Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
149/11.4EAPRT.G1
Relator: FILIPE MELO
Descritores: PERDIMENTO
PERDA A FAVOR DO ESTADO
PERDA DE COISA RELACIONADA COM O CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – Em processo penal, a declaração de perda de objetos apresenta-se como uma espécie de medida de segurança, operando somente nos casos em que existe perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento, advindo a perigosidade não do instrumento em si, mas da sua ligação com o agente. Se não há perigosidade criminal, deve proceder-se à restituição, assim se contrariando uma certa sacralização social do instrumento do crime.
II – Deve ser restituído o gasóleo apreendido como “meio de prova”, em processo em que não chegou a haver acusação, por ter sido decidida a suspensão provisória, se não se demonstrar que está corrompido ou adulterado.
Decisão Texto Integral: Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

No Tribunal Judicial de Monção, a fls. 674 foi proferido o seguinte despacho:
O art. 109° n° 1 do CP dispõe que "São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos ".
O nº 3 do referido preceito dispõe que "Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.
Assim e atento o exposto, em face da promoção de fls. 647 e ao abrigo do disposto ainda no art. 23° nº 3 do DL nº 28/84, de 20 de Janeiro, declara-se perdido a favor do Estado o gasóleo apreendido e examinado nos autos (n° 005521 identificado a fls. 15).
Notifique.

Recorre a arguida, pugnando pela revogação do despacho e pela sua substituição por outro que oportunamente ordene a devolução do gasóleo.
*
O Ministério Público, na 1ª instância, defende o julgado e, nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, pelo contrário, entende que o recurso deve ser julgado procedente, ordenando-se a entrega do gasóleo apreendido à recorrente, sua legítima dona, tudo nos termos do parecer que a seguir se vai transcrever.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Sobre as questões suscitadas pela arguida e sobre esta motivação, diz o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu Parecer:
Estabelece o artigo 109º do CPenal:
1. São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
2. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.
3.(...).
É sabido que os objectos susceptíveis de perdimento em favor do Estado integram-se em dois grupos:
a) Os objectos que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumenta sceleris) e
b) Os objectos que tiverem sido produzidos pelo facto ilícito típico (producta sceleris).

O primeiro elemento a que obedece a perda dos objectos que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um crime, em que o processo penal corre contra pessoa determinada –, é que tenham sido utilizados numa actividade criminosa. Diversamente do CPenal de 1982 (artigo 107º, n.º 1º), o artigo 109º, n.º 1º citado, utiliza a expressão “facto ilícito típico”, assim bastando a sua verificação – e não, necessariamente, a prática de um “crime” - para ser preenchido conceitualmente tal elemento. Isto no sentido que se torna necessária a verificação de todos os elementos de que depende a existência de um crime, com ressalva (retius, afastamento) dos requisitos relativos à culpa do agente e ao seu conhecimento da antijuricidade, assim se sujeitando à perda tanto agentes imputáveis, como inimputáveis - cfr. Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal [MJ, 1993], Acta n.º 10, fls. 88 e segs., Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, 618 e segs., e Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ª edº, 724 e segs.
Para a produção de uma tal declaração de perda torna-se necessário que cada um desses objectos possua, ao menos, uma destas características:

a) Seja susceptível, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, de pôr em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública;
b) Ou ofereça sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.

Como decorre do texto daquelas Actas, o tecido normativo em equação partiu do princípio orientador da perda se apresentar como uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento, advindo a perigosidade não do instrumento em si, mas da sua ligação com o agente.

Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 31/05/2001 Proc. 1015/02 – 5ª Secção Desembargador: Costa Mortágua:
“O artigo 109, na sua concreta aplicação, sempre terá de atender à natureza do objecto e às circunstâncias do caso. Daí que, ou há perigo de repetição e então há perda de bem, ou, se não ocorre tal pressuposto, procede-se à sua restituição. Não se vislumbram razões para que, por exemplo, no crime ocasional, em que o tribunal tem tal juízo como adquirido, não havendo perigo de repetição, se não restitua o bem. Estando em causa, aqui, a prevenção especial - e não radicando o sentido da perda dos bens nos efeitos que eles possam causar na generalidade das pessoas -, se não há perigosidade criminal, deve proceder-se à restituição, assim se contrariando uma certa sacralização social do instrumento do crime”.
4.2
Uma vez que não houve sequer acusação da arguida, houve suspensão provisória do processo, a perda do gasóleo apreendido – e que foi apreendido por se afigurar necessário “como meio de prova” (fls. 42 e 44) – só poderá acontecer por apelo ao disposto no nº2 do art. 109.
Mister é saber se aquele gasóleo, “…pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso” põe em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferece sério risco de ser utilizada para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Ora, não tendo sido realizada qualquer perícia a determinar que o gasóleo em causa estivesse corrompido ou adulterado, sendo aliás, uma mercadoria de venda livre, concluiu-se, contudo, e no que aqui interesse, e na sequência duma perícia constante dos autos – vd. fls. 256 verso – que “O posto de abastecimento de combustíveis mantém-se de acordo com o projecto e com o respectivo regulamento de segurança. A única situação anormal verificada prende-se com o facto de parecer existir dois tipos diferentes de gasóleo rodoviário, identificados com cores e preços distintos, mas que, na verdade, são ambos o mesmo produto pois estão armazenados no mesmo reservatório”.
Assim, apresenta-se evidente que o gasóleo é o mesmo, a mercadoria é a mesma, só que esta estava a ser vendida a dois preços.
E porque assim ocorre, não se verificando as circunstâncias previstas no referido art. 109 do CPenal – mormente a mercadoria não é objectivamente perigosa sendo a sua detenção e venda livres -, contrariamente à posição do MºPº na 1ª instância, posição que muito respeitamos, deverá o recurso ser julgado provido No mesmo sentido, veja-se o acórdão de 13/04/2010 da Relação de Lisboa, proc. 1369/09.7P5LSB.L1-5, relator desembargador Vasques Osório: I - O instituto da perda dos instrumentos e produtos do crime funda-se em razões de prevenção de futuros crimes face à perigosidade daqueles sendo requisitos da declaração de perda: - Que os objectos tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico ou; que tenham sido o produto, o efeito do facto ilícito típico; - A perigosidade dos objectos.
II – O uso da expressão «estivessem destinados a servir» permite a conclusão de que o perdimento não depende da consumação do facto. Quanto à referência a «facto ilícito típico» em substituição de «crime» explicita que a aplicação do instituto não depende da existência de culpa.
III – Quanto à perigosidade são razões de ordem preventiva que estão na base da perda dos instrumentos e produtos.
IV - A perigosidade deve ser considerada de um ponto de vista objectivo. Aqui, há que atender à perigosidade do objecto em si mesmo, face às suas próprias características, e desligado da pessoa que o detém.
V - Mas a perigosidade deve ser avaliada também em concreto isto é, em função das concretas condições em que o objecto pode vir a ser utilizado. E esta relação entre a perigosidade objectiva do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode determinar uma referência ao próprio agente implicando, nesta medida, que na avaliação da perigosidade intervenha também um ponto de vista subjectivo.
VI - Assim, o ponto de partida é sempre a perigosidade objectiva do objecto, à qual se devem juntar as concretas circunstâncias do caso e a personalidade do agente que através daquela prática se revela, para, numa análise global, se concluir a final, pela perigosidade ou não e consequente perda ou não, do objecto...

Face a este douto trabalho, seria perda de tempo estar a procurar dizer por outras e menos sábias palavras o que lapidarmente está dito.
E assim, na plena adesão a tal parecer, temo-lo como fundamentação bastante da razão do recorrente, pois que nada permite que o produto apreendido deixe de ser entregue à sua legítima dona, a recorrente.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em se julgar o recurso procedente.
Sem custas.
Guimarães, 10 de Julho de 2014