Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
540/14.4GCBRG.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: ACUSAÇÃO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
REPARAÇÃO
COMPETÊNCIA DO JUIZ JULGADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Tendo sido deduzida acusação e não sendo requerida instrução, o processo segue para a fase de julgamento, cabendo, então, ao juiz de julgamento pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, nos termos do artº 311º, nº 1, do CPP.
II) Se estiver em causa a falta de notificação do Mº Pº ao arguido e mesmo que se entenda que o juiz deve reparar oficiosamente essa irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Mº Pº essa reparação. É que não cabe na esfera de competência do juiz julgador censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito da processo comum (singular) com o nº 540/14.4GCBRG que corre termos na Secção Criminal (J2) da Inst. Local de Braga, Comarca de Braga, e em que são arguidos H. F. e “…, Lda.”, na sequência de despacho proferido pela Meritíssima Juiz que considerou ser irregular a notificação da acusação ao arguido H. F. e ordenou a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público, veio o Ministério Público interpor o presente recurso pedindo que se ordene que o tribunal a quo subsitua o despacho recorrido por outro que receba a acusação e designe data para a audiência de julgamento.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
I. Salvo o devido respeito, o despacho de fls 310 carece de qualquer fundamento legal, não existindo tão-pouco, qualquer irregularidade na notificação da acusação do arguido.
II. Com efeito, o arguido a fls 88, aquando do seu interrogatório (depois da prestação do TIR), indicou expressamente nova morada para efeitos de notificação por via postal simples e foi nessa morada que foi notificado (fls 265).
III. Acresce, além do mais que, mesmo que em tese se admita que existe irregularidade na notificação da acusação, o que não se concede, sempre estaríamos perante o vício previsto no art. 123º, nº 1 e não no previsto no nº 2, do mesmo artigo, como implicitamente o tribunal entendeu, ainda que não o tenha expressamente invocado.
IV. Pelo que, não podia o tribunal dele conhecer oficiosamente, apenas podendo ser o vício arguido pelos interessados no prazo aí previsto.
V. Mas mesmo que, em última instância, se admitisse que o tribunal de julgamento pudesse conhecer oficiosamente de tal irregularidade, ainda assim, o tribunal não pode devolver os autos ao Ministério Público para efeitos de ser corrigida uma eventual irregularidade de notificação da acusação, sob pena de violação do art. 311º do CPP e dos princípios do acusatório e da autonomia e independência do Ministério Público, previstos nos arts. 32º, nº 5 e 219º, respectivamente, da CRP.
VI. Neste último caso, a eventual irregularidade sempre deveria ser corrigida pela secretaria do tribunal e não através da devolução dos autos ao Ministério Público para esse efeito.
VII. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto nos arts. 113º, nº 1, 123º, nº 1 e 311º, nº 1, todos do CPP.
VIII. Além do mais, o despacho que determina a devolução dos autos ao Ministério Público, viola o disposto nos arts. 32º, nº 5 e 219º, ambos da CRP.
IX. Assim, deverá o tribunal a quo proferir despacho a receber a acusação e designar dia para audiência de julgamento, nos termos do art. 312º do CPP.
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Não houve contra-alegações.

A Mm.ª Juiz sustentou o despacho recorrido nos seus precisos termos e acrescentou as seguintes considerações:
- não cabe à secretaria judicial suprir irregularidades do inquérito; e
- os autos não poderão ser remetidos à distribuição para a fase de julgamento sem ter decorrido o prazo para abertura de instrução, ressalvada a situação prevista no art. 283º, nº 5 do Cód. Proc. Penal, que não é o caso.

Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer em que defende a procedência de recurso e cita pertinente jurisprudência a favor desta posição.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

A decisão sob recurso é a seguinte:
Compulsados os autos, constata-se que o arguido H. F. foi notificado da acusação, por via postal simples com prova de depósito (fls 263 e 265).
Acontece que, embora o nº 6 do Artigo 283º do Código de Processo Penal preveja expressamente a possibilidade de notificação do despacho de acusação por via postal simples, o certo é que esta forma de notificação, com prova de depósito, apenas pode ser utilizada para a morada indicada pelo arguido no Termo de Identidade e Residência que tenha prestado nos autos, ou para outra que posteriormente indique no processo (cfr. nº 3, al. c) do Artigo 196º do Código de Processo Penal).
Ora, confrontado TIR de fls 22 e a prova de depósito de fls 265, logo se alcança que a notificação da acusação foi feita ao arguido em morada diversa da constante do TIR.
Assim se impondo a repetição da notificação do arguido, ilegalmente efectuada, sem o que não se pode considerar ter já decorrido o prazo para requerer a abertura da instrução.
Consequentemente, declaro irregular a notificação do despacho de acusação feita ao arguido H. F. , determinando a devolução dos autos ao Ministério Público, para os efeitos tidos por convenientes.
Notifique e dê as competentes baixas processuais, inclusive na distribuição.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, cumpre averiguar se:
- a notificação do despacho de acusação é irregular;
- devido a irregularidade da notificação do despacho de acusação ao arguido, podem os autos ser devolvidos aos Serviços do Ministério Público para reparação.
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Compulsados os autos, verificamos que, de facto, o arguido quando prestou TIR indicou uma morada (cfr. fls. 22) mas, tendo sido posteriormente interrogado nos serviços do DIAP, indicou nova morada (cfr. fls. 88).
Assim, tendo sido notificado do despacho acusatório por carta com prova de depósito remetida para esta segunda morada (cfr. fls. 265), temos que concluir que tal notificação foi efectuada de forma regular porque o foi nos termos do disposto no nº 6 do art. 283º do Cód. Proc. Penal.
Pelo que o despacho recorrido sempre carecerá de ser revogado.

Mas ainda se dirá e quanto a saber se o Juiz do julgamento tem poderes para determinar ao Ministério Público a prática de qualquer acto na fase anterior de Inquérito…
Havendo notícia de crime inicia-se um inquérito com o objectivo de apurar se foi efectivamente praticado um crime, fase que termina com um despacho, ou de arquivamento, ou de acusação (art. 276º, nº 1, do Cód. Proc. Penal).
A competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público (cfr. arts. 219º da Constituição da República Portuguesa e 262º do Cód. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional.
Assim é por força da estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal (consagrada no art. 32º, nº 5, da CRP) que significa, fundamentalmente, que a acusação – que define e fixa o objecto do processo, imputando um crime a determinada pessoa – tem que ser deduzida por um órgão distinto do julgador. De resto, a vinculação temática do tribunal, a garantia de que o juiz do julgamento não interveio na definição do objecto do processo e a garantia de independência do Ministério Público em relação ao juiz, constituem corolários decisivos do princípio do acusatório.
Todavia, o princípio do acusatório e o facto da direcção do Inquérito competir ao Ministério Público, não significa que, ultrapassada a fase de inquérito, o juiz não possa sindicar a legalidade dos actos praticados nessa fase.
Tendo sido deduzida acusação e não sendo requerida instrução, o processo segue para a fase de julgamento, cabendo, então, ao juiz (de julgamento) pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, nos termos do art. 311º, nº 1, do Cód. Proc. Penal.
E sendo pacífico que no despacho a que se refere aquele art. 311º “não é admissível ao juiz censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação de forma a abranger outros factos e/ou outros agentes, ou, simplesmente, para reformular a acusação” (cfr. acórdão do TRE, de 11.07.1995, in CJ XX, tomo IV, p. 287), já se divergem as opiniões quando se procura saber se o juiz (de instrução ou de julgamento) pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito ou para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido.
De facto, já se defendeu que o juiz pode devolver os autos ao Ministério Público se entender que não foram efectuadas todas as diligências necessárias para a notificação da acusação ao arguido (cfr. o acórdão do TRP, de 09.05.2001, in CJ XXVI, tomo III, p. 230) com o argumento de que o processo penal deve assegurar todas as garantias de defesa e uma deficiente notificação é “susceptível de afectar o direito de defesa do arguido – na medida em que deste faz parte o direito conferido ao arguido de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, com vista a evitar a sua submissão a julgamento”, pelo que se imporia a “possibilidade da sua reparação oficiosa, nos termos do disposto no nº 2 do art. 123º do C. Penal” – no mesmo sentido cfr. o acórdão do TRC, de 24.11.1999, in CJ XXIV, tomo V, p. 51.
Acontece que temos para nós que a falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa, já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação – podendo então requerer instrução, para o que disporá do prazo normal de 20 dias.
Estamos, assim, perante uma irregularidade com previsão no nº 1 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, e não no nº 2. Desta forma, a falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14.04.2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294).
Mas ainda que fosse entendimento do Juiz que era de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação. Quando o nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinando que os respectivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal situação contém implícita uma ordem para que proceda à notificação da acusação ao arguido – decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz. De facto, sendo autónomas a intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, “não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” (cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006 (pesquisado in www.dgsi.pt) – assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2ª edição actualizada, ps. 790/791) que, em anotação ao artigo 311º defende que “pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação”.
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Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que será substituído por outro que receba a acusação e conheça das restantes questões a que se refere o art. 311º do Cód. Proc. Penal.
Sem custas.

Guimarães, 6.02.2017
(processado e revisto pela relatora)
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(Alda Tomé Casimiro)
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(Paula Maria Roberto)