Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1790/22.5T8BRG.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO DE PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I A mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem, e esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.
II Para o computo da indemnização por não uso, deve recorrer-se à equidade, na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo –artº. 566º, nº. 3, do C.C..
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I   RELATÓRIO.

A A. “B..., Lda.”, veio intentar ação contra a R. “Companhia de Seguros A..., S.A.”, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia total de € 6.250,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto alega que é uma sociedade comercial por quotas que se dedica, com intuito lucrativo, à atividade comercial de Transporte nacional e internacional de mercadorias e aluguer de veículos ligeiros e pesados de mercadorias sem condutor, e que, no exercício da sua atividade, e por causa dela, em 2017, adquiriu seguinte viatura em estado novo: Reboque de matrícula L-......, marca ..., modelo ..., de 36 toneladas; a viatura foi adquirida para execução de transportes (nacionais e internacionais.
Sucede que no dia 23.02.2021, cerca das 14 horas, a viatura em causa foi interveniente num acidente de viação quando circulava em Itália, na Estrada ..., .... Nesse acidente interveio, para além da viatura da A., o veículo pesado (camião trator) de marca ..., matrícula nº. ....LBD, o qual tinha à data do acidente um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel válido celebrado com a empresa A..., SA, a qual designou a RÉ como seu representante para sinistros em Portugal. O acidente em causa, imputável ao condutor do ..., provocou danos na traseira da viatura da A., os quais necessitaram de ser reparados, tendo o montante dos mesmos, incluindo mão de obra e materiais aplicados, totalizado a quantia de € 6.063,03, valor de que foi ressarcida (seguro de danos próprios), inclusive tendo a R. assumindo a responsabilidade do seu segurado pelo acidente, e já ressarciu a A. do valor de € 420,00 de franquia do seu seguro.
Sucede que por causa do acidente, e da necessidade de reparação da mesma, a viatura esteve impossibilitada de circular e, consequentemente, ser utilizada para os fins visados com a sua compra (transporte de mercadorias) desde o dia do acidente (23.02.2021) até ao dia em que a reparação ficou concluída e a viatura foi entregue à A. (20.03.2021), correspondendo a 25 dias de paralisação (de 23.02 a 20.03 de 2021); nem a R., nem a companha de seguros A..., SA colocaram à disposição da AUTORA uma viatura de substituição reboque acidentado, razão pela qual, e fruto da privação da viatura, a AUTORA foi obrigada a alterar a sua metodologia e organização de trabalho e serviços já estabelecidos, pois deixou de poder contar com um reboque para efetuar serviços de transporte, não possuindo veículos livres que o pudessem substituir imediatamente.
Em 2021, o custo de aluguer de um reboque igual ao seu rondaria o montante diário de € 300,00, acrescido de IVA à taxa legal. Com a privação de uso da viatura acidentada A., esta viu a sua faturação ser efetuada negativamente, com todos os prejuízos daí decorrentes, nomeadamente com a redução de receitas. Pois não só deixou de ter ganhos económico-financeiros com a utilização das viaturas, como teve que continuar a pagar os custos mensais fixos e obrigatórias decorrente da propriedade da viatura acidentada. Com a utilização da viatura acidentada, a sociedade obtinha um rendimento (faturação) mensal médio superior a EUR, 21.300,00. Ou seja, com a utilização do reboque acidentado, a sociedade conseguia (e consegue) obter uma receita (faturação) diária média superior a € 710,00, obtendo uma rentabilidade média (diferença entre ganhos e custos) superior a 35%, pelo que, com a privação de uso do reboque acidentado, aquela ficou privada da possibilidade de faturar o valor de € 17.750,00 (25 dias x EUR. 710,00), e de obter proveitos a rondar os € 250,00 diários.
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A R. apresentou contestação, invocando a exceção de incompetência territorial.
Isso posto, aceita a responsabilidade civil do condutor do veículo ...” pelos danos causados no acidente em causa, impugnando o mais alegado, desde logo por desconhecimento. Acrescenta que a A. acionou o seu seguro de danos próprios, articulando com a sua seguradora o processo de reparação do veículo, a que a R. e a sua representada foram (e são) alheios, tanto mais que a A. apenas interpelou a R. em 16-09-2021, cerca de 7 meses após o acidente e já após a reparação do semi-reboque em causa, nunca lhe tendo sido solicitada a disponibilização de um veículo de substituição. Sendo ainda certo, que jamais poderá a R. ser responsabilizada por um dano decorrente de uma reparação de um dano que não peritou e cuja reparação não ordenou, desconhecendo, inclusivamente, qual a data de entrada do veículo na oficina e o período de reparação dos danos decorrentes do acidente. Por outro lado, a R. tomou conhecimento deste sinistro por via de reclamação datada de 20-04-2021 pela F... - Companhia de Seguros, S.A., proteção jurídica da F... - Companhia de Seguros, S.A., a qual, para além de reclamar o pagamento da franquia a cargo do tomador do seguro, reclamou da R. o pagamento da indemnização por paralisação no valor global de € 674,30 (correspondente a 5 dias x 134,86/dia), pelo que qualquer pagamento que a congénere tenha feito à A. terá de ser considerado nos presentes autos, sob pena de existir um enriquecimento sem causa da A..
Conclui pela procedência da exceção e se assim não se entender pela improcedência da ação.
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A A. respondeu à matéria de exceção, pugnando pela improcedência da mesma e concluindo como na p.i..
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Julgada procedente a exceção e remetidos os autos ao Tribunal competente, foi proferido despacho dispensando a realização de audiência prévia, foi fixado o valor de € 6.250,00 à ação, foi proferido despacho saneador e dispensados quer a determinação do objeto do litígio, quer o elenco dos temas de prova.
Foi realizada audiência de julgamento e proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, decidiu condenar a R. a pagar à A. a quantia de seis mil duzentos e cinquenta euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data de citação até integral pagamento. Mais imputou as custas à R..

Inconformada, a R. apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1. Considerando o depoimento da testemunha AA, aos 10:01 minutos e o documento n.º ... junto com a petição inicial deve ser julgado provado que:
A reparação identificada em 14. teve uma duração de 5 dias úteis
2. Considerando o depoimento da testemunha BB, concretamente aos minutos 03:08, 03:42 e 04:05 deve ser julgado provado que:
A viatura em causa nos autos - reboque de matrícula L-...... – no seguimento do acidente de viação, retornou pelos seus próprios meios, a circular, desde Itália até à sede da Recorrida em Portugal
3. Considerando a prova produzida nos autos e a posição das partes, deve ser aditado à matéria de facto julgada como provada, em complemento ao julgado como provado no facto 16 e 26, que:
A A. escolheu acionar exclusivamente o seu seguro de danos próprios para a reparação do veículo, apenas tendo interpelado a R. em 16-09-2021, cerca de 7 meses após o acidente e já após a reparação do semi-reboque em causa
4. Quanto ao período a considerar para a privação do uso, sempre se dirá que atenta a matéria de facto cuja alteração se peticiona, o único período que é possível considerar como imputável à Recorrente corresponde ao período de reparação, uma vez que (i) no próprio dia do acidente de viação em causa nos autos o veículo circulou completando o seu trajeto até à sede da Autora (ii) desconhece-se a razão na delonga na reparação e (iii) à Recorrente o sinistro não foi participado, não tendo tido oportunidade para fornecer um veículo de substituição.
5. Uma vez que não foi julgada como provada matéria factual que permita aferir sobre a natureza dos danos e sua extensão, sempre se dirá que o recurso à equidade encontra-se vedado, devendo, em consequência, improceder o pedido apresentado nos presentes autos.
6. Ao decidir nos termos vertidos na sentença proferida, foi violado o disposto nos artigos 342.º, 563.º, 564.º, 566.º e 569.º do Código Civil, sendo certo que a correta subsunção dos supra referidos normativos legais implica que seja revogada a decisão vertida na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e a ação julgada improcedente”
Conclui por isso que deve o presente recurso de apelação ser admitido e, consequentemente, ser proferido acórdão que revogue a douta sentença em crise, absolvendo a Recorrente dos autos.
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A recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso de apelação.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.
  
Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, introduzindo as menções visadas pela recorrente.
-se sendo procedente a alteração, ou ainda que não seja, e na conjugação com a demais factualidade provada, deve ser alterada a decisão relativa ao montante indemnizatório.
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III   FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria (que se reproduz):

“3.1.- Factos provados com relevância para a decisão da causa:

1.- A AUTORA é uma sociedade comercial por quotas que se dedica, com intuito lucrativo, à atividade comercial de Transporte nacional e internacional de mercadorias e aluguer de veículos ligeiros e pesados de mercadorias sem condutor, conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2.- No exercício da sua atividade, e por causa dela, em 2017, adquiriu seguinte viatura em estado novo: Reboque de matrícula L-......, marca ..., modelo ..., de 36 toneladas, conforme documentos n.ºs ... a ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
3.- A viatura foi adquirida para execução de transportes (nacionais e internacionais), conforme documentos n.ºs ... a ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.- No dia 23.02.2021, cerca das 14 horas, a viatura em causa foi interveniente num acidente de viação quando circulava em Itália, na Estrada ..., ....
5.- Nesse acidente interveio, para além da viatura da autora, o veículo pesado (camião trator) de marca ..., matrícula n.º ....LBD, o qual tinha à data do acidente um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel válido celebrado com a empresa A..., SA, a qual designou a RÉ como seu representante para sinistros em Portugal, conforme documentos n.ºs ... e ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
6.- Nesse dia, hora e local, e quando circulavam ambas as viaturas na mesma estrada (AIO), e no mesmo sentido (direção a ...), a viatura de AUTORA, por força do abrandamento do trânsito à sua frente, abrandou a sua marcha, sendo que não o fez de uma forma brusca ou repentina, quando foi embatida na sua traseira pelo veículo identificado no artigo anterior, conforme documentos n.ºs ... e ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
7.- O condutor da viatura pesado (camião trator) de marca ..., matrícula nº ....LBD, não teve o cuidado de adaptar a velocidade da sua marcha às condições da estrada e do trânsito, conforme documentos n.ºs ... a ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos,
8.- … razão pela qua embateu na traseira do veículo da AUTORA e sem que o motorista da AUTORA pudesse fazer algo para evitar/impedir o acidente, conforme documentos n.ºs ... e ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
9.- O acidente em causa provocou danos na traseira da viatura da AUTORA (reboque de matrícula L-......), os quais necessitaram de ser reparados, tendo o montante dos mesmos, incluindo mão de obra e materiais aplicados, totalizado a quantia de EUR. 6.063,03, conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
10. - Tendo acionado o seu seguro de danos próprios, a companhia de seguros pagou EUR. 5.643,03, tendo a AUTORA ficado responsável pelo valor abrangido pela franquia do seu seguro (EUR. 420,00), valor que a mesma já liquidou à empresa responsável pela reparação da viatura, a sociedade F..., Lda., NiPC ne ... (fatura n...01, datada e vencida em 13.04.2021), conforme documentos n.ºs ... a ...0 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
11.- A viatura acidentada estava (e está) afeta à atividade comercial da empresa de transporte nacional e internacional de mercadorias, conforme documentos n.ºs ... a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
12.- Por causa do acidente, e da necessidade de reparação da mesma, a viatura esteve impossibilitada de circular e, consequentemente, ser utilizada para os fins visados com a sua compra (transporte de mercadorias) desde o dia do acidente (23.02.2021) até ao dia em que a reparação ficou concluída e a viatura foi entregue à AUTORA (20.03.2021), conforme documentos n.ºs ... a ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
13.- Ou seja, a viatura em causa (reboque de matrícula 1--202410) esteve temporariamente parada durante 25 dias (de 23.02 a 20.03 de 2021), conforme documentos n.ºs ... a ... juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
14.- Sendo que nem a RÉ, nem a companhia de seguros A..., SA colocaram à disposição da AUTORA uma viatura de substituição reboque acidentado,
15.- Razão pela qual, e fruto da privação da viatura, a AUTORA foi obrigada a alterar a sua metodologia e organização de trabalho e serviços já estabelecidos, pois deixou de poder contar com um reboque para efetuar serviços de transporte, não possuindo veículos livres que o pudessem substituir imediatamente.
16.- Em 2021, a viatura em causa estava segurada, pagando o valor anual de EUR, 260,82, bem como pagou o valor do IUC devido, conforme documento n.º ...2 junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
17.- Com a privação de uso da viatura acidentada AUTORA, esta viu a sua faturação ser efetuada negativamente, com todos os prejuízos daí decorrentes, nomeadamente com a redução de receitas, conforme documentos n.ºs ...3 a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
18.- Com a utilização da viatura acidentada, a sociedade obtinha um rendimento (faturação) mensal médio superior a EUR, 21.300,00, conforme documentos n.ºs ...3 a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
23.- Sendo que, entre os dias 12.01.2021 e 19.02.2021, esse rendimento totalizou o montante global de EUR. 29.672,03, conforme documentos n.ºs ...3 a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
24.- A denominada A..., S. A., aceitou a transferência da responsabilidade civil automóvel emergente da circulação do veículo pesado de espanhola ....LBD por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...78, válido e em vigor à data do acidente em causa nos autos.
25.- A R. é a representante da aludida seguradora espanhola em território português, nos termos definidos na lei europeia e portuguesa.
26.- A R. tomou conhecimento deste sinistro por via de reclamação datada de 20-04-2021 pela F... - Companhia de Seguros, S. A., proteção jurídica da F... - Companhia de Seguros, S. A., conforme documento n.º ... junto com a contestação, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
27.- Nessa missiva, a proteção jurídica da F... - Companhia de Seguros, S A, para além de reclamar o pagamento da franquia a cargo do tomador do seguro, reclamou da R. o pagamento da indemnização por paralisação no valor global de Eur. 674,30 (correspondente a 5 dias x 134,86/dia).
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3.2.- Factos não provados com relevância para a decisão da causa:

Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes.”
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IV   MÉRITO DO RECURSO.

- IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Cumpre começar por analisar se a recorrente cumpriu os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que faz da matéria de facto, nomeadamente se indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especifica na motivação os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indica na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressa na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156. 
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019, podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, excepto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme artº. 607º, nº. 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (artº. 640º, nº. 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), nº. 2, do artº. 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (-já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar á parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não se imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio informador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas pode abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que contem do corpo das alegações.
Porem outras limitações se apresentam nesta matéria e que deve ser aqui colocadas face às circunstâncias do caso.
A introdução de correções quando se reporta ao aditamento de matéria deve obedecer a um princípio de utilidade, mas também a impugnação propriamente dita de factos, na medida em que só importa considerar o que poder ser relevante segundo as soluções de direito com que o Tribunal se vai confrontar. Em sede recursiva pretende-se, através da modificação de decisão da matéria de facto, que seja reapreciada a pretensão do recorrente, aferindo da existência ou inexistência do direito reclamado, pelo que a reapreciação da matéria de facto e de todas as demais questões suscitadas, está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objecto processual delineado pela parte e assim já antes submetido à apreciação do tribunal recorrido, ou seja, terá de ter repercussão na aplicação do direito pelo tribunal de recurso. Por isso se vem dizendo que é no pressuposto do seu efeito útil que importa apreciar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto e proceder apenas às alterações que se impõem e que importam para a boa decisão da causa, ou seja, na medida em que tenha algum efeito sobre a decisão a proferir.
Conforme Ac. da Rel. do Porto de 23/04/2018 (relator Jorge Seabra), no contexto de cada decisão a proferir, em função do concreto objeto do processo delimitado pelas partes, do regime jurídico aplicável e da pertinente subsunção jurídica, se as questões suscitadas pelas partes não assumirem relevo para a decisão do litígio ou se estiverem prejudicadas pela solução de fundo dada a esse litígio, o tribunal, por razões de celeridade e de economia processual, ficará dispensado de delas conhecer mostrando-se, também por este motivo, desnecessária a reapreciação dos meios de prova indicados pelo recorrente.
Diz também o Ac. do STJ e 17-05-2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira) que relativamente ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o “…princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo - pelo juiz, pela secretaria e pelas partes - desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo. (…)
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela (s) parte (s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”
No mesmo sentido, podem ver-se os Acs. da Rel. de Guimarães de 10/09/2015 (relatora Manuela Fialho), de 2/05/2019 (relatora Maria Amália Santos); de 11/07/2017 e de 22/10/2020 (relatora Maria João Matos), além de outros; e da Rel. de Lisboa 17/4/2018 (relator Torres Vouga), e de 30-04-2019 (relator José Capacete).
Ainda citando, agora as palavras do Ac. desta Relação de 28/9/2018 (relator António Beça Pereira): “Como é sabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 640.º, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram "incorretamente julgados". Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa então concluir que, afinal, existe um direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a uma decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito"[1], de todo irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica[2], sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente e que, por isso mesmo, colide com os princípios da celeridade, da limitação dos atos e da economia processual[3] consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 130.º e 131.º.”
Sucede que, e aqui introduzimos outra limitação e reportamo-nos já à situação concreta e ao visado, a recorrente não alegou na sua peça qual o período necessário de reparação da viatura; apenas referiu o desconhecimento de tal período (tal como o que decorreu até ser dada ordem de reparação, ou seja, refere desconhecer a data de entrada na oficina). Como não suscitou qualquer conduta imputável à recorrida que tenha contribuído ou agravado os danos a ressarcir. Repara-se que estamos a tratar de um período de privação do uso de 25 dias!
Apesar da recorrente impugnar a matéria de facto por referência, neste assunto, aos pontos 12 e 13 dos factos provados, não diz qual seria a sua redação em concreto (e assim considerando não cumpriria um dos ónus impugnatórios elencados, o que conduziria à rejeição da apreciação), antes diz o que pretenderia introduzir. Cremos que efetivamente o que a recorrente pretende é dar outro contexto, pela introdução de novos elementos, aos factos, sendo ainda certo que se pretendesse impugnar os 12 e 13, e dar-lhe a “nova” redação proposta, tal não teria fundamento já que dúvidas não há de que a viatura esteve aquele período sem poder ser utilizada para a sua atividade, só tendo sido reparada no fim do mesmo, independentemente do número de dias úteis necessários para o efeito (cfr. o que diremos mais à frente, e que corresponde ao sentido do alegado e pretendido consignar) –dúvidas que a recorrente não lança e por isso não motiva propriamente qualquer erro de julgamento. Foi também aquela a interpretação da recorrida, conforme resulta das suas contra-alegações.
Assim sendo, relativamente à pretendida introdução de um facto que diga: “A reparação identificada em 14. teve uma duração de 5 dias úteis”, trata-se de matéria não alegada oportunamente (cfr. artº. 5º. nº. 1, C.P.C., que determina a alegação na contestação dos factos em que se baseiam as exceções), supostamente conducente à verificação de uma exceção/questão não levantada na contestação e por isso uma “questão nova” que não é de conhecimento oficioso.
É questão nova uma questão não sujeita à discussão do tribunal recorrido. Conforme é referido por António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª edição, pags. 107 a 110), o recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, em termos gerais, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Processo Civil”, 2ª edição, pág. 395), não pode deixar de se ter presente que tradicionalmente seguimos, em sede de recurso, no âmbito do processo civil, um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.
Assim sendo, traduzindo a sua apreciação a introdução de uma questão nova o que não é permitido a este Tribunal, por tudo se conclui pela inutilidade da introdução (e por isso apreciação/sustento) da factualidade em causa.
E daqui passamos para a questão seguinte, que se prende com a introdução de um outro ponto da matéria de facto: “A viatura em causa nos autos - reboque de matrícula L-...... – no seguimento do acidente de viação, retornou pelos seus próprios meios, a circular, desde Itália até à sede da Recorrida em Portugal”.
Idênticas considerações, em parte, se justificam. Para além da falta de alegação oportuna desta factualidade, e ainda que esta matéria pudesse ser vista como meramente instrumental para efeitos de concretização do valor indemnizatório a encontrar (cfr. artº. 5º, nº. 2, a), C.P.C.), é verdadeiramente inútil tal consideração uma vez que, em primeiro lugar, temos por assente (ponto 12) que “…a viatura esteve impossibilitada de circular e, consequentemente, ser utilizada para os fins visados com a sua compra (transporte de mercadorias) desde o dia do acidente (23.02.2021) até ao dia em que a reparação ficou concluída e a viatura foi entregue à AUTORA (20.03.2021)”, situação que, como vimos, a recorrente verdadeiramente “não contesta”, e por outo lado, conforme a própria recorrente reconhece e afirma nas suas alegações de recurso, “Mais resulta que o veículo tinha a capacidade para circular, porém, devido a ter os farolins traseiros danificados, a sua circulação acarretava uma contraordenação estradal.”; ora, não está em causa a possibilidade mecânica/física de circulação, mas a possibilidade legal e ao serviço da atividade da A.. Assim não sendo, não interessa como é que o veículo se deslocou ou foi deslocado de Itália para Portugal.
Inútil por isso a apreciação dessa matéria.
Assim sendo, em ambos os casos rejeita-se a impugnação da matéria de facto.
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Pretende também a recorrente introduzir nos factos provados um outro ponto, do seguinte teor: A A. escolheu acionar exclusivamente o seu seguro de danos próprios para a reparação do veículo, apenas tendo interpelado a R. em 16-09-2021, cerca de 7 meses após o acidente e já após a reparação do semi-reboque em causa.
Neste caso trata-se efetivamente de matéria que consta da contestação apresentada (artigos 20 e 22). E aceite/admitida pela A. (cfr. artigos 10 e 48 da p.i. e doc. ... que a acompanha).
Assim sendo, e sem necessidade de mais considerações, porque aceite por ambas as partes (cfr. artº. 607º, nº. 4, ex vi artº. 663º, nº. 2, e 662º, nº. 1, C.P.C.), adita-se tal item, excluída a expressão “cerca de 7 meses após o acidente” por redundante e conclusiva, bem como as restantes expressões conclusivas ou imprecisas passando a constar da matéria de facto: “28.- A A. acionou o seu seguro de danos próprios para a reparação do veículo conforme referido em 10, tendo interpelado a R. em 16-09-2021, após a reparação do semi-reboque em causa.”
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-DECISÃO DE DIREITO.

Estabilizada a matéria de facto, cabe verificar se deve operar alguma alteração na decisão proferida, nomeadamente por força da introdução daquele ponto.
Antes de nos atermos à questão da imputação e do valor indemnizatório, única suscitada no recurso, impõe-se porem, e porque se trata do enquadramento jurídico que também abarca o pressuposto da verificação do dano, determinar as normas aplicáveis.
Dúvidas não há que estamos perante um acidente de viação ocorrido em Itália, envolvendo um veículo pertença de uma empresa portuguesa.
O Tribunal recorrido aplicou o disposto no artº. 45º, nº. 1, do C.C. e concluiu ser aplicável ao caso a legislação italiana.
Porém há que atender ao REGULAMENTO (CE) nº. 864/2007 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), aplicável a partir de 11 de Janeiro de 2009, e por isso ao caso dos autos face á data da ocorrência do acidente (23/2/2021).
O regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável nos Estados-Membros, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia (de acordo com o artigo 249º do TCE, depois de aprovado o regulamento vigora diretamente no território dos Estados – entram em vigor no território comunitário e ficam de pleno direito, automaticamente, incorporados no ordenamento jurídico interno – e sem necessidade de um qualquer ato de receção ); as regras de direito comunitário primam sobre o direito interno - princípio este que foi desenvolvido em jurisprudência posterior do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, e que nos dispensamos de salientar por incontroverso, e é aplicável em Portugal.
De acordo com o artº. 4º, nº. 1, do Regulamento (CE) nº. 864/2007, sob a epígrafe de “Regra geral” e inserido no respetivo Capítulo II ( que trata da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco), que “ Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas desse facto “.
De acordo com o seu artº. 15º (Alcance da lei aplicável), a existência, natureza e avaliação dos danos ou da reparação exigida (…), inclui-se nas matérias abrangidas pelas obrigações extracontratuais para efeitos de determinação da lei aplicável.
Sobre o desenvolvimento da eleição da regra da lex loci damni, prevista no n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento, podemos ver os Acs. desta Relação de 29/10/2013 (relator António Santos), e de 3/11/2022 (relatora Maria da Conceição Bucho), ambos em www.dgsi.pt.
Do exposto não resultam dúvidas estar este caso abrangido pelas citadas disposições, tendo-se o dano aqui reclamado –dano da privação do uso- materializado em Portugal, e sendo aplicável ao caso a legislação portuguesa –artºs. 498º e segs. do C.C.. 
Esta concreta alteração jurídica (cfr. artº. 5º, nº. 3, C.P.C.) não terá como veremos efeitos práticos sobre a decisão, e por isso desnecessário seria cumprir-se o princípio do contraditório em ordem a evitar uma decisão surpresa (cfr. artº. 3º, nº. 3, C.P.C.).
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Não se questionando no recurso (nem nos autos) a verificação dos pressupostos do dever de indemnizar (artº. 483º do C.C.), apenas se insurge a recorrente relativamente ao facto de lhe ser assacada a obrigação indemnizatória relativamente ao prejuízo relativo à privação do uso do veículo por parte da recorrida, seja porque o período a atender não seria o atendido, quer porque não lhe foi dada oportunidade de facultar um veículo de substituição, quer porque não se mostraria correto o apelo ao critério da equidade.
Relativamente ao período a atender, face ao facto de termos mantido inalterada a matéria de facto, e na sequência do que já ficou dito quanto ao facto de se estar aqui a pretender introduzir uma matéria não debatida antes, nada há a alterar na consideração dos 25 dias. De facto, não sabemos sequer qual o período que foi necessário para a peritagem (e inclusive para a deslocação do veículo para Portugal), nem quais os trâmites que correram entre a A. e a sua seguradora (por danos próprios) que culminaram na ordem de reparação do veículo (e assunção da responsabilidade por parte da seguradora). Repete-se que estamos a falar de um curto período de tempo, em que não ressaltam quaisquer questões a apreciar.
Relativamente à questão do veículo de substituição, a questão não pode a nosso ver ser colocada da forma como o faz a recorrente.
O DL nº. 291/2007 de 21/8, nos artºs. 31º e segs., com destaque para o artº. 42º que trata da matéria do veículo de substituição que aqui nos interessa, rege sobre o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil, e nesse concreto capítulo em que trata da regularização de sinistros, aplica-se em fase extrajudicial. Na fase judicial, em matéria indemnizatória, vigoram as regras do C.C., artºs. 562º e segs..
Ora, em primeiro lugar, não consta que a R. ou a sua representada tenham aceite a responsabilidade pelos danos, pelo que a questão não se chega a colocar (-o artº. 42º, nº. 1, o que diz é que “Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente, nos termos previstos nos artigos anteriores.”).
Note-se que no âmbito do seguro facultativo (por danos próprios), que foi o que a A. acionou, à partida a indemnização pela privação do uso do veículo não estará coberta (a não ser que contratualmente esteja previsto, e nada nos autos indica que seja o caso, já que a seguradora da A. interpelou a R. para o pagamento desse item); de facto, entende-se que se trata nesse caso não da cobertura de uma “…obrigação de indemnizar em sentido próprio, isto é, de reparar um dano reconstituindo a situação que existiria se o mesmo não tivesse ocorrido (artigo 562º do Código Civil). O que existe é, tão só, uma obrigação de entrega de uma prestação em dinheiro, que “visa proporcionar ao credor o valor que as respetivas espécies possuam como tais”[1]. Ou seja, uma obrigação pecuniária (artigo 550º do Código Civil). O simples facto de estarmos perante um contrato de seguro em que, no ato da celebração, o valor dessa prestação ainda não se encontra concretamente determinado, não afeta aquela qualificação. Bem pelo contrário: faz parte da caracterização de tal prestação, pois que, nos termos do disposto no artigo 128º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro que já referenciámos, “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”. É, pois, inequívoco que estamos perante uma obrigação pecuniária e não diante de uma obrigação de indemnização.” –Ac. da Rel. do Porto de 23/6/2015 (relator João Diogo Rodrigues, www.dgsi.pt).
Voltando ao seguro obrigatório, aquele que vincula a aqui R. (em representação da congénere), caso a obrigação de apresentação de veículo de substituição em sede de resolução extrajudicial do litígio não tivesse sido cumprida, ou não o tivesse sido tempestivamente, sobreviriam os danos daí derivados e suscetíveis de indemnização.
Não é o caso aqui, em que nos situamos em sede judicial, e porque a interpelação da R. ocorreu em momento em que já não se colocava a questão, subsistem os danos/prejuízos (em termos que melhor esclarecemos mais à frente) decorrentes da falta do veículo na atividade da A..
Em termos práticos a situação da R. por não ter sido interpelada numa fase anterior, e não lhe ser dada a possibilidade de oferecer o dito veículo (caso aceitasse a responsabilidade), precisamente porque a A. obteve a satisfação inicial através da sua própria seguradora (danos próprios), não se pode ver como uma “diminuição” das possibilidades da R em satisfazer os seus deveres: apenas teremos de atender a que facultar o veículo ou pagar o valor correspondente à sua falta terá de ser (e será) algo equivalente. Note-se que é apenas isso que aqui está em causa, não estão a ser peticionados outros prejuízos, e, insiste-se, estamos a falar de um curto período de tempo que, se apelarmos ao princípio da boa fé, é mais pertinente fazê-lo em relação à postura da R., e não à conduta da A..
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Passamos agora então para a fixação do valor propriamente dito, e para a questão do apelo à equidade.
No caso dos autos, a A., tratando-se de uma empresa, situa a sua lesão no âmbito ou na esfera patrimonial. Refere-se às funcionalidades que o veículo tinha na orgânica da empresa e à necessidade de alteração da mesma face à falta do veículo naqueles 25 dias. Atinente a esta situação, resulta apurado que “17.- Com a privação de uso da viatura acidentada AUTORA, esta viu a sua faturação ser efetuada negativamente, com todos os prejuízos daí decorrentes, nomeadamente com a redução de receitas, conforme documentos n.ºs ...3 a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 18.- Com a utilização da viatura acidentada, a sociedade obtinha um rendimento (faturação) mensal médio superior a EUR, 21.300,00, conforme documentos n.ºs ...3 a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos. 23.- Sendo que, entre os dias 12.01.2021 e 19.02.2021, esse rendimento totalizou o montante global de EUR. 29.672,03, conforme documentos n.ºs ...3 a ...2 juntos com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.”
Em ordem a aferir da sua relevância, retomamos aqui, de acordo com a legislação e jurisprudência portuguesas como já esclarecemos, os princípios a atender.
E para esse efeito retomamos em concreto o Ac. proferido no processo nº. 2125/18.7T8VNF.G1, em 15/6/2021 (publicado em www.dgsi.pt, da mesma aqui relatora).
“António dos Santos Abrantes Geraldes na “Indemnização do Dano da Privação do Uso” aborda a questão, em particular decorrente de acidentes de viação, enunciando as diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais que sobre a temática têm sido consideradas, numa perspetiva de contributo para a discussão, mais do que numa tentativa de encontrar uma solução única, como o próprio afirma, face à falta de resposta clara do direito positivo (pags. 6 e 7).

E destaca as posições mais relevantes nestes termos:

1) A orientação que nega a autonomia do dano decorrente da privação do uso (integrando-o no âmbito dos danos de natureza não patrimonial – vd., v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2000, in BMJ 494.º, p. 396);
2) A orientação que reconhece a autonomia do dano da privação do uso, mas que exige a prova efetiva da existência de prejuízos de ordem patrimonial (vd., neste sentido, o Acórdão do STJ de 18.11.2008, Pº 08..., relator PEREIRA DA SILVA; o Acórdão do STJ de 16-03-2011, Pº 3922/07.2TBVCT.G1.S1, relator MOREIRA ALVES; o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 03-05-2011, Pº 2618/08....; o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2012, Processo 132/04...., relatora ANABELA CALAFATE; o Ac. do TRP de 25-02-2014, relator RUI MOREIRA; o Ac. do TRP de 19-12-2012, relator IGREJA MATOS; o Acórdão do STJ de 12-01-2012, relator FERNANDO BENTO; o Acórdão do STJ de 04-05-2010, relator SEBASTIÃO PÓVOAS; o Acórdão do TRC de 02-02-2010, relator GONÇALVES FERREIRA; o Acórdão do STJ de 19-11-2009, relator HÉLDER ROQUE; o Acórdão do TRC de 08-09-2009, relator ARTUR DIAS; e o Acórdão do STJ de 06-11-2008, relator SALVADOR DA COSTA);
3) A orientação que reconhece o direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem.
No Ac. da Rel. de Lisboa de 11/12/2019 sintetiza-se a posição do mesmo autor relativamente aos pontos que se podem ter por assentes (embora pensado no caso da paralisação de veículos, fruto de acidentes de viação), com recurso à obra “Temas da Responsabilidade Civil”, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso; Almedina, Coimbra, 2ª Ed., 2005, pags. 72-73; mas que consta também a pags. 53 e 54 da sua outra obra citada:
“a) Provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo, designadamente por causa de actividades que deixaram de ser exercidas, de receitas que deixaram de ser auferidas ou de despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os danos emergentes como ainda os lucros cessantes.
b) Tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva;
c) Mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado;
d) Em qualquer das situações, sem prejuízo do recurso à equidade ou mesmo à condenação genérica, a quantificação tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor ou a utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado ou aumento das despesas ou a redução das receitas;
e) Em todos os casos serão sempre ponderados os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso”.
E continua esse Acórdão, dizendo que “Efectivamente, não custa compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, que possa servir de base à determinação da indemnização.
Como propõe o referido Autor (ob. Cit., p. 57), nos casos em que a utilização de um veículo constitua um simples meio de transporte, para a efectivação de quaisquer deslocações, mesmo de lazer, não está afastada, à partida, a ressarcibilidade do dano emergente da privação do uso do veículo, havendo, quanto aos lucros cessantes que apurar se a paralisação determinou algum ou nenhum prejuízo, pela existência de alternativas menos onerosas ou com semelhante comodidade ou caso se demonstre que o veículo – danificado – não era habitualmente utilizado.
Com efeito, “(…) o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização” (Aut. Cit.; ob. Cit., pp. 57-58).
Em igual sentido, Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, p. 317) refere que “o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”.”
E cita jurisprudência em conformidade, designadamente os Acs. da Rel. de Lisboa de 20/12/2017, de 27/2/2014, o Ac. do STJ de 12-01-2010 (com apelo não só ao conteúdo do artº. 1305º do C.C., mas também ao artº. 62º da Constituição da República Portuguesa). E cita de seguida a jurisprudência que alinhou nesse sentido. De mencionar o Ac. desta Relação de 17/01/2013 e da Rel. do Porto de 26/9/2013 (www.dgsi.pt).

Quanto à nossa posição, e já citada a devida doutrina e jurisprudência, entendemos que a mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem.
Neste sentido se pronunciou mais recentemente o Ac. de 14/12/2016 (www.dgsi.pt) que diz que que o Supremo Tribunalvem decidindo, maioritariamente, no domínio da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2007 (proc. nº 07B1849), de 12 de Janeiro de 2010 (proc. nº 314/06.6TBCSC.S1), de 16 de Março de 2011 (proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1) e de 10 de Janeiro de 2012 (proc. nº 189/04.0TBMAI.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.”.
Daqui resulta que não basta porem a prova da privação do uso, sendo ainda necessário que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Em igual sentido temos o Ac. do STJ de 27/4/2017 e o de 2/6/2009.
Este último, diz-nos: “A privação do gozo de uma coisa pelo titular do respectivo direito constitui um ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte da obrigação de indemnizar, pois que impede o respectivo proprietário de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza. A questão da ressarcibilidade da “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa. Uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso: - Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e a utilizasse caso não fosse a impossibilidade de dela dispor; não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável. Bastará que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito, para que o dano exista e a indemnização seja devida.”
“Temperando” posições, cremos que a análise da verificação do prejuízo patrimonial nestes casos de privação do uso tendo sempre de ser feita casuisticamente, em face do concreto circunstancialismo, nomeadamente a utilidade/destino do bem em causa, e terá ainda que ser cotejada com o ónus da prova.
Um veículo está à disposição do seu proprietário para ser usado em deslocações, sejam elas quais forem; este decide se usa ou não- só assim não será se por exemplo não tiver motor, ou poderá ser simplesmente um objeto de coleção, casos em que já não iria ser usado. O veículo destina-se a circular, logo, parece curial exigir-se que seja o lesado a provar que o usaria ou usava para o seu fim.
Pensamos também serem nesse sentido as conclusões que são retiradas na obra citada de António Santos Abrantes Geraldes “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, pags. 54 a 56, quando diz que “Mas mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, os argumentos anteriormente aduzidos deverão servir para compensar monetariamente o lesado pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição.” E a pags. 62 “(…) A esta visão da realidade, à luz dos padrões da normalidade ou da verosimilhança, se obtempera, por vezes, que a simples privação do uso não configura a existência de um prejuízo, devendo exigir-se a prova de uma efetiva possibilidade ou vontade de realização de despesas ou de obtenção de receitas no período de privação. Ou, ainda, invoca-se que a concessão de uma indemnização ao credor, malgrado a ausência de prova de prejuízos efetivos poderia desembocar numa situação de enriquecimento sem causa.
Exigem frequentemente os tribunais aquilo que, em termos de razoabilidade, não é exigível ou não é materialmente comprovável. Ou elevam a tal nível a fasquia em matéria de formação da convicção que o ónus de prova se transfigura em prova diabólica, deixando por reconhecer situações que o sendo comum francamente admite.
Em suma, parte-se da excepção para afirmar a regra. Pretende-se que determinadas actuações ou intenções que a experiência revela serem excepcionais sirvam para integrar os comportamentos-regra. Olvida-se, além do mais, que, recaindo sobre o credor o ónus da prova da ocorrência dos danos, a lei não trata com total indiferença o devedor, onerando-o com a prova dos factos impeditivos ou com a contraprova de factos susceptíveis de gerar uma situação de dúvida (artºs. 342.º, n.º 2, e 346.º do CC).”
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No Ac. da Rel. de Lisboa de 5/3/2020 (www.dgsi.pt) traçou-se a evolução que doutrina e jurisprudência fizeram nesta matéria, com citações que disso dão conta.”
Retomando o nosso caso, em causa está apenas a vertente patrimonial do dano, dada a sua utilização pela A.. Mais, veiculou a A. para os autos dados relativos á atividade lucrativa do veículo, no que fez uma aproximação de valores, sem ser exata –o que não permite aplicar a teoria da diferença (a que já voltaremos). Provou contudo a existência de um efetivo prejuízo material decorrente da privação do uso do veículo acidentado.
Verificado o dano, o nexo e a obrigação do seu ressarcimento por parte da R. –cfr. artºs. 483º, 562º e 563º do C.C.-, excluída a reconstituição natural –artº. 566º, nº. 1, C.C.- e não sendo possível a aplicação da teoria da diferença –artº. 566º, nº. 2, do C.C.- resta o recurso à equidade –nº. 3 do mesmo artigo. Não se prescinde aqui da ponderação dos demais critérios, nomeadamente o disposto no artº. 564º, nº. 1, C.C. e a dinâmica do acidente (cfr. artº. 494º do C.C.).
Retomando o nosso anterior acórdão temos, “Voltando ao mesmo, o artº. 566º, nº. 3, do C.C., que estabelece que, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Nesse sentido de se dever recorrer à equidade para fixação da indemnização por não uso podem consultar-se (www.dgsi.pt) os Ac. da Rel. de Coimbra de 6/2/2018 (“…a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias (…). Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil. Para este efeito pode tomar-se como ponto de referência, por exemplo, a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes, devendo realizar-se em abstrato uma ponderação global das várias situações por forma a chegar-se a um valor concreto, nomeadamente que tal valor deve ser sempre tomado como simples referência e não em termos absolutos, que deve do mesmo ser excluída a normal taxa de lucro obtida por estas entidades por forma a evitar-se um benefício injustificado por parte do lesado, tendo-se sempre presente o uso concreto que o lesado fazia do veículo em causa.”); o Ac. da Rel. de Lisboa de 12/7/2018 (“I - A mera privação do uso do veículo configura um dano patrimonial específico e autónomo que atinge o direito de propriedade, por retirar ao proprietário lesado a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela quando e como melhor lhe aprouver. II - A lesão patrimonial decorrente da perda dessa possibilidade de utilização do veículo é passível de avaliação pecuniária, devendo recorrer-se à equidade na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo.”); o Ac. desta Relação de 19.1.2017 (“…não se provando prejuízos concretos consequência da privação do uso de veículo, a indemnização por tal privação será encontrada com recurso à equidade dentro dos limites do que se tiver provado (art. 566, n.º 3, do CC), o que nos remete para uma ponderação das circunstâncias reais, e não para uma resposta em abstrato. Mesmo considerando que se trata de uma viatura de 7 lugares e que o titular, apesar de dono de outras, não as tem disponíveis, € 15 diários são suficientes para ressarcir as eventuais consequências da indisponibilidade do veículo.”). Não se aplica nestes casos a teoria da diferença (cfr. ponto VII do sumário do Ac. do STJ de 13/7/2017).
O Ac. da Rel. de Lisboa de 5/3/2020, relativamente aos critérios para a determinação do quantum ressarcitório diz. “É que este, compreensivelmente, não deve ser igual em todas as situações, pois as perdas ou prejuízos assumem necessariamente algumas variações de acordo com as várias circunstâncias. E, assim, “pode ser diversa a quantia quando o lesado apenas possua um automóvel ou quando tenha outras possibilidades, tal como pode variar de acordo com o grau de utilização que efectivamente seria dado ao veículo no período de imobilização caso não ocorresse o evento lesivo”, como não é igualmente despicienda “a quantia necessária para o aluguer de um veículo de características semelhantes às do sinistrado”, bem como “o valor real do veículo e o seu período de «vida útil»”. Por fim e como último factor de ponderação que ajudará a superar eventuais dificuldades de prova, deve igualmente considerar-se, conforme já indiciámos, a “figura da equidade como fonte de direito e como ponto de apoio do julgador na tarefa de quantificação da indemnização”, sendo que a ponderação casuística não pode nem deve igualmente deixar de considerar “os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso (…)”.”
No caso não foi apurado o valor de aluguer de um veículo com características idênticas ao dos autos, situação a que a A. não recorreu. Como também, e já o vimos, não se apurou o valor exato da perda de rendimentos derivada da sua imobilização. De facto, da imobilização de um veículo pode resultar um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como seria o aluguer de outro veículo - ou um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 3/12/2020, relatora Gabriela Cunha Rodrigues, www.dgsi.pt).
A A. estimou (peticionou) em 250,00 diários o valor equivalente à lesão do seu direito.
Ao contrário do que defende a recorrente, carreou para os autos elementos de ponderação, como já mencionamos.
Rejeita-se a aplicação de tabelas, nomeadamente o (só agora, em sede de recurso) veiculado a propósito pela recorrida –cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 8/3/2022 (relator Moreira do Carmo, www.dgsi.pt). Todavia, elas poderão constituir uma mera referência a ter em conta como uma base ou ponto de partida do juízo de equidade, que pondera todos os outros fatores –cfr Ac. da Rel. de Évora de 10/2/2022 (relatora Anabela Luna de Carvalho, mesmo endereço).
Ora, atenta a atividade da A., a potencialidade e a rentabilidade do veículo, as circunstâncias do embate (desadequação da velocidade e embate traseiro), e as ditas caraterísticas do veículo, tal valor parece-nos excessivo, sendo que um valor que se situe nos 150,00 diários (próximo do valor que a própria seguradora da A., a título informal e extrajudicial e nunca aqui vinculativo, calculou, o que também não pode deixar de ser uma referência) é o que se nos afigura ajustado –justo, equilibrado e razoável. É verdade que divergimos para mais do decidido nesses acórdãos quanto ao valor, diário a atribuir, mas os dados (tipo de transporte/atividade, e resultado da mesma) são aqui diversos e justificativos de tal facto. Veja-se ainda a propósito o Ac. mais antigo do STJ de 11/12/2012 (relator Fernando Bento, www.dgsi.pt).
Por isso, e nada mais vindo questionado, altera-se o valor arbitrado para (150 x 25 =) € 3.750,00.
Mantém-se a condenação em juros nos termos determinados.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da R. parcialmente procedente, e em consequência, concedem parcial provimento à apelação, fixando o valor da indemnização em € 3.750,00 (três mil, setecentos e cinquenta euros), mantendo no mais a sentença recorrida.
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Custas a cargo da R./recorrente e da A./recorrida na proporção do decaimento (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 27 de abril de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)


[1] Cfr. artigo 511.º n.º 1 do Código de Processo Civil de 1961. Não obstante no n.º 1 do artigo 596.º agora apenas se dizer que o juiz profere despacho "a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova", a verdade é que "o equilíbrio entre o dever de condensação e a proibição de antecipar a decisão final, impõe, necessariamente, que a identificação do objeto do litígio seja feita segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 2014, pág. 374.
[2] Neste sentido veja-se os Ac. STJ de 19-5-2021 no Proc. 1429/18.3T8VLG.P1.S1, Ac. STJ de 17-5-2017 no Proc. 4111/13.4TBBRG.G1.S1, Ac. Rel. Coimbra de 6-3-2012 no Proc. 2372/10.0TJCBR.C1 e de 24-4-2012 no Proc. 219/10.6T2VGS.C1, Ac. Rel. Lisboa de 14-3-2013 no Proc. 933/11.9TVLSB-A.L1-2, Ac. Rel. Porto de 17-3-2014 no Proc. 7037/11.2TBMTS-A.P1 e Ac. Rel. Guimarães 15-9-2014 no Proc. 2183/12.8TBGMR.G1, www.gde.mj.pt.
[3] Conforme o primeiro e o terceiro destes princípios o processo deve ser "organizado em termos de se chegar rapidamente à sua natural conclusão", procurando-se "o máximo resultado processual com o mínimo emprego de atividade; o máximo rendimento com o mínimo custo", Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 388 e 387. E nos termos do segundo "não é lícito realizar no processo atos inúteis".