Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
403/13.0TCGMR.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL ARBITRAL
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- Os tribunais arbitrais são competentes para conhecer da sua própria competência, devendo os tribunais estaduais absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral, e isto mesmo que, para o efeito, haja necessidade de apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela está inserida.

II- Destarte, uma vez instaurada a acção nos tribunais estaduais e invocada a excepção de preterição de tribunal arbitral, apenas em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inaplicabilidade da convenção de arbitragem - ou seja, que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade -, pode o juiz declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção.

III- A quebra do monopólio do Estado na função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) apenas se mostra permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos) os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania tribunais o Estado tende a conseguir.

IV- Por essa razão, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito potestativo a exigir a arbitragem, unicamente a verificação da existência de uma situação de absoluta impossibilidade, e não tão-somente de mera difficultas praestandi (em respeito pela autonomia privada), que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, constitui legitimo fundamento justificativo do seu incumprimento.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães.

I- RELATÓRIO.

Recorrente: “M…, Sa”.

Recorrido: “Banco…, Sa”.

Tribunal Judicial de Guimarães – 2º Vara Cível.

Nos presentes autos em que é autora “M…, Sa” e réu “Banco…, Sa”, veio a ré, além do mais, deduzir a excepção de incompetência material, por entender que de acordo com a vontade das partes regulada no contrato celebrado é materialmente competente o Tribunal Arbitral, uma vez que a autora não alega a invalidade dos contratos, pedindo a resolução dos mesmos por alteração das circunstâncias, pelo que a cláusula respectiva ao foro arbitral é válida e deve ser respeitada.

Devidamente notificada para o efeito, a autora respondeu, e, alegando não ter tido conhecimento antecipado dos contratos celebrados, limitou-se a assinar os mesmos nas datas que neles constam, designadamente, nunca lhe foi explicado que do contrato constava um compromisso arbitral e qual o alcance do mesmo, pugnou pela improcedência da invocada excepção.

Mais alega que, sendo os contratos em causa, contrato de adesão, as suas cláusulas deveriam ter sido criteriosamente explicadas, pelo que, não o tendo sido, encontram-se excluídas do contrato, nos termos do art. 8º do D.L. nº 446/85, de 25.10, sendo certo que, de qualquer forma, a arbitragem não seria possível também por aplicação do disposto no art. 21º, al.h), do mesmo diploma.

Acresce ainda que existe grave inconveniente para a autora resultante da convenção arbitral, uma vez que teria que deslocar os seus legais representantes, testemunhas e mandatário para o Tribunal Arbitral de Lisboa.

Finalmente, não estão em causa nos presentes autos quaisquer questões de natureza financeira ou bancária resultantes de “operações de derivados”, antes se quedando a causa de pedir em relações jurídicas de direito civil, para o qual é competente o tribunal judicial.

Foi proferida decisão que, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal judicial para julgamento da presente acção, absolveu a ré da instância.

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Réu, de cujas alegações extraiu, em suma, as seguintes conclusões:

“1 ª – Existem nos dois contratos em discussão nos autos uma cláusula do seguinte teor: “A presente operação de derivados encontra-se sujeita à Lei Portuguesa. Para resolução de qualquer litígio que possa ocorrer em relação à operação de derivados que a presente confirmação visa regular, que as partes não consigam resolver previamente por mútuo acordo, fica desde já convencionado o recurso à arbitragem, a efectuar por 3 (três) árbitros que decidirão sem recurso e nos termos daquele Regulamento

2ª - O que a A. pretende com os presentes autos é ver serem resolvidos os dois contratos “swap”, por alteração anormal das circunstâncias em que as partes basearam a sua decisão de contratar.

3ª – As questões que estão abrangidas pela convenção arbitral são questões de natureza financeira ou bancária resultantes de operações de derivados.

4ª- A resolução de contratos por alteração anormal de circunstâncias é totalmente alheia a questões dessa natureza.

5ª - Para se determinar a natureza da questão em litígio há que atender aos articulados, em particular à causa pretendi e pedidos formulados na petição inicial apresentada em juízo, pois é por aquela que se vai aferir a posição a tomar.

6ª - Atentos os pedidos e causas de pedir, resulta estarmos no âmbito de relações jurídicas de direito privado civil, decorrentes da aplicação de normas do Código Civil, que são da competência exclusiva dos Tribunais Judiciais - artº 64º do C. P. Civil,.

7ª - Esta mesma questão foi suscitada no âmbito do processo que, com o nº 1387/11.5TBBCL, correu termos no 1º Juízo Cível Tribunal Judicial de Barcelos.

8ª - Pelos motivos acima indicados, a 1ª instância e este Venerando Tribunal declararam como competente o Tribunal Judicial e não o Tribunal Arbitral.

9ª - Sendo a mesma questão jurídica em discussão e sendo o mesmo Tribunal a decidir, não há motivos para, por via deste recurso, não ser proferido Acórdão semelhante.

10ª - A Recorrente alegou que os contratos em questão foram preparados de antemão pelo Recorrido, não tendo sido objecto de qualquer negociação, que não teve conhecimento prévio do seu clausulado e que não lhe foi dada qualquer explicação quanto ao teor das cláusulas e, mais concretamente, quanto à convenção arbitral.

11ª – Enquadrou, pois, tais contratos como sendo contratos de adesão.

12ª- Nos termos do artº. 660º nº 2 do CPC., o Tribunal deve decidir sobre todas as questões que as partes tenham trazido à sua apreciação, pelo que, discutindo-se a validade do compromisso arbitral nos termos invocados, estamos novamente no âmbito das relações jurídicas de direito privado civil que nada têm que ver com questões de direito financeiro, para o qual foi criado pelo R. o compromisso arbitral.

13ª – O artº. 21º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais refere que são absolutamente proibidas cláusulas que “excluam ou limitem de antemão a possibilidade de requerer tutela judicial para situações litigiosas que surjam entre os contratantes ou prevejam modalidades de arbitragem que não assegurem as garantias de procedimento estabelecidas na lei.”

14ª – O artº19º alínea g) da referida LCCG postula serem relativamente proibidas as cláusulas contratuais gerais que “de acordo com o quadro negocial padronizado (...) estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que o interesse da outra o justifiquem.”.

15ª – O A. alegou na sua p. i, grave inconveniente, sem correspondente vantagem para o Requerido, no estabelecimento do foro arbitral.

16ª- A douta sentença recorrida, ao considerar-se incompetente, violou o disposto no artº. 64º do C. P. Civil.

17ª- Por outro lado, ao não aplicar o Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, violou nomeadamente as limitações à arbitragem constantes dos artigos 19º g) e 21º h) de tal diploma, tendo incumprindo o disposto no artº 660º nº do C.P. Civil ao furtar-se à decisão de tal questão”.

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O Apelado apresentou contra alegações, concluindo pela improcedência do recurso interposto.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Apreciar se resultam ou não demonstrados todos os pressupostos de que depende a verificação da excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal judicial para o julgamento da presente acção.

III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

Foram aduzidos no despacho recorrido os seguintes fundamentos de facto e de direito:

“Apreciando e decidindo

Em termos fácticos, encontra-se assente que os contratos em causa nos autos, cuja resolução a autora pretende, são os que se acham insertos a fls. 41 a 46 e 88 a 94, nos quais ficou a constar a seguinte cláusula: “A presente operação de derivados encontra-se sujeita à Lei Portuguesa. Para resolução de qualquer litígio que possa ocorrer em relação à operação de derivados que a presente confirmação visa regular, que as partes não consigam resolver previamente por mútuo acordo, fica desde já convencionado o recurso a arbitragem, a efectuar por 3 (três) árbitros que serão designados, nos termos do regulamento do centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa/Associação Comercial de Lisboa, árbitros que decidirão sem recurso e nos termos daquele Regulamento. Para interposição de qualquer procedimento cautelar, ou para executar, se necessário, qualquer decisão final do tribunal arbitral, as partes elegem o foro do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa”.

Como se nos afigura clarividente, a citada cláusula enforma o estabelecimento de arbitragem voluntária, que, a par dos Julgados de Paz, se apresta como um dos meios de resolução alternativa de conflitos, procurando-se uma justiça mais rápida, mais informal e adequada aos interesses das partes e ao próprio desenvolvimento da economia e vida hodierna.

De harmonia com o disposto nos arts. 39º, nº4, e 42º, nº7, da Lei da Arbitragem Voluntária (doravante designada por LAV), reconhece-se à decisão arbitral a força de caso julgado material e, ainda, a força executiva que detém uma sentença judicial, sem necessidade de revisão ou homologação por via judicial.

A arbitragem emerge, assim, não como um mero negócio privado, mas antes como um mecanismo de resolução de conflitos no âmbito de uma relação jurídica pública relevante com os poderes necessários para se obter uma decisão dotada de autonomia, independência e imparcialidade e, nessa consonância, uma decisão justa para o diferendo.

Trata-se de um meio não judicial de exercer uma função e obter uma decisão que, nos seus vários contornos e alcance, é simétrica àquela, exactamente com as mesmas garantias para os cidadãos que por ele optem.

Com a celebração de uma convenção arbitrar produz-se necessariamente a perda de jurisdição dos tribunais comuns sobre aquela concreta relação jurídica, tal como decorre do preceituado nos arts. 96º, al.b), 278º, nº1, al.a) e 577º, do Código de Processo Civil), sendo que, de acordo com o previsto no art. 5º, nº1, da LAV, “o tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que se verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível”.

Ora, a nulidade manifesta é aquela que não carece da produção de qualquer prova complementar, incidindo, portanto, sobre os próprios requisitos formais ou da admissibilidade da convenção por eventual violação de norma imperativa que a impeça, vg, direitos indisponíveis.

Aliás, de acordo com o nº 4º daquele mesmo preceito, as questões da nulidade, ineficácia e inexequibilidade de uma convenção de arbitragem não podem sequer ser discutidas autónoma e judicialmente em acção de simples apreciação, nem em procedimento cautelar que tenha como finalidade impedir a constituição e funcionamento de um tribunal arbitral.

Mais à frente, no seu art. 18º, nº1, (que em citação infra é referido como 21º, nº1), a LAV consagra, de modo inequívoco que “o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.

Não incumbe, na senda do exposto, ao tribunal judicial onde foi proposta e distribuída a acção apreciar se a convenção arbitral resulta de um contrato de adesão, se foi pré-elaborada e apenas submetida à assinatura dos outorgantes sem qualquer conhecimento, esclarecimento ou discussão negocial; mesmo nos contratos de adesão não deverá o tribunal judicial, face à referida prioridade decorrente da convenção arbitral, averiguar se a ré cumpriu o ónus de informação, comunicação e esclarecimento para efeitos de eventual exclusão da cláusula ao abrigo do disposto nos arts. 1º, 5, 6º e 8º, do D.L. nº 446/85, de 25 de Outubro.

Outrossim não cumpre ao tribunal comum avaliar e decidir se a convenção arbitral envolve graves inconvenientes para os autores, sem que os interesses da ré o justifiquem (art. 19º, al.g)”, do mencionado diploma dos contratos de adesão.

“A propósito, resulta também do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2011, acompanhando Lopes dos Reis e o acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2007, que vigora entre nós o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência (…), princípio este que, “na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral. Com efeito, o art. 21º, nº1 da Lei de Arbitragem Voluntária consagra expressis verbis que o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção; (…) apenas nos casos em que for manifesta a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção (Ac. R. G. de 30.01.2014, proc. nº 1257/13.2TBVCT.G1, in http://www.dgsi.pt; Lopes dos Reis, A excepção da Preterição do Tribunal Arbitral).

De tudo o exposto decorre que, dando aplicação ao disposto no art. 5º, nº1, da LAV, deve julgar-se este tribunal como materialmente incompetente para decidir a presente acção, absolvendo-se a ré da instância, sendo certo que, apelando às regras processuais civis, a incompetência em razão da matéria é uma excepção dilatória (art. 577º, al.a), do CPC), de conhecimento oficioso (art. 578º do CPC), que dá origem à absolvição da instância (arts. 99º, nº1, e 576º, nº2, do CPC).

Decisão

Nos termos de tudo quanto acaba de se expender, decide-se julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal judicial para julgamento da presente acção, em consequência do que se absolve a ré da instância.

Custas pela autora (art. 527º, do Código de Processo Civil).

Registe e notifique.“

Fundamentação de direito.

Nos contratos que são o cerne da causa de pedir da presente acção acordaram as partes em submeter a arbitragem as questões litigiosas derivadas desse acordo, estando, contudo, em discussão, a amplitude ou âmbito de aplicação dessa cláusula.

Estamos pois perante uma cláusula compromissória – art. 1º, n.º 2, 2ª parte da Lei 63/2011, de 14/12 –, já que com tal convenção as partes cometeram a arbitragem (à decisão de árbitros) os eventuais litígios emergentes da relação jurídica contratual que entre si estabeleceram ao outorgarem o referido contrato.

Apesar de reservar para os tribunais a administração da justiça, incumbindo-lhes a tarefa de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, a repressão da violação da legalidade democrática e o dirimir dos conflitos de interesses públicos e privados (art. 205º da C.R.P.), prevê a Lei Fundamental a existência de tribunais arbitrais (art. 211º, n.º 2 da C.R.P.).

O exercício da função judicial é assim constitucionalmente reservada aos tribunais órgãos de soberania, sendo a jurisdição plena exercida pelos juízes estaduais.

Os tribunais arbitrais voluntários – emanação da autonomia privada – não perdem a sua característica de instituições de natureza privada para se transformarem em órgãos do Estado – é o Estado que, reconhecendo a utilidade pública da arbitragem voluntária, quebra o monopólio do exercício da função jurisdicional pelos seus órgãos atribuindo à decisão os efeitos próprios da sentença judicial: a força de caso julgado e a força executiva.

A arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado[1].

Esta quebra do monopólio estadual da função judicial restringe-a a lei aos litígios que por lei especial não estejam submetidos exclusivamente a tribunal judicial ou arbitragem necessária e que respeitem a interesses de natureza patrimonial – art. 1º, n.º 1 da Lei 63/2011, de 14/12.

A convenção de arbitragem, assentando na autonomia privada, tem de ser acordada pelas partes, deve ser reduzida a escrito (art. 2º, n.º 1, da Lei 61/2011) – considerando-se satisfeita esta exigência quando a convenção conste de escrito assinado pelas partes – e deve especificar (no caso da cláusula compromissória) a relação jurídica a que os litígios respeitem (art. 2º, n.º 6).

Duma tal convenção nasce um direito potestativo para as partes, que as vincula à constituição de um tribunal arbitral para os litígios nela previstos, e que, não afectando de forma directa a relação jurídica material, é um acessório dela, pois que não constituindo a solução para o litígio é o meio de as partes o solucionarem[2].

Uma tal convenção – desde que validamente celebrada – é obrigatória, desde que não revogada pelas partes que a convencionaram (e tal revogação deve ser feita por escrito assinado por ambas, até à pronúncia da decisão – art. 4º, n.ºs 2 e 3, da Lei 63/2011) e recorrendo uma das partes ao tribunal judicial, por decorrência do disposto no artigo 5, nº 1, da Lei 63/2011, “o tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que se verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível”, sendo que, em conformidade com o nº 4, desse mesmo preceito, “as questões da nulidade, ineficácia e inexequibilidade de uma convenção de arbitragem não podem sequer ser discutidas autónoma e judicialmente em acção de simples apreciação, nem em procedimento cautelar que tenha como finalidade impedir a constituição e funcionamento de um tribunal arbitral”.

No caso dos autos, o litígio não está submetido por qualquer lei à apreciação exclusiva de tribunal judicial ou a arbitragem necessária e respeita a interesses de natureza patrimonial, e, tendo a convenção sido celebrada por escrito, especifica a relação jurídica a que respeitam os eventuais litígios que por essa forma as partes pretenderam ver dirimidos e não foi revogada.

Contrariando a convenção de arbitragem acordada, a autora propôs a presente acção neste tribunal judicial.

Parece-nos, contudo, estar-se perante um litígio reservado pelas partes à convenção arbitral, pois que assenta a sua causa de pedir em relação jurídica que as partes especificaram como sendo a que implicaria o recurso à arbitragem, constando da aludida e supra descrita cláusula que “a presente operação de derivados encontra-se sujeita à Lei Portuguesa”, e, “para resolução de qualquer litígio que possa ocorrer em relação à operação de derivados que a presente confirmação visa regular, que as partes não consigam resolver previamente por mútuo acordo, fica desde já convencionado o recurso a arbitragem (...)”.

Para excluir a relação jurídica em casa nos autos do âmbito de aplicação da cláusula compromissória, começa a Recorrente por alegar que, discutindo-se a validade do compromisso arbitral, estamos no âmbito das relações jurídicas de direito privado civil que nada têm que ver com questões de direito financeiro, para o qual foi criado pelo R. o compromisso arbitral.

Ora linear evidência se nos afigura resultar a inconsistência desta argumentação, pois que, deduzindo nos presentes autos uma pretensão de resolução dos contratos de swap celebrados com R., com fundamento em materialidade alegadamente integrante de uma alteração anormal da circunstâncias em que terá alicerçado a sua decisão de contratar, a questão ou litígio neles suscitado subsume-se ou integra as supra referidas e previstas na mencionada cláusula compromissória.

E isto, desde logo, e em primeiro lugar, porque é o que resulta de uma interpretação que, quase diríamos, literal, de tal cláusula, uma vez que o que aí vem referido é que o que se pretende submeter à arbitragem é a “resolução de qualquer litígio que possa ocorrer em relação à operação de derivados”, e não apenas, como pretende agora a Recorrente, “questões de natureza financeira ou bancária resultantes de operações de derivados”.

E incontroverso se nos afigura igualmente que, para a eventualidade de surgimento de uma qualquer causa de resolução dos contratos em referência nos autos, terão as partes, inquestionavelmente, pretendido submeter o litígio daí decorrente ao tribunal arbitral.

A resolução é, como se sabe, um acto levado a cabo por uma das partes do contrato, durante a vigência do mesmo, com vista à dissolução do vínculo contratual.

A questão em litígio a mais se não subsume do que à de saber se, uma vez celebrado o aludido contrato de swap, e tendo ocorrido uma alteração anormal das circunstâncias existentes à data dessa celebração, que torne o contrato mais gravoso para uma das partes, deve esta, mesmo assim, cumpri-lo tal como foi ajustado ou pode dá-lo sem efeito ou, pelo menos, satisfazê-lo em termos menos onerosos, ou se, pelo contrário, mesmo verificando-se essas circunstâncias, tendo em atenção a classificação do contrato de swap como integrando a categoria dos contratos aleatórios, lhe não será de aplicar o regime do artigo 437º do Código Civil, com base em alteração das circunstâncias, uma vez que aí se prescreve que tal regime apenas será aplicável desde que a exigência das obrigações assumidas pela parte afecte os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos do contrato, ou seja, nunca será aplicável, seja qual for a situação (afectando ou não esses princípios), quando esteja coberta pelos riscos inerentes ou intrínsecos do contrato celebrado.

E, como é óbvio, num mundo em que nada mais é absoluto, o contrato, para subsistir, teve que aderir ao relativismo que se tornou condição da sua sobrevivência no tempo em virtude da incerteza generalizada, da globalização da economia e da imprevisão institucionalizada, sendo que, não raramente os contratos são celebrados em determinado ambiente económico ou social que, posteriormente, se altera profundamente.

Perante a verificação de tais e imprevisíveis mudanças, no acto da manifestação da vontade das partes, mas que acabam por vir a tornar-se uma realidade incontornável capaz de onerar de sobremaneira a situação jurídica de um dos contraentes, se levantou a questão da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias.

Atentos e com base nesta indesmentível realidade se começou a contruir a teoria da base negocial, como constituindo aquela realidade que envolve inicialmente o negócio e que pode sofrer tal alteração que no momento do cumprimento da prestação, este se revele uma injustiça para o devedor, sempre tendo em vista “pôr o direito de acordo com a justiça e a equidade e reconhecer, por isso, um direito de resolução ou de modificação do contrato quando circunstâncias imprevisíveis alterem tão profundamente a relação entre as prestações que não possa razoavelmente exigir-se o cumprimento do contrato nos termos em que foi feito”[3].

Posto isto, obviamente que, como subjacente à celebração de um qualquer contrato, que não seja de execução instantânea, está sempre uma ideia de estabilidade, de segurança, e se espera o seu integral cumprimento, daí toda a teorização dogmática da “alteração anormal das circunstâncias”, como causa de resolução de contratos.

E, como refere Almeida e Costa, com relação á questão de saber se o contrato de swap se inclui nos previstos no artigo 437, nº 1, do C.C., atentos os riscos próprios de tal contrato, como contrato aleatório que é, “não parece contrariar a lei a aceitação de uma fórmula que admita poderem os contratos aleatórios «ser resolvidos ou modificados quando a alteração das circunstâncias exceder apreciavelmente todas as flutuações previsíveis na data do contrato», com a possível ressalva de as partes não se haverem sujeitado a efeitos análogos resultantes de outras causas”[4].

Na verdade, os contratos de swap constituem um instrumento financeiro derivado nominado, o que é o mesmo que dizer que os “negócios em que se consubstanciam envolvem prestações negociais cujo «an» e «quantum» não é possível determinar no momento da respectiva celebração para uma ou ambas as partes, dependendo de um evento futuro de natureza estocástica, apenas determinável em definitivo no momento da respectiva execução”. Mas significa mais: trata-se de negócios em que o “risco” fornece o próprio objecto contratual, no sentido em que as partes contratantes, mais do que simplesmente celebrá-los num estado de défice informativo, visam justamente negociar sobre tal incerteza, fazendo desta a verdadeira causa e objecto negociais.

“Sublinhe-se, porém, que pode ser diferenciada a distribuição do risco contratual: ao passo que uma boa parte dos derivados possuem uma estrutura simétrica de risco – já que, implicando deveres recíprocos de liquidação física ou pecuniária para ambas as partes, envolvem uma concomitante distribuição mútua de ganhos e perdas (verbi gratia, futuros, swaps), outros existem que se caracterizam por um perfil de risco assimétrico, em que uma das partes sabe de antemão qual o seu risco ou perda máximos (é o caso das opções, cujo comprador ou beneficiário sabe à partida que incorre numa perda máxima correspondente ao respectivo prémio)”.[5]

Como salienta Maria Clara Calheiros, “o decurso do tempo exerce influência sobre o swap, nomeadamente sobre o conteúdo e montante das prestações que este envolve. Basta recordar que as partes se obrigam, por seu intermédio, a realizar uma série de pagamentos, cujo montante exacto dependerá do cálculo a ser feito em cada momento, segundo regras contratualmente determinadas”.

Ora, sendo uma realidade incontornável, com relação a qualquer contrato, por maioria de razão, as alterações anormais das circunstâncias, indubitavelmente se revestem, em abstracto, de um grande relevo no respectivo desenvolvimento e vida do tipo de contratos em causa nos autos, de swap de taxa de juro, que, portanto, e como se deixou dito, se integram na tipologia dos contratos aleatórios, “em cuja essência intervém a álea, pois os seus efeitos dependem de um facto futuro e incerto, pelo menos temporariamente”, resultando, por consequência, de linear evidência que, ao submeterem a “resolução de qualquer litigio que possa ocorrer em relação à operação de derivados”, à arbitragem, pretenderam inquestionavelmente as partes submeter litígios do tipo e com os fundamentos do presente, a esse modo de resolução de conflitos contratual e privado, já que se está perante uma “vicissitude” normal e inerente à celeridade com que tudo se processa e interliga na vida moderna, designadamente, ao nível dos instrumentos financeiros do mercado de capitais, que têm por finalidade primordial o financiamento e/ou a cobertura do risco da actividade económica das empresas, e logo, em absoluto previsível, se não nos seus exactos termos, pelo menos, na potencialidade ou possibilidade da sua ocorrência.

Assim, sendo indubitável que o presente litígio se encontra abrangido pela aludida cláusula compromissória, vejamos agora se se verifica alguma das restantes causas alegadas e passíveis de levar à sua exclusão ou inaplicabilidade.

Em sustentação e justificação da sua conduta processual de recurso aos tribunais judiciais e, simultaneamente, em defesa da inaplicabilidade da cláusula compromissória, alega ainda a Recorrente, em súmula, o seguinte:

- Considerando os contratos como sendo contratos de adesão, não foram preparados de antemão pelo Recorrido, não tendo sido objecto de qualquer negociação, não teve conhecimento prévio do seu clausulado e não lhe foi dada qualquer explicação quanto ao teor das cláusulas e, mais concretamente, quanto à convenção arbitral que, por consequência, se deve considerar excluída, razão pela qual, discutindo-se a validade do compromisso arbitral nos termos invocados, está-se no âmbito das relações jurídicas de direito privado civil.

- Considera ainda terem sido violados os limites legalmente estipulados para a convenções arbitrais, a saber:

- O previsto no artº. 21º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais que refere serem absolutamente proibidas cláusulas que “excluam ou limitem de antemão a possibilidade de requerer tutela judicial para situações litigiosas que surjam entre os contratantes ou prevejam modalidades de arbitragem que não assegurem as garantias de procedimento estabelecidas na lei”.

– E o previsto no artº 19º alínea g), do D.L. 446/85, de 25/10, que postula serem relativamente proibidas as cláusulas contratuais gerais que “de acordo com o quadro negocial padronizado (...) estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que o interesse da outra o justifiquem”.

No que concerne à alegada invalidade do compromisso arbitral, muito pouco, ou mesmo nada, haverá a acrescentar à pertinente e consistente fundamentação aduzida na decisão recorrida a esse respeito, quando refere que, “de acordo com o nº 4º daquele mesmo preceito (do artigo 5, nº 1, da Lei 63/2011), as questões da nulidade, ineficácia e inexequibilidade de uma convenção de arbitragem não podem sequer ser discutidas autónoma e judicialmente em acção de simples apreciação, nem em procedimento cautelar que tenha como finalidade impedir a constituição e funcionamento de um tribunal arbitral.

Mais à frente, no seu art. 18º, nº1, (que em citação infra é referido como 21º, nº1), a LAV consagra, de modo inequívoco que “o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.

Não incumbe, na senda do exposto, ao tribunal judicial onde foi proposta e distribuída a acção apreciar se a convenção arbitral resulta de um contrato de adesão, se foi pré-elaborada e apenas submetida à assinatura dos outorgantes sem qualquer conhecimento, esclarecimento ou discussão negocial; mesmo nos contratos de adesão não deverá o tribunal judicial, face à referida prioridade decorrente da convenção arbitral, averiguar se a ré cumpriu o ónus de informação, comunicação e esclarecimento para efeitos de eventual exclusão da cláusula ao abrigo do disposto nos arts. 1º, 5, 6º e 8º, do D.L. nº 446/85, de 25 de Outubro”.

A propósito de idêntica questão, refere-se no acórdão desta Relação, de 30/01/2014, o seguinte: “Na nossa ordem jurídica vigora o princípio de que os tribunais arbitrais são competentes para conhecer da sua própria competência, devendo os tribunais estaduais absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral, ainda que, para o efeito, seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela está inserida”[6].

E, na respectiva fundamentação, com relação à questão de saber se, havendo convenção arbitral, o tribunal estadual onde a acção é proposta pode conhecer da questão da competência, mais concretamente, da preterição de tribunal arbitral, pode ler-se que, “defendendo-se uma solução de compromisso, nem o tribunal estadual deve, em primeira linha, apreciar exaustivamente a jurisdição do tribunal arbitral, por desrespeitar o princípio da autonomia privada ao coartar a margem de apreciação do tribunal arbitral, assim contrariando a vontade das partes (no momento da celebração da cláusula arbitral), nem se deve perder o tempo da demora que sempre existe na constituição do tribunal arbitral quando seja evidente a nulidade da convenção arbitral.

Esta tese respeita o princípio da autonomia privada, a desjudicialização pretendida pelas partes aquando da celebração da convenção; por outro, não o leva ao exagero de não permitir ao tribunal judicial apreciar uma manifesta inexistência ou invalidade da convenção”.

Foi esta a solução acolhida pela nova LAV, ao prever no seu art.º 5º, nº 1, que “o tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível”.

“Os árbitros são, assim, os primeiros juízes da sua competência, estabelecendo-se uma regra de prioridade cronológica quanto à tomada de decisão sobre a competência, vigorando, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral.

Esta foi a solução consagrada no artº 21º nº 1 da Lei de Arbitragem Voluntária, onde se prescreve que “o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela insira, ou a aplicabilidade da referida convenção” e que “apenas nos casos em for manifesta a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, o juiz pode declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção”.

A nulidade manifesta é a invalidade que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo assim apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade.

(…)

Se estiver em causa a arbitrabilidade, a manifesta nulidade deve apenas incidir sobre aqueles direitos cuja indisponibilidade esteja fora de discussão doutrinária.

(…)

É, mais uma vez, esta formulação que melhor respeita a autonomia das partes, a sua vontade, e, sobretudo, a autonomia da jurisdição arbitral, sem prejuízo de o tribunal estadual vir a conhecer da questão da competência em momento posterior, em recurso interposto da decisão do tribunal arbitral que dela conheça e nas condições em que a lei o admite. Ou seja, da competência do tribunal arbitral para decidir sobre a sua própria competência não decorre que esta decisão seja definitiva”.[7]

Relativamente às invocadas violações dos limites legalmente estipulados para a convenções arbitrais, e mais um vez, muito pouco haverá a acrescentar à posição que, em nosso atender, de modo coerente e assertivo, por razões similares às acabadas de expender, se defende na decisão recorrida, quando aí se refere que “não cumpre ao tribunal comum avaliar e decidir se a convenção arbitral envolve graves inconvenientes para os autores, sem que os interesses da ré o justifiquem (art. 19º, al.g)”, do mencionado diploma dos contratos de adesão”.

E - continua -,“a propósito, resulta também do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2011, acompanhando Lopes dos Reis e o acórdão da Relação de Lisboa de 05.06.2007, que vigora entre nós o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência (…), princípio este que, “na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral”.

Estas as razões porque não cumpre ao tribunal avaliar e decidir destes aspectos.

Mas, e mesmo que assim se não entendesse, nunca se poderia considerar que as alegadas dificuldades, sem as correspectivas vantagens, para a Recorrente, seriam passíveis de fundamentar a inexigibilidade do cumprimento do acordo de peritagem, dificuldades essas, que à luz do direito das obrigações, quando muito, apenas poderiam ser, em abstracto, enquadráveis naquilo a que doutrinalmente se chama a difficultas praestandi.

Mas a impossibilidade definitiva da obrigação, como causa de extinção da obrigação, a que alude o art. 790º, n.º 1 do C.C., só ocorre nos casos em que a prestação a cargo do devedor se tornou verdadeiramente impossível, seja por força da lei, por força da natureza ou por acção do homem, não bastando, para o efeito, que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor, sendo, assim, afastada a doutrina do limite do sacrifício[8].

Na verdade, “a prestação torna-se impossível quando, por qualquer circunstância (legal, natural ou humana), o comportamento exigível do devedor, segundo o conteúdo da obrigação, se torna inviável.

Para que a obrigação se extinga, é necessário, segundo a letra e o espírito da lei, que a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível, seja por força da lei, seja por força da natureza (caso fortuito ou de força maior) ou por acção do homem.

Não basta que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor, como pode suceder com frequência nos períodos de mais acentuada inflação monetária ou de súbita valorização de certos produtos".

Causa de extinção da obrigação é a impossibilidade (física ou legal) da prestação (a que pleonasticamente se poderia chamar impossibilidade absoluta), não a simples difficultas praestandi, a impossibilidade relativa”.[9]

Ora, como se disse, permite o Estado que o seu monopólio do exercício da função judicial seja quebrado nos casos em que admite a arbitragem voluntária.

Todavia, esta brecha no monopólio estadual da administração da justiça só se justifica e só pode subsistir se, e apenas, quando, aqueles que optem, dentro do exercício da sua autonomia privada e do seu poder de autodeterminação, por utilizar um tribunal arbitral, a ele possam efectivamente aceder.

E, sempre que tal possibilidade se venha a tornar, na prática, impossível, nos termos descritos, o referido dever do Estado de prover a todos o acesso ao direito tem de afirmar-se e tem esse interessado no acesso à justiça de ser admitido a utilizar os tribunais estaduais, pois que, a aludida excepção ao monopólio estadual da função judicial não pode nunca implicar o incumprimento do dever de não denegar o acesso à justiça a quem quer que seja.

E isto porque, como é óbvio, a quebra do monopólio do Estado na função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) só se mostra permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos) os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania tribunais o Estado tende a conseguir.

Com efeito, o limite é sempre o direito de acesso à justiça consagrado constitucionalmente - art. 20º da C.R.P. -, que se situa num plano superior ao direito à arbitragem de outros contratantes.

O princípio da autonomia da vontade não é absoluto, sendo que, os direitos fundamentais não podem, em caso algum, ser postos em causa pela execução de um contrato, razão pela qual, sempre que de demonstrem factores dos quais se fora inferir a denegação a alguém do acesso de á justiça arbitral (a que voluntariamente e de acordo com o seu poder de autodeterminação se submeteu), deverá então sobrepor-se de novo o dever do Estado de a todos garantir o acesso à justiça, uma vez que a sua afirmação suplanta a autonomia privada contida na convenção arbitral.

Como evidente decorre, assim, que, sendo a arbitragem uma forma de acesso à justiça, tal como o são os tribunais estaduais, quando o cumprimento da cláusula compromissória possa implicar o absoluto comprometimento da concretização do valor fundamental do nosso ordenamento, em que consiste o acesso à justiça, deverá ser excluída a sua aplicação, pois, em nenhuma situação, a execução dum contrato pode significar a negação desse valor.

Na verdade, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito potestativo a exigir a arbitragem, temos de concluir que apenas numa situação comprovada de absoluta impossibilidade, e não de mera difficultas praestandi - em respeito pela autonomia privada -, que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, poderá fundamentar e justificar o seu incumprimento.

É que, é apenas a impossibilidade absoluta, e não também relativa – difficultas praestandi -, que invalida o negócio, quando originária, e exonera automaticamente o devedor, quando superveniente, suposto lhe não seja imputável, pois faz extinguir a obrigação.

Ora, na situação vertente, alegou a Recorrente a existência de “grave inconveniente para si de deslocação de legais representantes, testemunhas e mandatário a Lisboa, sede do Tribunal Arbitral, sacrifício esse a que não corresponde nenhum benefício óbvio para o R., pois o assunto em causa foi discutido na sua agência de Guimarães, com os seus funcionários locais”.

Sem embargo de se reconhecer a relevância, em termos de comodidade e conveniência, dos argumentos aduzidos pela Recorrente, o certo é que, incontroverso resulta que os fundamentos em que se alicerça se não reconduzem a uma impossibilidade que torne a prestação irrealizável, física ou legalmente, representando, isso sim, uma mera dificuldade da prestação, que, contudo, continua a ser realizável, não representando, sequer, sacrifícios ou esforços excepcionais.

Por último, no que concerne á aplicabilidade da exclusão contida no artigo 21, do D.L. 446/85, de 25/10, que a Recorrente se limita a invocar, sem a adução de quaisquer e concretas razões consistentes sedimentadoras desse seu entendimento, dada a evidência da questão, apenas diremos que, no caso vertente, não se está perante uma situação que lhe possa ser subsumível uma vez que não foi excluída ou limitada, de antemão ou antecipadamente, a possibilidade de requerer tutela judicial, nem se está perante uma modalidade de arbitragem que não assegure os procedimentos estabelecidos na lei.

Improcede, assim, e na íntegra, a presente apelação.

Sumário – artigo 667, nº 3, do C.P.C..

I- Os tribunais arbitrais são competentes para conhecer da sua própria competência, devendo os tribunais estaduais absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral, e isto mesmo que, para o efeito, haja necessidade de apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela está inserida.

II- Destarte, uma vez instaurada a acção nos tribunais estaduais e invocada a excepção de preterição de tribunal arbitral, apenas em casos de manifesta nulidade, ineficácia ou de inaplicabilidade da convenção de arbitragem - ou seja, que não necessita de mais prova para ser apreciada, recaindo apenas na consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade -, pode o juiz declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção.

III- A quebra do monopólio do Estado na função judicial (ao permitir a arbitragem voluntária) apenas se mostra permitida e justificada quando através dela possam ser conseguidos (pelo menos) os mesmos objectivos que através dos órgãos de soberania tribunais o Estado tende a conseguir.

IV- Por essa razão, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental, que se encontra em plano superior ao direito potestativo a exigir a arbitragem, unicamente a verificação da existência de uma situação de absoluta impossibilidade, e não tão-somente de mera difficultas praestandi (em respeito pela autonomia privada), que torne inexigível que seja cumprido o acordo de arbitragem, constitui legitimo fundamento justificativo do seu incumprimento.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante.

Guimarães, 25/09/2014.

Jorge Teixeira

Manuel Bargado

Helena Melo

_________________________

[1] Cfr. Acórdão do S.T.J. de 18/01/2000, in C.J., Acórdãos do S.T.J., Ano VIII, Tomo I, pag. 28 e ss., maxime 30.
[2] Cfr. Acórdão citado na nota anterior.
[3] Cfr. VAZ SERRA, “Resolução ou modificação dos contratos…”, p. 304.
[4] Cfr. Direito das Obrigações, 5ª edição, páginas 271 a 273 e Vaz Serra, Anotação ao Acórdão do STJ de 17/02/1980, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113º, página 311.
[5] Cfr. José Engrácia Antunes, “Os derivados”, in Cadernos do Mercado de Valores Imobiliários n.º 30, página 101 e Acórdão do S.T.J., de 10/01/2013, processo nº 1387/11.5TBBCL.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães, de 30/01/2014, processo nº 1257/13.2TBVCT.G1, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães citado na nota anterior.
[8] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4ª edição, Vol. II, pags. 66 a 68 e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª edição revista e aumentada, pags. 991 e ss.
[9] Cfr. Antunes Varela, ob cit., pgs 65 e 66.