Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1985/21.9T8GMR.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: MANDATO
APOIO JUDICIÁRIO
PATRONO
VIOLAÇÃO DE NORMAS DEONTOLÓGICAS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I- Da violação dos deveres inerentes ao cumprimento do mandato, bem como da violação de normas deontológicas por parte do mandatário constituído, e por similitude também tratando-se de patrono no âmbito do apoio judiciário, podem advir danos patrimoniais e não patrimoniais.
II- Quanto aos danos não patrimoniais, apenas após averiguação da sua real dimensão se pode dizer se é ou não digno de tutela jurídica face á sua gravidade.
III- Se o A. alegou na petição inicial o dano e o nexo, embora de forma imperfeita, mas ainda sendo possível a sua concretização, não é de julgar de modo liminar a ação manifestamente improcedente.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (em parte conforme o elaborado em 1ª instância).

C. F., NIF ………, residente na Rua …, Guimarães, veio intentar ação comum contra C. G., Advogada, com domicílio profissional sito no Largo ..., Guimarães, pedindo, a final, a condenação desta no pagamento ao Autor da quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que a Ré foi nomeada no âmbito da Lei do Acesso ao Direito como Patrona, tendo sido notificada em dezembro de 2016 para propor ação – Processo Crime (Inquérito). O Autor procedeu à entrega da respetiva documentação solicitada, nomeadamente escritura pública, despesas relacionadas com impostos, nomeadamente IMT, distrate de hipoteca, tendo sido informado que a ação foi intentada.
Em novembro de 2017 o Autor deslocou-se ao Tribunal e foi informado que não existia nenhuma ação intentada por si, representado pela Ré. A Ré nunca mais contactou o Autor (o que subsistiu até janeiro de 2018), não propôs a ação nem pediu escusa, tendo sido requerida a substituição de patrono, o que até ao presente ainda não foi realizado. Instada a devolver os documentos, necessários para a ação de divórcio do Autor, alega a Ré que nunca os recebeu, o que lhe causa transtornos económicos e emocionais.
Face à conduta da Ré, o Autor viu-se de impedido de aceder aos Tribunais, sofrendo danos morais, dado que viu sua expectativa jurídica gorada.
Foi proferido despacho para o Autor esclarecer “qual a ação que pretendia propor, quais os documentos que entregou com esse fim e em que medida é que tinha expetativa na propositura e procedência, indicando qual o dano causal entre os danos alegados e a ausência de propositura da ação. O dano da perda de chance tem de ser um dano presente, aferido em termos de probabilidade, não de um benefício genérico esperado de ver intentada uma ação sem qualquer fundamento. Todos estes factos são pressupostos necessários para a procedência da ação, e sem os quais a mesma será manifestamente improcedente.”

O Autor veio apresentar o seguinte requerimento:

Salvo o devido respeito, a ação ora proposta pelo Autor contra a Ré tem como fundamento a violação do direito fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais, que resultou da não atuação da Ré, violando os seus deveres, que causou danos não patrimoniais ao Autor, uma vez que, se viu impedido de aceder à Justiça, em razão da referida violação.
Pelo que, não alegando o Autor qualquer dano de perda de chance mas sim danos não patrimoniais decorrentes da violação do seu direito fundamental, não tem caráter de essencialidade para a presente ação os esclarecimentos requeridos por V.ª Ex.ª.
Uma vez que, e salvo melhor opinião, a violação do referido direito fundamental, decorrente da atuação ilícita e culposa da Ré, é suscetível de causar os danos não patrimoniais alegados pelo Autor, verificando-se todos os necessários pressupostos para a procedência da ação.
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De seguida foi proferido o seguinte despacho:

“Uma vez que não foram esclarecidos os fundamentos indicados para a ação, nem os seus factos indicados, a ação terá de improceder por manifesta ausência dos factos tidos por essenciais, nos termos do artigo 590.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Assim, resultam dos autos os seguintes factos essenciais alegados:

- A Ré foi nomeada no âmbito do Apoio ao Direito para propor ação – Processo Crime (Inquérito), em novembro de 2016.
-Entregues documentos à Ré, e tendo sido dito que a ação foi intentada, o Autor deslocou-se ao Tribunal em novembro de 2017 e não havia nenhuma ação intentada em seu nome pela Ré.
- O Autor entregou uma escritura pública, despesas relacionadas com impostos, nomeadamente IMT, distrate de hipoteca, que pediu para devolver, tendo a Ré alegado que não lhe foram entregues.
- O Autor sofreu transtornos económicos e emocionais.
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Esta questão foi delineada como responsabilidade civil de advogado, no exercício do seu patrocínio, alegando o Autor a violação do direito fundamental de acesso ao direito, por não ter sido intentada ação por si pretendida.
O direito de acesso aos Tribunais encontra-se plasmado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, que consagra como Direito Fundamental o “Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional efetiva”, assegurando a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
O Autor, através do sistema de apoio jurídico, solicitou a nomeação de Patrono para um inquérito penal, não tendo sido alegado, em concreto, qual o direito que foi ofendido e que visava proteger, nem se o exercício do mesmo dependia de queixa, se o mesmo prescreveu. Desconhece-se qual o direito que o Autor pretendia fazer valer em Tribunal.
A Ré, patrona nomeada, não é obrigada a intentar a ação, devendo, caso não o faça justificar à Ordem dos Advogados, sob pena de eventual responsabilidade disciplinar (artigo 33.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho).
Neste caso, não foi alegada tal falta de comunicação, mas apenas que um ano depois não havia ação. Poderíamos até configurar o caso de, tendo sido apresentada participação no Ministério Público, a mesma tenha sido liminarmente arquivada.
A Ré, ao cumprir o patrocínio oficioso, tal como no mandato forense, tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas (artigo 97.º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados), dando “a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca, assim como prestar, sempre que lhe for solicitada, informação sobre o andamento das questões que lhe forem confiadas”.
O advogado mantém, no entanto, a sua independência e autonomia técnica, assumindo uma obrigação de meios e não de resultado para com o mandante.
Mais uma vez, de acordo com os factos alegados, não se retira que a Ré deveria ter intentado uma ação/inquérito, que ao não fazê-lo não atuou com a diligência devida, que não cumpriu com os seus deveres deontológicos. O simples facto de não existir ação um ano depois, nem mesmo o facto de não ter intentado a ação, não configura uma violação das suas obrigações.
Por outro lado, nada pede em relação aos documentos, sendo certo que se tratam de documentos que podem ser novamente obtidos recorrendo diretamente aos serviços.
A existência de um facto ilícito e culposo é determinante para a responsabilidade do devedor/lesante (artigo 483.º e 798.º do Código Civil).
Outro facto essencial para a procedência da ação é a existência de um dano. Como sintetiza Antunes Varela (Direito das Obrigações em geral, 9.ª ed., II, p. 928), "o autor do facto será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido".
O Autor esclarece que não é a expetativa jurídica nem a perda de chance que pretende ver ressarcida, mas sim os transtornos económicos e emocionais, e o dano que o marcará para a vida.
Não se percebe que dano, não estão concretizados, sendo certo que, os “transtornos” não dão lugar a indemnização por danos não patrimoniais, que apenas merecem a tutela do direito quando sejam graves (496.º, n.º 1 do Código Civil).
Assim, inexistem fundamentos para a condenação da Ré.
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Dispositivo
Pelo exposto e nos termos dos fundamentos de direito invocados, julgo manifestamente improcedente, e indefiro a ação proposta contra a Ré C. G..
Valor da ação: 25.000 €.-
Custas a cargo do Autor (artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
Registe, notifique e junte ao suporte físico do processo.”
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Inconformado, veio o A. interpor recurso apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

1. Vem o presente Recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos na qual a Mta. juiz “a quo” julgou manifestamente improcedente a Petição Inicial, indeferindo a acção proposta pelo Recorrente;
2. Salvo o devido respeito, que é muito, é entendimento do Recorrente que o Tribunal “a quo”, ao indeferir liminarmente a Petição Inicial infringiu o Princípio do Contraditório, que exige que uma vez instaurada determinada acção, o Demandado tenha conhecimento de que contra si foi formulado um pedido, com fundamento em determinada causa de pedir, dando-lhe oportunidade de defesa;
3. Ora, entende o Recorrente que o Tribunal “a quo” não pode indeferir liminarmente a Petição Inicial, sem ouvir a demandada sobre a questão em que assentou esse indeferimento liminar, desta forma infringindo o nº 3 do art. 3º do CPC;
4. Sendo esta infração geradora de nulidade nos termos do disposto no nº 1 do art. 195º do CPC, uma vez que tal irregularidade claramente influi no exame e decisão da causa;
5. Nestes termos, deve ser revogada a sentença proferida pela Ex.a Juiz “quo” e ser decidido que a acção deve seguir a sua normal tramitação;
6. Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que o Tribunal “a quo”, ao decidir que não existem fundamentos para que a R. seja condenada incorreu num erro de apreciação de mérito, prejudicando dessa forma que o pedido fosse apreciado em sede de julgamento;
7. Ora tendo em conta que a ação proposta pelo Recorrente contra a Ré tem como fundamento a violação do direito fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais, que resultou da não atuação da Ré, violando os seus deveres, que causou danos não patrimoniais ao Autor, uma vez que, se viu impedido e aceder à Justiça, em razão da referida violação;
8. Pelo que, alega o Recorrente danos não patrimoniais decorrentes da violação do seu direito fundamental;
9. A violação do referido direito fundamental, decorrente da atuação ilícita e culposa da Ré, e é suscetível de causar os danos não patrimoniais alegados pelo Recorrente, verificando-se todos os necessários pressupostos para a procedência da ação;
10.Ora, salvo devido respeito, o Tribunal deverá apenas indeferir liminarmente a petição inicial nos casos taxativamente enunciados no referido n.º 1 do art. 590º do CPC;
11.É entendimento do Recorrente que o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial, com fundamento em manifesta improcedência do pedido padece do vício da nulidade;
12.O Tribunal “ a quo” incorreu num erro de apreciação em relação à matéria de facto que selecionou e julgou provada e não provada nos autos;
13.Entende o Recorrente que ao intentar a acção contra a R. e que face à conduta por parte desta, o Recorrente viu-se de impedido de aceder aos Tribunais, uma vez que, a R. não interpôs a acção, nem requereu o pedido de escusa da nomeação de forma a assegurar o patrocínio por outro advogado nomeado;
14.O que impossibilitou o A. de exercer um direito constitucionalmente consagrado;
15.Verificado um erro técnico e acompanhamento desadequado por parte da R. do Patrocínio que lhe foi confiado.
16.Conduta esta ilícita e praticada pela R., no exercício da sua profissão que alterou significativamente a vida do Recorrente.
17.O exercício da Advocacia é uma obrigação de meios e perante a omissão da R. violou um imperativo contratual (ou legal) destinado a proteger os interesses do A., que viu a sua expectativa jurídica gorada.
18.A actuação da R. integra assim, um incumprimento equiparado ao incumprimento do mandato forense, tendo em conta o art. 95º do EOA e art. 33º da Lei nº 34/2004 de 29/07.
19.É entendimento do Recorrente que o despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial, com fundamento em manifesta improcedência do pedido padece do vício da nulidade;
20.Salvo devido respeito, o Tribunal “ a quo” incorreu num erro de apreciação em relação à matéria de facto que selecionou e julgou provada e não provada nos autos;
21.Nestes termos, deve ser revogada a sentença proferida pela Ex.a Juiz “quo” e ser decidido que a acção deve seguir a sua normal tramitação;
22.Salvo devido respeito, que é muito, o Tribunal “ a quo” incorreu num excesso de pronúncia, pois apreciou questões não suscitadas pelo Recorrente na sua Petição e que aquele não deveria conhecer;
23.Ora tendo em conta, que o Tribunal “quo” pronunciou-se de questões não suscitadas pelo Recorrente na sua Petição Inicial e de que o Tribunal “a quo” não possa conhecer oficiosamente, determina a invalidade da sentença por excesso de pronúncia nos termos na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC.”
Pede que se julgue procedente a Apelação, com a revogação da sentença recorrida, e ser determinado que a acção deve seguir a sua normal tramitação.
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Foi determinada a devolução dos autos à 1ª instância a fim de dar cumprimento ao artº. 641º, nº. 7, C.P.C..
Cumprida a citação, a R. apresentou contestação nos autos defendendo-se por impugnação, referindo, além do mais, que recebeu o A. no seu escritório, prestou-lhe informações, e este não lhe entregou quaisquer documentos. E conclui quanto a essa matéria que “…é totalmente descabido que a Ré tenha, em momento algum, negligenciado os deveres profissionais que sobre si impendem, contribuindo, com essa conduta, para que o Autor tivesse ficado impedido de reivindicar os seus direitos, outrossim, a Ré informou o Autor da necessidade deste de requerer novo pedido de Apoio judiciário, agora para ação de indemnização, sendo que se este não o fez, tal não pode ser imputado à Ré.”
Não apresentou contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:
-a decisão proferida é nula;
-a decisão proferida apreciou de forma errada os fundamentos do pedido.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria que importa para a decisão a proferir consta do relatório “supra”.
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IV NULIDADE DA DECISÃO.

Dispõe o art. 615º, nº 1, que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Por força do artº. 613º, nº. 3, C.P.C., essa disposição aplica-se aos despachos proferidos.
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal “supra” citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4/10/2018 em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017, www.dgsi.pt).
Conforme Acórdão desta Relação relatado pela Exmª Srª desembargadora Drº Maria João Matos com a mesma data e igualmente publicado “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”
Com exceção das previstas na al. a) do n.º 1 do artigo 615.º e no artigo 666.º, n.º 1, segunda parte, estas nulidades respeitam ao teor do ato decisório, nomeadamente ao cumprimento das normas processuais que determinam a estrutura, objeto e limites do julgamento; porém, não quanto ao mérito desse julgamento como se destaca no excerto (que por sua vez cita o mencionado acórdão da Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha) “O recurso civil, vol. I”, do Prof Rui Pinto (Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), 2019, https://www.linkedin.com.), cuja edição terá lugar em 2020, e publicado desde já na Revista “Julgar” online de maio de 2020.
O A. invoca a nulidade prevista na alínea d) citada, segunda parte, ou seja, o excesso de pronúncia.
No nosso processo civil vigora o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objeto do litígio (a pretensão formulada pelo autor que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objeto de tutela). Por outro lado, às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir e aqueles em que se baeiam as exceções invocadas (salvo as situações do artº. 5º, nºs. 2 e 3, do C.P.C.) -tal entronca ainda no princípio do dispositivo –artºs. 3º, nº. 1, e 5º, nº. 1, C.P.C..
Como diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pag 362) “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e)”. No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por, como se viu, o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
Não se pode porém confundir questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, pode consultar-se o Ac. do STJ, de 9/2/2012 (wwwdgsi.pt), segundo o qual “A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.”
Importa também não confundir “questões” com matéria de facto. A sentença é nula se não apreciou uma questão suscitada nos autos ou se apreciou uma questão de que não podia tomar conhecimento. Todavia, a sentença já não padece do vício da nulidade se tomou em consideração um facto de que não poderia tomar conhecimento nos termos do art. 5º, nºs 1 e 2, do CPC, ou se, ao invés, não considerou provado nem não provado um facto de que deveria tomar conhecimento nos termos dessa mesma norma. Esta situação enquadra-se antes no erro de julgamento. Neste sentido Acs. do STJ, de7/4/2016, de 12/5/2016, de 23/3/2017, e de 12/2/2018 (www.dgsi.pt)
Ora no caso, vistas as alegações de recurso, o A. não identifica qual a questões que o Tribunal apreciou e que estava excluída do quadro passível de apreciação. De facto, o enquadramento jurídico que o Tribunal dá à ação proposta e que leva à conclusão de que a mesma é manifestamente improcedente, não é um enquadramento do qual não podia tomar conhecimento; o Tribunal, perante os factos alegados, deu-lhes um enquadramento jurídico, o que pode fazer livremente ao abrigo do artº. 5º, nº. 3, do C.P.C.: o Tribunal é livre quanto á indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, não estando vinculado às alegações das partes.
Situação diferente é se o Tribunal, perante a factualidade alegada, lhe deu o enquadramento jurídico errado e desse modo concluiu pela manifesta improcedência da ação, o que nos remete para a apreciação do mérito do recurso.
Em suma, o Tribunal conheceu da factualidade alegada e apreciou a questão trazida a juízo pelo A.. O que deu foi um enquadramento jurídico distinto do que o A. se propunha.
Não incorreu por isso o Tribunal “a quo” na nulidade prevista no artº. 615º, nº. 1, d), do C.P.C..
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Mais apreciaremos nesta fase a nulidade que o A. invoca, por violação do princípio do contraditório –artº. 3º, nº. 3, C.P.C.-por ter decidido liminarmente a ação, sem citação da R.. Invoca o A. a nulidade prevista no artº. 195º, nº. 1, do C.P.C..
E para afastar desde já este raciocínio. Em primeiro lugar o A. não teria legitimidade para invocar a violação do contraditório quando estaria em causa um direito da R.. Em segundo lugar o Tribunal pode apreciar liminarmente a ação face ao disposto no artº. 590º, nº. 1, C.P.C. –sendo que o juiz determinou a apresentação da ação a despacho liminar –outra coisa é se esteve bem na apreciação que fez. Por último, a nulidade prevista no artº. 195º, nº. 1, C.P.C. seria de arguir em sede de 1ª instância.
Improcede por isso essa argumentação.
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V O MÉRITO DO RECURSO.

Resta por isso apreciar se o Tribunal “a quo” apreciou corretamente o pedido e seus fundamentos, tal como apresentado pelo A..
Ora, o Tribunal analisou a situação configurando a ação como de responsabilidade civil, mas apenas na perspetiva do dano de “perda de chance”. E foi nessa ordem de ideias que convidou o A. a aperfeiçoar a sua petição inicial.
O A. insurgiu-se desde logo relativamente a esta interpretação, alegando que invoca antes a sua impossibilidade de acesso ao direito como fonte de danos, neste caso, não patrimoniais.
Entendeu o Tribunal que o A. não alegava por isso qualquer facto ilícito e culposo e um dano correspondente.
Parece-nos, salvo melhor opinião, que esse juízo se afigurava precipitado.
Situamo-nos no quadro da responsabilidade civil, aplicando-se as regras do mandato (artº. 1157º e segs. do C.C.) não se mostrando oportuno maior desenvolvimento desta questão, sem prejuízo da remissão que “infra” se fará para jurisprudência com maior exposição do tema, nomeadamente no caso de patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário.
Assim sendo, haverá que indagar dos seus pressupostos: o facto voluntário, ilícito, culposo (sendo a culpa provada ou presumida se tal presunção resultar no caso da lei) e o dano a ele ligado por um nexo de causalidade adequada.
O A. alega, além do mais, que contactou a ilustre patrona nomeada a fim de propor ação criminal, fez entrega de determinada documentação, e passado praticamente um ano nem a ação foi proposta, nem teve qualquer informação ou contato por parte da R., o que sucedeu até janeiro de 2018.
Se as afirmações que o Tribunal faz na sua apreciação do caso quanto à conduta da patrona nomeada se mostram corretas, também não é menos certo que existe o dever de informação, comunicação e assistência por parte do patrono nomeado, o que não se compadece com o decurso de um ano sem qualquer informação ou contato. Por outro lado, face ao alegado, a R. não devolveu ao A. os documentos que lhe foram entregues, independentemente de o A. os poder obter por outra via–e não sabemos se assim é, já que não é ao A. que compete dizê-lo. Pode por isso estar em causa a violação de deveres profissionais e deontológicos face ao cliente –cfr. artºs. 97º, 98º, nº. 2, 100º, e 101º, todos do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Discute-se se a responsabilidade civil no caso do patrono nomeado ao abrigo do instituto do apoio judiciário se integra na responsabilidade contratual ou extra-contratual (ou até mista), com diferenças de regime no que concerne ao ónus de alegação e prova da culpa. É prematuro assumir posição nessa querela, o que impõe de qualquer modo o prosseguimento dos autos (fosse para averiguar se a culpa se mostra suficientemente ilustrada nos factos, fosse porque se aplica a presunção de culpa). Veja-se a propósito os Acs. da Rel. do Porto de 14/7/2010, e de Lisboa de 11/5/2017 (www.dgsi.pt).
Sucede que o A. estriba o seu pedido indemnizatório na “não atuação da Ré, violando os seus deveres, que causou danos não patrimoniais ao Autor, uma vez que, se viu impedido e aceder à Justiça, em razão da referida violação”.
Quanto ao dano, a grande maioria da jurisprudência situa-se nas ações que averiguam o dano de «perderem a chance» de evitar um prejuízo, ou a perda de oportunidade de evitar um prejuízo de acordo com uma probabilidade real, séria e considerável – vejam-se os Acs. do S. T. J. de 05/02/13 e de 01/07/14, da Rel. do Porto de 08/01/2018 e da Rel. de Lisboa de 27/04/2017 (www.dgsi.pt) que tratam esta questão, entre muitos outros.
No caso de violação de normas deontológicas o recente Ac. do STJ de 17/6/2021 (www.dgsi.pt) apontou no sentido da via da responsabilidade extra-contratual.
Quer da violação dos deveres inerentes ao cumprimento do mandato, quer da violação das ditas normas deontológicas por parte do mandatário constituído, e por similitude também tratando-se de patrono no âmbito do apoio judiciário, podem advir danos patrimoniais e não patrimoniais. Quanto a estes, e quando alegados devidamente, apenas após averiguação da sua real dimensão se pode dizer se é ou não digno de tutela jurídica face á sua gravidade (cfr. a propósito o Ac. desta Rel. de 28/9/2017, de Lisboa de 27/4/2017, bem como o Ac. da Rel. Porto de 14/7/2010 já citado, todos em www.dgsi.pt).
O recente Ac. da Rel. de Lisboa de 1/7/2021 (www.dgsi.pt) sintetiza no ponto II do sumário a que também é nossa posição: “A responsabilidade civil do advogado poderá resultar quer da violação da obrigação principal do contrato de mandato que celebrou com o seu cliente, quer da violação de deveres acessórios e até deontológicos, mormente os que lhe são impostos pelo seu Estatuto, com a obrigação de indemnizar danos patrimoniais e não patrimoniais, que não se resumem ao denominado “dano de perda de chance”.” E desenvolve com indicação de jurisprudência e doutrina esta mesma posição.
Assim sendo, os factos essenciais à procedência da ação estão presentes na petição, havendo apenas que proceder a mais cuidada análise no que se refere ao modo como está alegado o dano.
O dano é um facto essencial que faz parte da matéria englobada na causa de pedir complexa da ação de responsabilidade civil, impendendo sobre o A. o ónus da sua alegação na petição inicial (cfr. artºs. 581º, nº. 4, 5º, nº. 1, e 552º, nº. 1, d), todos do C.P.C.). E fazendo parte desse núcleo, não pode o Tribunal socorrer-se dos poderes previstos no artº. 5º, nº. 2, a) e b), do C.P.C., para melhor averiguação da causa.
Sucede que o A. foi inexpressivo na alegação do dano; faz alusões a ter-se sentido enganado, e a “transtornos económicos e emocionais”, estes conexionados com a falta de devolução dos documentos, e ainda ao facto de estar impedido de aceder à justiça, uma vez que a R. nem propôs a ação nem pediu escusa, impossibilitando-o de exercer um direito constitucional; e diz que viu a sua “expetativa jurídica gorada”. Se o A. não estrutura o dano patrimonial (o que nos remeteria para a “perda de chance”), então terá de concretizar o dano não patrimonial, sendo que daqueles alegados genericamente, apenas os mencionados transtornos emocionais se inserem nesta categoria, mas que o A. não demonstrou factualmente de forma clara na sua peça, nem correlacionou de forma direta com a dita falta de acesso à justiça; questão diferente é se a sua gravidade impõe a compensação patrimonial respetiva face ao disposto no artº. 496º, nº. 1, do C.C., situação que é prematuro analisar.
Diz o A. em suma que “Da conduta da R. que supra se relatou, resultaram para o aqui A. danos não patrimoniais, uma vez que não lhe foi permitido exercer o seu direito e nem será mais.”
E também em suma dizemos nós que ou o A. concretizava que ação iria propor e quais as consequências concretas que pretendia obter e, logo, dessa falta -danos patrimoniais; ou o A. tem de dizer quais as consequências pessoais derivadas da atuação/omissão da R. –danos não patrimoniais (sendo esta a via pela qual optou).
Ou seja, a falta de acesso à justiça que o A. prefigura como prejuízo, em abstrato não configura um dano patrimonial –caminho que o Tribunal trilhou no convite que dirigiu ao A.-, tão puco implica sem mais concretização um dano não patrimonial, indemnizável nos termos do artº. 496º do C.C..
O A. afastou da sua pretensão a expetativa jurídica gorada e falta de acesso á justiça conjeturado em sede de dano patrimonial.
Nessa medida, convidado a suprir a insuficiência dos factos, não respondeu positivamente ao convite.
Cabe por isso verificar se o dano não patrimonial foi (suficientemente) alegado, e correlacionado pelo nexo de causalidade adequado com a atuação da R..
Dizem-nos António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa (“O Código de Processo Civil Anotado”, Vol I; pags. 27 e 28) que é inepta a petição que não contenha os factos que constituem a causa de pedir –artº. 186º, nº. 2ª), C.P.C.. E distinguem entre os factos que identificam ou individualizam o direito em causa (factos essenciais nucleares) e aqueles que, não desempenhando tal função, se revelam contudo imprescindíveis para que a ação proceda, por também serem constitutivos do direito invocado (factos essenciais complementares). A falta destes últimos revelará uma petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas de exposição ou da concretização da matéria de facto (-cfr. a remissão para mais doutrina), sem embargo da sua atendibilidade na audiência prévia ou da sua inserção na sentença, quando resultantes da instrução da causa.
Mais dizem os mesmos autores que a distinção torna-se inequívoca por exemplo em face do direito de indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual (causa de pedir complexa) em que nem todos os factos respeitantes a cada um dos pressupostos normativos apresentam, o mesmo revelo, de tal modo que, sem embargo da opção pelo esgotamento da alegação de todos esses factos na petição inicial, esta ultrapassará o filtro da ineptidão quando tiverem sido alegados aqueles que individualizam a origem do direito de indemnização, sem embargo da inserção posterior dos demais que, em face do caso concreto, se revelem complementares ou concretizadores, seja por via da resposta a um despacho de aperfeiçoamento, seja em sede de audiência prévia, seja, enfim, através da sua recolha em função do que resultar da instrução da causa.
O Tribunal seguiu esta segunda via, entendendo por isso que os factos relativos ao convite que dirigiu ao A. são complementares, embora o convite que fez tenha partido duma conceção da ação que é diferente da que o A. perfilhou e que também aqui admitimos. Contudo em sede decisória optou pela manifesta improcedência, o que significa que ainda assim entendeu que a essencialidade dos factos estava alegada, o que não seriam era aptos à satisfação da pretensão. Voltaremos à linha delimitadora entre estas duas situações.
Danos não patrimoniais são os insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada (Ponto I do sumário do Ac. do STJ de 15/4/2009, processo nº. 08P3704).
Ou, conforme Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 1º Vol., pags. 571 e 630 da 9.ª ed., "danos não patrimoniais são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização"; porque estes danos não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais uma natureza compensatória do que indemnizatória, sem esquecer, contudo, que não pode deixar de estar presente a vertente sancionatória.
A questão que se coloca é pois a de saber se a petição é inepta por falta de melhor concretização do dano que se pretende ver ressarcido, ou se ainda assiste ao A. a possibilidade de (melhor) concretizar essa matéria.
Sabendo que só a omissão de factos essenciais pode dar origem à ineptidão da petição e, dentro desta, apenas quando o facto/causa de pedir não possa ser “complementado ou concretizado” (art. 5º, nº3, do CPC); temos em primeiro lugar que a petição dos autos não é inepta, tem causa de pedir; todavia a mesma, no que concerne ao dano, não está concretizada. Pergunta-se então: ainda pode ser corrigida? A omissão pode ser complementada ou concretizada? Ou pelo contrário verifica-se omissão de factos essenciais (cfr. Ac. da Rel. do Porto de 21/11/2019 e outros aí citados, entre eles o de Coimbra de 27/9/2016, todos em www.dgsi.pt)?
Ora, no caso dos autos cremos que o A. ainda pode dizer em que medida é que a alegada omissão da R. teve como consequência aquelas repercussões a que alude refletidas na esfera pessoal.
O direito constitucional de acesso à justiça (artº. 20º da Constituição da República Portuguesa) tem consagração na lei ordinária e portanto também tem de ser visto na sua dimensão concreta para o efeito visado pelo A.. Não temos para o efeito pretendido no caso concreto de saber qual o direito que o A. pretendia exercer pela via jurisdicional (para o que basta a referência a “queixa crime”), já que a apreciação a fazer é independente da sua viabilidade porque não estão em causa os ditos danos não patrimoniais; mas é necessário que à eventual conduta omissiva o A. associe danos pessoais. Também aqui o A. pode ainda traduzir em factos mais concretos a sua pretensão.
Diríamos que o dano foi alegado (e sem dano é que se diria que não há indemnização), embora de forma insuficientemente caraterizada.
Como se sintetiza no Ac. desta Relação de 18/12/2017, relatada pela Srª Desembargadora Eugénia Maria da Cunha (www.dgsi.pt) e melhor se desenvolve no seu texto: 1- Não cabe convite ao aperfeiçoamento (cfr nºs 2, 3 e 4, do art. 590º, do CPC), quando, dos próprios factos alegados, decorra a ineptidão da petição inicial ou a manifesta improcedência do pedido formulado, atenta a inviabilidade da pretensão e o princípio da autorresponsabilização das partes (não podendo o tribunal, ex officio, convidando a parte a “fabricar” factos, transmutar um articulado inepto num articulado viável);2- Não gera, contudo, o vício da ineptidão da petição inicial a insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspeto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida. Basta, para que esteja desenhada a causa de pedir, que o núcleo factual essencial integrador da causa petendi surja caraterizado;”.
Em sentido idêntico podemos ver com a mesma data -18/12/2017- e também desta Relação o Ac. em que foi relatora a Srª Desembargadora Eva Almeida (www.dgsi.pt): “I - A insuficiência de alegação de factos essenciais integradores da “causa petendi” pode traduzir um vício de ineptidão, que acarrete a nulidade do processado e consequente absolvição do réu da instância, ou apenas uma deficiência de alegação. II - Quando tenham sido alegados os factos essenciais e apenas seja necessário o seu complemento ou a sua concretização, impõe-se o convite ao aperfeiçoamento (art.º 5º nº 1 e 590º nº 4 do CPC). III - Quando as deficiências abranjam também a alegações de factos essenciais à procedência do pedido formulado, as mesmas traduzirão uma manifesta inviabilidade da acção, que conduzirá, inexistindo despacho liminar (art.º 590º nº 1 do CPC) à sua improcedência logo no saneador.”
Particularmente pertinente para o caso o recente Acórdão desta Relação de 28/10/2021, relatado pela Srª Desembargadora Maria dos Anjos Nogueira (www.dgsi.pt), justificando-se a extensão da citação que dele faremos: “A figura da ineptidão da petição inicial que implica, assim, ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida.
E é só nesta segunda situação, de mera insuficiência de concretização factual relevante (de factualidade de que depende a procedência da pretensão do A.), que a parte poderá/deverá ser convidada a completar o articulado, podendo ainda tal insuficiência ou incompletude vir a ser suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução (art.º 5.º, n.º 2, alínea b), do Cód. Proc. Civil).
Ao delinear o regime da ineptidão da petição inicial a intenção e finalidade da lei foi “impedir o prosseguimento duma acção viciada por falta ou contradição interna da matéria objecto do processo, que mostra desde logo não ser possível um acto (unitário) de julgamento, «judicium»”, ou dito de outro modo, com “a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar concretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis, visto só dentro dessas balizas se mover o exercício da actividade jurisdicional declaratória do direito” - (Cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 47) .
Não sendo fácil distinguir entre situações de causa de pedir imperfeita (mas ainda assim meramente deficiente) e situações em que falta a causa de pedir, designadamente os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão de causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja que de assentar o reconhecimento do direito (cfr. A. dos Reis, Comentário ao Cód. Proc. Civil, Vol. 2º, p. 374.11), tem-se optado por seguro, para encontrar a linha de fronteira entre as duas situações, um critério pragmático que assenta num juízo de prognose acerca da delimitação do caso julgado, pressupondo uma sentença favorável ao autor ‘projectando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verificará a falta de causa de pedir; já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, por grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial’, segundo critério proposto por Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, p. 209, em nota (nota 377).
Sendo irrefutável que a reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, tentou reduzir, até limites razoáveis, as situações em que, por falta dos pressupostos processuais ou por qualquer outra razão relacionada com a constituição da relação jurídica processual, o tribunal se veja confrontado com a necessidade de proferir decisão de absolvição da instância, consagrando um alargamento da possibilidade de salvar a acção inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito, o certo é que o alargamento de tal possibilidade de sanação ficou ainda reservada para aquelas situações resultantes de falhas menores que deixam intacta a estrutura fundamental da instância (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol, 2ª edição revista e ampliada, pp. 64 e 65).
No entanto, traduzindo-se a ineptidão da petição inicial, em nulidade absoluta que afecta todo o processo, como excepção dilatória nominada (art. 577º, nº 1, b) do C.P.C.) que é, a sua sanação está prevista tão só em dois casos – através do mecanismo constante do n.º 3 do art. 186.º do C.P.C., ou seja, quando se verificar que o R. interpretou convenientemente a petição inicial, apesar de arguir a sua ineptidão, ou em função da ampliação da matéria de facto feita no articulado réplica, quando este for admitido (cfr. neste sentido Assento n.º 12/94, no DR, Iª Série A, de 21/07/94, que fixou jurisprudência no sentido de que a nulidade resultante de simples ininteligibilidade da causa de pedir é sanável através de ampliação fáctica em réplica, se o processo a admitir).”
Aplicando ao caso, em primeiro lugar cremos que o A., como vimos, da causa de pedir complexa alegou os pressupostos da responsabilidade civil relativos à conduta voluntária, ilícita e culposa, o dano e o nexo, embora estes de forma imperfeita. Do seu articulado podemos retirar a contextualização donde emerge a sua pretensão, nomeadamente a alegada afetação da sua esfera pessoal decorrente da imputada atuação da R..
Cremos por isso que não está em causa uma verdadeira situação de falta de causa de pedir insuprível; estamos apenas uma petição inicial deficiente, suscetível de aperfeiçoamento, cabendo ao juiz do processo aferir do momento e modo mais oportunos para o efeito, atentas as previsões legais já citadas.
Ainda que assim não fosse, e concluíssemos pela nulidade por ineptidão, resulta da leita da contestação apresentada pela R. que esta não invocou a ineptidão da peça inicial, interpretou convenientemente a petição e causa de pedir invocada; e por isso impugnou a factualidade alegada pelo A.. Mostra-se por isso garantido o seu direito de defesa imanente do princípio do contraditório entre as partes (artº. 3º do C.P.C.). Assim sendo, ela sempre estaria sanada.
Veja-se, por pertinente, o sumário do Ac. da Rel. de Évora de 11/5/2017, em que é relator o Sr. Desembargador Tomé Ramião (www.dgsi.pt): 1. No âmbito do requerimento injuntivo, o requerente, utilizando modelo de requerimento aprovado por portaria do Ministro da Justiça, deve, entre outros, expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão, como se refere no art.º 10.º/1 e 2, alíneas d) do anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1 de setembro. 2. A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido e corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido. 3. A omissão total de causa de pedir corresponde à falta absoluta de indicação de factos que fundamentam o efeito jurídico pretendido e só esta pode conduzir à ineptidão da petição inicial – art.º 186.º/2, al. a), do C. P. Civil. 4. O convite para suprir irregularidades, sanar insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, ao abrigo do disposto nos art.º 590.º/2, alínea b) e 4 do C. P. Civil, não pode ser utilizado para suprir a ineptidão da petição inicial, por omissão absoluta de factos constitutivos do direito alegado, ou seja, para concretizar a "causa petendi”. 5. Se a Ré interpretou devida e cabalmente a petição inicial, compreendeu qual a fonte do crédito invocado (fornecimentos de energia, no âmbito dos vários contratos firmados e respetivos períodos), exerceu plenamente o contraditório quanto ao alegado na petição inicial, mostra-se sanda a eventual ineptidão da petição, não devendo ser julgada procedente a sua arguição, em obediência ao disposto no n.º3 do C. P. Civil.”
De mencionar por último que são situações diferentes as tratadas pelos nosso Tribunais administrativos e que dizem respeito a indemnizações pela demora na obtenção de uma decisão judicial (atraso na decisão de processos judiciais, quando viola o direito a uma decisão em prazo razoável), ações essas de responsabilidade civil extracontratual propostas contra o Estado, e em que se chama a aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e se apela à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, surgindo a tese da presunção da verificação de danos (cfr. por exemplo as decisões do Tribunal Central Administrativo Sul de 10/12/2020 e de 16/4/2020, www.dgs.pt). Esta matéria não pode ser transposta para o caso dos autos.
Resta reiterar que é prematuro dizer que o dano alegado não se mostra merecedor da tutela do direito dada a sua diminuta gravidade, uma vez que o A. tem ainda possibilidade de concretizar e densificar a sua repercussão. Daí que, também nesta vertente, a ação não é manifestamente improcedente.
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Face ao já exposto, ao invés da improcedência (e indeferimento) da ação, cremos que a mesma deve prosseguir os seus termos atentos os fundamentos expostos –não se verificando nem a manifesta improcedência nem a ineptidão da petição inicial.
***
VI DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, conceder provimento à apelação e revogar a decisão recorrida determinando o prosseguimento da ação.
Custas do recurso consoante o decaimento final da ação –artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C..
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Guimarães, 2 de dezembro de 2021.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)