Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7110/15.8T8VNF-A.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTOS-ÍNDICE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) A lei estabelece assim uma presunção iuris tantum (art. 30º nº 3, 4 e 5 do CIRE) de que a verificação dos factos-índice elencados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 20º do CIRE, acarretam a impossibilidade de cumprimento. Por isso, o credor apenas tem de provar a o facto-índice, competindo depois ao devedor Requerido a prova de que o facto não se verifica ou que, não obstante ele, ainda tem condições para cumprir as suas obrigações.
b) Ao preenchimento do facto-índice da alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE não é necessária a existência de várias dívidas, podendo bastar uma. O que releva são as circunstâncias do caso em concreto e o relacionamento do montante da dívida com as condições económico-financeiras e patrimoniais do devedor.
c) Figura típica dos negócios cambiários, o aval é moldado pelas caraterísticas da literalidade, da autonomia e da abstração dos títulos de crédito; nessa medida, ele diferencia-se da fiança pelo seu caráter de obrigação autónoma, não lhe sendo reconhecida a caraterística da acessoriedade.
d) O PER é um mecanismo dirigido à recuperação da empresa e não uma forma de viabilizar o pagamento dos credores.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. B. – Banco, SA requereu a insolvência de C., invocando a previsão da alínea b) do art. 20º nº 1 do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE): “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
Em resumo, alegou ser credor do Requerido, em virtude de uma garantia por ele prestada à sociedade por si gerida, “C., SA”; não tendo sido cumpridas as obrigações pela sociedade, foi instaurada ação executiva onde não se logrou pagamento; para além disso, o Requerido doou a seu filho, menor de idade, a sua quota parte no imóvel que era o único bem que lhe era conhecido e sobre o qual versava hipoteca.
Citado o Requerido, veio ele a deduzir oposição; aceitando ter constituído a garantia a favor do Requerente e efetuado a doação, referiu que a garantia da hipoteca se mantém; por outro lado, o crédito da Requerente foi negociado e considerado no âmbito de um processo especial de revitalização (PER) a que recorreu a “Auto Oliveira”, PER esse que está a ser cumprido; assim, a dívida não está vencida nem em incumprimento; não tem quaisquer outras dívidas.
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença declarando a insolvência do Requerido.

2. Inconformado, vem o Requerido apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1 - Não se conforma o Recorrente com a douta decisão em crise, por entender que, com todo o respeito, se decidiu, incorrectamente, estar o Recorrente em situação de insolvência.
2 – Entre os quatro obrigados ao pagamento da dívida em causa, o Recorrente trata-se apenas de um dos três avalistas, sendo certo que a sociedade devedora principal se encontra a cumprir o plano de pagamentos aprovado no Processo Especial de Recuperação, no qual o Recorrido interveio.
3 - O Requerido não está a incumprir as suas obrigações, aliás não se demonstrou que devesse mais nada a ninguém, mas ser apenas um simples avalista nas circunstâncias atrás referidas.
4 – A obrigação em causa nos autos está ainda garantida por uma hipoteca, sendo certo que no âmbito das operações bancárias sustentadas por este tipo de garantias, os valores financiados são sempre inferiores aos dos valores dos imóveis objecto de tais garantias.
5 - Deste modo, afigura-se-nos não estarem preenchidos os requisitos do artº 20º do CIRE, que elenca os factos presuntivos da insolvência.
6 – Deste modo, ao declarar a insolvência do Recorrente, com a indicada justificação, houve-se o Meritíssimo Juiz “a quo” com violação, além do mais, do previsto no artigo artº 20º do CIRE.
NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e proferindo-se douto Acórdão, em que se julgue improcedente o pedido de declaração de insolvência do Recorrente, por tal ser de Justiça.».

3. O Requerente contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados em 1ª instância:
«A. O Requerente, no exercício da sua actividade, por “Contrato de Consolidação (acordo de pagamento) n° $00004122030443”, celebrado em 22 de Abril de 2013 concedeu à sociedade “D., S.A”., um crédito ate ao valor limite de € 362.000,00 (trezentos e sessenta e dois mil euros).
B. E., F. e C., ora Requerido, constituíram-se garantes do supra referido contrato, tendo aceitado expressamente todos os termos e condições do referido contrato, assumindo solidariamente com a sociedade outorgante o cumprimento pontual de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes.
C. O contrato foi celebrado pelo prazo de 6 (seis) anos, beneficiando de um período de carência de reembolso pelo período de 12 (doze) meses, sendo, apenas, cobrado as prestações dos juros convencionados.
D. Foi ainda acordado que o montante do crédito disponibilizado seria lançado pelo Requerente numa conta aberta em nome da sociedade D., S.A., com o n° 80/412203.77/10, sediada na Agência de Braga.
E. Os montantes utilizados, ou os saldos devedores por força do referido contrato, melhor identificado no ponto 4° da presente petição inicial, venceria juros compensatórios à taxa Euribor a 3 meses, actualn3ente de 0,206 % ao ano acrescida de um “spread” de 5 pontos percentuais, actualizada trimestralmente, ajustável automaticamente, pela média aritmética simples reportada ao mês anterior, contados dia a dia, e pagos ao ora Requerente postecipada e mensalmente, acrescido dos encargos legais e contratualmente devidos.
F. Mais tendo sido acordado, que em caso de incumprimento de qualquer prestação de juros ou capital, serão devidos juros à taxa mais elevada de juros compensatórios, ou seja, 11%, acrescidos de uma sobretaxa de 4,00%, a título de cláusula Penal.
G. Para garantia do supra referido “Contrato de Consolidação (Acordo de pagamento)”, o Requerido entregou ainda a livrança n° 508225140083955879, em branco, subscrita por “D., S.A”., e avalizada, por E., F. e C., ora Requerido, os quais expressamente autorizaram o ora Requerente a preencher o título de crédito, nos casos de incumprimento do referido contrato, ou das suas eventuais prorrogações, alterações, aditamentos e, ou, substituições, pelo valor que lhe fosse devido nos termos do contrato, a fixar as datas de emissão e vencimento e a inseri-las no título cambiário, bem como designar o local de pagamento, autorizando ainda o Requerente a debitar o valor do imposto do selo que se mostre devido em quaisquer contas de depósito à ordem de que fossem titulares.
H. Ainda para garantia do supra referido “Contrato de Consolidação (Acordo de Pagamento) n° $00004122030443”, foi constituída em 22 de Dezembro de 200$, hipoteca voluntária, a favor do Requerente, no Cartório Notarial da Licenciada M., lavrada de folhas 18 a folhas 20 v°, do Livro de Notas n.° 1 83-B, sobre o seguinte imóvel: - Prédio misto sito no Lugar …, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo … e na matriz urbana sob o artigo .., descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o número …, hipoteca essa que foi provisoriamente registada pela Ap. 8 de 2008/09/11, convertida em definitiva pela Ap. 44 de 2008/12/23.
I. Face à situação de incumprimento das obrigações assumidas no referido contrato, o requerente considerou integralmente vencido o supracitado contrato, exigindo a totalidade da divida nele representada, sendo que a 22 de Junho de 2013, o capital em dívida ascendia a € 362.000,00 (trezentos e sessenta e dois mil euros).
J. Face ao incumprimento das obrigações emergentes do referido contrato, o aqui Requerente intentou a competente acção executiva, em 05 de Dezembro de 2013, peticionando o valor global de € 383.324,55 (trezentos e oitenta e três mil, trezentos e vinte e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos), a qual actualmente corre seus termos na Comarca da Braga — Instância Central de Vila Nova de Famalicão — Secção de Execução —J2, sob o n.° 7844/13.1TBBRG.
K. O imóvel acima identificado foi objecto de doação em 01 de Março de 2012, por parte do seu co-proprietário, C., na proporção de ¼ a G., ainda menor.»

5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
No caso, a QUESTÃO A DECIDIR: é a de apurar de estão reunidos os requisitos para o decretamento da insolvência do Requerido.

5.1. PRESSUPOSTOS DA INSOLVÊNCIA
Como cláusula geral, considera-se em situação de insolvência quem se encontrar impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas: art. 3º nº 1 do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), diploma a considerar nos demais preceitos citados sem outra menção de origem.
Colhidas das regras da experiência, enumeram-se nas diversas alíneas do nº 1 do art. 20º alguns factos considerados indiciários, e presuntivos, dessa impossibilidade de cumprimento.
A lei estabelece assim uma presunção iuris tantum (art. 30º nº 3, 4 e 5) de que a verificação desses factos importa a impossibilidade de cumprimento, significando isso que o credor apenas tem de provar a o facto-índice, competindo depois ao devedor Requerido a prova de que o facto não se verifica ou que, não obstante ele, ainda tem condições para cumprir as suas obrigações.
«O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objetivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, de fazer a demonstração efetiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como caraterística nuclear da situação de insolvência (art. 3º, nº 1).
Caberá então ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice (…).». (1)

Quanto ao facto-índice
O facto-índice invocado foi o previsto na alínea b) do art. 20º nº 1 do (CIRE): “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
O Requerente provou ser credor do Requerido por uma quantia considerada de elevado montante (originalmente de € 383.324,55 e hoje ascendendo € 449.089,88 por força dos juros de mora, comissões, despesas e imposto de selo), que a obrigação de pagamento se encontra vencida e que o único bem que lhe era conhecido era uma quota de ¼ num prédio, quota essa que, entretanto, doou a um filho.
Deste circunstancialismo, outra conclusão se não pode tirar a não ser a de que o Requerido não tem meios para pagar a dívida.
Cumpriria ao Requerido demonstrar que, não obstante a verificação do facto-índice, não era correta essa conclusão de impossibilitado de cumprimento.
Neste âmbito, a sua oposição estava votada ao insucesso pois quanto à sua capacidade económico-financeira e patrimonial não alegou factos suscetíveis de a comprovar, limitando-se a referir que “dispõe de património que poderá honrar os compromissos assumidos”, sem descriminar e identificar quais, pelo que, à míngua de alegação de factos, nunca os poderia provar!
Que não está a cumprir as suas obrigações, retira-se do facto provado em “J”: face ao incumprimento das obrigações emergentes do referido contrato, o Requerente intentou a ação executiva, que se encontra em curso.
Ao preenchimento do facto-índice invocado, também não é necessária a existência de outras dívidas, como bem decorre do preceito basta uma (“de uma ou mais”) (2) .
O que releva são as circunstâncias do caso em concreto e o relacionamento do montante da dívida com as condições económico-financeiras e patrimoniais do devedor.

Quanto à sua posição de garante e à natureza da sua dívida
O Requerido deu o seu aval a uma livrança subscrita pela “Auto Oliveira”, significando isso que garantiu pessoalmente, com o seu património, o pagamento da dívida da empresa, em solidariedade: art. 30º e 47º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL), ex vi do seu art. 77º.
Figura típica dos negócios cambiários (3), o aval é moldado pelas caraterísticas da literalidade (a obrigação a cumprir é a que estiver inscrita no título), autonomia (o portador do título é considerado credor originário e é perante o portador, e não perante o avalisado, que o avalista se obriga) e abstração (a obrigação cambiária é independente da obrigação causal) dos títulos de crédito; nessa medida, ele diferencia-se da fiança (4)pelo seu caráter de obrigação autónoma, não lhe sendo reconhecida a caraterística da acessoriedade típica da fiança.
A autonomia decorre expressamente do art. 32º da LULL ao estatuir-se que a obrigação do avalista se mantém ainda que a obrigação avalisada seja nula, a não ser por um vício de forma que qualquer portador do título possa intuir.
Já a essência da fiança reside na acessoriedade da obrigação assumida pelo fiador: ela só existe nas condições de validade e enquanto perdurar a obrigação do devedor, extinguindo-se com esta (art. 627º nº 2, 632º e 651º do CC).
Por norma, essa obrigação é ainda subsidiária da obrigação do afiançado, ou seja, o fiador chamado a cumprir pode recusar fazê-lo enquanto não se mostrar excutido o património do devedor (o benefício da excussão prévia, art. 638º do CC).
Para a constituição duma fiança, a lei não exige fórmulas sacramentais, ou tipificadas, para a respetiva declaração de vontade, o que já não acontece no aval.
Já o «caráter autónomo do aval, de certo modo, descarateriza-o como uma verdadeira garantia pessoal, pois o avalista passa a responder — solidariamente com o avalisado — como devedor de uma obrigação própria; dito de outra forma, com o aval, o avalista como que se «apropria» de uma dívida alheia.» (5)
«O aval é o negócio jurídico cambiário através do qual uma pessoa (avalista ou dador de aval) garante o pagamento de uma letra de câmbio por parte de um dos seus subscritores (avalizado). De um ponto de vista económico, o aval possui um fim semelhante à fiança. Contudo, o aval representa uma obrigação pessoal de garantia dotada de um regime jurídico próprio: a obrigação do avalista é autónoma, subsistindo no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não um vício de forma (art. 32.º, n.º 2, da LULL), enquanto a fiança é uma garantia de natureza acessória (art. 627.º, n.º 2, do CC).» (6)
Daí que, face à autonomia da obrigação, ao caso seja irrelevante a existência de outros co-avalistas da mesma obrigação, pois o Requerente pode acionar o avalista que bem entender.
Também não constitui obstáculo que a dívida da “D.” esteja ainda garantida com uma hipoteca.
Por fim, o Requerido nada alegou, e nada se provou, tendente a demonstrar que o prédio hipotecado tinha valor e/ou angariaria um resultado económico passível de saldar a dívida. Ao contrário, colhe-se do documento de fls. 163 que o mesmo tem um valor patrimonial de € 47.592,47, manifestamente inferior ao valor da dívida.
De qualquer forma, repete-se, nada obsta a que o credor acione o avalista e não o avalisado. E, em sede de insolvência, apenas há que olhar à sua capacidade/solvabilidade para cumprir a obrigação acionada.

Quanto à repercussão do PER da empresa por si avalisada na posição do Requerido
O facto-índice invocado foi o previsto na alínea b) do art. 20º nº 1 do CIRE que, como já vimos, se reporta à falta de cumprimento de uma ou mais obrigações.
Daí que se impusesse ao Requerente a prova da existência da obrigação (o seu crédito) e, bem assim, que o Requerido se mostra já em incumprimento e sem meios para o fazer.
A obrigação do Requerido é a do aval prestado numa livrança subscrita por “Auto Oliveira”, empresa da qual era sócio.
A livrança constituía uma garantia do pontual cumprimento da obrigação de pagamento do capital que o Requerente lhe emprestara.

Continua a invocar o Requerido que a “D.” se apresentou a PER, que veio a ser deferido, e que o Requerente aí está a obter pagamento em prestações conforme acordado, pelo que a dívida já não seria do montante referido.
Ao assim se posicionar, o Requerido está a arguir a inexigibilidade da dívida.
Porém, já vimos que a obrigação do Requerido é autónoma, o que importaria a conclusão de que ela não sofre as vicissitudes da obrigação da sociedade avalisada.
Atendendo ao que acaba de se referir quanto à autonomia e inexistência de acessoriedade da obrigação do Requerido, sendo ele também pessoa distinta da “D.”, resultaria claro que nenhuma repercussão traz aos autos que a “D.” esteja em PER.
Na verdade, como se lê a dado passo no já referido AUJ nº 4/2013:
«Tratando-se o aval de uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstracção e literalidade se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma.
A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista, para obter a satisfação da quantia titulada na letra.
(…)
A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Os efeitos da obrigação cartular assumida pelo avalista destacam-se da obrigação subjacente segregando um feixe de obrigações e deveres que, do nosso ponto de vista, não são passíveis de denúncia.».
Apesar de inserido num PER, o crédito do Requerente continua a existir, sempre e na medida em que não for satisfeito.
Para se desonerar da obrigação, o aqui Requerido haveria que ter demonstrado que o crédito já fora satisfeito pelo pagamento.
Não o tendo feito, continua a verificar-se relativamente a ele o facto-índice do pedido de insolvência, a falta de cumprimento de uma obrigação, que é sua e autónoma da do avalisado.

Se no âmbito dum PER, o credor concede à empresa avalisada o perdão parcial da dívida ou qualquer outra renegociação do crédito, em que medida é que essas novas condições se comunicam ao avalista?
A questão tem sido suscitada no âmbito de processo executivo instaurado contra o avalista, ainda no decurso do PER e estando ele a ser cumprido.
A jurisprudência maioritária tem considerado inexistir qualquer obstáculo ao prosseguimento da execução, dado que as condições negociadas no PER não provocam alteração na obrigação do avalista.
«IV - A aprovação de um plano de revitalização, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficie a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.
V - Esse plano de revitalização nem mesmo é invocável pelo avalista quando nele conste cláusula segundo a qual as garantias anteriormente prestadas pela empresa revitalizada e por terceiros se mantêm como garantia do cumprimento das novas obrigações decorrentes do plano.» (7)
Tal posição merce também o nosso acolhimento.
Em primeiro lugar pelo já referido regime do aval: a obrigação decorrente do aval é independente e autónoma, e não acessória da obrigação da empresa avalisada, pelo que as vicissitudes desta última não se comunicam àquela.
O avalista garante o direito de crédito cambiário e não o direito de crédito da relação causal subjacente.
Um avalista sabe que pode ser diretamente acionado pelo credor, independentemente de o avalisado estar ou não sujeito a um PER.
Por outro lado, o avalista não está envolvido no PER, pelo que nenhuma expetativa se lhe criou.
As negociações e acordos entre o credor e o avalisado são, assim, res inter alios relativamente ao avalista.

Dirigido a empresas viáveis, mas que lutam com dificuldades económicas e em cumprir pontualmente os seus compromissos, o PER constitui um mecanismo de reestruturação, negociado extrajudicialmente entre o devedor e os seus credores, pretendendo-se que as suas dificuldades sejam ultrapassadas e a empresa possa manter-se em atividade.
Assim se consegue a “redução de perdas dos credores”, se evitam “os efeitos sociais e económicos negativos que advêm da liquidação de uma empresa” e se almeja “uma maior eficiência e celeridade do sistema judicial” – pode ler-se na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25.10. (8)
Assim, o PER é um mecanismo dirigido à recuperação da empresa e não uma forma de viabilizar o pagamento dos credores.
A solução de coartar ao credor a possibilidade de acionar as garantias que possua sobre terceiro iria certamente dificultar a adesão dos credores ao PER.
Na verdade, ser-lhes-ia mais favorável a insolvência da empresa e a votação de um Plano de Insolvência pois no domínio deste está claramente definido que as providências previstas no Plano “não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação”: art. 217º nº 4 do CIRE.
A aplicação deste preceito ao PER tem sido defendida jurisprudencialmente por via de interpretação extensiva e por força do nº 5 do art. 17º-F do CIRE: “com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º”.
Que foi intenção do legislador que o PER não afetasse as garantias dos credores sobre terceiros também se pode extrair do consignado no 6º Princípio da referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011: “Durante o período de suspensão, o devedor compromete-se a não praticar qualquer acto que prejudique os direitos e as garantias dos credores (conjuntamente ou a título individual), ou que, de algum modo, afecte negativamente as perspectivas dos credores de verem pagos os seus créditos, em comparação com a sua situação no início do período de suspensão”.
Ao que sabemos, a única posição discordante tem sido defendida por Catarina Serra (9) que, no âmbito do Plano de Insolvência, considera que o art. 217º nº 4 do CIRE «é uma tutela excepcional e restrita aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante» pelo que, nos demais casos (como por exemplo, modificação do prazo de vencimento ou de moratória) o nº 4 desse art. 217º do CIRE já não seria aplicável.
Já em sentido contrário se pronunciam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda(10), dando nota de que o nº 4 do art. 217º do CIRE consagra uma inovação relativamente a preceito idêntico do anterior CPEREF: «O legislador, porém, esteve atento e houve por bem considerar os reparos, modificando a orientação, de sorte que agora, seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra condevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário.».
Concluindo, não assiste razão ao Recorrente.

SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) A lei estabelece assim uma presunção iuris tantum (art. 30º nº 3, 4 e 5 do CIRE) de que a verificação dos factos-índice elencados nas diversas alíneas do nº 1 do art. 20º do CIRE, acarretam a impossibilidade de cumprimento. Por isso, o credor apenas tem de provar a o facto-índice, competindo depois ao devedor Requerido a prova de que o facto não se verifica ou que, não obstante ele, ainda tem condições para cumprir as suas obrigações.
b) Ao preenchimento do facto-índice da alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE não é necessária a existência de várias dívidas, podendo bastar uma. O que releva são as circunstâncias do caso em concreto e o relacionamento do montante da dívida com as condições económico-financeiras e patrimoniais do devedor.
c) Figura típica dos negócios cambiários, o aval é moldado pelas caraterísticas da literalidade, da autonomia e da abstração dos títulos de crédito; nessa medida, ele diferencia-se da fiança pelo seu caráter de obrigação autónoma, não lhe sendo reconhecida a caraterística da acessoriedade.
d) O PER é um mecanismo dirigido à recuperação da empresa e não uma forma de viabilizar o pagamento dos credores.
e) Estando a sociedade avalisada sujeita a um PER, nada impede que o credor acione o avalista, designadamente requerendo a sua insolvência.

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Guimarães, 21.04.2016


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(Relatora, Isabel Silva)

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(1ª Adjunto, Heitor Gonçalves)

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(2º Adjunto, Carlos Carvalho Guerra)
(1) Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2008, Quid Juris, pág. 135.
No mesmo sentido, Maria do Rosário Epifânio, “Manual do Direito da Insolvência”, 4ª edição, 2012, Almedina, pág. 43, bem como, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 4ª edição, 2012, Almedina, pág. 151
(2)Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, obra citada, pág. 139/149, nota (162).
(3 «O aval é um acto cambiário que origina uma obrigação autónoma independente, cujos limites são aferidos pelo próprio título.» - acórdão do STJ, de 22.02.2011 (processo 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1, Relator Sebastião Póvoas), disponível em http://www.gde.mj.pt/, sítio a considerar nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
(4)Sobre a distinção entre aval e fiança, vejam-se os acórdãos do STJ: acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ) nº 4/2013, de 11.12.2012, proferido no processo nº 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1, Relator Gabriel Catarino), de 03.03.1976 (processo 0011565, Relator Silva Cura), de 23.01.1986 (processo 072918, Relator Góis Pinheiro) e de 30.10.2014 (processo 16/13.7TBSCF-A.L1-A.S1, Relator Silva Gonçalves).
(5) Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, “Garantias de Cumprimento”, 5ª edição, 2006, Almedina, pág. 119.
(6) Acórdão do STJ, de 16.06.2015 (processo 1909/07.6TBVFR.P1.S1, Relator Maria Clara Sottomayor).
(7) In acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01.12.2015 (processo 808/14.0TBCVL-A.C1, Relator Manuel Capelo).
No mesmo sentido, do Supremo Tribunal de Justiça, o já referido AUJ nº 4/2013, o acórdão de 30.10.2014 (processo 16/13.7TBSCF-A.L1-A.S1, Relator Silva Gonçalves); deste Tribunal da Relação de Guimarães, acórdão de 10.12.2013 (processo 1083/13.9TBBRG.G1, Relator António Beça Pereira) e de 05.12.2013 (processo 2088/12.2TBFAF-B.G1, Relator Helena Melo); do Tribunal da Relação do Porto, acórdão de 25.11.2014 (processo 2055/13.9TBGDM-A.P1, Relator José Carvalho), de 12.09.2013 (processo 2021/11.9TBVCD-A.P1, Relatora Teresa Santos), de 07.10.2014 (processo 3803/13.2TBGDM-A.P1, Relator José Igreja de Matos) e, do Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 26.06.2012 (processo 597/11.0TBSSB-A.L1-1, Relator, Pedro Brighton).
(8)Disponível em http://www.iapmei.pt/iapmei-leg-03.php?lei=7980
(9)“Nótula sobre o art. 217º, nº 4, do CIRE (o direito de o credor agir contra o avalista no contexto de plano de insolvência)”, artigo publicado nos Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, revista Direito e Justiça, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, pág. 377 a 387.
(10)Obra citada, pág. 724.