerge do cometimento desta por um seu órgão ou representante, em seu nome e no interesse colectivo e que a mesma não seja praticada contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.
Posto isto, imediatamente se constata, pela simples leitura da matéria assente, que os factos cuja responsabilidade é assacada à recorrente foram decididos e praticados pelos demais arguidos, nas qualidades de presidente e de vice-presidente, respectivamente, da direcção daquela, pessoa colectiva que geriam, os quais, apesar de saberem que a mesma estava legalmente obrigada à entrega dos arrolados montantes à Administração Fiscal, não o fizeram, o que previram e quiseram, de acordo com resoluções tomadas em comum, o que também a recorrente previu e quis através dos outros arguidos, que agiram em seu nome e com a intenção comum de assim satisfazerem o seu interesse. O que, atendendo à qualidade (presidente e vice-presidente da direcção da recorrente) em que tais arguidos cometeram os factos, ou seja, com o domínio e a capacidade efectiva de administração, exclui a possibilidade de a prática destes ter tido lugar contra ordens ou instruções expressas “de quem de direito”.
O que, sem necessidade de explicações complementares, evidencia estarem inteiramente preenchidos os três enunciados pressupostos da questionada responsabilidade da recorrente.
As considerações acabadas de expor aplicam-se de igual forma ao recorrente E. M. que nas suas conclusões de recurso suscita esta questão.

8. A medida das penas.
Todos os arguidos se insurgem quanto à medida das penas que lhes foram aplicadas:
Enquanto o arguido L. V. afirma que a pena resultou de um puro arbítrio, o arguido E. M. diz que a mesma é desproporcionada, porque foram desconsideradas as circunstâncias atenuantes de que goza, nomeadamente, a sua boa inserção pessoal e profissional, a situação de ter reconhecido a prática dos factos, embora sem lhes reconhecer relevância criminal e a de não ter consciência da prática de qualquer crime.
Por sua vez, também a arguida a reputa de desproporcional, pugnando pela sua redução quer no número de dias (300) quer na sua taxa diária (€ 10).
O crime pelo qual os arguidos foram condenados é abstractamente punível com pena de prisão de um a cinco anos e multa de 240 a 1.200 dias para as pessoas colectivas, fixando-se esta entre o limite mínimo de 5 euros e o máximo de 5.000 euros, de acordo como o disposto no arts. 105º, nº 5 e 15º do RGIT.
O bem jurídico que se visa proteger com esta incriminação reconduz-se, no essencial, à tutela do erário público e do interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias (cfr. neste sentido, Nuno Lumbrales, “O abuso de confiança fiscal no regime geral das infracções tributárias”, Fiscalidade, Janeiro/Abril de 2003, n.º 13/14, pp. 96).
A função tributária ou as receitas fiscais do Estado visam a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas, mas, também, uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza (art.º 103º, nº1, da CRP).
«Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da realização do bem-estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em condições de dignidade. A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as necessárias prestações sociais como também alarga o âmbito do que é digno de tutela penal ... Compreende-se, assim, que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental e que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado, possa ser assegurado através da cominação de sanções criminais» (20). Doutrina que vale inteiramente para as prestações em causa nos autos.
Para esse efeito, deverá atender-se ao disposto no artigo 40º, nº 1 do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em consonância com o estipulado no nº 1, do art. 71º, do C. Penal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40º, nº 2, do mesmo Código.
Como se disse, a finalidade essencial da aplicação da pena, para além da prevenção especial – encarada como a necessidade de socialização do agente, no sentido de o preparar para no futuro não cometer outros crimes – reside na prevenção geral, o que significa «que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto … alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...». «É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma “moldura” de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica» (21). «Resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...» (22). «Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado» (23).
Em suma, a pena concreta será limitada, no seu máximo, pela culpa do arguido. O princípio da culpa dispõe que «não há pena sem culpa e a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa» (cfr. art. 40º, nº 2, do C. Penal).
Ora, é relativamente acentuada a gravidade objectiva da conduta dos arguidos/recorrentes já que, com a mesma, atingiram valores fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade. Realmente, intensifica-se, progressivamente, a censura ético-social relativamente a comportamentos que inibem o Estado de dar cabal satisfação às incumbências que lhe são cometidas, sobretudo, num quadro em que, perante o agravamento das dificuldades económicas, aos cidadãos, na sua generalidade, foi imposto um enorme aumento dos sacrifícios. Além disso, as condutas da natureza das ora em apreço transcendem o simples valor patrimonial, em si mesmo, das prestações tributárias retidas e não entregues e a inerente evasão fiscal, assumindo estas uma muito relevante danosidade social, para mais quando, entre nós, atinge elevadas proporções, como é sabido.
Este ilícito também viola a fidúcia ou a relação de confiança estabelecida entre o Estado e o devedor tributário, bem jurídico por aquele igualmente tutelado, porquanto «o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário» (24). Efectivamente, no caso da particular prestação tributária em causa (IRS), as entidades devedoras de rendimentos de trabalho dependente uma vez deduzidos e retidos a parte correspondente a este imposto, ficam na situação de fiéis depositários desses valores, que assim passam a pertencer ao respectivo credor tributário, perante quem se constituem na obrigação legal de os entregar, nos prazos e nos locais previstos na lei.
Acresce que, no caso da prestação do IVA, o incumpridor não se limita a procurar evitar a tributação também viola a relação de confiança estabelecida entre o Estado e o devedor tributário, bem jurídico por aquele igualmente tutelado, porquanto o imposto é exigível e torna-se devido no momento em que os bens ou serviços objecto de operações tributáveis entram na disponibilidade do seu adquirente ou destinatário, incumbindo ao devedor enviar ao Serviço de administração do IVA, a declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade, independentemente do acto de apropriação, ficando o ilícito preenchido com a mera falta de entrega total ou parcial, à administração tributária da prestação deduzida nos termos da lei a que o devedor tributário se encontrava obrigado.
Por tudo isso, no caso concreto, são intensas as exigências de prevenção geral porque sobre a arguida, pessoa colectiva, sujeito passivo de IVA e simultaneamente devedora de rendimentos sujeitos a retenção na fonte, impendia a apresentação das declarações de imposto respectivas e a entrega dos montante de imposto retido e sobre os arguidos E. M. e L. V., enquanto Presidente e Vice-Presidente impedia igual obrigação, não entregaram à Administração Tributária uma elevada quantia, embora tenham feito um plano de pagamento que se encontram a cumprir.
Como muito bem salienta o Sr. Procurador-Geral Adjunto «cada vez com maior acuidade e ressonância, face às exigências do Estado Social, as receitas tributárias constituem meio necessário e imprescindível para a satisfação dos deveres do Estado e mesmo para ao assegurar dos equilíbrios orçamentais que promovem junto da “Agências”».
Assim, se depõe contra os arguidos a acentuada ilicitude do seu comportamento, atendendo aos montantes em causa e aos valores jurídicos atingidos, a par das particulares garantias de que o Estado reveste os créditos de natureza fiscal, já no que respeita às necessidades de prevenção especial positiva ou de ressocialização, há que ponderar as circunstâncias de os arguidos não terem antecedentes criminais e de se mostrarem regularmente integrados do ponto de vista profissional e social, embora não possa deixar de se notar que não só não colaboraram para a descoberta da verdade dos factos como, no caso particular do arguido E. M., este a procurou ocultar, quando imputou as falhas à contabilidade para alijar a sua própria responsabilidade e a do arguido L. V., o que, tudo, permite concluir que não ainda não interiorizaram o real desvalor das suas condutas.
Ora, perante o conjunto dos factos apurados, temos de reconhecer que a pena de 18 meses de prisão que lhes foi imposta em primeira instância, correspondente a apenas metade da média da moldura abstractamente aplicável (3 anos) e, portanto, muito próxima do respectivo limite mínimo, de modo algum se poderá qualificar de arbitrária ou desajustada às particularidades do caso concreto, ou, sequer, vigorosa, como, aliás, bem refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto. Razão pela qual não se vislumbra como se poderia justificar a atenuação especial de tal pena, a que, timidamente, apelou o arguido E. M.. Neste conspecto, tal factualidade permite concluir que, atenta a natureza dos valores imprescindíveis à vida em comunidade atingidos com a actuação dos arguidos e as consequentes exigências de prevenção já salientadas, só a pena aplicada satisfará essas necessidades, sendo certo que o que se apurou quanto à pessoa dos arguidos/recorrentes foi, devida e adequadamente, sopesado para a adopção da medida de substituição de tal pena pela respectiva suspensão.
As considerações que se expenderam em relação aos arguidos, por maioria de razão, aplicam-se à arguida/recorrente, pois não se pode olvidar que a mesma se insere, e em elevado plano, numa área de actividade económica que movimenta milhões de euros e que, não omitindo a fase menos risonha aflorada nos factos, possui um património avultado, como também se infere dos mesmos, nada se tendo evidenciado que mitigue, sensivelmente, o desvalor do comportamento adoptado, a merecer elevada censura.
Por outro lado, não se pode omitir, não apenas os elevados montantes das prestações deduzidas e não entregues, mas também o período de tempo em que decorreu a conduta ilícita, mesmo considerando que os montantes em causa têm vindo a ser pagos à Administração fiscal, por via dos acordos que celebrou com a Administração fiscal.
Tudo circunstâncias cujo significativo peso já realçámos e que justificam plenamente a pena que lhe foi aplicada, situada muito abaixo da média da moldura abstractamente aplicável (720 dias). E, quanto à taxa diária fixada pelo tribunal de 1ª instância, a mesma se peca é por defeito e não por excesso, atendendo à latitude em abstracto prevista (entre € 5 e € 5.000), pelo que é, claramente, de manter, face ao que se demonstrou sobre o património da arguida.
*
Decisão:
Pelo exposto, julgando improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos E. M., L. V. e V..., decide-se confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em seis UC´s, por cada (arts. 513º, nºs 1 e 3, do CPP e 8º, nº 9, do RCP e Tabela III anexa).

Guimarães, 22/5/2017

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado
Fernando Monterroso


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1 Ainda segundo o nº 3 de tal artigo, «Qualquer autoridade judiciária que no decurso de um processo por crime não tributário tome conhecimento de indícios de crime tributário dá deles conhecimento ao órgão da administração tributária competente».
2 Caso J.B. c. Suiça, n.º 31827/96, § 64, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/, assim como os demais deste Tribunal.
3 Caso Saunders v. Reino Unido, nº 19187/91.
4 P. 04P3276 - Henriques Gaspar.
5 Tal princípio tem acolhimento constitucional como decorre da segunda parte do nº 5 do art. 32º da Constituição da República, que assegura o contraditório a todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo. E, particularmente no que respeita ao arguido, estão em causa as «garantias de defesa» a que alude o nº 1 do mesmo art. 32º. Perante os direitos fundamentais, o processo penal mostra-se orientado, neste domínio, para a defesa, não indiferente ou neutral. O contraditório funciona, assim, como instrumento de garantia desses direitos e corrige assimetrias processuais susceptíveis de pôr em causa o estatuto jurídico do arguido moldado pelo sistema garantístico constitucionalmente exigido, como sistematicamente vem afirmando o Tribunal Constitucional. Com efeito, a amplitude de exigência do exercício do direito de contraditório e a conformação concreta da garantia das possibilidades efectivas para a defesa e pronúncia do arguido, não poderão deixar de corresponder proporcionalmente ao particular relevo e à importância da aquisição das provas para o objecto de uma decisão.
6 No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. do STJ de 06/11/2003 (P. 03P3370), Ac. RL de 10/02/2010 (P. 372/07.6GTALQ.L1-3), Acs. desta Relação de 05/06/2006 (P. 765/05-1) e de 11/06/2012 (P. 317/11.9GTVCT.G1), Acs. da RC de 05/11/2008 (P. 268/08.4GELSB.C1), de 23/02/2011 (P. 83/09.8PTCTB.C1), de 23-01-2013 (P. 18/09.8TAMMV.C1) e, mais recentemente, de 21-11-2016 (P. 247/038PBBGC.G1), Acs. da RP de 18/11/2009 (P. 12/08.6GDMTS.P1) de 02/12/2010 (P. 397/10.4PBVRL.P1) e de 02/12/2010), Acs. da RE de 11/09/ 2012 (P. 109/12.8PALGS.E1) e de 20/11/2012 (P. 186/09.9GELL.E1).
7 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
8 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
9 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
10 O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).
11 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
12 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
13 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
14 Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre imporia a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
15 Neste sentido Isabel Marques da Silva, Ob. cit., p. 229. Diferentemente, Taipa de Carvalho (“O crime de abuso de confiança fiscal”, Coimbra Editora, 2007, p. 40) entende tais circunstâncias configuram elementos integrantes do tipo de crime e não como condição objectiva de punibilidade.
16 Cf. o sumário do Ac. desta Relação de 1-03-2014 (P.250/12.7IDBRG.G1 - Fernando Monterroso): «No caso do IVA, só há crime de abuso de confiança fiscal quando o agente não procede à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para o efeito, do montante de imposto já efetivamente recebido. O facto de o arguido ter efetivamente recebido as quantias de IVA em causa antes do termo do prazo para a sua entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, que tem de constar da acusação, por força do «princípio da acusação», sob pena de esta improceder.», Acrescentando-se na sua fundamentação: «Uma vez recebido o montante de IVA, o obrigado tributário apenas fica depositário dos valores correspondentes, que passam a pertencer ao fisco, perante quem tem a obrigação legal de os entregar. É esta não entrega que é criminalmente punível e não a simples omissão de um pagamento. A norma do art. 105 nº 1 do RGIT não pune quem não pagar um imposto, mas, diferentemente, “quem não entregar à administração tributária (…) prestação deduzida nos termos da lei”. Só pode omitir a “entrega” de alguma coisa, quem a tiver, ou já tiver tido, em seu poder. Enquanto o obrigado tributário não receber os valores do IVA não pode cometer um crime de “abuso de confiança”. Este enquadramento não é incompatível com a obrigação legal do responsável tributário pagar à administração fiscal todo o IVA que faturou, independentemente de o ter efetivamente recebido. Ao direito civil e ao direito fiscal não repugna a existência de antecipações de pagamento.».
No mesmo sentido se pronunciaram os Acs. da RC de 24-04-2013 (P. 122/09.2IDVIS.C1) e da RL de 7/05/2013 (P.169/09.9IDFUN.L1-5).
17 Isabel Marques da Silva, in “Regime Geral das Infracções Tributárias”, 3ª ed., p. 75.
18 Também o artigo 11º, nº 6 do C. Penal preceitua que se exclui a responsabilidade das pessoas colectivas pelos crimes praticados contra ordens e instruções expressas de quem de direito, precisamente por estes actos não corresponderem à vontade da sociedade.
19 Na sua Dissertação “A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas – Em Especial a Problemática da Culpa”, consultável in www.fd.lisboa.ucp.pt/research.
20 Ac. do TC de 20/7/2000 in DR II de 17/10/2000.
21 Anabela Miranda Rodrigues, “A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, p. 570 e s.
22 Ibidem, p. 575.
23 Ibidem, p. 558.
24 Ac do TC citado.