Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
675/13.0TAPTL.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ELEMENTOS DO CRIME
APROPRIAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) No regime actualmente em vigor (Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal prescinde do elemento apropriação e basta-se com a não entrega à administração tributária de prestação tributária deduzida, nos termos da lei, ou de prestação tributária que tenha sido recebida e que haja a obrigação legal de liquidar.
II) No caso dos autos, qualquer que seja a perspectiva sobre esta matéria, sempre se mostram verificados os elementos constitutivos do referido ilícito, já que ficou provado que as contribuições descontadas e retidas dos salários dos trabalhadores, bem como dos seus membros estatutários, foram integradas no património da sociedade arguida, sendo afectadas ao pagamento das necessidades correntes desta, designadamente, ao pagamento de fornecedores e ao pagamento dos salários dos trabalhadores.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
1. No processo comum singular n.º 675/13.0TAPTL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo – Ponte de Lima – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, realizado o julgamento, foi proferida a sentença de fls. 259 a 279 com o dispositivo seguinte:
«Por tudo o exposto, o Tribunal decide:
Julgar a acusação pública procedente, por provada e, em consequência:
a) Condenar a arguida A....Lda., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, 12.º, n.º 3 e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 5 € (cinco euros), o que perfaz a quantia de 1.200 € (mil e duzentos euros);
b) Condenar o arguido José G. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto e punido pelos artigos 6.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), o que perfaz a quantia de 720 € (setecentos e vinte euros);
c) Condenar os arguidos nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 2 UC – artigos 513.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.
Após trânsito:
Remeta boletins ao Registo Criminal (artigo 6.º, alínea a) da Lei n.º 37/2015, de 05 de maio).
Vai proceder-se ao depósito da presente sentença na secretaria do Tribunal, conforme disposto no artigo 372.º n.º 5 do Código de Processo Penal.»
2. O arguido José G. recorreu da sentença, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O arguido foi condenado por um crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto e punido pelos artigos 6.º e 105.º, n.ºs1, 4 e 7 ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), o que perfaz a quantia de 720 € (setecentos e vinte euros).
2. A conduta típica do nº 1 do art. 105º do RGIT, reconduz-se agora à não entrega à administração tributária, no prazo legalmente previsto, de prestação tributária deduzida, o certo é que a “apropriação”, pese embora tenha sido eliminada do texto da lei, está nele implícita, pelo que continua a fazer parte do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal.
3. O arguido como sócio gerente da arguida, não entregou e não se apropriou das prestações tributárias de 9.265,68€, por dificuldades de tesouraria, para as afectar ao pagamento das necessidades correntes da arguida sociedade, designadamente, ao pagamento de fornecedores e ao pagamento dos salários dos trabalhadores.
4. Sendo o crime de abuso de confiança fiscal doloso, é necessário que o agente tenha representado a violação da relação de confiança que consiste no dever de entregar a prestação tributária deduzida e não a queira entregar, no caso concerto, o elemento subjectivo do crime não se verifica.
5. A omissão do comportamento devido não chega para definir a ilicitude sendo necessário o aspecto subjectivo, o juízo de reprovação e de culpa, pois é necessário ficar provado que existe um juízo de reprovação e de culpa sobre o concreto comportamento adoptado pelo arguido, o que entendemos não ter sucedido.
6. Não ficou provado o dolo do arguido, que aliás não existiu, pois este não criou voluntariamente a situação de não entrega das prestações tributárias, mas sim o fizeram as condições de mercado, que ao provocarem quebra nos proventos da sociedade arguida, aquele teve a necessidade de afectar os recursos para a sobrevivência da empresa e postos de trabalho, criando-se um verdadeiro direito de necessidade, que ficou provada em sentença.
7. Nos termos do disposto nº 1 do art. 36º do C. Penal “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos … satisfazer o dever … de valor igual ou superior ao dever … que sacrificar”, o que é reiterado pelo Prof. Taipa de Carvalho “… não pode, sem mais, negar-se a existência de um verdadeiro conflito de deveres, e eventual exclusão da ilicitude penal, na hipótese em que o patrão, na impossibilidade de pagar os salários e os impostos, cumpre o dever jurídico-laboral de detrimento do dever jurídico-penal fiscal”, Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, parte Geral, Volume II, Publicações Universidade Católica, 2004, pag. 222.
8. O arguido efectuou efectuou pagamentos dos impostos em dívida, praticamente metade do valor em dívida, aquando da suspensão provisório do processo, mas deixou de ter liquidez para conseguir liquidar os restantes pagamentos, priorizando o pagamento a funcionários e fornecedores.
9. Por força do preceituado nos arts. 34º, e 36º do CP e art. 105º do RGIT, os elementos subjectivos e objectivos, tipificados neste último preceito legal, não se encontram preenchidos, pelo que deverá ser revogada a Douta sentença, e por conseguinte, o arguido absolvido.
Mas, caso assim não se entenda
10. Sempre deverão os valores de multa pelos quais foi o arguido condenado serem reduzidos ao mínimo legal, atentas as séries dificuldades financeiras do mesmo, aliás constantes dos autos.
11. O arguido já vê descontados do seu salário, pouco acima do valor mínimo, montante para pagamento de processos executivos, ficando somente com o montante do salário mínimo nacional.
12. Face ao disposto no art. 15º do RGIT, somos do entendimento que ao arguido nunca poderá ser aplicado valor de multa diária no valor máximo de 3€, e nunca de 6€ conforme considerou o tribunal a quo.
13. Para além disso, atenta a muito reduzida ilicitude, a existir, nunca deverá o arguido ser condenado em mais de 50 dias de multa, o que desde já se requer.

Nestes termos e demais de Direito aplicáveis deverá ser dado provimento ao presente recurso e por via dele ser:
A. O arguido absolvido,
a. Ou caso assim não se entenda:
B. Reduzido o montante de multa aplicada ao arguido, ao valor máximo de 3€ diários;
C. Reduzido o número de dias de multa aplicados ao arguido, nunca superior a 50 dias.
O arguido requereu a concessão de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
TERMOS EM QUE, E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE Vª EXC.ª DOUTAMENTE SUPRIRÃO, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser o arguido absolvido.
FAZENDO-SE A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!!!»
3. O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O bem jurídico protegido pelo crime de abuso de confiança fiscal é a verdade na situação fiscal do contribuinte ligado à integridade do património fiscal do Estado.
2. O novo tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal/contra a Segurança Social, aprovado pela lei 5/2001, de 05/06, não contém na sua formulação literal a exigência da “apropriação”, ao contrário do que sucedia com o artigo 24º do RJIFNA.
3. Em consequência da referida alteração legislativa, vinha existindo discussão ao nível jurisprudencial respeitante à questão de saber se, ainda que não literalmente exigida, se a apropriação continua a fazer parte do tipo objetivo do ilícito em apreço.
4. No sentido positivo, veja-se o Acórdão do STJ, de 23-04-2003, in www.dgsi.pt e, em sentido negativo, o Acórdão do TRC, de 23-04-2003, in CJ, Tomo II, 2003.
5. A apropriação consiste na não entrega da prestação devida à Segurança Social com quem se estabelece, nos termos legais, uma relação de confiança.
6. O crime em apreço consuma-se com a não entrega, total ou parcial, das prestações devidas à segurança social, nos 90 dias seguintes ao terminus do prazo legalmente estabelecido para o efeito.
7. Trata-se de um crime omissivo puro, que se consuma com a não entrega da prestação devida. Cfr. Acórdão do TRC, de 11-03-2009, Rel. Ribeiro Martins, in www.dgsi.pt.
8. A apropriação não tem de ser reconduzida ao gasto ou consumo em proveito próprio ou alheio, podendo traduzir-se na mera fruição ou na disposição “ut dominus”.
9. Por outro lado, a motivação ou finalidade do agente e a consequente afectação que fez das quantias de que se apropriou, são irrelevantes para este efeito.
10. Perante os factos dados como provados, o recorrente reteve e não entregou à Segurança Social a importância global de 9265,68€, que havia sido previamente descontada, ao longo do referido período, para tal efeito, às remunerações dos respectivos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais, subsumindo os mesmos ao preceituado no artigo 107º, nº1 do RGIT, pelo que se mostram preenchidos os elementos objectivos e também o elemento subjectivo do tipo- o dolo, uma vez que o arguido sabia que a importância acima referida devia ser entregue à Segurança Social, por ter sido descontada para tal efeito, e, não obstante, não o fez, dando-lhe outro destino, assim se apropriando das mesmas.
11. As causas de justificação são normas que, em situações de conflitos de interesses jurídicos, protegem o que, na concreta situação, é considerado o interesse mais valioso.
12. Segundo o artigo 34º do Código Penal: “Não é lícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos: Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro; Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.”
13. O Direito de Necessidade assenta numa ideia de ponderação de interesses: entre o bem jurídico ou interesse ameaçado por um perigo e o bem jurídico ou interesse que se sacrifica para afastar esse perigo, em obediência ao Princípio do interesse preponderante (superioridade qualitativa).
14. De acordo com o estatuído no artigo 36º do Código Penal: “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.
15. A generalidade da Doutrina e da Jurisprudência têm concluindo de modo praticamente unânime pela improcedência das causas de exclusão de ilicitude do Direito de Necessidade e do Conflito de Deveres (e bem assim, da causa de justificação da culpa do Estado de Necessidade Desculpante), nas situações em que as entidades empregadoras, em situações de dificuldades financeiras, afetam as quantias devidas ao Estado ao pagamento das retribuições dos trabalhadores, em detrimento do cumprimento das obrigações fiscais e para-fiscais, por considerar que o interesse do Estado no cumprimento das obrigações fiscais e para-fiscais, porque defende a Supremacia do Interesse Público é hierarquicamente superior ao interesse dos arguidos no pagamento dos salários e na continuidade e rentabilidade das empresas.
16. Na realidade, enquanto a obrigação de entregar os impostos e deduções salariais ao Estado se trata de uma obrigação legal, cujo incumprimento se encontra penalmente tipificado, a obrigação de pagamento da retribuição aos trabalhadores ou pagamento aos demais credores de uma empresa têm natureza meramente contratual. Veja-se neste sentido: o Acórdão do TRP, de 09-10-2013, in www.dgsi.pt, Acórdão do TRG, de 04-02-2013, Rel. Maria Luísa Arantes, Acórdão TRC, de 28-03-2012, Rel. Paulo Guerra, ambos in www.dgsi.pt Acórdão do TRL, de 06-07-2006 e 17-01-2007, Acórdão do STJ, de 08-11-2001 e 17-01-2002, todos citados por Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos, in Regime das Infrações Tributárias, anotado, 4ª edição, 2010, pág. 725 a 744.
17. Por outro lado, o artigo 36º do Código Penal prevê apenas situações em que o agente se encontra perante o dilema do cumprimento de deveres alheios e não próprios, pelo que não se aplica a casos como o dos autos em que o interesse de dar continuidade à laboração da empresa tem sido visto como um interesse próprio. Cfr. Acórdão do STJ, de 13-12-2001, Rel. Conselheiro Pereira Madeira, sumário, in www.dgsi.pt.
18. O arguido não agiu a coberto de um Direito de Necessidade ou em Conflito de Deveres, pelo que a sua conduta se mantém ilícita e dolosa.
19. A sentença recorrida atendeu, na determinação da medida concreta da pena, de forma indubitável a todas as circunstâncias atenuantes da sua conduta criminosa, não só porque disso nele se faz expressa menção mas também porque só tal justificará a opção pela pena de multa.
20. Não poderia o Tribunal “A QUO” situar a pena próximo do limiar mínimo depois de ter entendido que “o arguido agiu com dolo necessário, que o grau de culpa é mediano, o prejuízo causado à Segurança Social e o modo de execução dos factos e os deveres violados”, aceitando-se a sua colocação cerca do terço da moldura abstrata da pena de multa, como estando em perfeita conformidade com o cotejo que teria de ser feito, como se fez, das circunstâncias atenuantes e agravantes que funcionam no caso em apreço.
21. Considerando as condições socioeconómicas do arguido, descritas na sentença, trata-se de uma taxa perfeitamente adequada.
22. Na realidade e como se refere na Douta Sentença, “A aplicação da pena de multa não pode consistir numa forma disfarçada de dispensa da pena, mas antes tem que constituir um verdadeiro e real sacrifício para o condenado…”
23. Em face de todo o explanado e considerando as condições socioeconómicas do arguido, mostra-se adequada a taxa diária de 6,00€.
24. Destarte, deve o recurso interposto pelo arguido ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
25. Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!»
4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal, sufragando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«Da acusação pública:
1. A sociedade “A....Lda”, que à data dos factos tinha sede em …, Arcozelo, Ponte de Lima, com o NIPC n.º …. e …, dedica-se ao “exercício da atividade hoteleira, nomeadamente exploração de hotéis, restaurantes e demais atividades” e obrigava se através de um gerente.
2. A gerência da sociedade está, desde 10 de novembro de 2011, a cargo do arguido José G..
3. No exercício de tais funções, era o arguido quem dirigia as actividades de gestão e administração da sociedade arguida, administrando-a e decidindo em seu nome e no seu interesse, competindo-lhe determinar a afetação dos meios financeiros ao cumprimento das respetivas obrigações correntes, designadamente proceder ao pagamento das remunerações aos empregados, pensionistas e aos gerentes da mesma – inclusive a ele próprio - , cabendo-lhe, igualmente, a tarefa de efetuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social, e o consequente preenchimento e entrega das respectivas Declarações de Remuneração, no Centro Regional da Segurança Social e do respetivo montante referente às deduções assim realizadas, nas retribuições salariais, até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que diziam respeito, no referido Centro Regional da Segurança Social.
4. Em fevereiro de 2012, o arguido, por conta e no interesse da pessoa coletiva, decidiu não entregar as quantias referentes às contribuições descontadas e retidas dos salários dos seus trabalhadores, bem como aos seus membros estatutários, as quais a sociedade arguida se encontrava legalmente obrigada a entregar à Segurança Social, integrando-as no património da sociedade arguida, por forma a que as mesmas não fossem recebidas pelo seu legal credor, a Segurança Social, prejudicando, assim, esta entidade.
5. Na execução do referido plano, o arguido e a sociedade arguida efetivamente pagaram aos seus trabalhadores e aos seus membros estatutários, as remunerações respeitantes ao período compreendido entre fevereiro de 2012 a dezembro de 2012, e, de igual modo, procederam ao desconto de 11% no vencimento dos seus trabalhadores, e de 9,3% no vencimento dos seus membros estatutários, nestes períodos, correspondente às respetivas contribuições para a Segurança Social, no montante global de € 9.265,68, conforme descrito no mapa constante de fls. 4, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
6. Pese embora tenha efetuado os descontos supra referidos, o arguido não procedeu à sua entrega na Segurança Social nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo, como a tanto estava obrigado, apoderando-se dessas quantias.
7. O arguido foi, posteriormente, notificado para no prazo de 30 dias, proceder à entrega da quantia em dívida, sob pena de não o fazendo seguir o respetivo procedimento criminal os seus legais termos, não tendo, nesse prazo, procedido a qualquer pagamento.
8. O arguido ao não efetuar os pagamentos acima discriminados à Segurança Social, fez seus 9.265,68€, utilizando tais quantias em seu proveito próprio, integrando-as no património da sociedade arguida e obtendo desse modo vantagens patrimoniais e benefícios que sabiam ser indevidos e proibidos por lei, uma vez que assumia, naquele período, a gerência da mesma sociedade e estava ciente da obrigação legal de entregar tais quantias.
9. Em todos aqueles períodos de tempo, sabia o arguido que o montante que gastou e utilizou em proveito da sociedade arguida pertencia ao Instituto de Segurança Social Portuguesa e a este devia ter chegado juntamente com as folhas das remunerações processadas.
10. Agiu sempre o arguido, de modo livre e consciente, por conta e no interesse da sociedade arguida, com o propósito deliberado de deduzir as mencionadas quantias e de as não entregar às instituições da Segurança Social, tendo feito reverter e despendido em benefício da sociedade arguida as quantias deduzidas, e, indiretamente, em seu proveito próprio, assim enriquecendo, desde logo, o seu património e o da sociedade, em igual montante e prejudicando o Instituto de Segurança Social, pelo menos, em valor equivalente.
11. Estava ciente, ademais, que as suas condutas os faziam incorrer em responsabilidade criminal, por proibidas e punidas por lei.
12. O arguido realizou três pagamentos da dívida respeitante ao período em causa, em 30-06-2014, 31-07-2014 e 30-09-2014, sendo que se encontram em dívida, na presente data, 5.294,67€ de cotizações, a que acrescem juros no montante de 847,23€.
Da audiência de discussão e julgamento:
13. No período compreendido entre fevereiro a dezembro de 2012 o arguido não procedeu às aludidas entregas, por ter priorizado o pagamento aos trabalhadores ao serviço da sociedade arguida.
14. Posto que o volume de negócios da sociedade arguida no referido período reduziu de forma tal que os rendimentos auferidos não eram suficientes para o pagamento de todas as obrigações vencidas.
15. A sociedade arguida não labora desde há cerca de 2 anos.
16. Não tem qualquer património.
17. O arguido exerce atualmente a profissão de empregado de mesa, auferindo a esse título o salário mínimo nacional.
18. Vive com um filho, maior, em casa deste.
19. O património que possuía, composto por um bem imóvel e um automóvel de marca BMW, foram vendidos em execução fiscal.
20. O arguido não dispõe de outros rendimentos para além dos advindos do exercício da sua profissão.
Dos autos:
21. O arguido foi condenado no processo 28/13.0IDVCT, do 2.º Juízo do extinto Tribunal Judicial de Ponte de Lima, por sentença transitada em julgado em 15/07/2014, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 8 €, pela prática, em 2012 de um crime de abuso de confiança fiscal.
22. A sociedade arguida foi condenada no processo 28/13.0IDVCT, do 2.º Juízo do extinto Tribunal Judicial de Ponte de Lima, por sentença transitada em julgado em 15/07/2014, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 12 €, pela prática, em 2012 de um crime de abuso de confiança fiscal.»

1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):
«Inexistem»

1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam e da prova por declarações do arguido analisada à luz das regras de experiência comum e da lógica, a coberto do princípio da livre apreciação da prova a que alude o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Concretizando:
No que à prova documental concerne valorou-se:
- O teor do mapa de cotizações de fls. 4, quanto à quantificação dos valores a que se alude em 5;
- A certidão permanente de fls. 5-14, quanto aos factos mencionados em 1 e 2;
- Os avisos de receção e notificações de fls. 15-18, 87 e 91, quanto ao facto vertido em 7;
- As consultas de fls. 19-35, quanto aos factos mencionados em 5;
- As declarações e recibos de fls. 55-64, quanto aos factos aludidos em 5;
- O ofício da segurança social de fls. 167 e mapa anexo de fls. 168, quanto aos pagamentos vertidos em 12;
- Os certificados de registo criminal de fls. 245-248 quanto aos antecedentes criminais aludidos em 21 e 22.
No que à prova por declarações do arguido concerne foram as mesmas integralmente valoradas, não vislumbrando o Tribunal qualquer razão para colocar em crise a versão por ele narrada, posto que se nos afiguraram sinceras, credíveis e com apoio na demais prova documental a que se fez referência. Nas suas declarações confessórias assentou a prova da factualidade típica nos seus elementos objetivos e subjetivos, assumindo o arguido a responsabilidade pela decisão de não entrega nas instituições de segurança social das quantias retidas aquando do pagamento dos salários de trabalhadores e membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida, esclarecendo a motivação de uma tal decisão, a evolução da vida societária que a ela conduziu, todo o enquadramento passado e expectativas futuras e, bem assim, os esforços encetados no sentido de solver a dívida, que resultaram parcialmente infrutíferos. Das declarações que prestou resultou evidente que a não entrega das cotizações devidas decorreu das dificuldades de tesouraria que a sociedade arguida atravessava, integrada num contexto de ampla crise que grassou o tecido empresarial português e o setor da restauração em particular. Neste contexto, o arguido estabeleceu prioridades, elegendo na afetação dos recursos de que dispunha o pagamento dos salários dos seus trabalhadores, em detrimento do cumprimento das suas obrigações para com a segurança social e com outros credores sociais.
A sua postura contida, humilde e a emoção que deixou fluir no decurso da audiência, imprimiram ao seu discurso uma genuinidade a que o Tribunal não foi indiferente. Nas declarações por ele prestadas assentou ainda a prova das condições pessoais, profissionais e económicas carreadas à factualidade assente, as quais também neste particular se nos afiguraram verosímeis e, por isso, dignas de crédito.»

*
2. Apreciando
2.1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal( - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso( - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.).
Atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:
- preenchimento do tipo do crime de abuso de confiança contra a segurança social;
- causas de exclusão da ilicitude;
- medida da pena;

2.2. Do preenchimento do tipo do crime de abuso de confiança contra a segurança social
O recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto e punido pelos artigos 6.º e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 ex vi do artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/06, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros).
Sustenta o recorrente que, como sócio gerente da arguida, não entregou e não se apropriou das prestações tributárias de 9.265,68€, por dificuldades de tesouraria, para as afectar ao pagamento das necessidades correntes da arguida sociedade, designadamente, ao pagamento de fornecedores e ao pagamento dos salários dos trabalhadores, e, portanto, não existe crime porque a “apropriação”, pese embora tenha sido eliminada do texto da lei, está nele implícita, pelo que continua a fazer parte do tipo legal de crime.
Como é sabido, diversamente do disposto no artigo 24.º, n.º 1 do RJIFNA, na versão introduzida pelo Dec.-Lei n.º 394/93, quer o artigo 105.º, quer o artigo 107.º, do RGIT não fazem referência expressa à apropriação total ou parcial das quantias deduzidas.
Alguma jurisprudência, na sequência do Acórdão do STJ de 24/3/2003, vem entendendo que muito embora o RGIT não faça expressa referência à apropriação, ela está todavia contida, pelo menos de forma implícita, no espírito do texto normativo, sendo uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias( - Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano XVIII, Tomo I, pág. 234.).
Refere o citado aresto que «[m]uito embora no actual RGIT (art. 105.º) – e ao contrário do que sucedia com o anterior RJIFNA (art. 24.º) – não se faça expressa referência à apropriação, todavia, ela está contida, pelo menos de forma implícita, no espírito do texto normativo, sendo ela uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, não se podendo dizer que a apropriação de que antes falava o legislador visava tão só o enriquecimento do património pessoal do agente e já não o desvio das prestações para fins de gestão da empresa (pagamento a fornecedores ou empregados), pois a lei não faz essa distinção, além de que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado».
E conclui que «não parece que entre os dois normativos haja essa diferença substantiva (…) pois as diferenças são apenas literais que não de fundo, tudo não passando de uma mera diferença de redacção, sem qualquer significado essencial».
A nosso ver, a alteração legislativa não é meramente literal, de forma, mas antes de substância, afigurando-se-nos que a conduta incriminada consiste na mera não entrega à administração fiscal, dentro de determinado prazo, das quantias pecuniárias en-volvidas.
Conforme já se sublinhou no Acórdão da Relação do Porto de 17/1/2007, «[c]om a entrada em vigor da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou um novo regime geral para as infracções tributárias (RGIT), o crime de abuso de confiança contra a segurança social foi configurado de forma distinta.
No regime actualmente em vigor, o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal prescinde do elemento apropriação e basta-se com a não entrega à administração tributária de prestação tributária deduzida, nos termos da lei, ou de prestação tributária que tenha sido recebida e que haja a obrigação legal de liquidar.
Deste modo, o regime actual conformou o tipo de abuso de confiança fiscal em termos mais amplos porque menos exigentes.
Basta-se com a mera não entrega dos montantes deduzidos. Não requer que se verifique a apropriação desses montantes.
A apropriação e a mera não entrega são conceitos perfeitamente distintos e esta apenas poderá constituir uma presunção do intuito apropriativo. A diferente caracterização do tipo legal de abuso de confiança fiscal (…) corresponde a diversas perspectivas do legislador e estamos em crer que a consagração da forma nuclear da não entrega decorre das dificuldades suscitadas pela prova da efectiva apropriação em termos de ilícito fiscal.»( - Processo n.º 0642766, in www.dgsi.pt/jtrp. ).
Na verdade, esclareceu o Prof. Germano Marques da Silva que a alteração foi propositada porquanto «as opiniões dominantes nos trabalhos preparatórios foram no sentido de que importava clarificar a norma relativamente ao elemento apropriativo, tendo-se considerado que quem deduziu e não entregou se apropriou»( - Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias, in Direito e Justiça, Volume XV, 2001, tomo 2, páginas 67 e 68.).
No caso dos autos, qualquer que seja a perspectiva a adoptar, sempre se mostrariam verificados os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, já que ficou provado que as contribuições descontadas e retidas dos salários dos trabalhadores, bem como dos seus membros estatutários, foram integradas no património da sociedade arguida, sendo afectas ao pagamento das necessidades correntes desta, designadamente, ao pagamento de fornecedores e ao pagamento dos salários dos trabalhadores.
A apropriação a que se vem aludindo não tem de ser material no sentido de separar física ou materialmente as prestações tributárias do património líquido do devedor tributário no momento em que terminar o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários, podendo ser – como quase sempre é – apenas contabilística e verifica-se com a não entrega das contribuições à segurança social e respectiva afectação a finalidades diferentes por parte da entidade empregadora( - Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 12/03/2003, Proc.º 0210289, in www.dgsi.pt. ).
Como resulta dos factos provados, o arguido, na qualidade de gerente da sociedade arguida, pagou os salários de trabalhadores e membros estatutários, relativos aos meses de Fevereiro a Dezembro de 2012 e fez as deduções dos montantes por aqueles devidos à segurança social no montante global de € 9.265,68, valor que não entregou no prazo assinalado na lei, nem depois. Está, pois, preenchido o tipo objectivo do crime em questão.
Por outro lado, estando provado que o arguido agiu voluntariamente, optando por usar os valores deduzidos em proveito da sociedade, sabendo que a vantagem assim obtida era indevida e que prejudicava a segurança social, a quem aqueles valores pertenciam, e sabendo também que a sua conduta era proibida por lei [pontos 9 a 11 dos factos provados, não impugnados pelo recorrente nos termos do artigo 412.º, n.º 3 do CPP], dúvidas não restam do preenchimento do tipo subjectivo do mesmo crime.
Por conseguinte, uma vez que os factos provados preenchem o tipo objec-tivo e subjectivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social, já analisado na sentença recorrida, não merece censura a condenação do recorrente.
Improcede, portanto, esta questão.

2.3. Das causas de exclusão da ilicitude
Sustenta o recorrente que não criou voluntariamente a situação de não entrega das prestações tributárias, mas sim o fizeram as condições de mercado, que ao provocarem quebra nos proventos da sociedade arguida, aquele teve a necessidade de afectar os recursos para a sobrevivência da empresa e postos de trabalho, identificando, como causas de justificação, o direito de necessidade e o conflito de deveres.
A questão não é nova e vem sendo, desde há muito, uniformemente decidida pela jurisprudência no sentido de não se verificarem estas causas de exclusão da ilicitude daquela conduta.
A consciência colectiva adquiriu o sentimento de que o não pagamento de impostos é ofensivo da igualdade tributária dos cidadãos, da proporcionalidade contributiva, inviabilizando a fuga aos impostos a realização das finalidades do Estado, fazendo-as recair agravadamente sobre outros, inscrevendo-se o direito penal fiscal num movimento de eticização, obediente aos princípios da legalidade, igualdade e justiça social com apoio nos artigos 101.º a 104.º da Constituição da República Portuguesa.
O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza; a tributação do património pessoal ou real deve concorrer para a igualdade entre os cidadãos (artigos 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa).
Nas outras entidades públicas, referidas no artigo 103.º, n.º 1 da CRP, incluem-se as instituições de segurança social cujas receitas são, em grande parte, constituídas pelas contribuições obrigatórias de trabalhadores e entidades patronais.
O bem jurídico tutelado pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social é precisamente o património das respectivas instituições, punindo a violação da relação fiduciária pela omissão de entrega das quantias deduzidas.
Trata-se de um crime específico, de entidades empregadoras, que consiste na omissão dolosa de entrega, total ou parcial, às instituições de segurança social, das im-portâncias deduzidas às remunerações de trabalhadores e de membros de órgãos sociais e por estes legalmente devidas.
A circunstância de as dificuldades de tesouraria da sociedade arguida terem levado o arguido a hierarquizar os pagamentos, em ordem a manter a empresa em actividade não justifica a conduta, em sede de colisão de deveres.
Esta causa de exclusão da ilicitude, prevista no artigo 36.º do Código Penal, pressupõe a existência de distintos deveres de acção dos quais apenas um pode ser satisfeito pelo agente, não sendo ilícito o facto quando o dever cumprido tiver valor igual ou superior, feita a ponderação global e concreta dos interesses conflituantes, ao dever sacrificado( - Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, pág. 466 e segs.).
O dever de entregar as deduções feitas e legalmente devidas à segurança social resulta da lei e corresponde a um interesse público, sendo, por isso, superior ao interesse em manter a empresa em funcionamento – interesse próprio da entidade empregadora – e ao dever de pagar salários, que radica no contrato, e é secundário relativamente ao interesse daquela entidade.
Como se sublinha em aresto do Supremo Tribunal de Justiça, nada permite concluir que o dever de manter a empresa funcionar, nomeadamente através do pagamento dos salários aos seus trabalhadores, seja superior ao de cumprir as obrigações fiscais, sendo certo que este último dever “é uma obrigação legal e assim superior ao dever funcional de manter a empresa com os pagamentos em dia”( - Acórdão do STJ de 15/1/1997, in CJ, ACSTJ, Ano V, Tomo I, pág. 190.).
Aliás, não se verifica qualquer conflito de deveres juridicamente relevante já que estão em confronto interesses próprios (que emergem da necessidade de manutenção do negócio) e interesses alheios (a obrigação de entregar ao Estado as quantias que lhe pertencem)( - Cfr. Acórdão do STJ de 13/12/2001, Proc.º 01P2448, in www.dgsi.pt/jstj; Acórdão da Relação de Lisboa de 17/01/2007, Proc.º 9326/06-3ª, in www.pgdlisboa.pt. ).
Não ocorre, assim, uma situação de situação de conflito de deveres, em que a concreta opção do arguido tenha justificado o facto, nos termos do artigo 36.º, n.º 1 do Código Penal.
O artigo 34.º do Código Penal também invocado pelo recorrente versa sobre o direito de necessidade e representa uma autonomização do direito de necessidade no caso de o interesse protegido ser sensivelmente superior ao interesse justificado – alínea b).
Como já ficou dito, a obrigação de entregar as prestações referentes à segurança social é uma obrigação legal, cuja violação, por estar em causa um dos mais relevantes interesses do Estado se encontra jurídico-penalmente protegida, enquanto a obrigação de pagar os salários aos trabalhadores é de natureza meramente contratual.
Assim, é manifesto que, na hierarquia de valores em causa, o interesse do Estado está a um nível superior ao interesse privado do arguido em pagar os salários e manter a empresa em funcionamento.
Não se poderá, pois, considerar que o comportamento do arguido, optando por, em vez de entregar as quantias em causa à entidade pública a quem eram devidas, as utilizar no pagamento de salários, se traduziu em salvaguardar um interesse superior.
Não se verifica, portanto, a causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 34.º do Código Penal.
Improcede, portanto, esta questão.

2.4 Da medida da pena
Alega o recorrente que a pena de multa é elevada, devendo, atenta a muito reduzida ilicitude do facto, ser reduzido para 50 o número de dias de multa e fixado o seu quantitativo diário no valor máximo de 3 € porque já vê descontado do seu salário, pouco acima do valor mínimo, montante para pagamento de processos executivos, ficando somente com o montante do salário mínimo nacional.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1, ambos do RGIT, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), num total de 720 € (setecentos e vinte euros).
A escolha e a determinação da medida da pena envolvem diversos tipos de operações.
Na parte que agora importa, o julgador, perante um tipo legal que admite, em alternativa, a aplicação das penas principais de prisão ou de multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa de liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficientes as fina-lidades da punição.
Tais finalidades, nos termos do artigo 40.º do mesmo diploma, recondu-zem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na socie-dade (prevenção especial).
Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina, em seguida, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
Assim, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, o tribunal deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua ade-quação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hi-pótese inversa.
O artigo 70.º do Código Penal opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa, sendo o único critério a atender o da prevenção.
No caso em apreço, o crime de abuso de confiança contra a segurança social, por cuja prática o arguido foi condenado, é punido com pena de prisão de 1 mês até 3 anos ou multa de 10 a 360 dias (artigos 107.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1 do RGIT e 41.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1 do Código Penal), tendo o tribunal a quo optado, e bem, por esta última.
Atentemos, agora, na medida concreta da pena que vem fixada em 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), num total de € 720 (setecentos e vinte euros).
A determinação da medida concreta da pena é feita em função das neces-sidades de prevenção e da culpa do agente (artigo 40.º, nºs 1 e 2 do Código Penal), reflec-tindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.
A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração –, temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapas-sável da pena.
Para tanto, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sen-do típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal).
Na sentença recorrida, a Mma. Juíza considerou médio o grau de culpa do arguido, os motivos ou fins subjacentes à prática dos factos, os deveres violados, o modo de execução dos factos, o prejuízo causado à segurança social, a inexistência de antecedentes criminais à data da prática dos factos, a integração familiar e profissional do arguido, a confissão e o seu posicionamento crítico demonstrado quanto ao respectivo desvalor.
Em face disto, tudo ponderado, fixou uma pena de 120 dias de multa.
Considerando os apontados critérios há que considerar, desde logo, o grau médio de ilicitude emergente dos factos dentro do quadro do ilícito em apreço, a significativa gravidade das suas consequências, pois as contribuições não entregues nos Serviços da Segurança Social ascenderam ao valor de € 9.265,68, tendo o arguido, posteriormente, efectuado três pagamentos, encontrado-se em dívida o montante de € 5.294,67, a que acrescem juros no montante de € 847,23, as elevadas necessidades de prevenção geral dada a frequência com que vem sendo praticado este tipo de ilícito, o médio grau de culpa na modalidade de dolo necessário e as necessidades de prevenção especial que, in casu, não se afiguram particularmente significativas, já que o arguido confessou os factos, não têm antecedentes criminais reportados à data dos factos e encontra-se inserido familiar e profissionalmente.
Sobrepondo-se, de algum modo, as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, e sendo significativas as exigências de prevenção geral, entendemos que a pena de 120 dias de multa aplicada ao arguido, porque situada ligeiramente acima do primeiro terço da moldura penal abstracta, não merece censura por assegurar adequada e suficientemente, atentos os critérios enunciados, as finalidades da punição.
No que diz respeito ao seu quantitativo diário, alega o recorrente que já vê descontado do seu salário, pouco acima do valor mínimo, montante para pagamento de processos executivos, ficando somente com o montante do salário mínimo nacional.
A este respeito importa salientar que, não tendo o recorrente impugnado a decisão proferida sobre a matéria de facto e não se evidenciando na sentença recorrida a existência de quaisquer dos vícios da decisão previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a matéria de facto provada tem-se por definitivamente assente nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.
Assim, a factualidade provada a ter em conta é apenas a que como tal foi fixada na sentença, e não factos novos, como é o caso do alegado desconto efectuado sobre o salário do recorrente para pagamento de processos executivos, sendo certo que ficou provado que o recorrente não dispõe de outros rendimentos para além dos advindos do exercício da sua profissão e que exerce atualmente a profissão de empregado de mesa, auferindo, a este título, apenas o salário mínimo nacional, e não um valor um pouco acima do salário mínimo, como alega o recorrente.
Nos termos do artigo 15.º, n.º 1 do RGIT, a cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 1 e € 500, tratando-se de pessoas singulares, e entre € 5 e € 5000, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas
O critério de determinação do quantitativo diário da pena de multa aplicável aos crimes fiscais encontra-se previsto no artigo 15.º, n.º 1 do RGIT e corresponde ao critério geral previsto no artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal.
Assim, o quantitativo diário da pena de multa, independentemente de o arguido ser pessoa singular ou pessoa colectiva, é fixado em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.
A este respeito importa ter em conta que a multa é uma pena pelo que o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um real sacrifício para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar( - Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 6/3/2002, in www.dgsi.pt/jtrp. ).
Como salienta Taipa de Carvalho «a multa enquanto sanção penal, não pode deixar de ter um efeito preventivo e, portanto, não pode deixar de ter uma natureza de pena ou sofrimento, isto é e por outras palavras, não pode o condenado na multa deixar de a “sentir na pele”»( - As Penas no Direito Português após a Revisão de 1995, in Jornadas de Direito Criminal-Revisão do Código Penal, edição do Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, vol. II, pág. 24; No mesmo sentido, Acórdão do STJ de 3/6/2004, in www.dgsi.pt/jstj.).
Na aferição do quantitativo diário o julgador deve não só ter em conta os rendimentos mensais do arguido, sejam próprios ou do que o mesmo beneficie, mas toda a situação económica e financeira de que o mesmo disponha, designadamente o património que se lhe apresente disponível e os seus encargos.
Assim, pode servir como factor de ponderação o facto de o arguido viver em casa própria, assim como se deverá fazer uma consideração diferenciada dos encargos, distinguindo aqueles que revelam custos indispensáveis para a sustentação do condenado e dos seus familiares dependentes, os quais devem ser deduzidos no rendimento, daqueles que revelam alguma prodigalidade ou luxúria e que não devem beneficiar da mesma ponderação dedutiva, antes pelo contrário, o que tudo aconselha a que os quantitativos mínimos sejam reservados para aquelas pessoas que vivem abaixo ou no limiar da subsistência, escalonando-se a partir daí todos os demais.
No caso concreto, considerando que o arguido exerce atualmente a profissão de empregado de mesa, auferindo a esse título o salário mínimo nacional, vive com um filho maior, em casa deste, o património que possuía foi vendido em execução fiscal e não dispõe de outros rendimentos, para além dos advindos do exercício da sua profissão, entendemos que não se justifica qualquer alteração do quantitativo diário da multa fixado pelo tribunal a quo.
Não merece, pois, censura o montante diário da multa aplicada ao arguido que, por isso, deve ser mantido.
Improcede, portanto, também esta questão.
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido José G. e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (artigos 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este diploma).
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 10 de Outubro de 2016